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Kalahari: a sede sensacionalista de Serguilha

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Academic year: 2021

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Resumo: faz-se, neste texto, um estudo da obra Kalahari, de Luis Serguilha, na qual esse autor transfigura paisagens, na constituição de um mundo imprevisto, assi-nalado pelo excesso, pois é resultante da ‘mineralogia das memórias’. O sujeito lírico se apresenta, aqui, como um ‘colecionador de palavras’, que tem a propriedade de de transformar os idiomas em forjas incorpóreas.

Palavras-chave: Kalahari. Eclosão do intraduzível. Poética transgressora. .

Há poetas que lutam com as palavras e as aprisionam, tentando entender o mundo. Há poetas que lutam com as palavras, as perfurantes, e as libertam para que o mundo, em liberdade, se entenda. Estes são aqueles capazes de mergulhar no realismo percepcional para tirar dele uma realidade outra, mais sentida, mais pele no que a pele tem de vida no êxtase das fissuras.

(Jane Tutikian)

D

izer que kalahari é uma obra surpreendente é mera redundância quando

se trata da criação de Luís Serguilha, autor também do excelente Koa´E (lançado no Brasil em 2011 pela Anome Livros), entre outros. Este poeta irreverente, inquieto, criador em toda a amplitude do termo, traz um sopro novo à poesia lusa. É impossível rotular seu fazer poético, engavetá-lo numa ou noutra cor-rente. Serguilha é caso isolado no panorama mais geral da literatura portuguesa do século XXI.

Jane Tutikian**

SENSACIONISTA

DE SERGUILHA*

* Recebido em 03.06.2014. Aprovado em: 23.06.2014.

** Doutora em Literatura Comparada e pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; atua, na mesma Universidade, como professora de Literatura na graduação e pós-graduação.

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Mesmo se pensarmos no experimentalismo surgido nos anos 60 em Portugal, produzido por grandes nomes como Helberto Hélder, Ana Hatherly, Ernesto de Melo e Castro, mesmo se pensarmos na necessidade daquela geração de experimentar obje-tos poéticos outros e na sua insubordinação sintática e morfológica, ainda assim esta-mos diante de um caso isolado. A proposta de Serguilha passa pelo experimentalismo, sim, mas por um viés outro, muito próprio, fortemente individuado, e é aí que se colo-ca o distanciamento, o que queremos demonstrar.

Para Luís Serguilha, A poesia reconstitui-se hibridamente nas expressões, no magnetismo da cosmovisão e esculpe as suas e-imigrações semantúrgicas-indizíveis nas geografias-em-desdobramento-dançante: oscilações das cartografias-em-risco partilha metamórfica do desassossego, acoplamentos de subversões-perplexidades, transmutação dos murmúrios-sígnicos, incarnação-mutante dos devires, informula-da fractura humana-animalizante, sanguiniinformula-dade do desejo-experiência-pensamento na exploração mutual do enigma que se dissipa, intersecciona, ecoa e retorna violen-tamente ao estranhamento da germinalidade do deserto, à actualização do silabário das epifanias, às vertigens da imanência, à heterogeneidade fertilizadora-sacralizado-ra do olhar-sismológico perdido do (no) mundo.

Neste sentido, o que o poeta oferece ao leitor é um poema construído, por um lado, por uma escrita que ultrapassa o objeto que reinterpreta ou representa e, por outro, fortemente marcado pela fragmentação, ou seja, uma escrita plural e (in)defi-nida. É a forma como possibilita a expansão do significante em infinitos significados, mas é também a forma como ele aproveita o espaço físico do texto, com disposição sui

generis, com espaços brancos, caixa alta.

É deste conjunto de atos literários - projeções poéticas de busca de reconhecimento do desconhecido - e porque a forma não é, absolutamente, gratuita, o poeta se lança a formulações genológicas incomuns, que terminam imprimindo sua marca na Litera-terminam imprimindo sua marca na Litera-tura Portuguesa contemporânea.

Se as estações de Kalahari são demarcadas por línguas extintas, como akuriyo,

uga-rítia, norica ou tantas outras, demarcando, também, a origem do mundo e de seus (idio-mas animalescos), a construção poética é a própria desconstrução para reconstrução. Aí, é fundamental a forma como Serguilha apreende dicionários líquidos, em capturas imperfeitas, cuja cor descentra e esboça os intermediários das rotas das par-teiras que ventilam as topologias entrelaçadas nos aeroplanos da espurcícia.

Em outras palavras, o poeta transfigura paisagens num mundo próprio, marca-do pelo excesso, porque de excesso é feita a mineralogia das memórias. e, desse momarca-do, constitui o sujeito lírico como um colecionador de pedras, capaz de (transformar os idiomas nas forjas incorpóreas).

Serguilha é o sensacionista do século XXI. Na sua concepção de criação poética, a arte não deve ser uma coisa determinada, seu fim não é ser compreensível - na acep-ção rasa do termo -, pois não é propaganda de nada. A arte é como no melhor do ideário sensacionista. A arte produz determinado artista para um fim que esse próprio artista

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desconhece.

Nesse sentido, ainda é da teoria pessoana, Cada sensação (de coisa sólida) é um corpo sólido delimitado por planos que são as imagens interiores (da natureza dos sonhos - bidimensionais), a seu turno delimitadas por linhas (que são as ideias, com uma dimensão apenas). Com fazer uma avaliação dessa realidade concreta, o sensa-cionismo tenciona realizar na arte uma decomposição da realidade em seus elementos psíquicos geométricos. A finalidade da arte é simplesmente a de ampliar a autoconsci-ência humana. Seu critério é a sua aceitação geral (ou semigeral), mais cedo ou mais tarde, pois essa é a evidência de que ela tende realmente a ampliar a autoconsciência no homem. Quanto mais decompusermos e analisarmos nossas sensações em seus elementos psíquicos, tanto mais ampliaremos nossa autoconsciência. A arte tem, pois, o dever de se tornar cada vez mais consciente.

Em Serguilha, a decomposição das sensações emerge em colagens de imagens poéticas fortes e o jogo dos instrumentos repica na demonstração de uma viagem des-conhecida, trazendo sentimentos e conceitos de natureza complexa, porque o contrá-rio seria traição à viagem empreendida. Ela, a viagem, não se submete à seqüência tradicional do verso, ao eixo de acontecimentos de causa-efeito, à passagem de um equilíbrio a um outro equilíbrio, à, enfim, ação canonizada. Ela é ruptura, ponte do equilíbrio ao desequilíbrio, onde tudo é imagem, movimento, som, cor, inquietude.

Os poetas-cavalos-sonâmbulos, cavalos-surfistas-mistérios de Koa´E, aqui, ce-dem lugar à Loba e ao Uivo.

A Loba percorre todas as estações de Kalahari e, evidentemente, nada nesta tra-jetória é gratuito. Há, aqui, uma metamorfose em que os cavalos-rupestres-cársticos passam a cavalos-lobas que, por sua vez, passam a Loba, Loba-quartzo, turmalina, opala, cobalto de pradarias... no mergulho à já referida mineralogia das memórias.

Agora, a Loba-loba aproxima-se de todas as épocas, alimenta-se da eclosão do intraduzível e, solidária, procura o incompreensível, fundindo-se na interrogação da Natura.

Interessante essa passagem do cavalo-liberdade à Loba-[+infinitas possibilida-des], interessante porque ela está na origem, é animal lendário, ser mítico, símbolo totêmico.

Mircea Eliade trabalha com a figura do lobo em De Zalmoxis a Genghis Khan. Ob-serva o historiador: É significativo o fato de que o único povo que conseguiu vencer definitivamente os Dácios, que ocupou e colonizou o seu território e lhe impôs a sua língua, foi o povo romano, um povo cujo mito genealógico se formou em torno de Rômulo e Remo, filhos do deus-lobo Marte, amamentados pela loba do Capitólio. O povo romano foi resultado dessa conquista e assimilação. Na perspectiva da histó-ria mitológica poderíamos dizer que esse povo foi engendrado sob o signo do lobo, ou seja, que está destinado às guerras, invasões e migrações. O lobo apareceu pela terceira vez no horizonte mítico da história dos daco-romanos e de seus descenden-tes. Com efeito, os principados romanos fundaram-se como sequela das invasões de

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Gengis-Khan e de seus sucessores. E vai adiante, chegando à figura do homem-lobo, entre os Koryakos e algumas tribos norte-americanas como os Kwakiult, quando o guerreiro se transformava em lobo em sua preparação para a guerra. Muitas lendas e crenças populares sobre o homem-lobo poderiam explicar-se por um processo de fol-clorização, quer dizer, pela projeção no mundo da fantasia de uns rituais concretos, xamânicos ou de iniciação guerreira. Trata-se de um processo mágico, da consciên-cia espiritual do sagrado de Marte.

Aqui, em Kalahari, A Loba resgata o seu grito, a fractura da reflexão, o respiradou-ro do inexprimível e ontologicamente entra na espontaneidade da mitologia e renasce na origem do vácuo da linguagem, na arte do impossível, no vazio da peregrinação (o tempo, o olhar, a cosmogonia, a ebulição, a metamorfose das entropias) ____ a vida na crueldade dos mistérios, nas guelras acmeístas, na íris obscura ____ ou apenas holo-movimento das lontras (a experiência na córnea sanguinária da palavra) ____ a violên-cia dissipada nas aranhas das sensações ____. A Loba é o primeiro olhar e o conheci-mento primordial no livro da incerteza.

Em outras palavras, só ela, com toda a sua carga lendária e mitológica - como ser intermediário entre a natureza divina e o homem, ela “frutífera, sábia, destruidora, temível”, só ela é certeza no livro da incerteza. A Loba é símbolo e expressão de ori-gem, de rios meteóricos. A Loba perscruta, desoculta..., seu uivo (... transfere o olhar do mundo ao autonomizar-se e a consistência dos olhos refecte-se na armila do corpo que estilhaça o movimento da sombra com o entrelaçamento do invisível: o uivo é a ex-pectativa inconfessável que penetra noutro uivo... Os uivos cravam-se na dilação dos remadores de climas. O uivo é transcósmico.

Observe-se que Luís Serguilha nos coloca diante de uma linguagem que se cons-trói com imagens concretas, passíveis de serem apreendidas pelos sentidos numa so-breposição plural de camadas de significação. São imagens situadas em um tempo das origens, sim [só interceptados por nomes dos fazedores de arte, filosofia, história], é como estabelece conexões de intemporalidade através de um rastreamento literário dos elementos do universo - particulares e universais - que subvertem o próprio literá-rio na busca de conceber o desconhecido, o tempo, o espaço, o cosmo, alicerçado por domínios outros. Os fluxos ressuscitam no ensimesmamento de bocas ilusionistas dos deuses.

Mas a Loba se recusa em transição ao desejar as rotações e os descentramentos, ela se aprofunda e irrompe ao metamorfosear-se noutro corpo de intercorrências mutiladas e o uivo se transpõe e se assimila nas coreografias intensas de Kalahari (onda que rebenta na sede): a cavalgada e a Loba geram silêncios acústicos pen-samento vivante. E a loba aguarda, vigia. E, então, O uivo mata o uivo e eleva-se no inacabado gume da esfinge (performance das inscrições) um renascimento do inacessível. O uivo e a voz renascem mutuamente: uma disposição espacial dos man-tras encantatórios. Este, exatamente o renascimento do uivo e da voz, representa o pa-pel, tomado para si, pelo poeta Serguilha, enquanto a teoria da transfiguração poética

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revela-se em: O uivo volta-se, revolta-se até ao habitat em dança: dança polinizadora, transversal, explosiva. É a forma como, enfim, a música intraduzível da terra (...) re-cupera as tréguas da pedra submersa.

É, então, que a partir da penúltima estação que a Loba cede espaço para que en- a Loba cede espaço para que en-trem outras criaturas - a cavalaria viscosa, os pássaros monolíticos, os grifos, o ser-pentário, os corvos, os polvos, as bactérias, os cogumelos - as criaturas que cantam e dançam entre os espelhos.

Fecha-se, enfim, a cadeia numa harmonia interna e orgânica. O poema é, em si, um ser vivo. A palavra é, em si, existência. As idéias são sensações, mas de coisas. Que não estão situadas no espaço e, às vezes, nem mesmo no tempo, definiu Pessoa.

É isso, Kalahari é um manifesto contra a passividade poética. O poema é um ser vivo e como tal deve ser concebido, como uma movimentada colagem de imagens, uma caótica sequência de imagens que terminam dando concretude às abstrações. De fato, Kalahari é manifesto e aventura da sede, é o risco da aventura - o que para Luís Serguilha é projeto literário - o desfazimento das certezas na construção do novo. Vale, entretanto, ainda, a velha afirmação de que a melhor ou a verdadeira arte está não no que diz, mas no que não diz. Melhor ainda, em Serguilha, na multiplicidade do que não diz pela beleza como diz. Fecha-se o livro. Continua-se Kalahari, a grande sede. KALAHARI: THE SENSATIONIST THIRST OF SERGUILHA

Abstract: this paper presents a study of the work Kalahari by Luis Serguilha, in which the author transfigures landscapes, in the constitution of an unpredictable world, signaled by excess, as it is the result of “memory mineralogy”. The lyrical subject presents itself here, as a collector of words, whose domain is to transform languages into incorporeal forges.

Keywords: Kalahari. Emergence of the Untranslatable. Transgressive Poetics.

Referências

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PESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética. Sel. Jorge de Sena. Lisboa: Inquérito, s.d. ______. Páginas íntimas e de auto-apresentação. Sel. Jacinto do Prado Coelho e G. Rudolf Lind. Lis-boa: Ática, 1966.

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SARAIVA, A. José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 2010. SERGUILHA, Luís. Koa’E. Belo Horizonte: Anome Livros, 2011.

Referências

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