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FAMÍLIA E VIOLÊNCIA: OS EFEITOS DE UMA EDUCAÇÃO AUTORITÁRIA

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International Scientific Journal – ISSN: 1679-9844 Nº 3, volume 14, article nº 1, July/September 2019 D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v14n3a1

Accepted: 26/12/2018 Published: 20/06/2019

ISSN: 16799844 – InterSciencePlace – International Scientific Journal Páginas 1 de 175

FAMÍLIA E VIOLÊNCIA: OS EFEITOS DE UMA EDUCAÇÃO

AUTORITÁRIA

FAMILY AND VIOLENCE : THE EFFECTS OF A AUTHORITARIAN

EDUCATION

Márcia Cristina Lazzari

Universidade do Estado do Amazonas (UEA) Manaus, Amazonas, Brasil. Docente convidada no Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do

Estado do Amazonas (UEA). Coordenadora do Projeto “Políticas Socioambientais do Amazonas” financiado pelo CNPQ/Fapeam e pesquisadora líder do Núcleo de Estudos

de Políticas Socioambientais da Amazônia- NEPPS e do Núcleo de Sociabilidade Libertária

mcris@lazzari.arq.br

Resumo

Este artigo trás uma análise a respeito da violência praticada contra crianças desde a tenra idade e também contra adolescentes, levando em conta dados e informações obtidas junto ao Conselho Tutelar, durante uma pesquisa de mestrado, e também mediante outras informações relevantes, obtidas por meio de sites e boletins publicados nos últimos anos, abordando o tema. Objetiva-se contextualizar as questões relativas às práticas de violência contra crianças, tendo como mote examiná-las principalmente no contexto familiar, onde normalmente esta conduta agressiva está associada ao ato de educar. Deve-se levar em conta os padrões de comportamentos ligados a sociabilidade autoritária (educação e punição), que permeia o cotidiano das pessoas em geral e que, no caso das crianças, encontra-se presente nas principais instituições onde elas permanecem o maior tempo de sua infância e adolescência: a família e a escola. Como estratégia de análise salienta-se o papel do Estado à frente da violência contra crianças e jovens, objetivando pontuar como as práticas violentas sobrevivem e convivem com o sistema de punição dos agressores (violentadores) e como

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podemos atuar na prevenção e interrupção dessas violências. A metodologia empregada neste artigo foi descritiva/analítica, de cunho bibliográfico, por meio da utilização de livros, artigos científicos e eletrônicos, documentos e dados retirados dos sites governamentais.

Palavras-chave: violência, família, infância, educação autoritária.

Summary

This article back an analysis on violence against children from an early age and also against adolescents, taking into account the data and information obtained from the Guardianship Council for a Master thesis, and also by other relevant information obtained through websites and newsletters published in recent years, addressing the theme. It aims to contextualize the issues relating to violence against children practice with the motto examine them especially in the family context, where normally this aggressive behavior is associated with the act of educating. One should take into account behavior patterns linked to authoritarian sociability (education and punishment) that permeates the daily lives of people in general and, in the case of children, is present in the main institutions where they stay the longest his childhood and adolescence: family and school. As analysis strategy emphasizes is the state's role ahead of violence against children and young people, aiming to score as violent practices survive and live with the punishment of offenders system (abusers) and how we can act in the prevention and termination of such violence. The methodology used in this article was descriptive / analytical, bibliographic nature through the use of books, scientific and electronic items, removed documents and data from government websites.

Keywords: violence, family, childhood, authoritarian education.

Depois de acordar, mamar. Depois de mamar, sorrir. Depois de sorrir, cantar. Depois de cantar, comer. Depois de comer, brincar. Depois de brincar, pular. Depois de pular, cair. Depois de cair, chorar. Depois de chorar, falar. Depois de falar, correr. Depois de correr, parar. Depois de parar, ninar. Depois de ninar, dormir. Depois de dormir, sonhar. (Palavra Cantada)

1. Algumas considerações sobre a sociabilidade institucional

Ao pensar em escrever este artigo, me inspirei na tarefa de propiciar ao leitor uma seleção de fatos, estudos e pesquisas que pudessem indicar algumas pistas para pensar a relação entre a educação autoritária e as práticas violentas, conectando o que chamarei por sociabilidade autoritária, amplamente difundida em

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nossa sociedade. Para analisar as práticas educativas envolvidas na educação de crianças, serão considerados os possíveis impactos para o desenvolvimento integral, principalmente no contexto das instituições.

A violência praticada dentro de casa, correntemente utilizada como recurso para o processo educativo, continua fazendo mais vítimas e trazendo consequências significativas tanto para o presente quanto para o futuro da criança e da sociedade como um todo. A frequente exposição de crianças a violência pode afetar severamente o desenvolvimento pessoal, comprometendo sua sociabilidade, pois a violência severa ou não, estabelecida de forma contínua terá ressonância até a idade adulta e poderá trazer consequências para esta nova geração de pais e mães. Quando incide nos primeiros anos de vida e, portanto, no período fundamental em que ela desenvolve noções de sociabilidade e socialização, agrava ainda mais a situação. Sabe-se que uma criança que sofreu violência pode não tornar-se um adulto violento, mas geralmente um adulto violento, sofreu algum tipo de violência quando criança, principalmente na primeira infância e acaba por reproduzi-la contra alguém1.

Infelizmente a violência contra crianças, praticada desde a tenra idade ainda é bastante evidente e marcante no cenário familiar, por isso é necessário reunir informações para o reconhecimento tanto dos fatores que influenciam negativamente como daqueles que podem promover a dinâmica familiar para propiciar o desenvolvimento saudável das crianças.

1.1. - Um retrato da violência contra crianças no Brasil

As violências praticadas contra crianças compõem uma realidade mundial. Segundo um documento do UNICEF publicado em 20092, estima-se que provavelmente a violência afetava naquele ano, entre 500 milhões e 1,5 bilhão de crianças no mundo todo e que 150 milhões de crianças entre 05 e 14 anos de idade estavam envolvidas no trabalho infantil.

1 Ver a esse respeito Guerra de Azevedo, 2011. 2 UNICEF, 2009:24

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Em termos de Brasil, entre os anos de 1990 a 2000, estima-se que tenham morrido 211.918 crianças e adolescentes por conta de acidentes e violências (causas externas), sendo 59.203 delas, crianças de 0 a 9 anos de idade3.

Segundo outro documento do UNICEF4, ao analisar a mortalidade por causas externas de crianças e adolescentes no ano de 2002, constatou-se que 7,98% de crianças menores de 01 ano morreram por causa de agressão5; seguido de 5,14% de crianças de 01 a 04 anos e 5,76% de crianças de 05 a 09 anos.

É importante esclarecer que o quadro de mortalidade menciona „agressão‟ dentre as causas de mortalidade, contudo aparecem outras causas de morte „não especificadas‟ que totalizam 35,2% de mortes de crianças com menos de 07 anos, entre todas as causas externas. Outras causas externas responsáveis pela morte de crianças ainda podem estar relacionadas à violência doméstica, mas a forma como são conceituadas impedem a exatidão do fato, como por exemplo, o conceito de acidente como evento imprevisível. Conclui-se que muitos desses acidentes podem significar negligências ou faltas nos cuidados na supervisão de crianças6.

Ao considerarmos que atos violentos são quaisquer uns praticados por quem quer que seja que venham submeter crianças e adolescentes à vontade de outrem, desconsiderando-os como gente, verifica-se que qualquer que seja a forma desta ação, pelo constrangimento, pela ameaça, negligência, agressão física, psicológica ou sexual, direta ou indireta, como é o caso do estresse tóxico, deve ser considerado como violência. Vale lembrar que a adoção de uma vasta agenda de atividades para as crianças objetivando propiciar-lhes atividades físicas, recreativas, pedagógicas etc. fora do horário da escola, pode gerar o estresse infantil ou tóxico. Estudos avaliam que esta exposição demasiada da criança a frente de atividades acarreta cansaço, considerado como tóxico quando desencadeia um efeito prolongado na criança, podendo resultar, inclusive em depressão precoce7.

Ressalta-se que as violências não acontecem uma de cada vez e na maior parte dos casos elas se entrecruzam. Contudo, esse reconhecimento não deve

3 Violência Faz Mal à Saúde, 2006:24. 4 UNICEF, 2005:23

5 As agressões, neste caso, são definidas como qualquer lesão infligida por outra pessoa

com a intenção de ferir ou matar.

6 Violência Faz Mal à Saúde, 2006.

7 Ver matéria em:

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acontecer para satisfazer o sistema de vingança imposto pela penalização, mas para enfatizar o respeito à individualidade das crianças e jovens e reafirmar a importância do investimento em novas sociabilidades a partir de outras ações educativas baseadas no respeito mútuo e no diálogo entre cuidadores, familiares, professores e crianças.

No Projeto “A Defesa Jurídica da Criança e do Adolescente8” foram

analisados 2.078 processos referentes a violências cometidas contra crianças e adolescentes, sendo 744 de 1988, 415 de 1991 e 919 de 1992. Tratava-se de processos impetrados no antigo Serviço de Advocacia da Criança de São Paulo (SAC-OAB). Esta pesquisa revelou que pais e mães são os principais violentadores em 68% dos processos analisados; em 88% dos casos além dos pais e mães, aparecem os demais componentes da família extensa, apontando que a família é a maior responsável pela violência contra crianças e adolescentes. A mãe é a principal violentadora (35%), seguida do pai (29%)9. Destaca-se que 20% do total dos casos ocorreram na faixa etária entre zero e 03 anos; 14% entre 04 e 06 anos e 14% entre 07 e 09 anos. As violências cometidas pelas mães acontecem em todas as faixas etárias e na maior parte dos casos notificados, as denúncias aconteceram após várias sequências de violências.

É importante salientar que a violência não ocorre apenas em famílias pobres, aquelas consideradas pelo Estado como „desassistidas‟, pois como veremos, acredita-se que estas práticas violentas estejam aliadas ao modelo de educação que necessita punir e castigar para ensinar algo às crianças, princípio ainda amplamente disseminado em nossa sociedade. Além disso, é preciso considerar as dificuldades da família em compreender e atuar diante das transformações trazidas pelo nascimento de uma criança.

Segundo dados retirados do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) entre 1996 e 2007, no Brasil 49.481 crianças/adolescentes foram vítimas de violência física notificada, representando 31% do total de violências; 17.482 foram vítimas de violência sexual notificada, representando 10,9%; 26.590 foram notificadas por

8 O Projeto “A Defesa Jurídica da Criança e do Adolescente” foi desenvolvido entre

setembro de 1993 e março de 1994 a partir de um convênio celebrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (CBIA) sob a coordenação geral Edson Passetti da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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violência psicológica notificadas, representando 16,6% e por negligência 65.669 foram notificadas, representando 41,1%. Por violência fatal foram notificadas 532 crianças e adolescentes, representando 0,3%. O total de casos notificados atingiu o número de 159.754 crianças e adolescentes. No caso do Estado de São Paulo, na tabela de Perfil por Unidade Federada10, a modalidade de violência doméstica mais notificada foi negligência, totalizando 1.614 casos e 01 caso de violência fatal correspondente ao ano de 2007.

Ante os alarmantes dados encontrados neste breve levantamento apresentado, verifica-se a urgência de interromper o ciclo da violência, investindo principalmente na prevenção por meio da interceptação de modelos autoritários no modo de educar e na interrupção dos ciclos de violência já instaurados no interior das famílias, como forma de garantir saúde e liberdade as futuras gerações.

1.2. Educação autoritária: regra geral

Cada um de nós já foi criança e, portanto, muitas ideias a serem tratadas aqui nos são familiares, pois vivenciamos situações adversas durante nossa infância. Mas depois que crescemos como concebemos e enxergamos a criança? Seriam espíritos adultos disfarçados, cidadãos ainda em formação, os chamados futuros cidadãos, os herdeiros do planeta, futuro do Brasil, os sujeitos de direitos em condições especiais de desenvolvimento? Diante de qualquer resposta é correto afirmar que as crianças são pessoas, sujeitos ativos com sentimentos e vontades próprios desde sua concepção e para crescerem saudáveis, elas necessitam de respeito dos adultos desde pequeninos, sejam eles familiares, educadores institucionais etc.

As brincadeiras, curiosidades, ações intempestivas e ingênuas fazem parte da vida de uma criança, contudo, muitas vezes a família, assim como as pessoas que convivem com as crianças insistem em „adestrá-las‟11

impondo-lhes comportamentos e atitudes que consideram corretos, sem levarem em conta a espontaneidade de

10 O LACRI publicou uma pesquisa que pesquisou 70 municípios brasileiros do total de

3.534 e apresentou as violências domésticas contra crianças e adolescentes mais frequentemente notificadas em cada estado da Federação. Ver:

http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/PerfilporUnidadeFederada.htm .Acesso dezembro/2015.

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cada criança, a importância do respeito e ignoram que é possível trocar experiências com elas, inclusive aprendendo por meio desta convivência. A ausência da noção de diálogo e respeito em relação às crianças, ou seja, essa preponderância do saber do adulto sobre ela, instaura um espaço de disseminação de um modelo educacional autoritário, baseado na obediência, sinalizando o distanciamento da noção de liberdade, a qual uma criança necessita, para poder, ela mesma, exercitar seus próprios limites e vivenciar suas experiências „pessoais‟. A sociabilidade autoritária invoca a relação de mando e de obediência, ação do sujeito pronto (adulto) sobre o sujeito em formação (criança).

Recorrendo ao pensamento de Michel Foucault (1987) sobre a sociedade disciplinar, depreende-se que se investiu, no período industrial e pós-industrial, na localização e docilização12 dos „corpos‟, impondo regras voltadas à organização e distribuição espacial de cada um; o autor analisa as instituições centralizadoras – escolas, presídios, hospitais – e elucida os efeitos da institucionalização sobre a conduta de cada um, mostrando como a disciplina passou a prover indivíduos obedientes. A necessidade de adestramento está, neste caso, associada à produtividade e docilidade, ou seja, tanto mais produtivo quanto mais dócil. Pode-se afirmar que no mundo atual há um forte indício de que as práticas disciplinares apontadas por Foucault estão diretamente relacionadas ao modelo de educação autoritária. Por um lado, relacionadas ao modelo autoritário das práticas educativas, baseadas na ameaça e punição e, por outro, ao modelo de conduta social difundido pelo Estado, como medida para garantir obediência e bom comportamento dos cidadãos à frente do mercado de trabalho, da política, da escola, da família etc.

É neste sentido que passamos a compreender tanto a escola como a família enquanto instituições propensas a ensinarem as crianças a obedecerem sob a rubrica da boa educação. A partir dessa obstinação pela obediência, muitos pais, mães, educadores e familiares passam a adotar a ameaça, punição e castigo como meios considerados „eficazes‟ para educar. Se tomarmos a reflexão de Freire (1990) como referência para pensar a situação de aprendizado que a criança vivencia durante a infância, veremos que o autor traz a tona outra percepção do que significa

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O termo docilização é empregado por Foucault e advém do conceito de poder disciplinar, entendendo-o enquanto exercício do poder sobre os corpos, objetivando torná-los dóceis e na mesma medida úteis, aumentando assim a força econômica e ao mesmo tempo reduzindo a força política.

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educar, ao expor a importância do diálogo e da relação de interatividade entre o educador e o educando. Embora estivesse analisando do ponto de vista da escolarização, é possível pensar na possibilidade do diálogo na relação do ato de educar no âmbito familiar também.

Sob a lógica da punição e do castigo, que subestima o diálogo, um simples tapa desferido contra a criança, forte ou fraco, revela-se uma atitude que tem como fundamento e princípio „educar‟, ensinar por um meio violento, destacando-se o sofrimento. Daí decorre a importância de rever quaisquer práticas violentas e não apenas restringir-se a apurar as violências que são notificadas nas instituições de atendimento, aquelas consideradas imoderadas. A interrupção da educação autoritária é condição básica para transpor práticas violentas, pois elas estão de alguma forma, relacionadas principalmente quando praticadas no interior das diversas instituições sociais.

Seja por conta da dificuldade de denúncia ou porque o limiar do que seja educar e violentar esteja ainda sob a forte influência do direito familiar sobre os filhos, a violência almejando a obediência e a docilização continua presente no cotidiano de boa parte das crianças e jovens brasileiros. Mas afinal, existe um limite de castigos dos pais e cuidadores sob a insígnia de educar e/ou de não transformarem-se em educadores permissivos, descuidados, para se configurar ou não em violência?

Esta é uma questão complexa que certamente precisa ser considerada por todos nós, inclusive pelos educadores e trabalhadores sociais que atuam junto às famílias, não só para aquelas que apresentam indícios de violências contra suas crianças como para oferecerem orientações e atendimentos com o caráter preventivo e mais especificamente, pedagógico no sentido libertário da expressão.

Estamos diante de duas questões importantes desenvolvidas até aqui, a sociabilidade autoritária que precisa ser afastada no sentido da interrupção da iminência da violência e o auxílio àquelas crianças que já estão sendo violentadas.

2. As políticas de atendimento: inventário das violências

O incremento da Política Nacional de Assistência Social – PNAS e a responsabilização da chamada Rede de Proteção (CRAS, CREAS, Conselho

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Tutelar, Postos e Unidades de Saúde, Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, SINASE, SUAS etc.) indicam atualmente o caminho a ser percorrido para podermos analisar e contextualizar o que seria a política de enfrentamento de violências contra crianças e jovens.

No campo dos serviços sociais verifica-se a exigência de uma série de ações legais que podem e devem estar presentes em planos de ação elaborados pelos centros de atendimento às famílias, com os objetivos claros, para que possibilitem impedir os ciclos de violência, reinventando formas de socialização pautadas pelo diálogo e pela autoavaliação a fim de evitar e prevenir situações de risco.

Observa-se que na área da criança e do adolescente os Centros de Referência Especializados de Assistência Social CREAS, responsáveis pelo atendimento de todo tipo de violação de direitos, além de enfrentarem a falta de articulação com os serviços essenciais (saúde, educação, justiça, Conselho Tutelar etc.) e suas extensões, apresentam certo distanciamento desta crítica em relação aos efeitos da educação pelo castigo, afinal as práticas educativas calcadas em ações mais ou menos violentas são de certo modo toleradas pelo Estado, que legitima um modelo educativo baseado na repressão, desconsiderando castigo moderado enquanto violação de direito.

O Comitê dos Direitos da Criança, da ONU expressou, em outubro de 2004, sua preocupação com a constatação de que não havia leis que proibissem essa prática usada em escolas e no interior da família, recomendando que o governo brasileiro coibisse explicitamente esse tipo de atitude e colocasse na mídia campanhas educativas para os pais falando sobre as alternativas para levar disciplina à criança.

Embora saibamos da aprovação da Lei 13.010 de 26 de junho de 2014, que alterou a Lei 8.069 (ECA) estabelecendo o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, sabe-se que a chamada palmada de efeito simbólico com o objetivo de educar não foi de fato proibida, pois a Lei especifica a violência com o caráter de agressão, além disso, não é apenas a legislação que vai delimitar o modo de educar uma criança, mas um conjunto de ações e políticas que reforcem o diálogo e não a punição.

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autoridade no interior da família para sua própria preservação, e de outro, institui o espetáculo das punições, quando as violências praticadas especificamente por pais, mães e/ou responsáveis transbordam para o âmbito público, passando aí a serem entendidas como abuso de autoridade, nomeadas inclusive como maus-tratos e não como violências, como de fato são.

Neste sentido, a mudança da mentalidade punitiva enfrenta mais um entrave de ordem política, além de social e moral, por isso é fundamental propiciar subsídios para o aperfeiçoamento do processo de intervenção por meio dos serviços sociais (formação de grupos de atendimento, trabalho intersetorial envolvendo outras políticas públicas etc.) na medida em que é neste fórum que aparecem as situações de violência familiar ou a percepção de indícios. Tanto a escola como a família, passaram a conviver com outras instâncias de poder desdobradas pelas diversas organizações criadas para subsidiar a ambas, como é o caso do Conselho Tutelar (CT), demarcando um entrelaçamento entre escola, família e CT, com o objetivo de criar uma rede de defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Ainda assim, o investimento direcionado a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, muitas vezes parece estar descolado dos corpos e das situações concretas vivenciadas por eles. Fala-se em defender seus direitos, mas pouco se faz para prevenção das violências dentro de suas casas, pois as práticas repressivas e violentas continuam sendo difundidas como prevenção de desvios e de comportamentos indesejáveis, recorrentes nesse modelo educacional que associa a educação ao castigo e que, ao mesmo tempo vem cultivando o individualismo, prevalecendo a negação do valor da liberdade da criança, numa relação em que o adulto enxerga e satisfaz seus interesses próprios e exige da criança ações que preencham suas próprias expectativas, exigindo muitas vezes que a criança se comporte como lhes convém.

O processo de democratização trazido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não tem conseguido efetivamente a diminuição ou retração dessas práticas violentas. Os dados referentes aos casos que envolvem violência doméstica tem se perpetuado não só no Brasil como no mundo todo, inclusive apresentando um crescimento em determinadas modalidades de agressões, como: pedofilia, homicídios, estupro, tráfico de crianças e jovens, dentre outras, embora devamos considerar alguns avanços tanto na legislação como

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no âmbito das políticas públicas, buscando apreender pelo menos os casos de violências já instaurados.

3. Reinventando caminhos e alternativas

A prevenção e redução da violência e o abandono de modelos de educação autoritários são fatores decisivos para a promoção do desenvolvimento integral de crianças. Deve-se, neste caso, atuar na transformação da mentalidade punitiva, seja por meio de ações cotidianas por parte dos trabalhadores sociais em seus locais de trabalho, seja pela realização de campanhas e sensibilização em nível municipal, estadual e federal, apresentando as violências de toda a ordem (física, psicológica, sexual, negligência etc.) a que estão submetidas às crianças, oferecendo atenção especial para a faixa etária de zero a 06 anos, incorporando as perspectivas dos direitos humanos. A denúncia, por sua vez, não deve retroalimentar o sistema de punições, principalmente quando os envolvidos provêm da classe pobre; nos casos que envolvem famílias ricas revela-se a conciliação, porém tanto os filhos de ricos como os de pobres sofrem igualmente efeitos da mesma sociabilidade autoritária.

“A preponderância de denúncias vindas do subúrbio decorre da aglomeração das habitações nesses locais, muito próximas umas das outras e algumas vezes tratando-se de moradias coletivas, o que permite a vizinhança saber o que se passa na casa do outro com maior facilidade. No caso das famílias exemplares, as violências contra crianças muitas vezes são silenciadas de maneira diferente: quer pela distância entre uma moradia e outra, quer pelo amordaçamento dos gritos.” (PASSETTI, 1999: 68)

A prevenção necessita deslocar a mera intenção da punição e caça aos culpados para o investimento no exercício de práticas de atendimento que possam desconstruir a sociabilidade autoritária e investir na sociabilidade libertária. As práticas de enfrentamento e de intervenção não estão prontas e não podem ser apreendidas por meio de uma metodologia fechada em si mesma; pelo contrário, as técnicas e meios de enfrentamento devem ser criados conjuntamente por todos os envolvidos e de preferência abordando e confrontando os problemas vivenciados pelas famílias, envolvendo a Rede de Proteção, os órgãos governamentais de atendimento, o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) etc.

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O ato de afastar o agressor deve ser uma medida imediata, porém não se configura a finalização do problema, principalmente quando o agressor é o pai e/ou a mãe, e, portanto, pessoas importantes para a criança em questão. Além disso sabe-se que o afastamento acontece apenas em casos extremos por meio de um processo judicial, complexo e muitas vezes longo, e não raro a criança vem a óbito e/ou vai parar nos ambulatórios médicos. Por isso o afastamento do agressor é apenas parte do problema, pois como vimos é preciso investir em atividades que rompam com a base autoritária de castigo e recompensa junto a essa família, a fim de preservar-lhe o direito de convivência familiar e a sua liberdade.

É condição prévia definir estratégias e metodologias que deem conta de algumas frentes de atuação: a previsão (o que se deve fazer), a execução (como se deve fazer) e a avaliação (como foi executado) para verificar o que pode ser aperfeiçoado.

A previsão deve contemplar em linhas gerais uma revisão das perspectivas punitivas e discriminatórias que fazem parte do cotidiano social da família, bem como a elaboração de um diagnóstico da situação familiar.

A execução deve se reportar a superação das dificuldades elencadas no diagnóstico e também estar alicerçada nas estratégias cabíveis aos problemas enfrentados, levando em conta as dificuldades dos familiares e questões relativas aos serviços de articulação em torno dos problemas de violação de direitos.

A avaliação fecha o circuito do projeto de intervenção, não como dispositivo isolado, mas articulado as expectativas práticas dos trabalhadores sociais. A avaliação deve coroar a forma de enfrentamento do problema.

Na verdade trata-se de investir em ações que possam atravessar o que Deleuze (1997) chamou de linha segmentar ao analisar a sociedade disciplinar, sendo necessário desarranjar, quebrar a disciplinarização, inventando outra pedagogia, alicerçada no diálogo e no respeito. É preciso mobilizar uma resistência urgente contra a condição de submissão em que se encontram as crianças e jovens, revendo os princípios que permeiam a educação e os valores.

Não se trata apenas de lutar contra violência e a exclusão em seu sentido amplo, mas de estabelecer outro viés, cujo objetivo deve estar direcionado pela busca da paz e da generosidade intrafamiliar, focando no estabelecimento de premissas mais horizontalizadas, baseadas na dialogicidade, rompendo o circuito

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das práticas autoritárias entre a família e suas crianças, assim como entre professores e alunos, escola e família, Estado e sociedade e assim por diante.

A rede oficial para encaminhamento de denúncias é composta pelo Conselho Tutelar e CREAS, além do disk 100, mas é muito importante que cada serviço de atendimento busque efetivar o desenvolvimento integral das crianças pequenas no âmbito de suas famílias, entendendo-as enquanto promotoras desse desenvolvimento, e, portanto, enquanto pessoas inteiras, autônomas e efetivamente parte interativa do processo educativo. Almeja-se cidadãos autônomos, livres e felizes, então tratemos de compreender os meandros da socialização que a sociedade vem adotando para educar as crianças e tratemos de reinventá-las de forma mais afetiva e respeitosa.

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