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O CONCEITO DE AÇÃO EM DIREITO PENAL. LINHAS CRÍTICAS SOBRE A ADEQUAÇÃO E UTILIDADE

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O CONCEITO DE AÇÃO EM DIREITO PENAL. LINHAS CRÍTICAS SOBRE AADEQUAÇÃO E UTILIDADE DOCONCEITO DEAÇÃONACONSTRUÇÃOTEÓRICA DOCRIME1

Fabio Roberto D'Avila

Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), Pós-Doutorando pela Johann Wolfgang Goethe Universität (Frankfurt am Main – Alemanha), Bolsista da Fundação Alexander von Humboldt (Bonn - Alemanha), Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.

e-mail: fabio_davila@hotmail.com

I - A ação como supraconceito (Oberbegriff)

Ao longo dos anos, a ciência jurídico-penal tem presenciado inúmeras tentativas de obtenção de um supraconceito de ação (Oberbegriff), onicompreensivo das diversas formas de aparição do tipo de ilícito e capaz de propiciar à dogmática penal um elemento fundante pré-típico, elemento anterior às atribuições axiológicas específicas do Direito Penal, a figurar na tão ambicionada posição de “pedra angular” da construção teórica do crime. Os problemas enfrentados em tal intuito, todavia, têm sido proporcionais à multiplicidade de funções que lhe são atribuídas. Funções consideradas necessárias à justificação da existência da ação como elemento estrutural

1 Este texto foi originalmente publicado no livro “Ensaios penais em homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa”, org. por Ney Fayet Júnior, Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003, pp. 279-304.

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primário e, por este exato motivo, dificilmente afastáveis. Afinal, ou obtém fundada justificativa na relevância das funções por ela exercida ou assistirá à ação um papel meramente figurativo da construção teórica do crime, desprovido, na expressão de Jescheck e Weigend, de um efetivo “valor sistemático”.2/3

De fato, para a obtenção de um conceito unitário de ação, não basta qualquer referência nominal ou atribuição aleatória de significado. A evolução da dogmática tem afirmado que, para o preenchimento sistematicamente sustentável deste privilegiado espaço, torna-se necessário o atendimento a três funções essenciais. (a) Função classificatória (elemento básico), através da qual todas as formas de expressão do ilícito-típico – comissivas e omissivas, culposas ou dolosas – podem ser conduzidas como diferentes espécies de um mesmo gênero representado pela “ação”. (b) Função de

união (função definitória e elemento de união), através da qual o conceito de

ação deve ser detentor de um conteúdo material de tal forma consistente que possa reunir, como elemento estrutural acentuadamente próximo, as atribuições de tipicidade, ilicitude, culpabilidade e, para alguns, também punibilidade, de forma a tornar-se, nas palavras de Roxin, a “coluna

vertebral”4 de todo o sistema penal (função definitória). Não deve, porém,

antecipar qualquer juízo de imputação, mas, isto sim, manter-se absolutamente neutro em relação aos demais elementos do crime (função ou

elemento de união).5 (c) E, por fim, função de delimitação, através da qual o

conceito de ação deve ser capaz de excluir todos os fenômenos que, de

2 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil. 5.ª ed., Berlin : Duncker e Humblot, 1996, p.218.

3 Assim, MARINUCCI, Giorgio, Il reato come ‘azione’. Critica di un dogma, Milano : Giuffrè, 1971, p.1 ss.; JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.218 s..

4 ROXIN, Claus, Strafrecht. Allgemeiner Teil, vol. 1, 3.ª ed., München : Beck, 1997, p.184. 5 Algumas sistematizações optam por diferenciar a função definitória da função de união, como ocorria, por exemplo, nas edições anteriores do Lehrbuch de Jescheck. Contudo a grande proximidade existente entre elas parece tornar preferível uma abordagem conjunta, como o faz Roxin, reunindo ambas sob a função de união.

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antemão, possam ser considerados indignos de qualquer consideração jurídico-penal.6

O atendimento a todas essas exigências, de modo a justificar a função básica estrutural aspirada pelos conceitos unitários de ação, tem-se revelado, entretanto, demasiadamente problemático. Dificuldades que, ao nosso sentir, devem-se não tanto à correção ou incorreção desta ou daquela elaboração, mas às impossibilidades teóricas advindas do próprio objeto em análise. As tentativas levadas a cabo por inúmeras elaborações (v.g., causal, final, social ou negativa da ação), revelam falhas, embora não coincidentes, em pontos substancialmente diversos e de difícil correção. Falhas estas que, já há algum tempo, vêm sendo objeto de crítica não só pela literatura especializada, como ainda por inúmeros manuais de Direito Penal, e, nesta medida, também elemento propulsor do surgimento de teorias alternativas como o “conceito

pessoal de ação” de Roxin,7 representativo, a nosso ver, de uma das

propostas mais consistentes de que se tem notícia nos últimos anos. Mas não só. As contundentes críticas às tentativas de construção de um supraconceito multifuncional de ação, capaz de, assim, corresponder aos exigentes anseios da dogmática penal, têm dado vazão a uma segunda alternativa: a renúncia a um tal conceito pré-típico de ação, em prol da realização típica como categoria elementar-estrutural da teoria do crime.

Este percurso, assinalado pela renúncia a esse pesado conceito de ação, ao qual, pelas razões deste breve escrito, confiamos a nossa adesão, encontra seus fundamentos já nos célebres trabalhos de Beling, Die Lehre

vom Verbrechen (1906),8 e Radbruch, Der Handlungsbegriff in seiner

Bedeutung für das Strafrechtssystem (1904),9 e assume incontornável

6 Assim, ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.184 s.; MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.3; JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.219.

7 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202 ss..

8 BELING, Ernst, Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1906, p.v, Vorwort. 9 RADBRUCH, Gustav, Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutung für das Strafrechtssystem, Berlin : Guttentag, 1904, p.141 ss..

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expressão nas investigações de, entre outros, Gallas,10 Roxin,11 Lenckner,12

Otto,13 Figueiredo Dias,14 Fiandaca e Musco15 e, principalmente, no estudo

específico e exaustivo desenvolvido por Marinucci, Il reato come ‘azione’.

Critica di un dogma (1971).16/17

Não se trata, portanto, de uma proposta nova ou doutrinariamente isolada, em que pese pouco noticiada pela literatura jurídica brasileira. Ao contrário, como bem ilustram as referências acima, trata-se de posicionamento jurídico solidamente respaldado, que se tem afirmado, ao longo de debates e investigações cientificamente comprometidas, nos mais diversos e significativos espaços de discursividade jurídico-penal.

Não se pretende, contudo, afirmar a ausência de uma qualquer potencialidade didática ou teórico-expositiva expressada por um conceito unitário de ação18 nem, pois, sua absoluta inutilidade dogmática em uma 10 GALLAS, Wilhelm, «Zum gegenwärtigen Stand der Lehre vom Verbrechen», in: Beiträge zur Verbrechenslehre, Berlin : de Gruyter, 1968, p.29.

11 Referimos a posição antes sustentada por Roxin, em ZStW 74 (1962), p.548 s., com tradução em língua portuguesa: «Contribuição para a crítica da teoria finalista da acção», in: Problemas Fundamentais de Direito Penal, tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 2. ed., Lisboa : Vega, 1993, p.108 s..

12 SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch Kommentar, 26.ª ed., München : Beck, 2001, Vorbem.37, vor §13 (p.156).

13 OTTO, Harro, Grundkurs Strafrecht. Allgemeine Strafrechtslehre, 6.° ed., Berlin; New York : de Gruyter, 2000, p.51 s..

14 DIAS, Jorge de Figueiredo, Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas, São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p.214 ss..

15 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte generale, 3. ed., reimpressa e atualizada com o d. lgs. 30 de dezembro de 1999, n.507, Bologna : Zanichelli, 2000, p.149. 16 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], passim.

17 Para outros trabalhos neste mesmo sentido, ver as referências de SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, ob. cit., [n.12], Vorbem.37, vor §13 (p.156).

18 Mezger, por exemplo, faz menção a razões unicamente didáticas, para que a omissão ainda seja estudada no âmbito da teoria da ação (MEZGER, Edmund, Modernas orientaciones de la Dogmática jurídico-penal, tradução de Francisco Muñoz Conde, Valencia : Tirant lo Blanch, 2000, p.27). Ver ainda, a referência de Mantovani acerca da análise quadripartida do crime (MANTOVANI, Ferrando, Diritto Penale, 4.ª ed., Padova : Cedam,

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dimensão não pré-típica, de conformação mais enxuta.19 O que se quer é, por

outro lado, salientar a impossibilidade de se obter um conceito pré-típico de ação capaz de preencher a totalidade das funções que lhe são atribuídas, como pretendem as mais diversas teorias da ação, de maneira a conferir-lhe a condição de elemento fundamental da doutrina do crime, de pedra angular do sistema jurídico-penal. Impossibilidade que se faz ainda mais evidente no que tange à função classificatória. Muito embora proponha a mais elementar das funções da ação – ação como denominador comum às diferentes formas de surgimento do crime, destacando-se, entre elas, comissão e omissão –, e, por isso, essencial a toda e qualquer proposta conceitual de ação que se pretenda minimamente unitária, consiste indiscutivelmente em uma das mais difíceis de ser alcançada.

Assim, com o interesse voltado mais ao atendimento da função classificatória, poderíamos sintetizar a nossa questão inicial, nos seguintes termos: será possível obter-se um supraconceito de ação, capaz de, em um momento anterior à tipicidade, recepcionar os conceitos de comissão e omissão?

Parece-nos, sinceramente, que não. Para tanto, passamos a salientar alguns dos problemas enfrentados pelas tradicionais teorias da ação, com particular atenção à função classificatória, sem, todavia, por se tratar de críticas já praticamente consolidadas pela doutrina, ingressar em uma análise pormenorizada de cada uma delas. Dedicaremos, nesta medida, mais atenção ao conceito pessoal de ação, elaborado por Claus Roxin.

II - Algumas considerações críticas às diferentes propostas de elaboração de um conceito unitário

1. O conceito causal (natural) de ação

2001, p.132).

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Partindo de uma perspectiva acentuadamente naturalista, os defensores da teoria causal da ação propõem um conceito elaborado a partir de três elementos básicos: conduta humana, voluntariedade e modificação do mundo exterior. O que, já na sua elaboração inicial por Liszt, como bem noticia Roxin, enfrentou problemas exatamente no que tange à absorção do fenômeno omissivo. Afinal, a omissão não altera a realidade e, assim sendo, tornava-se necessária uma correção na tomada de significado dos elementos

conceituais inicialmente propostos.20 A “modificação” do mundo exterior,

tomada inicialmente sob uma perspectiva mais estrita, passa então a conceber, na elaboração de Liszt, não só a “causação”, mas também a “não-evitação” de uma alteração do mundo exterior. Comissão e omissão, reunidas sob um conceito unitário e amplo de ação, assumem, com isso, a forma expressa por uma “mudança do mundo exterior referível à vontade do

homem”.21

Esta forma de perceber a ação conduz, como se percebe, a uma substancial diferença entre ação e omissão na elaboração lisztiniana, como também, diga-se, em relação à concepção de omissão defendida por Beling. Em Liszt, a possibilidade de reconhecer-se na omissão um processo

mecânico, como a “inervação dos nervos motores”,22 próprio do agir, está

prontamente descartada. Para o autor, a omissão não é um fenômeno mecânico, mas o “não emprehendimento de uma acção determinada e

esperada” e, assim, um simples descumprimento às determinações jurídicas

(non facere quod debet facere).23 O que, por sua vez, indica uma profunda

redução do conteúdo de significação autônomo do seu conceito unitário de ação, para os elementos conduta humana e voluntariedade.

Diferentemente não ocorre com a elaboração de Beling. Embora este autor tenha uma concepção eminentemente psicofísica do fenômeno

20 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.187.

21 LISZT, Franz v., Tratado de Direito Penal Allemão, tomo I, traduzido por José Hygino Duarte Pereira, Rio de Janeiro : Briguiet, 1899, p.193.

22 LISZT, Franz v., ob. cit., [n.21], p.198 23 LISZT, Franz v., ob. cit., [n.21], p.206 ss.

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omissivo - “a contenção dos nervos motores” - , sua proposta de um modelo conceitual de ação atende a uma conformação acentuadamente enxuta. No intuito de restringir o conceito de ação verdadeiramente aos seus elementos mínimos, Beling propõe um conceito restrito ao mero “comportamento humano voluntário” (gewolltes menschliches Verhalten), do que resulta tanto a ação em seu sentido estrito – “movimento corporal voluntário” (die gewollte

Körperbewegung) – como a omissão – “imobilidade voluntária” (die gewollte Regungslosigkeit).24 Definição esta que, pela estreita conformação que

apresenta, mereceu do próprio Beling, a referência de “fantasma exangue”.25

Nesta medida, tanto a elaboração de Liszt quanto a proposta de Beling convergem em um conceito de ação estabelecido sobre os elementos

voluntariedade e conduta humana, que, contudo, não parecem atender às

expectativas que lhe são exigidas.

Excluído, de pronto, o elemento conduta humana como capaz de, por si só, conferir existência a um supraconceito de ação, uma vez que, sem uma precisa definição daquilo que se deve entender por isso, não possui ele qualquer significado,26 além de afastar, como é óbvio, toda e qualquer

possibilidade de considerar a pessoa jurídica como sujeito ativo de crime, o que, independentemente do seu mérito, não nos parece salutar em âmbito

categorial-sistemático,27 resta-nos exclusivamente o elemento voluntariedade.

Devemos, por certo, concordar acerca do potencial limitativo do

referido conceito,28 em detrimento de usual crítica quanto a sua excessiva

amplitude.29 Porém, não se apresenta idôneo em relação às demais funções,

mormente no que tange à classificatória. Observe-se que a voluntariedade,

24 BELING, Ernst, Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1906, p.9. 25 BELING, Ernst, ob. cit., [n.24], p.17.

26 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.220.

27 Ver, sobre o tema, FARIA COSTA, José de. «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos», in: Direito Penal económico e europeu: Textos doutrinários. Problemas gerais, vol. I, Coimbra : Coimbra, 1998.

28 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.188.

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embora presente na grande maioria das manifestações do ilícito-típico, não é, em realidade, uma constante em todas elas. Tal é o que ocorre nas hipóteses de crimes omissivos por culpa inconsciente, como, v.g., na omissão do dever de agir, por esquecimento imputável a título de negligência. Não há, aqui, qualquer voluntariedade por parte do agente, uma vez que sequer se ocupa de forma intelectiva acerca da “ação” cometida por si. Além do mais, não nos parece igualmente solucionar a questão, valer-se em uma concepção de voluntariedade potencial, isto é, no fato de ter havido a possibilidade de atender voluntariamente ao mandamento de agir, eis que se manifestar de

forma voluntária e ser possível manifestar-se de forma voluntária não apenas

são categorias logicamente distintas, como a afirmação desta nega a própria

existência, in concreto, daquela.30

Por fim, vale ainda salientar que o próprio Beling, ao elaborar um conceito de ação conformado em termos demasiadamente estreitos, como já observamos, propõe coerentemente, no prólogo de sua obra “die Lehre vom

Verbrechen”, a utilização do tipo penal como elemento primário da construção

do crime. Em memorável assertiva, afirma Beling caber ao Tatbestand a

posição de “pedra fundamental e angular do atual Direito Penal”.31 Idéia a que

voltaremos no final deste breve escrito.

30 Acompanhamos aqui as críticas trazidas por Roxin. ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.187 ss.. 31 “...der Tatbestand ein Grund- und Eckstein des heutigen Strafrechts ist” (BELING, Ernst, ob. cit., [n.24], p.v, Vorwort). Contudo, devemos ainda salientar que, em outro escrito, embora Beling mantenha a afirmação do Tatbestand na posição de conceito-base do Direito Penal, observa, através de uma nota de rodapé, que se deve excluir de tal assertiva o conceito de ação (ver BELING, Ernst, Die Lehre vom Tatbestand, Tübingen : J.C.B. Mohr, 1930, p.8 e nota 1). Tal fato decorre, ao nosso sentir, de o conceito de ação belinguiano encontrar-se muito próximo do conceito de Tatbestand. Como bem salienta Marinucci, para não antecipar os elementos do crime (“internos” ou “externos”) no conceito de ação, o conceito de ação em Beling apresenta-se descomprometido com conteúdos materiais, buscando atender apenas à função “negativa” (MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.50 s.). Para uma detida análise do conceito de ação no pensamento de Beling, bem como das contradições acerca de suas premissas iniciais, ver (MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.51 ss.).

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2. O conceito final de ação

Valendo-se do agir doloso como forma paradigmática do fenômeno criminoso e buscando a elaboração de um conceito ontológico de ação, Welzel propugna um conceito de ação em que, para além do elemento causal, apresenta-se indispensável o atributo finalidade. “A finalidade ou o caráter final da ação”, afirma Welzel, “fundamenta-se no fato de o homem, graças ao seu saber causal, poder prever, dentro de certos limites, as conseqüências possíveis de sua atividade, estabelecer, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, à consecução desses

fins”.32 A finalidade torna-se, pois, “a coluna vertebral da ação final”, na qual,

para o reconhecimento da existência de uma ação humana, apresenta-se imprescindível a verificação de determinadas fases dessa finalidade, a desenvolver-se, inicialmente, (I) em um plano interno, meramente mental, com (a) a antecipação do fim perseguido; (b) a seleção dos meios adequados e (c) a consideração dos efeitos concomitantes; e, em segundo momento, (II) em um plano exterior, com a colocação em prática do curso causal adequado

à obtenção do já anteriormente planeado.33

Como se percebe, a tentativa de superação do modelo causal de ação não se dá a partir de uma verdadeira substituição dos seus pressupostos, nomeadamente da causalidade, mas sim de uma complementação pelo elemento finalidade. O pretendido paradigma ontológico torna-se possível mediante a combinação de dois elementos de natureza igualmente ontológica: a causalidade e a finalidade. Daí afirmar corretamente Marinucci, que o “torto” ontológico da teoria causal não está, aos olhos do finalismo, na

valorização da “causalidade”, mas em havê-la dissociado da “finalidade”.34

Em oposição a esse modelo, todavia, levantam-se inúmeras críticas, que, muito embora tenham sido repetidamente consideradas pelas tentativas

32 WELZEL, Hans, Derecho Penal aleman, trad. da 11.° ed. alemã por Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez, 4.ª ed., Santiago de Chile : Jurídica de Chile, 1997, p.39.

33 WELZEL, Hans, ob. cit., [n.32], p.40 s.. 34 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.70.

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de correção não só de Welzel como de muitos outros finalistas, não obtiveram respostas suficientemente adequadas. No que tange principalmente à função classificatória, em relação à qual a manutenção de um critério ontológico de causalidade já pode antecipar as dificuldades que se impõem, os problemas se tornam absolutamente insuperáveis. Neste exato sentido, Roxin chega a afirmar que hoje sequer se discute sobre a capacidade de o conceito final de ação figurar como elemento primário do sistema jurídico-penal, eis que, pela ausência de causalidade na omissão, torna-se impossível absorver tal forma

de expressão do ilícito-típico.35

Ao exigir a existência de causalidade na ação – causalidade, destaca-se, ontológica –, a teoria final da ação tornou absolutamente insustentável o atendimento à pretendida função classificatória através da compreensão do fenômeno omissivo. Não há causalidade ontológica na omissão e, por isso, menos ainda, possibilidade de controlar o curso causal no sentido de atingir

os fins planeados.36 Logo, não há na omissão uma ação em sentido final.

Diante disso, Welzel busca solucionar a questão, a partir do entendimento do fenômeno omissivo como omissão de uma ação final, isto é, ao omitir, o sujeito deixaria de praticar uma ação final possível. E, nesta

medida, de forma semelhante ao que se passa na teoria causal,37 afirma a

existência de finalidade também na omissão, porém agora uma “finalidade potencial”.38 Da estrutura da direção final da ação, afirma Welzel, deve

desprender-se a “capacidade de ação”, necessária ao “poder final do fato”. Contudo também aqui valem as mesmas objeções direcionadas à teoria causal. Ação e capacidade de ação, finalidade e finalidade potencial, não são,

35 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.190. Sobre a dificuldade do conceito final de ação em absorver os fenômenos omissivos, ver também, WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 30. ed., Heidelberg : Müller, 2000, p.27.

36 OTTO, Harro, ob. cit., [n.13], p.50.

37 Para uma equiparação crítica entre a “finalidade em si” e a “voluntariedade” dos naturalistas, ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.72 ss..

38 Afirma Welzel, nesse sentido, que a “omissão é a não produção da finalidade potencial (possível) de um homem em relação a uma determinada ação” (WELZEL, Hans, ob. cit., [n.32], p.238).

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em hipótese alguma, categorias teóricas equivalentes ou, ao menos, que permitam um denominador comum. Trata-se, na verdade, levando em consideração o pensamento de Welzel, de categorias que se excluem mutuamente. Ou seja, só faz sentido falar-se em finalidade potencial e capacidade de ação na ausência, respectivamente, de finalidade real e de ação real, de uma determinada ação, que embora possível ao sujeito, não chegou a ser praticada, não chegou a existir. Daí absolutamente impossível retirar da “capacidade de ação” o elemento básico comum das manifestações comissivas e omissivas do ilícito-típico: capacidade de ação, de fato, não é ação.39

Devemos também observar, ainda no que tange ao conceito de ação potencial, na elaboração omissiva de Welzel, que tal raciocínio só é possível à luz de uma expectativa de ação informada pelo tipo penal, o que, por si só,

já contradiz a pretendida natureza ontológica e pré-típica da ação finalista.40

Veja-se que, em uma dimensão verdadeiramente ontológica, a própria categoria de capacidade de ação é inimaginável. Sua natalidade está necessariamente condicionada a exigências axiológicas estabelecidas, in

casu, pela norma penal, ou seja, somente haverá omissão, caso haja uma

determinação de agir, caso o sujeito tenha deixado de praticar uma ação que era exigida dele. Não há como se cogitar a omissão de uma ação, sem o dever de praticá-la. Assim, para a formulação de um qualquer juízo acerca da “omissão de uma ação”, é preciso uma referência típica prévia à consideração acerca da ação final, de forma a identificar a existência de um dever descumprido, o que, por conseguinte, como se percebe, subtrai

totalmente a pretendida dimensão pré-típica do finalismo.41/42

39 Nesse sentido, afirma corretamente Roxin que “capacidade para realizar uma ação” não se confunde com a ação em si (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.136).

40 Para as suas razões em sentido contrário, ver WELZEL, Hans, ob. cit., [n.32], p.239. 41 Como bem afirma Gallas, no âmbito dos crimes omissivos é possível falar-se, até mesmo, de uma preexistência da norma jurídica em relação ao próprio conceito de conduta (GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.28).Ver, ainda, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.95 s..

42 Devemos salientar, que a crítica ora formulada é meramente referencial e interessada, daí não termos em consideração os últimos escritos de Welzel. A propósito, ver DIAS, Jorge de

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3. O conceito social de ação

A multiplicidade de formas assumida pela teoria social da ação desde Eb. Schmidt, passando pelos valiosos contributos de Maihofer, Engisch, entre outros, leva-nos, por uma necessidade de síntese, a delimitar as nossas referências, o que se faz em prol do trabalho de Jescheck e Weigend, pela

sua incomparável importância e atualidade.43

Conforme Jescheck e Weigend, agir e omitir, em razão de seus elementos de natureza ontológica, respectivamente “finalidade” (Finalität) e “dirigibilidade” (Steuerbarkeit), são formas de manifestação do homem, que não podem ser reunidas neste mesmo plano. Contudo tal intuito pode ser logrado com êxito, se devidamente considerado a partir do significado desses comportamentos no mundo que os circunda ou, em outras palavras, a partir do seu significado social. A ação assume, pois, a definição de um “comportamento socialmente relevante”, no qual, por “comportamento”, deve-se entender “toda a resposta do homem a uma exigência situacional conhecida ou, ao menos, conhecível, através da realização de uma

possibilidade de reação que lhe é colocada pelo mandamento”.44

Utilizando como ponto de partida um conceito axiológico, isto é, a relevância social, são indiscutíveis as vantagens que angaria quando comparado com as elaborações anteriores, de base ontológica, para a obtenção de um conceito unitário de ação, capaz de reunir as expressões

comissivas e omissivas.45 Não podemos negar, como bem salienta Figueiredo

Dias, que é possível a apreensão não só do agir, mas também do omitir em

Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.209 s. e HÜNERFELD, Peter, Strafrechtsdogmatik in Deutschland und Portugal. Ein rechtsvergleichender Beitrag zur Verbrechenslehre und ihrer Entwicklung in einem europäischen Zusammenhang, Baden-Baden : Nomos, 1981, p.207 ss.. 43 Para uma abordagem mais detida do conceito social, ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.76 ss.. Ver, ainda, em exposição didática de acentuada clareza, WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner, ob. cit., [n.35], p.26 ss..

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um plano pré-jurídico, levando aqui em consideração, valorações sociais outras que não aquelas especificamente jurídico-penais. Porém, assim agindo, a elaboração social acaba por deixar de fora do seu conceito de ação a essência do ilícito nos crimes omissivos, ou seja, “a ação positiva omitida e juridicamente imposta, devida ou esperada”, que, por conseguinte, frustra

claramente a sua função de definição.46

Nos crimes omissivos, o conteúdo de significação social da omissão está de tal forma vinculado com o tipo penal que, para a sua apreensão, impõe-se necessariamente a verificação de significado da descrição típica. Em verdade, o seu significado social decorre exatamente dessa apreciação axiológica, independentemente de uma necessária e autônoma valoração pré-jurídica. Ou, em outras palavras ainda, o significado social da omissão penal advém exatamente da existência de uma obrigação jurídica de agir,

cuja plena expressão, deve ser encontrada no tipo penal.47/48 Daí poder-se

falar, até mesmo, que “os comportamentos socialmente significativos que interessam ao mundo do direito penal são os comportamentos que se

encontram inseridos no tipo legal”.49

E, por fim, merecem ainda a nossa atenção as críticas acerca da excessiva abertura do conceito de “relevância social”, em detrimento da sua função limitativa. Tal fato, como bem noticia Roxin, conduz à inserção, no conceito social de ação, de outros critérios, como voluntariedade, dominabilidade e, no caso de Jescheck, “resposta à exigência situacional”, atraindo para si objeções semelhantes àquelas direcionadas às demais

45 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195. Também, DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.211 s..

46 DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.210 s..

47 Assim, DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.211; ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195 s.; GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.27 s.;MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.78 ss.. 48 Observa corretamente Otto, que a assertiva no sentido de apenas as condutas socialmente relevantes despertarem o interesse jurídico-penal consiste, na realidade, em uma afirmação vazia de conteúdo, pois, para sabermos verdadeiramente acerca dessa relevância, é necessário perguntarmos ao ilícito penal (OTTO, Harro, ob. cit., [n.13], p.51).

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teorias, ou ainda, críticas absolutamente corretas, no sentido da indevida antecipação – e, assim, perda da sua necessária neutralidade – de critérios

de imputação.50

4. O conceito negativo de ação

Esta elaboração, bem representada pelos trabalhos de Herzberg, Die

Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip (1972), e Behrendt, Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen Handlungsbegriffs auf psychoanalytischer Grundlage (1979), busca encontrar na "evitabilidade" um

elemento comum entre ação e omissão. “Em termos jurídico-penais”, afirma Herzberg, “age quem, como garante, não evita algo que poderia evitar”, de forma que, prossegue o autor, é possível definir a ação jurídico-penal, como “o não-evitar evitável em posição de garante”.51 Conceito este que, no

desenvolvimento posterior de Behrendt, assume a forma levemente

modificada de uma “não-evitação evitável da situação típica”.52/53

Porém também esta tentativa de elaboração de um conceito unitário de ação não se mostrou suficientemente eficaz. Em verdade, equivoca-se em um ponto fundamental. Da mesma forma como as tentativas de elaboração de um conceito unitário de ação, positivo, isto é, de um “supraconceito de ação”, fracassam ao generalizar indevidamente elementos próprios dos fenômenos comissivos, também a tentativa de elaboração de um conceito unitário de “ação”, negativo, isto é, de um “supraconceito de omissão”,

50 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.195; DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.211 s.. 51 HERZBERG, Rolf Dietrich, Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, Berlin : de Gruyter, 1972, p.177.

52 BEHRENDT, Hans-Joachim, Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen Handlungsbegriffs auf psychoanalytischer Grundlage, Baden-Baden : Nomos, 1979, p.132. 53 Voltando-se à “evitabilidade” no intuito de encontrar um elemento comum entre ação e omissão, embora com, destaca-se, significativas diferenças em relação às demais, está também o conceito de Jakobs, segundo o qual “conduta é a evitabilidade de uma diferença de resultado” (Verhalten ist die Vermeidbarkeit einer Erfolgsdifferenz) (JAKOBS, Günther,

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enfrenta problemas da mesma natureza. A generalização de elementos comuns aos fenômenos omissivos não apenas transporta para o agir uma realidade claramente estranha a este, como, em razão da própria natureza normativa da omissão, acaba por antecipar na pré-tipicidade elementos de imputação. Ora, como é facilmente perceptível, a evitabilidade de um determinado resultado não é uma questão que possa ser resolvida em âmbito pré-típico, mas problema específico de imputação penal ou, mais

propriamente, de imputação objetiva.54

5. O conceito pessoal de ação

Por fim, impõe-se ainda a análise do que nos parece a melhor proposta teórica – embora não isenta de críticas – para um conceito onicompreensivo de ação, surgida nos últimos anos. Aliás, proposta que desperta o nosso interesse não só pela sua incontestável relevância no espaço de discursividade jurídico-penal. A elaboração da teoria da ação pessoal de Roxin marca uma virada de posicionamento em relação àquele sustentado

em 1962, em artigo publicado na ZStW 74,55 quando propôs, tal qual ora

fazemos, a renúncia a um supraconceito de ação. Afirmava então Roxin: “Creio, com efeito, que nenhuma teoria da acção e, ainda mais nenhum outro conceito fundamentado ontologicamente de modo similar, podem constituir a base de um sistema de que possam derivar resultados práticos. Tais intenções são em princípio inúteis, pois não se pode solucionar nenhum problema jurídico com conceitos que são prévios aos conteúdos de sentido jurídico, precisamente devido ao facto de o serem. É natural que assim seja,

54 Assim, JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222; DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.212; ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.200. Sobre os critérios de imputação objetiva, ver ainda D’AVILA, Fabio Roberto, Crime culposo e a teoria da imputação objetiva, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001, p.38 ss. e 80 ss..

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embora poucas vezes se tome em consideração que não se pode extrair de

um conceito algo que nele não está incluído”.56

A revisão dessa forma de pensar, motivada, como noticia em seu

Lehrbuch, por uma necessidade de questionar o conteúdo da ação típica, ou

seja, o conteúdo deste “elemento” a que se quer atribuir a característica “típica”, bem como a necessidade de um substrato comum, que permita não só uma função de união, mas também de delimitação, levam Roxin à

elaboração do denominado conceito pessoal de ação.57 Todavia, em que

pesem os esforços dispendidos nesse intuito, não nos parece terem superado as incontáveis objeções já enfrentadas pelas demais teorias.

A ação, na teorização roxiniana, assume a forma de “manifestação da personalidade” (Persönlichkeitäusserung), seu elemento fundamental. E como “manifestação da personalidade” deve-se entender “tudo o que for atribuível a um ser humano como centro de ação anímico-espiritual”. Encontram-se, nesta medida, excluídas de plano, todas as “reações” (Wirkungen) meramente somáticas que não estão “submetidas ao controle do Eu”, da “instância condutora anímico-espiritual do homem”, uma vez que, assim sendo, não consistem em manifestações da personalidade. Percebe-se, pois, desde já, uma dependência do conceito de manifestação da personalidade, em relação ao de dominabilidade (beherrschbar), ou seja, as manifestações devem ser “dominadas ou domináveis” pela “vontade e consciência”, para que possam vir a constituir “manifestações da

personalidade”.58

a) Objeções metodológico-classificatórias

56 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.11], p.108.

57 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.201 s.. Ver ainda, ROXIN, Claus, «Il concetto di azione nei piu’ recenti dibattiti della dommatica penalistica tedesca», in: Studi in memoria di Giacomo Delitala, vol. III, Milano : Giuffrè, 1984, p.2103 ss..

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Já no que tange ao aspecto metodológico-classificatório cuja sutileza não implica menor importância, duas considerações críticas se fazem necessárias.

Inicialmente devemos observar que muitas das mazelas dogmáticas ainda hoje encontradas na estrutura dos crimes omissivos devem-se à imposição de uma categoria de referencial positivo – leia-se, a ação –, como seu elemento estrutural básico. De fato, a utilização deste paradigma positivo como elemento primeiro de todos os crimes, comissivos e omissivos, impôs não apenas uma realidade dogmática absolutamente estranha à omissão como, elevando o agir a modelo, relegou o omitir a uma posição claramente excepcional. Bem afirma, neste sentido, Marinucci, que a consideração de algumas espécies como “espécies privilegiadas”, acarreta a conseqüente

degradação das demais, tratando-as como “exceções”, “casos limites”.59

Pois bem, diferente não é o caso da elaboração de Roxin. Como todos os demais conceitos unitários, o conceito pessoal de ação teve de optar por um elemento básico, mantendo, para tanto, e como normalmente é feito, um referencial terminológico positivo, a “ação”. A ação é, aqui, genus e specie, preservando todo o seu potencial discriminatório em relação à espécie omissiva.

No que se refere, por sua vez, à relação entre manifestações do “centro anímico-espiritual” e “manifestações da personalidade”, ainda importam algumas objeções de cunho terminológico ou conceitual. Como já referimos, Roxin realiza uma certa equiparação entre as manifestações do centro anímico-espiritual e as manifestações da personalidade, o que, a nosso ver, conduz a uma exagerada abertura da definição de “manifestação da personalidade”. É indiscutível que toda manifestação da personalidade é uma manifestação anímico-espiritual, afinal ela é formada por manifestações anímico-espirituais, contudo não temos tanta certeza se toda manifestação anímico-espiritual pode ser considerada manifestação da personalidade. Imaginemos, por exemplo, uma hipótese de omissão por culpa inconsciente,

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que ocorre uma única vez na vida do sujeito. Poderá este fato ser considerado uma manifestação da sua personalidade? A resposta obviamente dependerá do significado que é atribuído à “personalidade” e, exatamente aqui, reside a nossa crítica: para uma solução positiva, necessita de demasiada amplitude. Em nosso entender, o conceito de personalidade é mais estrito que aquilo que se pode compreender por pessoalidade, ou seja, por manifestação do ser como pessoa. Expressa-se de forma mais precisa em fenômenos que, de uma forma ou de outra, estão aptos a atribuir feição

própria ao ser ou, em outras palavras, nas manifestações advindas do conjunto de elementos que atribuem uma feição própria ao ser. Como se vê,

muito aquém do conceito roxiniano.

b) Objeções à função limitativa

Embora o nosso interesse esteja voltado mais à função classificatória que veremos em seguida, acreditamos serem de grande proveito para o seu correto entendimento algumas breves palavras acerca da multiplicidade de critérios utilizados por Roxin, no atendimento da função limitativa.

Não é ação aquilo que não corresponder a uma manifestação da

personalidade. Podemos considerar esta assertiva como o critério central da

função limitativa no conceito pessoal de ação. Entretanto não basta saber que, por “manifestação da personalidade”, devem-se entender as manifestações do “centro anímico-espiritual” do agente. É preciso traduzir isso em um critério minimamente heurístico, um critério que possa expressar o que, afinal, deve-se considerar, para fins de limitação, como “manifestação da personalidade”.

Pois bem, logo ao início de sua exposição, Roxin refere-se ao critério “controle do ‘Eu’” (Kontrolle des “Ich”) ou “dominabilidade” pela “vontade” e pela “consciência” (..., die durch Willen und Bewusstsein nicht beherrscht

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dos eventos oriundos de atos realizados durante o sono, em delírio, em

decorrência de um ataque convulsivo e reações puramente reflexas.60 Ou

seja, para que uma determinada manifestação humana possa ser considerada manifestação da personalidade é preciso ser, ao menos,

dominável pela “vontade” e pela “consciência”. Verifica-se, aqui, como já

referido, uma clara vinculação entre dominabilidade/controlabilidade e

personalidade.

Contudo – para abordarmos apenas uma das questões mais complexas –, tal critério não parece obter uma aplicação adequada nas hipóteses dos movimentos reflexos e ações automáticas no trânsito. Este controvertido grupo de casos, já levantado muitas vezes como motivo de objeção para as teorias causal e final em razão da ausência de preenchimento dos requisitos básicos voluntariedade e finalidade respectivamente, representa uma parcela significativa dos acontecimentos no cotidiano moderno. Tanto os movimentos reflexos quanto as ações automáticas, fenômenos que não se confundem, consistem, nas próprias palavras de Roxin, em “movimentos sem reflexão consciente” (ohne

bewusste Überlegung in Bewegung).61 Movimentos em que, quer pela sua

natureza, quer pelas circunstâncias em que estão inseridos, não há “espaço” para uma reflexão consciente sobre o agir.

Ilustrativo, no que tange aos movimentos reflexos, apresenta-se o julgado no qual o motorista, ao realizar uma curva, é surpreendido pela entrada, em seu veículo, de um inseto que, direcionando-se contra os seus olhos, faz com que ele perca o controle do carro, provocando um acidente. No que se refere, por sua vez, aos atos automáticos, que, pela prática continuada, são incorporados ao nosso dia-a-dia como ações espontâneas, imediatas (v.g., caminhar, digitar, bem como a maioria dos atos realizados por um motorista), tem-se o seguinte exemplo: um motorista, em velocidade regular, é surpreendido por um pequeno animal na pista, em razão do que, na

60 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202. 61 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.212.

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tentativa de desviar o veículo, choca-se contra a divisória da pista, causando

a morte do seu acompanhante.62

Em ambos os casos, como bem reconhece Roxin, não há “reflexão consciente”, ou seja, o agir não decorre de uma disposição de vontade consciente do sujeito e, por certo, nem poderia decorrer, pois, se assim fosse, a ação estaria descaracterizada como ato reflexo ou ato automático. Ao contrário, são ações oriundas, no primeiro caso, de um reflexo defensivo e, no segundo, de um automatismo gerado pela prática. O que, ante a “necessidade” de identificar aqui uma ação, torna, como se percebe, inaplicável o critério inicial da dominabilidade pela vontade e consciência.

Assim sendo, Roxin busca solucionar a questão através da proposta de um novo critério que, segundo afirma, estaria inserido na idéia de personalidade: “direção final interna” (innere Zielgerichtetheit) ou “finalidade inconsciente” (unbewusste Finalität), que consistiria na “adaptação do

aparato anímico a circunstâncias ou eventos do mundo exterior”.63

O surgimento desse novo critério leva-nos, de pronto, a três objeções: Primeiro, que a elaboração deste último critério atende, como já bem referimos, a uma “necessidade” de reconhecer aqui uma ação, ou seja, que o conceito pessoal de ação está realmente informado pelo tipo penal, ou, em outras palavras, busca conformar aquilo que é jurídico-penalmente interessante. Demonstra, pois, uma demasiada proximidade de seus critérios, com a axiologia própria do sistema penal, de forma que a personalidade é mais uma personalidade jurídico-penalmente relevante. Segundo, que, a

priori, a possibilidade de reconhecer uma “finalidade interna” – conceito, que,

embora possua capacidade heurística, reclama, ao nosso sentir, um maior desenvolvimento – estaria prejudicada pelo critério inicial de dominabilidade. Não podemos esquecer, que, para Roxin, somente é manifestação da personalidade, aquilo que for dominável pela vontade e consciência, que haja o “controle do Eu”, aqui inexistente. A sua inserção, portanto, como categoria

62 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.211 s.. 63 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.214.

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secundária, posterior, é impossível e, se anterior, acreditamos, termina por esvaziar o critério inicial. Terceiro, que esta multiplicidade de critérios retira em muito a objetividade e utilidade do conceito proposto, decorrente de uma categoria de “manifestação da personalidade” demasiadamente aberta, pluriforme e, por isso, pouco heurística.

c) Objeções à função classificatória

Por fim, devemos abordar o verdadeiro objeto do nosso interesse, a função classificatória. Diga-se desde já, ponto de maior fragilidade do conceito pessoal de ação.

Questiona-se: será possível reunir sob o conceito de manifestação da

personalidade os fenômenos comissivos e omissivos? Para tanto, sugerimos

voltar a um questionamento já mencionado: pode-se considerar como manifestação da personalidade um crime omissivo por culpa inconsciente? Ou, em outras palavras, para usar um exemplo trabalhado pelo próprio Roxin: pode-se considerar o mero esquecimento uma ação, ou seja, uma manifestação da personalidade? Em que pese Roxin afirmar categoricamente que sim, não podemos concordar com um tal entendimento.

Não nos é permitido, neste momento, realizar uma análise pormenorizada da outrora tão discutida natureza da omissão jurídico-penal. Contudo é sabido que as incontáveis tentativas de “naturalizar” a omissão, de encontrar um qualquer elemento ontológico neste peculiar fenômeno, perderam, ao longo dos anos, significativo espaço para as teorias normativas,

de forma a, hoje, podermos afirmar um já significativo consenso.64 A realidade

64 A título unicamente de ilustração, ver CADOPPI, Alberto, Il Reato Omissivo Proprio. Profili introduttivi e politico-criminale, vol.1, Padova : CEDAM, 1988, p.158; PADOVANI, Tulio, Diritto Penale, 5.° ed., Milano : Giuffrè, 1999, p.151; FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.530 s.; MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.137, FRAGOSO, Heleno Cláudio, «Crimes omissivos no direito brasileiro», Revista de Direito Penal e Criminologia, 33 (1982), p.44; MEZGER, Edmund, ob. cit., [n.18], p.27; GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.25

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omissiva, não há dúvida, não pertence ao mundo do ser, mas do dever ser.65

É esta, de fato, a dimensão que lhe confere forma e fundamento. Em síntese, um fenômeno meramente normativo, conformado pelos quadros axiológicos

do ordenamento jurídico-penal.66

Mas, se isso é verdade, torna-se absolutamente impossível cogitar-se a existência de uma omissão, de um esquecimento, em uma dimensão ontológica. Na medida em que a existência da omissão está condicionada a considerações axiológicas, a juízos de valor, faz-se claramente perceptível que, em uma dimensão pré-axiológica, a omissão é o nada, e como nada, não pode ser apreendida, não pode ser, portanto, considerada uma manifestação da personalidade.

Entretanto, muito embora a referida categoria “manifestação da personalidade” traduzida como tudo aquilo que advém do “centro anímico-espiritual do homem” ou, em outras palavras, controlável pela vontade e consciência humanas, indique, em um primeiro momento, uma conformação de caráter ontológico e, por este exato motivo, incapaz de traduzir um fenômeno de natureza axiológica como a omissão, Roxin toma o cuidado de observar também uma dimensão valorativa no conceito proposto. Conforme afirma, o conceito pessoal de ação não possui uma dimensão unicamente

ontológica, mas também valorativa,67 que se torna apreensível a partir da

existência de “expectativas” (Erwartungen) socialmente fundadas. São, segundo o autor, essas expectativas que permitem converter a ocorrência de um “nada”, em manifestação da personalidade, e que, por estarem socialmente fundadas, isto é, dissociadas da esfera de valoração jurídica,

ss..

65 Neste exato sentido, MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.137.

66 Como bem salienta Gallas, a apreensão de um qualquer substrato natural só seria possível a partir do processo volitivo do omitente, que, contudo, falta nas hipóteses de culpa inconsciente (GALLAS, Wilhelm, ob. cit., [n.10], p.25 s.).

67 Observe-se que o conceito pessoal de ação é, na definição de Roxin, um conceito normativo: “der hier entwickelte personale Handlungsbegriff ist also ... ein normativer Begriff”

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permitem a leitura do fenômeno omissivo em uma dimensão pré-típica.68 Em

síntese, o conceito pessoal de ação seria capaz de perceber, através de um juízo de valor viabilizado pela existência dessas expectativas, o descumprimento de um “dever” (expectativa) pré-jurídico de agir e, assim, da ocorrência de uma omissão em uma dimensão prévia ao tipo.

Isso, todavia, não nos parece assim tão claro. Em primeiro lugar, coloca-se saber a partir de qual critério o conceito pessoal de ação pretende avaliar a ocorrência do não-atendimento de uma “expectativa de ação”. A aplicação do critério inicial, isto é, das emanações anímico-espirituais do ser humano, não se apresenta, por certo, idônea em apresentar uma qualquer resposta a tal questionamento. Afinal, onde estaria o elemento axiológico? Novamente nos deparamos com a necessidade de encontrar um outro critério, agora capaz de viabilizar um juízo de valor acerca do bom ou mau atendimento das expectativas sociais. E, ao que tudo indica, tal elemento deve ser acrescentado ao critério-base, a partir de uma dedução da categoria, absolutamente ilimitada na elaboração roxiniana, “personalidade”.

Bem reconhece Roxin: a personalidade, em sua teoria da ação,

funciona não como um só elemento, mas “múltiplas categorias valorativas”.69

Todavia esta conformação que lhe é atribuída pelo autor impõe, a nosso sentir, a aceitação de uma entre duas alternativas. Ou se deve reconhecer uma tal amplitude à personalidade, que a tornaria excessivamente maleável

e, nessa medida, impraticável como critério.70 Ou devemos aqui reconhecer

(ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.215). 68 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207. 69 Ver ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207.

70 Tal afirmação nos parece respaldada pela própria resposta de Roxin às críticas de Jescheck e Weigend. Estes autores, atribuindo uma demasiada estreiteza – que, como já referimos, é, a princípio, esperada – à categoria “manifestação da personalidade”, consideram-na incapaz de atender a determinados casos juridicamente relevantes, como, por exemplo, a omissão de uma determinada conduta, em razão do desconhecimento de uma situação de perigo, que, inclusive, poderia ser punida a título de culpa (JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222). No entanto a resposta de Roxin é negativa. Também essas hipóteses limites estariam compreendidas pelo conceito proposto, o

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uma inegável aproximação do conceito social de ação, substituindo todas essas “múltiplas categorias”, por uma categoria ampla de “relevância social”, sujeita, nesta medida, a todas as críticas que lhe são opostas, inclusive pelo

próprio Roxin.71 Hipótese esta que devemos prontamente afastar, em razão

da própria crítica que lhe é feita por Jescheck e Weigend, bem como pelas

expressas palavras de Roxin.72 Resta-nos, então, mais uma vez, a primeira

hipótese.

Por fim – e aqui se coloca a principal objeção –, mesmo que a personalidade se apresentasse como critério suficientemente delimitado para as funções axiológicas a que se propõe, ainda assim não estaria apta em propiciar um correto atendimento à função classificatória. A única avaliação axiológica que interessa para a apreciação da omissão jurídico-penal, consiste, como já tivemos oportunidade de observar, na avaliação propiciada pela tipicidade, resultando absolutamente despiciendas outras considerações de cunho valorativo. Nem sempre haverá o não-atendimento de expectativas prévias àquela noticiada pelo tipo penal, o que, obviamente, retira a possibilidade de identificar a omissão em uma dimensão pré-típica.

A correção do que ora referimos vê-se vivamente reforçada pelas próprias palavras de Roxin, que, em postura científica exemplar, reconhece, neste particular, a falha do seu conceito de ação. Segundo o autor, existem hipóteses em que o tipo penal é efetivamente o primeiro fator de consideração axiológica, fator primeiro de conversão de um não-fazer, em uma omissão jurídico-penalmente relevante (como, v.g., costuma ocorrer nas

que atesta, a nosso ver, uma excessiva flexibilidade (ver ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.203). Ainda sobre a excessiva amplitude do conceito de Roxin, podemos referir a crítica de Mantovani, segundo o qual a teoria proposta “priva de rigorosi connotati delimitativi” (MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.132).

71 Sobre o conceito social de ação, ver as considerações acima.

72 Um dos objetos de crítica por Jescheck e Weigend é exatamente a falta de preocupação, na elaboração de Roxin, no que tange à relevância social (JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas, ob. cit., [n.2], p.222), que, por sua vez, resta confirmado na resposta de Roxin. Segundo o autor, os seus critérios normativos não devem ser confundidos com os critérios utilizados pela teoria social da ação (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.202 s.).

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legislações penais no âmbito da economia, comércio e indústria).73 Nesses

casos, afirma Roxin, “não há ação antes do tipo”, é, em realidade, o tipo que

pressupõe a ação.74/75

III. Para a renúncia ao conceito de ação como Oberbegriff

As dificuldades enfrentadas na tentativa de encontrar um denominador comum que assim viabilize a construção de um modelo unitário e pré-típico de ação são, de fato, inúmeras, decorrentes da substancial diferença entre natureza dos fenômenos comissivos e omissivos. Daí julgarmos absolutamente atual a já tão conhecida afirmação de Radbruch: “tão certo que um conceito e sua parte contrária, que posição e negação, a e não-a não são possíveis de serem colocados sob um conceito superior comum: tão

certo é que ação e omissão devem coexistir separadamente”.76

Esta lúcida conclusão a que chegara, já em seu tempo, Radbruch, levou-o a afirmar, clevou-omlevou-o única slevou-oluçãlevou-o plevou-ossível, a “desclevou-oncertante” divisãlevou-o dlevou-o sistema em dois conceitos autônomos, ação e omissão. Dever-se-ia, no entender de Radbruch, renunciar à ação como o grande conceito do sistema,

73 ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207.

74 “Es gibt hier vor dem Tatbestand keine Handlung, vielmehr ist der Tatbestand deren Voraussetzung” (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207). No entanto, observa Roxin que o fato de algumas omissões serem indissociáveis do tipo não invalida o critério da manifestação da personalidade, uma vez que expõe devidamente a realidade da existência humana através da conjugação de elementos naturais com axiológicos (ROXIN, Claus, ob. cit., [n.4], p.207) 75 Embora também defensor da existência de uma conduta unitária preexistente ao tipo penal, Galiani tem igualmente de reconhecer a existência de casos em que a conduta (omissão) não preexiste à norma. Referindo-se à omissão própria, afirma: “qui l’omissione, è vero, non «preesiste» all’opera del legislatore. Il ‘comportamento omissivo’ è, fin da principio, determinato dall’esistenza della norma penale che impone il dovere di agire. Manca quindi un’omissione come oggetto «preesistente», cioè «prenormativo», di regolamentazione, dato che l’omissione sorge ‘per le prima volta’ nel momento della sua regolamentazione” (GALIANI, Tullio, Il problema della condotta nei reati omissivi, Camerino : Jovene Editore, 1980, p.109).

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em relação à qual todos os demais conceitos seriam apenas predicados. A ação seria, pois, dividida nos conceitos autônomos de ação e omissão, o que, por conseguinte, implicaria a idêntica duplicação de todos os demais conceitos. Eles passariam, por isso, a ser analisados sempre em uma relação

de duplicidade, como predicados da ação ou predicados da omissão.77

Tal assertiva, ainda hoje absolutamente pertinente, encontrou reconhecimento mesmo entre os teorizadores do finalismo, fervorosos

defensores de um conceito unitário de ação.78 Aliás, não só reconhecimento.

Em sua célebre investigação sobre os crimes omissivos, Armin Kaufmann, vivamente influenciado pelas conclusões de Radbruch, propõe uma elaboração em duplicidade, utilizando-se, para tanto, do denominado

“princípio de inversão” (Umkehrprinzip).79

O acerto da premissa utilizada por Kaufmann não impediu, todavia, que lhe emprestasse uma leitura, em nossa opinião, demasiadamente estreita. Não apenas ao manter a ação como elemento paradigmático como ao aplicar um simples e estrito processo de inversão de signos, Kaufmann acaba por equivocadamente identificar na ausência de finalidade e causalidade, indispensáveis ao agir final, os elementos essenciais da omissão. Bastaria, nessa medida, a supressão desses elementos para, então,

obter-se a essência da omissão como fenômeno.80 Kaufmann conclui daí

poder afirmar o denominador comum entre a ação e a omissão na

“capacidade de agir” (Handlungsfähigkeit).81

O equívoco que perpassa a elaboração de Armin Kaufmann consiste, em realidade, naquilo que vem insistentemente acompanhando o ainda tão incipiente desenvolvimento da teoria dos crimes omissivos, a imposição de

77 RADBRUCH, Gustav, ob. cit., [n.9], p.143. 78 Ver MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.94.

79 KAUFMANN, Armin, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, Göttingen : Otto Schwartz, 1959, p.87 ss..

80 KAUFMANN, Armin, ob. cit., [n.80], p.87. Sobre isto, ver também MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.94.

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um modelo absolutamente estranho a esta particular forma de surgimento do

ilícito-típico.82 Não há dúvida, devemos reiterar, de que o incontestável déficit

apresentado pela dogmática dos crimes omissivos deve-se ao fato de ter continuamente ocupado um lugar secundário em relação aos crimes comissivos. Como se fosse possível, a partir dos estudos desta particular expressão do ilícito-típico, obter-se, quer por dedução, quer por inversão, os elementos necessários também para uma justa reposta penal no âmbito dos tipos omissivos. A omissão, entretanto, não é uma forma que possa derivar do agir nem o seu simples oposto. Mas simplesmente algo diferente, algo diverso, e,como tal, deve ser estudado.

O grande mérito da investigação de Radbruch deve ser entendido, assim o vemos, como uma eloqüente chamada de atenção para a diversidade essencial das formas de manifestação do crime. Para a inadaptação dos elementos decorrentes da infração a uma norma mandamental àqueles oriundos da infração a uma norma proibitiva. De fato, os crimes comissivos e omissivos encontram-se, nesta medida, em uma efetiva relação de oposição, o que, entretanto, não equivale a afirmar que constituam por isso, assim acreditamos, realidades que possam, como reflexo, ser percebidas. Como se em um simples inverter dos elementos estruturais do agir, pudéssemos obter

a complexa estrutura do omitir.83

A irredutibilidade do fenômeno omissivo a um denominador comum advém, pois, da sua manifesta diversidade estrutural e teleológico-funcional.

Diversidade que, anunciada por Radbruch,84 encontra plena receptividade na

82 Ver, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.40 s. e 91 s.; MAZZACUVA, Nicola, Il disvalore di evento nell’illecito penale. L’illecito commissivo doloso e colposo, Milano : Giuffrè, 1983, p.149 s..

83 Segundo Marinucci, “qualquer que seja a (hipotética) função que deva assumir o buscado conceito geral de ação não se pode jamais construir “adaptando” uma ou outra “espécie” à fisionomia de uma qualquer “espécie privilegiada”: adaptando, por exemplo, o “omitir” ao esquema do “fazer positivo” (ou vice-versa) e o fazer (ou o omitir) “culposo” ao fazer (ou omitir) “doloso” (ou vice-versa)”(MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.41). Também, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.525 s..

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moderna dogmática jurídico-penal85 e exige, daí, um estudo dissociado do

fenômeno comissivo, capaz de identificar na natureza normativa específica da omissão, os elementos informadores e conformadores de uma expressão

autônoma, de uma manifestação do ilícito-típico com inegável feição própria.86

Somente tal reconhecimento pode permitir a proposta de soluções adequadas para os incontáveis problemas ainda hoje enfrentados na teoria dos crimes omissivos e obter, a partir daí, avanços que se fazem tão necessários.

Assim, ante a impossibilidade de redução a um conceito unitário e a conseqüências perniciosas de tentativas improfícuas, outra alternativa não nos parece haver, senão a renúncia a um conceito unitário de ação. Com total razão Marinucci, ao afirmar que “hoje, a renúncia a construir um conceito unitário de ação ou ao menos a radical redução de suas funções sistemáticas, aparece cada vez mais como um objetivo não só alcançável,

85 Bem destaca Figueiredo Dias, “a análise do conjunto dos tipos-de-ilícito constantes de um ordenamento jurídico-penal conduz, na verdade, à conclusão de que existem diferenças teleológico-funcionais (e também estruturais) entre quatro espécies de aparecimento do crime e que convidam a uma sua consideração dogmática autônoma: os crimes dolosos de ação, os crimes dolosos de omissão, os crimes negligentes de ação e os crimes negligentes de omissão” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas, São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p.216). Neste mesmo sentido, ver FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.148 s.; e ainda, de forma detalhada, MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.123 ss.. Por outro lado, Mantovani, embora reconheça a impossibilidade de redução ontológica, fundamenta o seu supraconceito de conduta a partir de uma função categorial, que reconhece, nas diversas manifestações do ilícito-típico, “uma exteriorização do homem no mundo social”. (MANTOVANI, Ferrando, ob. cit., [n.18], p.132). De forma semelhante, Mezger procura reduzir ao máximo o conteúdo do seu conceito de ação, propondo, com efeito, a “conduta humana”, como denominador (MEZGER, Edmund, ob. cit., [n.18], p.23 s.).

86 Com razão Fragoso, ao afirmar que a omissão “não é uma modalidade de ação e não é ação negativa, mas algo essencialmente diverso e distinto da ação. No direito penal moderno a omissão constitui forma especial de aparecimento do fato punível” (FRAGOSO, Heleno Cláudio, ob. cit., [n.64], p.44). Também assim, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo, ob. cit., [n.15], p.166.

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senão ademais necessário, ou inclusive o único metodologicamente correto”.87

A célebre assertiva de Beling, em prol do Tatbestand como “pedra

fundamental e angular do atual Direito Penal”,88 faz-se, por tudo isso, ainda

hoje atual. À luz das diferentes propostas para um conceito unitário de ação até então formuladas, a mais coerente alternativa ainda consiste em abdicar de um elemento pré-típico para todas as expressões do ilícito-típico. Não mais a ação, mas o Tatbestand, ou, mais especificamente, a realização do

tipo penal,89 deve ser o conceito-base. Conceito que, em face de sua

essência jurídico-penal, está muito longe dos problemáticos90 e pouco úteis91

conceitos multifuncionais de uma ação pré-típica. Mas não só. Exatamente por esta feição, apresenta-se absolutamente capaz de permitir um desenvolvimento autônomo das diferentes formas de surgimento do ilícito-típico, quer sejam comissivas, omissivas, dolosas ou culposas. Admite, assim, uma leitura quadripartida do ilícito-típico, respeitosa de suas

87 MARINUCCI, Giorgio, ob. cit., [n.3], p.4. 88 BELING, Ernst, ob. cit., [n.8], p.v, Vorwort.

89 DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.215. Vale salientar, no que tange ao pensamento de Mezger, que muito embora adote um conceito unitário de ação, em que pese verdadeiramente mínimo (conduta humana), este autor não manifesta qualquer objeção em relação à proposta de utilizar-se da realização do tipo penal como conceito superior, na medida em que, como bem destaca, a própria defesa da conduta humana como denominador só se faz viável a partir da consideração de todos os tipos penais. Afinal, se houvesse, por exemplo, tipos penais que descrevessem condutas de animais, o conceito de ação como conduta humana perderia a sua validade (MEZGER, Edmund, ob. cit., [n.18], p.24). Neste particular, faz-se oportuno atentarmos para a já referida questão da pessoa jurídica.

90 Bem destaca Figueiredo Dias, “em vista do complexo das considerações anteriores” – acerca das diversas teorias da ação – “é preferível que a doutrina do crime renuncie a encontrar a sua ultima Thule nos resultados de uma excessiva abstração generalizadora e classificatória que vai implicada na aceitação de um qualquer conceito pré-jurídico geral de ação” (DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit., [n.14], p.214).

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