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Gustavo Barreto Vilhena de Paiva*

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Academic year: 2021

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Paris: Vrin, 2013, 256 p. (Translatio. Philosophies Médiévales).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva*

___________________________________________

1.

O novo volume da coleção Translatio da editora Vrin vem acrescentar Henrique de Gand ao cada vez mais abrangente elenco de autores medievais traduzidos nos livros da série (um dos quais, aliás, tive a oportunidade de resenhar em um número anterior deste caderno).1 Além disso, com essa publicação, Dominique

Demange, já autor de um importante livro sobre João Duns Escoto também resenhado aqui em um número anterior,2 contribui para a discussão sobre um

dos trechos mais complexos e fundamentais da obra do Doutor Solene, a saber, as primeiras questões do primeiro artigo da sua Suma de questões ordinárias. Mais precisamente, Demange apresenta aqui uma tradução francesa em edição bilíngue, com introdução e notas, de Suma, art. 1, qq. 1-3. Até onde pude verificar, esse texto conta com mais duas traduções, ambas para o inglês: a primeira, publicada por Robert Pasnau em 2002,3 de Suma, art. 1, qq. 1-2, e a

segunda publicada por Roland J. Teske em 2008,4 com todas as doze questões do

artigo 1 da Suma. Dito isso, está claro que simplesmente por apresentar uma                                                                                                                          

* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: JACQUES DE VITERBE. L’âme, l’intellect et la volonté. Textes

latins introduits, traduits et annotés par Antoine Coté. Paris: Vrin (Translatio. Philosophies Médiévales), 2010, 238 p.”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 3 (2011), pp. 14-24.

2 STORCK, A. “Resenha de: DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et

non”, 2007, 474p.”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 1 (2009), pp. 16-21.

3 PASNAU, R. (ed.). The Cambridge Translation of Medieval Philosophical Texts. Vol. 3: Mind and

Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 93-135.

4 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Article One: On the Possibility of Human

Knowledge. Translated and edited by Roland J. Teske. South Bent: St. Augustine’s Press, 2008. Sobre R. J. Teske, cf., neste mesmo volume do caderno, a resenha de “TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. Milwaukee: Marquette University Press, 2012, 275 p. (Marquette Studies in Philosophy, n. 76)”.

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nova tradução, desta vez para o francês, Demange já merece crédito pelo trabalho.

Porém, tão importante quanto a tradução dada a público é a referida introdução que a acompanha no volume. Mais do que um simples resumo do texto apresentado em seguida, Demange desenvolve na introdução toda uma complexa interpretação da doutrina da intelecção defendida nesse início da Suma por Henrique. De fato, o próprio texto traduzido reclama um tal esmero interpretativo de seu leitor e, principalmente, de alguém que se proponha a vertê-lo, dado o seu caráter basilar para o desenvolvimento de todo o restante da Suma – isto é, dos seus longos 74 artigos seguintes. É precisamente nessas primeiras páginas da obra que o Doutor Solene fornece a mais completa exposição da sua doutrina da intelecção. E, além dos vários problemas que essa própria doutrina já traz consigo, uma decisão em particular na sua exposição se mostrou vexatória para seu leitores tardios, entre os quais nós mesmos: ele inicia a Suma rechaçando a possibilidade de se negar o conhecimento. Com alguma liberdade e um certo anacronismo, poderíamos dizer que ele parte de uma refutação do ceticismo5 para, a partir dela, apresentar sua defesa da

‘possibilidade de se ter ciência’ – esse é, ademais, o próprio título do artigo 1 da

Suma, de possibilitate sciendi. As perguntas que ficam são, então: donde provém

esse ceticismo refutado? Qual é o papel dessa refutação no desenvolvimento da doutrina da intelecção de Henrique?

Ao que parece, é a perguntas deste tipo que Demange pretende responder na introdução à sua tradução. Sendo assim – e acompanhando a própria organização do livro –, pretendo a seguir discutir esse ensaio introdutório. Em um segundo momento, destacaremos alguns temas relacionados à tradução apresentada no volume.

                                                                                                                         

5 O próprio Henrique de Gand não se utilizaria de um termo semelhante a ‘ceticismo’ como

denominação da posição por ele combatida. Talvez um termo mais fiel ao texto do Doutor Solene fosse uma expressão como “aqueles que negam qualquer ciência” ou algo assim. Entretanto, seguirei aqui Demange no uso do termo ‘ceticismo’ que, não obstante anacrônico, se mostra simplesmente mais prático e fiel ao comentador resenhado.

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  II.

A dificuldade mais patente em abordar o problema do ceticismo na obra de Henrique de Gand é a sua complexa recepção pelos seus leitores contemporâneos. Um mérito de Demange é, justamente, haver levado em consideração uma boa parte dessa bibliografia auxiliar existente atualmente, que é por ele enumerada ao final do volume resenhado (pp. 251-253). Se, por um lado, essa bibliografia razoavelmente vasta permite uma abordagem aprofundada do tema, por outro, ela gera a necessidade de uma cuidadosa reflexão por parte daquele que deseje contribuir para a discussão nesse campo dos estudos sobre a obra do Doutor Solene.

O primeiro passo de Demange, após uma rápida apresentação da vida, produção e relevância histórica de Henrique de Gand (pp. 7-8), é introduzir o problema que aflige este último no início da Suma – a saber, a sua já referida pesquisa de possibilitate sciendi, isto é, sobre “la possibilité du savoir” (pp. 9-12). Nesse trecho, busca-se mostrar como a doutrina da intelecção aí desenvolvida se insere no contexto das discussões filosóficas do século XIII acerca do conhecimento intelectual e, em geral, do conhecimento verdadeiro. De certo modo, a concepção de intelecção apresentada por Henrique surge aqui como o resultado de um longo processo de especulação acerca da verdade enquanto intelecção divina e da relação desta com a verdade tal como concebida pelo homem. Nessa contraposição, ocorre o embate entre a noção de abstração (que pressupõe um conhecimento intelectual originário dos sentidos) e o exemplarismo (que exige, de algum maneira, um acesso à verdade tal como ela é no próprio intelecto divino). Segundo Demange, esse embate se cristaliza na obra do Doutor Solene como a oposição entre a iluminação geral de Deus (que permite ao homem a abstração intelectual) e a iluminação especial (que dá ao homem acesso à verdade eterna): “a necessidade da ‘iluminação especial’ que vem completar (como?) a iluminação geral de Deus no conhecimento humano encontra sua origem na convicção de que o julgamento racional não pode encontrar no processo aristotélico de abstração um fundamento suficiente” (p.

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12).6 É essa oposição entre ‘iluminação especial’ e ‘iluminação geral’ que torna,

necessariamente, questionável a possibilidade de conhecimento verdadeiro, pois, como Demange destaca neste excerto: como poderia ocorrer esse necessário complemento da iluminação geral pela iluminação especial? É nesse contexto que surge o ceticismo como problema na Suma de Henrique, pois se tal complemento não puder ter lugar, torna-se impossível o conhecimento verdadeiro – o ‘ter ciência’, scire, ‘savoir’ (no francês de Demange) – para o homem.

Agora, portanto, o autor se encontra em posição de estudar como o Doutor Solene aborda o desafio cético (pp. 12-16). O contexto da Suma em que esse tema surge é a necessária defesa da possibilidade do conhecimento verdadeiro (científico) para que, em seguida, seja possível defender que há uma teologia enquanto ciência (pp. 12-13). Notando que “[i]l n’y a pas des sceptiques au Moyên Âge” (p. 13), o autor buscar explicar esse interesse de Henrique pelo ceticismo por meio de um acontecimento contemporâneo à produção do início da Suma, a saber, as famosas condenações de 1277, fruto do estabelecimento de uma comissão pelo bispo Estêvão Tempier, a qual era composta, entre outros, precisamente pelo próprio Doutor Solene.7 Sendo uma tentativa de oposição

teológica a qualquer especulação filosófica que se pretendesse independente da teologia, a condenação de 1277 teria ganhado uma “version théorique et doctrinale” (p. 15) nas questões iniciais da Suma de Henrique. Dessa maneira, o texto em tradução surge não como uma refutação do ceticismo, mas como um ataque a qualquer pretensão de autonomia da filosofia com relação à teologia, pois (e esse é o ponto crucial) a filosofia por si só está sujeita ao ceticismo e dele só escapa pela “lumière théologique” (pp. 14-15).

Ora, não havendo céticos em sua própria época, Henrique teve que                                                                                                                          

6 “La nécessité d’une « illumination spéciale » qui vienne compléter (comment ?) l’illumination

générale de Dieu dans la connaissance humaine trouve son origine dans la conviction que le jugement rationnel ne peut trouver dans le processus aristotélicien d’abstraction un fondement suffisant”.

7 Cf. PORRO, P. “An Historiographical Image of Henry of Ghent”. In: VANHAMEL, W. (ed.).

Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the Occasion of the 700th Anniversary of his Death (1293). Leuven University Press, Leuven, 1996, pp. 373-403.

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buscar o material para tal discussão em escritos antigos, donde o interesse pelo estudo das fontes desse ceticismo descrito pelo Doutor Solene, que surge como um excurso de Demange sobre a história do ceticismo (pp. 16-27). Muito embora possa servir como uma introdução ao tema para um leitor com menos conhecimento sobre a história do ceticismo antigo e tardo-antigo, o mais importante nessa passagem é a própria descrição das fontes utilizadas por Henrique – e elas não deixam de surpreender. Enquanto o uso dos diálogos

Acadêmicos de Cícero (mais precisamente, do Lucullus ou Academica priora) e do Contra acadêmicos de Agostinho não parece inesperado, a utilização da Metafísica

de Aristóteles, por outro lado, merece explicações. O uso conjunto dessas três obras como fontes para descrição dos argumentos céticos se deve ao fato de que, para Henrique, os acadêmicos negavam a possibilidade de se ter ciência tal como certos pré-socráticos8 o faziam (pp. 16-17). Assim, se Cícero e Agostinho

são ótimas fontes para a doutrina dos acadêmicos, Aristóteles o é no que diz respeito àquelas dos pré-socráticos. Como se pode ver, por outro lado, não há qualquer fonte pirrônica que seja utilizada por Henrique.

Em um segundo momento do estudo das fontes do Doutor Solene, Demange se volta para autores do século XIII que tenham relacionado aquele exemplarismo de que ele já falara antes e a problemática cética. Nesse ponto, surge Boaventura de Bagnoregio que busca, nas suas Questões disputadas sobre a

ciência de Cristo, um compromisso entre a influência especial (que pode levar ao

ceticismo pela atribuição de todo conhecimento somente a Deus) e a influência geral de Deus quanto ao conhecimento humano – um projeto de compromisso semelhante àquele mesmo que Henrique pretenderá defender (pp. 27-33). Ou seja, está claro que se, como quer Henrique, o ceticismo surge ao confiarmos unicamente na razão natural, ele também advém quando buscamos atribuir todo conhecimento unicamente a Deus como sua origem, como mostra Boaventura. Henrique pretende fugir de ambas as consequências na sua proposta de compromisso entre abstracionismo e exemplarismo (pp. 31-32). E é para ela que                                                                                                                          

8 Mais uma vez, sigo Demange na utilização de um vocabulário anacrônico, mas útil didática e

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Demange se volta a seguir.

Ele começa por lembrar que tal proposta – “uma síntese original, e particularmente sofisticada, entre as teorias do conhecimento de Aristóteles e de santo Agostinho” (p. 33)9 – está expressa pelo Doutor Solene em uma

estrutura argumentativa organizada em torno de questões. A primeira – “utrum

contingat hominem aliquid scire” ou “s’il est possible à l’homme de savoir quelque

chose”, na sua tradução (pp. 60-61) – é dedicada à refutação dos argumentos céticos e ao estabelecimento da possibilidade de se ter ciência (scire). Porém, essa resposta é matizada quando, na segunda questão – “utrum contigat hominem

aliquid scire sine divina illustratione” ou, no francês, “s’il est possible à l’homme de

savoir quelque chose sans illumination divine” (pp. 112-113) –, Henrique afirma que, embora possamos ter ciência naturalmente (ex puris naturalibus ou ‘par les seuls moyens naturels’), a ciência da verdade da coisa (veritas rei ou ‘vérité de cette chose’), isto é, da verdade sincera (sincera veritas ou ‘vérité authentique’) só é possível por uma iluminação divina (pp. 33-40). Dessa doutrina se deriva uma das mais polêmicas afirmações do Doutor Solene, há saber, que há uma duplex

veritas (“une double vérité”): uma é um conhecimento estritamente filosófico e

natural (lido em Aristóteles), portanto falho; outra é o conhecimento teológico, de origem sensível e abstraída, mas elevado à verdade sincera pela luz divina (lido em Agostinho e Platão). Como Demange nos lembra, essa doutrina da dupla verdade possui um desenvolvimento complexo na história da filosofia e um polêmico auge em fins do século XIII. Em referência a esse desenvolvimento histórico da doutrina, somos remetidos na nota 2 da p. 40 do livro resenhado, entre outros textos, à obra recente de Luca Bianchi sobre o tema (pp. 40-43).10

Não deixa de ser curioso o fato de que, após essa descrição das questões 1 e 2 do artigo 1 da Suma, Demange deixe de lado a questão 3 e encerre sua introdução por uma reflexão sobre a posteridade das posições expostas por Henrique (pp. 43-48). Ora, Suma, art. 1, q. 3 – “utrum homo cognoscat lucem                                                                                                                          

9 “A cet égard, les premières questions de la Summa d’Henri de Gand proposent une synthèse

originale, et particulièrement sophistiquée, entre les théories de la connaissance d’Aristote et de saint Augustin”.

10 Cf. BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”. Paris: Vrin, 2008. (Conférences Pierre

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divinam qua cognoscit alia” ou, no francês de Demange, “si l’homme connaît la

lumière divine par laquelle il connaît les autres choses” (pp. 200-201) – é de extrema importância para a economia desse começo da Suma, porque é justamente aqui que se resolve aquele problema posto por Boaventura, a saber: como se pode atribuir o conhecimento a uma influência especial sem concluir que ele provém unicamente de Deus? Pior: como podemos dizer que os homens veem a luz divina sem afirmar que eles sejam beatos ainda nesta vida? Esses problemas só podem ser resolvidos pelo Doutor Solene através de uma cuidadosa descrição de um processo de intelecção que agregue abstração e iluminação como partes igualmente fundamentais do conhecimento intelectual da verdade. Isso é, precisamente, o que Henrique de Gand busca fazer na terceira questão da Suma. Por alguma razão, Demange deixa de lado todo esse texto em sua introdução de maneira que esta última, tão interessante quanto seja, é deixada incompleta enquanto estudo da tradução que a segue.

III.

Como é padrão em todos os volumes da coleção Translatio editada pela Vrin, a edição resenhada é bilíngue. O texto francês é apresentado à direita, ao lado do texto latino na página oposta. Tendo por base a edição crítica latina de Gordon A. Wilson, tanto a paginação da edição crítica11 como aquela da edição de 152012

são apresentadas à margem dos textos francês e latino. O tradutor inseriu uma numeração de parágrafos nos textos latino e francês, a qual está ausente das edições latinas. Além disso, ele seguiu os subtítulos que os editores contemporâneos haviam inserido no texto para demarcar elementos estruturais da questão, como “solutio” etc. (nesse caso, tais subtítulos aparecem igualmente no texto latino e na versão francesa), mas adicionou outros subtítulos, descritivos também (mas não só) de conteúdos abordados em cada etapa (estes surgem somente no texto francês). Por fim, o tradutor tomou por base as                                                                                                                          

11 HENRICUS DE GANDAVO. Summa (Quaestiones ordinariae), art. I-V. Edidit G. A. Wilson.

Leuven: Leuven University Press, 2005. (De Wulf-Mansion Centre, series 2 – Henrici de Gandavo Opera Omnia 21).

12 HENRICUS A GANDAVO. Summae Quaestionum Ordinariarum <...>. 2 vols. Parisiis: in aedibus

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referências bibliográficas fornecidas pelos editores no aparato de fontes e citações para elaborar um conjunto de notas à versão francesa mais facilmente consultável pelo leitor (especialmente, pelo leitor de língua francesa, uma vez que muitas das referências são, nesta tradução, às versões francesas dos autores citados). Muitas dessas decisões editoriais são descritas cuidadosamente nas pp. 49-51 do livro resenhado.

No que diz respeito à própria tradução, pretendo atentar rapidamente para alguns elementos mais problemáticos para qualquer um que se proponha a traduzir esses textos de Henrique. Para tanto, utilizarei, também, aquelas traduções elencadas no início da resenha.13

A meu ver, o grande problema na tradução desse texto são algumas expressões ou palavras-chave utilizadas tecnicamente por Henrique de Gand no decorrer de toda sua abordagem da doutrina da intelecção em Suma, art. 1, qq. 1-3. Um conjunto de difícil tradução – apesar de sua aparente facilidade – é

scire-cognoscere-intelligere e termos associados (como scientia, cognitio, intellectio, intelligentia, notitia). Para scire, Demange utiliza ‘savoir’ (e.g. p. 73), enquanto

Teske e Pasnau se servem de ‘to know’ (ou ‘knowing’). Nesse ponto, a escolha de Demange parece mais interessante, pois ele poderia evitar problemas no momento em que Henrique contrapuser scire e cognoscere, que em francês serão ‘savoir’ e ‘connaître’ (p. 129), enquanto Teske, no mesmo excerto, recorre à oposição ‘apprehending-knowing’ (o que lhe causa embaraço ainda no mesmo parágrafo, uma vez que o mesmo ‘apprehending’ surge também como tradução do latim apprehendere) e Pasnau encontra uma solução melhor do que a deste último pela oposição ‘cognizing-knowing’. Por outro lado, o próprio Demange deixa escapar essa chance de manter uma coerência na tradução ao verter, em uma mesma passagem, scibile - modum sciendi - sciri por ‘connaissable - mode de connaissance - connaître’ (pp. 120-121). Ou seja, ‘connaître’ termina sendo utilizado por Demange para traduzir tanto scire como cognoscere, termos claramente distintos em Henrique de Gand. Além disso, ‘connaître’ ainda surge como tradução para notitia, sem bem que nesse caso o termo latino seja                                                                                                                          

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apresentado entre parênteses e em itálico ao lado da tradução (p. 129). Para

intelligere e seus derivados, Demange reserva o francês ‘intelliger’ e suas

modificações (e.g. pp. 130-133).

Outra expressão de difícil tradução – agora, não pela variedade de vocabulário, mas pelo próprio caráter um tanto sintético ou, mesmo, lacônico do latim escolástico – é “ex puris naturalibus”, usada frequentemente por Henrique em oposição ao conhecimento por iluminação, influência ou auxílio divino. Não parece haver muito a fazer ao traduzir tal expressão, senão adicionar alguma palavra que seja caracterizada por ‘puris naturalibus’. Os três tradutores, nesse caso, concordam em adicionar o termo ‘meios’ à expressão. Assim, Demange usa ‘par les seuls moyens naturels’ (p. 185), enquanto Pasnau e Teske utilizam ‘by purely natural means’, na mesma passagem. Nesse ponto, as traduções inglesas têm a vantagem de conservarem o ‘purely’ como reminiscência do ‘puris’ latino, algo que a tradução francesa não faz.

Para terminar, desejo somente chamar a atenção para um elemento constante que parece impor alguns limites à tradução de textos escolásticos latinos para línguas contemporâneas, a saber, o uso do neutro latino. Em geral, é muito comum se utilizar do termo ‘coisa’ para a tradução de alguns usos do neutro. Assim, ‘aliquid scire’ poderia ser traduzido por ‘conhecer (ter ciência de) alguma coisa’. Com isso, terminamos inserindo um importante termo técnico, fundamental para a metafísica escolástica, em uma passagem na qual ele originalmente não surgia (isto é, a passagem original era ‘aliquid scire’ e não ‘aliquam rem scire’). Porém, em línguas com partículas remanescentes do neutro latino – como ‘algo’ em espanhol e português – é possível, igualmente, traduzir essa expressão por ‘conhecer (ter ciência de) algo’. No caso do inglês e do francês, a tradução de expressões daquele tipo se torna mais problemática, pois deverão ser utilizados, respectivamente, ‘something’ ou ‘anything’ e ‘quelque chose’, como traduções de aliquid. Ou seja, ao que parece, necessariamente deveremos introduzir uma res (‘thing’ ou ‘chose’) em um contexto em que ela não surge. Essa dificuldade se torna patente nas formulações das questões 1 e 2 de Henrique, seja em Demange (pp. 60-61; 112-113) ou em Teske (que prefere

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‘something’) e Pasnau (que utiliza ‘anything’). O caso da terceira questão é interessante, pois não surge aqui um aliquid, mas um alia (“utrum homo cognoscat

lucem divinam qua cognoscit alia”). Mesmo aqui, onde o francês e o inglês

poderiam dispensar uma referência a ‘coisa’, Demange traduz alia por “les autres choses” (p. 200-201) e Teske por “other things”, quiçá para manter uma coerência com as formulações das outras questões.

Com essas últimas observações, não pretendo criticar as traduções referidas aqui ou aquela de Demange em particular. Quero somente apontar para o quão limitadas podem ser, por vezes, as versões traduzidas de textos escolásticos com respeito ao original latino, simplesmente porque muitos dos recursos de que os autores medievais se valiam para expressar sua filosofia são recursos próprios à língua latina. Assim, era possível em latim generalizar certas afirmações sem a utilização do termo res, que fica reservado para um uso técnico muito preciso. Em traduções contemporâneas, por outro lado, é comum se utilizar ‘coisa’, ‘cosa’, ‘thing’, ‘chose’ para verter certas expressões generalizantes. É parte do interessante exercício de tradução tentar driblar certos limites e, com alguma criatividade, utilizar recursos de uma língua para expressar nela recursos diferentes que uma outra língua possuía.

IV.

Para concluir, o volume publicado por Demange certamente enriquece a bibliografia acerca de Henrique de Gand e, em particular, o pequeno conjunto de traduções de suas obras que está disponível. Além disso, a introdução ao volume é de grande valor para o leitor do início da Suma do Doutor Solene. Por isso mesmo, é de se lamentar que não se tenha completado o estudo introdutório por uma exposição de Suma, art. 1, q. 3, também traduzido no volume, como vimos. Ademais, seria interessante que houvesse na introdução algumas observações sobre eventuais decisões terminológicas mais complexas que tenham ocorrido no processo de tradução. Como vimos nestes últimos parágrafos, várias são as dificuldades implicadas na passagem do latim de Henrique para o francês (inglês, português etc.). Essas dificuldades, deve-se

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destacar, não são fortuitas, mas são a expressão dos complexos recursos linguísticos necessários para a expressão de certos conteúdos filosóficos. Dessa maneira, tais problemas de tradução se mostram, por si mesmos, ótimas ocasiões para a discussão da filosofia ou teologia do autor traduzido e da intepretação que o tradutor possui acerca delas. Por um lado, o estudo introdutório de Demange é empobrecido pela ausência de uma tal discussão. Por outro, ele se torna interessante ao se voltar para um tema polêmico na atual recepção filosófico-historiográfica de Henrique de Gand, a saber: a sua complexa relação com o que se caracterizaria hoje como ceticismo e a importância deste último para a formação do seu pensamento tal como exposto na Suma.

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