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Academic year: 2020

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POETRY, HISTORY AND THE OTHER VOICE

Dionísio Vila Maior Universidade Aberta

R E S U M O

Tendo em consideração a relação entre Poesia e História, procurar-se-á refl etir sobre o impulso dialógico do discurso, bem como sobre a relação entre a essência instintiva e a abordagem intelectiva do fazer poético, fato-res conformadofato-res da verdade do texto poético. Seguindo esse raciocínio, lembrar-se-á, no diálogo entre texto literário e o outro contextual, a pro-blemática da referência, bem como a da dimensão gnosiológica e da medida simbólica intrínsecas ao texto literário, bases necessárias para (suportando a “compreensão responsiva” bakhtiniana) o acrescento do eu-sujeito produtor e do outro-leitor (Octavio Paz).

Palavras-chave: poesia, História, dialogismo, referência, amplifi cação signifi cativa

A B S T R AC T

Considering the relationship between Poetry and History, we aim to refl ect on the dialogical impulse of discourse, as well as on the relationship bet-ween the instinctive essence and the intellectual approach of poetic making, factors conforming to the truth of the poetic text. Following this reasoning, we will recall the dialogue between literary text and the contextual other, the problem of reference, as well as the gnosiological dimension and the

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symbolic measure intrinsic to the literary text, necessary bases for (adhe-ring to the Bakhtinian "responsive understanding") the addition of the subject/creator and the other/reader (Octavio Paz).

Keywords: poetry, History, dialogism, reference, signifi cant amplifi cation

1. Entre 1959 e 1961, Mikhail Bakhtine afi rmava, em “Le problème du texte”: “Le mot […] est interindividuel. Tout ce qui est dit, exprimé se situe hors de l’“âme”, hors du locuteur, ne lui appartient pas en exclusivité. On ne saurait abandonner la parole au seul locuteur” (1984: 331). Confi rma, mais uma vez, Bakhtine, o que escrevera em 1934-1935, em “Du discours romanesque”, quando, referindo--se ao impulso dialógico do discurso, defendera: “Seul l’Adam mythique abordant avec sa première parole un monde pas encore mis en question, vierge, seul Adam-le-solitaire pouvait éviter totalement cette orientation dialogique sur l’objet avec la parole d’autrui” (1978: 102).

O relevo a conceder a esta evocação de Bakhtine (conside-rado por Todorov o maior teorizador da literatura do século XX [Todorov, 1981: 7]) aponta para a obrigatoriedade de conceituarmos o dinamismo intrínseco da palavra – dinamismo esse que deve ser encarado com base em dois vetores primordiais: o que aponta para a circunstância de a sua ativação implicar naturalmente uma permuta entre um eu e um outro (condição subjacente, portanto, a qualquer eu criador); o que incide na consideração de que cada enunciado supõe sempre uma relação de diálogo com outros enunciados.

Ora, o âmbito de alcance destas considerações sobre uma das vertentes do dialogismo bakhtiniano (outras haveria a explorar, mas que, no presente contexto, não interessa desenvolver) tem que ver diretamente com a orientação social do discurso, enquanto prática

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que não pode ser equacionada à margem de um diálogo através do espaço e do tempo históricos; e qualquer refl exão acerca da dimensão dialógica do discurso passa, portanto, segundo Bakhtine, pelo acen-tuar do seu carácter social, histórico, contextual, facto que obriga a considerar o pensamento e a linguagem como necessariamente inter-subjetivos. Quando Bakhtine diz que um enunciado “présuppose toujours des énoncés qui l’ont précédé et qui lui succéderont; il n’est jamais le premier, jamais le dernier” (1984: 355), ou que o “eu” vive “dans l’univers des mots d’autrui” (op. cit.: 363), ou, ainda, que “le text ne vit qu’en contact avec un autre text (contexte)” (op. cit.: 384), ele mais não faz do que reafi rmar a transação discursiva característica de qualquer enunciado linguístico.

2. Parece-nos, assim, que o que importa, acima de tudo, sublinhar

nesta palavras é igualmente a impossibilidade de ler o discurso literário, o texto poético, como mensagem fechada em si mesma (negando-lhe, assim, o estatuto de entidade autotélica) e a absoluta urgência de o encarar como um processo de assimilação da palavra outra. Considerando assim esta problemática, deverá igualmente reforçar-se a noção segundo a qual a pluralidade (pelo convívio com as vozes outras) do sujeito criador do texto literário pode ser fecunda ao nível estético-literário, a partir do momento em que se tenha em conta o desenvolvimento de uma discursividade literária que, em última instância, procura assegurar a noção de plenitude estética desse sujeito criador.

Em função desta premissa, poderá, então, deduzir-se que, quando está em causa a categoria que constitui o outro em

qual-quer processo de diálogo (o encontro de uma pluralidade de vozes

[do sujeito individual, da esfera social]), a liberdade discursiva do sujeito é condicionada e diminuída, em virtude, precisamente, de ele se inscrever no discurso do outro. Por outras palavras, pode

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dizer-se que o sujeito criador, o poeta, deve ser encarado com uma postulação dicotómica: a que consiste na articulação entre a voz do próprio sujeito e a(s) voz(es) do(s) outro(s), não podendo nenhum texto literário equacionar-se à margem daquele grande outro texto polifónico que constitui a literatura. Bakhtine, mas também Octavio Paz, afi rmam-no, cada um a seu modo: Bakhtine, quando doutrina que “Tout membre d’une collectivité parlante trouve non pas des mots neutres “linguistiques”, libres des appréciations et des orien-tations d’autrui, mais des mots habités par des voix autres” (1970: 263). O sujeito torna-se, assim, pluridiscursivo, pois nele se concen-tra uma variedade e diversidade de vozes. Por sua vez, Octavio Paz, quando (na secção “Poesia e História”, d’O Arco e a Lira) esclarece que o poema, “ser de palavras, […] não teria sentido […] sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta”; e conclui, sublinhando que “as palavras do poeta” são “históricas”, porque “pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo; são algo datável” (1982: 225-226).

O processo de criação/produção literária, o processo de criação/ produção poética, não revoga, assim, a presença de mnemosine – essa deusa da Antiguidade Grega, fi lha da terra e do céu, mãe das musas, que (como registou Hesíodo na sua Teogonia [1986: 133]), suporte identitário da comunidade (pela constante presentifi cação do pas-sado e contínua pervivência da informação), conduz ao nascimento da polis. Para os Gregos, lembra Werner Jaeger, na sua Paidéia, “o

eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo

circun-dante, com a natureza e a sociedade humana” (1989: 103); por esse prisma, o poeta sempre se historiciza, porque nunca se encontra iso-lado de um contexto em que se inscreve.

3. Como quer que seja, e no que ao campo da produção literária diz respeito, estas afi rmações reenviam-nos mediatamente para a

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con-dição dual da prática literária, enquanto exercício, por um lado, radicado numa essência ‘instintiva’ e, por outro lado, numa abor-dagem intelectiva. E, neste contexto, o poema Autopsicografi a, de Fernando Pessoa (poema de 1931) (1986a: 314), torna-se referência

axial, pelas virtualidades que o princípio da alteridade deixa antever

no processo de produção poética, aí fundamentando Pessoa a relação entre veracidade artística e os conceitos de “mentira” e “simula-ção” – a mesma relação que o conduzira a defender em 1916 que o poeta, o artista, não se deve preocupar “com a veracidade do que escreve”, devendo, pelo contrário, “escrever um poema onde se vio-lem todas as probabilidades” (1986c: 76). É certo que, na sua relação com o contexto que o envolve, o poeta não pode abolir o circunstan-cial (“A dor que deveras sente”); contudo, concretiza-o poeticamente (“fi nge que é dor”); a dor real é substituída pela dor estética, fi ngida; é essa dor estética que é então atingível pelo leitor (“E os que lêem o que escreve”), que não sente, assim, o verdadeiro sentimento fi n-gido pelo poeta, mas apenas “lê” a dor puramente estética. Deste modo se poderá perceber a metáfora do comboio de corda com que o sujeito poético identifi ca o coração, por ela pretendendo reenviar para o cunho racional do processo de produção (e não criação, note--se) poética, pois a emoção é disciplinada pela “carris” da razão – as “calhas de roda”.

Assim, quando se tem em conta o processo de representação

estético-literária (e, neste caso particular, de Pessoa), não se pre-tende dizer que devamos aceitar imediata e totalmente a conivência de uma matriz estética com critérios empíricos e pessoais. A repre-sentação artístico-literária da dor de não-ser – reprerepre-sentação essa característica na obra pessoana (e que tantas vezes se corporiza em afi rmações de dor, angústia e melancolia, desolação, ceticismo e desilusão, perturbação e intranquilidade, cansaço e solidão) – constitui-se ao longo de uma produtividade discursiva que obedece

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a determinações estéticas próprias da representação literária, que, como é óbvio, condiciona e comanda genericamente a manifestação dessas afi rmações.

Dessa maneira, compreenderemos melhor as palavras de Octavio Paz, quando (na secção “Poesia e História” d’O Arco e a Lira) ensina que “Sem a história […] o poema não poderia nascer nem encarnar; e sem o poema tampouco haveria história, porque não haveria ori-gem nem começo”; por essa ótica, continua, poder-se-ia concluir que “o poema é histórico de duas maneiras: a primeira, como produto social; a segunda, como criação que transcende o histórico, mas que, para ser efetivamente, precisa se encarnar de novo na história e se repetir entre os homens” (1982: 228).

Pode dizer-se, portanto, que o texto literário, que o texto

poé-tico, enuncia uma verdade particular, que lhe é inerente. Essa

verdade, estética, pode dizer respeito tanto à verdade subjetiva do sujeito estético-literário, como ao mundo literariamente represen-tado, como ainda às virtualidades estético-gnosiológicas (de ordem fi losófi ca, sociológica, psicológica) que eventualmente se pode-rão deduzir do registo literário formulado por esse mesmo sujeito. Contudo, as circunstâncias empírico-factuais (a “história”) devem ser sempre encaradas de forma alteronímica, atitude que permitirá ao sujeito poético selecionar com a lucidez necessária as circunstâncias que lhe pareçam pertinentes à objetivação.

4. A este nível, como não lembrar a Poética de Aristóteles (sobretudo o capítulo 9), quando fala nas relações entre literatura (ou poesia, como então se dizia) e história? Pronunciando-se sobre a função do poeta e a função do historiador, diz que ao primeiro cabe dizer “não […] aquilo que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, aquilo que é possível segundo o provável ou o necessário”; relativamente ao segundo, compete dizer “o que aconteceu” (Gazoni, 2006: 67);

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insiste, portanto, Aristóteles numa coordenada importante – a “pro-babilidade” do texto poético –, coordenada que conferiria, aliás, “o pendor da poesia à universalidade” (Zilberman, 2012: 230).

O interesse destas considerações, note-se bem, reside no facto de (aceitando assim os princípios estético-literários formulados acerca da relação do emissor/autor com o texto literário e com a circunstância histórica) podermos pensar na possibilidade (ressumada em tantos textos literários consagrados) de se equacionar a notação dialógica do texto literário. Em tantos textos a literatura se apoderou da histó-ria: a Odisseia, de Homero; a Eneida, de Virgílio; a Divina Comédia, de Dante; Os Lusíadas, de Camões; o romance histórico romântico, onde os “objetos nativos” (os elementos exclusivamente fi ccionais, os “événements” e as “personnages inventés”) convivem com os “objetos imigrantes” (elementos do real, os “événements” e as “per-sonnages historiques”) (Parsons, 1980; Halsall, 1988: 271).

Como quer que seja, não esqueçamos que qualquer texto (fi

ccio-nal ou não, literário ou não) faz referência – quer pela interação

entre elementos de referência histórica e elementos de referên-cia fi ccional, quer pela alusão simbólica; de um modo ou de outro, está sempre presente a referência ao real (a esse outro de que nos falava Adorno), em função do qual a obra estético-literária existe. Referindo-se concretamente à obra de arte, diz Adorno: “O carácter artístico específi co que nela existe deve deduzir-se, quanto ao con-teúdo, do seu Outro” (s./d.: 13); e acrescenta, depois, ilustrando essa relação com a imagem do íman, quando afi rma que a arte “comporta--se em relação ao seu Outro como um íman num campo de limalha de ferro” (Adorno, s./d.: 18).

5. Por outro lado, falar na relação texto literário-factum histórico, na relação poesia-história implica não esquecer o processo refl exivo

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um indivíduo; para não morrer, que ser como estranha a ele”, escre-veu Pessoa (1986b: 1211). Nunca deixando de reconhecer que poucos atingiram esse objetivo, ele procurou-o, compreendendo-se melhor essa busca nos desígnios que presidem aos seus procedimentos alte-ronímicos, em certos postulados teórico-programáticos de que se reclamam alguns ismos pessoanos, na demanda da perfeição literá-ria… Residirá talvez aí uma das coordenadas que primordialmente o motivam na procura contínua de um ajustamento de si mesmo a uma certa ideia de totalidade, que procurou através do seu fazer poético,

ato estético que repete o fiat primordial. “A percepção, a

memó-ria, a imaginação […] são actos em nós idênticos ao acto criativo do mundo”, confessa ainda no texto fi ccional Contos de Pêro Botelho (Pessoa, 1986b: 421).

Mais tarde, George Steiner referir-se-á, de forma semelhante, ao processo de produção estética: “Considero o acto estético, a concep-ção […] como uma imitatio, uma repeticoncep-ção à sua escala própria, do inacessível primeiro fi at […]” (1993: 180). E porque o sagrado é a manifestação da unidade, não se torna difícil perceber uma certa per-turbação de Pessoa, quando se procura literariamente situar entre a realidade plural e essa unidade. Equacionado como entidade estética que, na razão direta da consciência de si e do mundo, se pluraliza, este sujeito, pelo recurso à manifestação estético-literária, acabará em defi nitivo por concretizar em si mesmo essa pluralidade, assu-mida hibridamente, como se sabe, sob diversas formas.

Com base nestas palavras, reconvoca-se a questão da autocons-ciência do poeta. E, a este nível, a contrapartida que a consautocons-ciência que o sujeito mostra ter de si – mediata ou imediatamente reforçada pela capacidade alteronímica (e também por isso dialógica) potenciada no processo estético-literário – pode obviamente situar-se ao nível do enriquecimento da compreensão de si próprio, devolvendo-se, assim, este problema à relação entre dois termos: poesia e conhecimento.

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“A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono”, escreve Octavio Paz, logo no início d’O Arco e a Lira; e acrescenta logo a seguir: “Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poé-tica é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro” (1982: 15). Como se pode ver, as palavras transcritas do poeta mexicano são muito claras no que concerne à consolidação das fi nalidades do texto poético. Nesse sentido, também a noção de que a arte, a poesia, “preenchem a vida” apontam para aquela ideia. Em último grau, isso signifi cará que o sujeito estético poderá encontrar a base necessária para tomar consciência não só de si, mas também, mediatamente, de valores mais gerais que o conduzam a valorizar os aspetos mais sig-nifi cativos da sociedade e da vida.

6. Ora, é em sintonia com estas ideias (entendidas enquanto juízos que não podem ser vistos à margem de uma articulação entre desi-deratos de orientação injuntiva e o dinamismo comunicacional do texto literário) que, neste contexto, se torna legítimo relembrar a circunstância de nas primeiras décadas do século XX se ter inten-sifi cado a preocupação em explicar os processos de linguagem que caracterizam um poema. Como disse António Ramos Rosa, a “moderna consciência poética descobriu que o objeto que o poeta diz não é independente da linguagem que o formula” (1989: 32). E se é certo que a poesia se constrói sobre uma dimensão analó-gica e simbólica, sobre uma manifestação do saber percecionada intuitivamente, sobre uma tensão entre sujeito, objeto e linguagem, não menos certo é o facto de o texto poético se comprometer com uma relação entre o ser verbal e a consciência de algo, de um espaço, de uma ideia. Além disso, também não se pode ignorar que, num recinto operatório de incidência fundamentalmente gnosiológica e epistemológica, o envolvimento dessa relação se traduz numa

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dinâ-mica plural de um sujeito produtor de sentido poético. Por aqui se poderá, então, perceber como o centralismo da fi guralidade poética ultrapassa a simples relação entre signifi cado e signifi cante. Antes de se inscrever no universo da leitura (só assim obtendo o pleno estatuto de existencialidade), o texto poético já existia com o telus imprimido pelo autor, que o potenciara com a palavra e os signifi -cados que desejara; as palavras, escreveu Octavio Paz, “não estão nem dentro nem for a, […] são nós mesmos, fazem parte de nosso ser. São nosso próprio ser” (1982: 217); ou ainda: “O ato de escrever encerra, como primeiro movimento, um desligar-se do mundo, algo como lançar-se no vazio” (1982: 215).

Entretanto, previne Bakhtine, o texto literário, o texto poético, “veut l’audition, la compréhension, la réponse, et il veut, à son tour, répondre à la réponse, et ainsi ad infi nitum. Il entre dans un dialo-gue où le sens n’a pas de fi n” (1984 : 337). Assim, para além de um texto (literário, ou não), um poema, um enunciado, representarem a consciência individual, única, do poeta, produtor acrescido de senti-dos, e de nunca serem uma afi rmação pura e única, mas sempre uma resposta, uma réplica a um enunciado anterior, nele se deve valori-zar igualmente a solicitação, em termos futurantes, a um contexto posterior: “La compréhension complète um texte”, lembra ainda Bakhtine; “[…] elle s’exerce d’une façon ative et créative. Une com-préhension créative prolonge l’acte créateur, multiplie les richesses artistiques de l’humanité. Co-créativité du comprenant” (s./d.: 362).

E porque essa “compreensão responsiva” (s./d.: 336) é a

manifestação do outro, e esse outro se confronta dialogicamente com o texto poético, não se torna difícil perceber uma certa perturbação do outro, na razão direta da consciência de si e do objeto poético – confi rmando-se, nesse momento, o acrescento do outro-leitor, na relação gnosiológica que estabelece com o objeto poético que é o texto. De facto, a poesia (ou qualquer produto artístico e/ou

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literá-rio) exige uma resposta, uma compreensão; e o leitor, procurando compreendê-la, modifi ca-se.

Contudo, nessa relação entre sujeito e objeto, entra um terceiro elemento: a linguagem, que impede o intervalo entre o que se nomeia e o próprio ato de nomear. Através dela, o registo poético encontra--se vinculado à metáfora, ao símbolo, às fi gurações que se afastam do registo e conhecimento científi cos. E se vincularmos a poesia ao pensamento analógico e simbólico, à representação das formas sensí-veis e espirituais do imaginário, à revelação intuitiva do saber, então o conhecimento propiciado pela palavra poética acontecerá não ape-nas no momento criativo – em que o eu se reescreve e ao outro –, mas também sempre que ocorrer uma modifi cação do sujeito-produtor, ou do recetor-leitor, na relação consigo mesmo e com o outro – modi-fi cação essa que os levará a interrogar-se, a interrogar o mundo, a interrogar, no fundo, a própria poesia, sempre com base numa dinâ-mica dialógica.

7. Em última instância, é esta mesma circunstância permitida pela

“outridade constitutiva” do poeta, na relação que, pela palavra, estabelece consigo mesmo e com o outro, que faculta ao texto poé-tico poder ser encarado como um lugar de concentração de sentidos, sentidos esses que, ao mesmo tempo, pertencem ao poeta e dele se

desligam; se a palavra poética deve ser entendida numa relação

imediata com o ato de “autorreferência”, não menos ela se deve

integrar num processo de “exo-referência”; a palavra do poeta é

sua, mas é igualmente do outro, já que são os sentidos nela e por ela concebidos os fatores de ativação de uma produtividade discursiva que não pode ser encarada à margem de uma zona inter-individual (como noutros termos lembrou Bakhtine). Por aqui se poderá, então, perceber como o centralismo da fi guralidade poética ultrapassa a simples relação entre signifi cado e signifi cante, já que reenvia para

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a medida simbólica da poesia, encontrando-se esta no encontro entre o eu e o outro, entre o particular e o universal. E por isso se pode concluir, com Octavio Paz: “A palavra poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele mesmo e o outro” (1982: 217).

R E F E R Ê N C I A S

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Referências

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