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CONFLITO E VIOLÊNCIA EM CONSTANTINOPLA: O EPISCOPADO DE JOÃO CRISÓSTOMO (397-404)

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CONFLITO E VIOLÊNCIA EM CONSTANTINOPLA: O

EPISCOPADO DE JOÃO CRISÓSTOMO (397-404)

CONFLICT AND VIOLENCE IN CONSTANTINOPLE: THE EPISCOPATE

OF JOHN CHRYSOSTOM (397-404)

João Carlos Furlani

1

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: A Antiguidade Tardia é um

período turbulento por excelência. Confrontos religiosos, sociais e políticos geraram inúmeras transformações nas sociedades, que disputavam recursos, lideranças, espaços, tempo e memórias. Dentre estes conflitos, destacamos aquele ocorrido durante o episcopado de João Crisóstomo em Constantinopla, entre 397 e 404, com o propósito de tratar da passagem de João na Capital e apresentar uma hipótese para a sua derrocada. Ao ser indicado ao cargo episcopal, João realizou reformas na igreja e no cotidiano da cidade, o que o inseriu em múltiplos embates, sendo um dos mais marcantes aquele protagonizado pelo bispo e pela imperatriz Eudóxia. Defendemos, entretanto, que tal episódio se insere num processo mais amplo de intervenção de João e que razões de natureza apologética o levaram a situações de conflito e de violência. Razões essas que estendem-se às relações de gênero, à (re)definição dos lugares de atuação política e religiosa e ao próprio

background da Capital.

Palavras-chave: Constantinopla; Conflito; João Crisóstomo

Abstract: Late Antiquity is a turbulent

period par excellence. Religious, social and political clashes generated countless transformations in societies, which vied for resources, leadership, space, time and memories. Among these conflicts, we highlight the one that occurred during the episcopate of John Chrysostom in Constantinople, between 397 and 404, with the purpose of dealing with John's passage in the Capital and presenting a hypothesis for its overthrow. When appointed to the episcopal office, John carried out reforms in the church and in the daily life of the city, which inserted him in multiple clashes, one of the most striking being the one carried out by the bishop and the empress Eudoxia. We argue, however, that such episode is part of a broader process of John's intervention and that reasons of an apologetic nature led him to situations of conflict and violence. These reasons extend to gender relations, the (re)definition of places of political and religious activity and the capital's background.

Keywords: Constantinople; Conflict;

John Chrysostom

1 Doutorando em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em

História (PPGHis) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), sob orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. Mestre em História pelo PPGHis/Ufes. Licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir/ES). E-mail: joao.furlani@gmail.com.

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Introdução

A história da humanidade esteve amiúde relacionada a situações

conflituosas, de embate e confrontos, sejam eles na esfera pública ou privada,

abertos ou velados. Os conflitos, portanto, fazem parte de nossa trajetória. Mas,

mesmo assim, não há uma definição universalmente aceita a respeito desse

conceito. Seria o conflito uma situação ou um tipo de comportamento? M. Afzalur

Rahim, ao buscar os elementos mais comuns nas definições de conflito, nota que:

1) não são reconhecidos interesses opostos entre as partes em uma situação de

soma zero; 2) deve haver uma crença de cada lado, que o outrem vai atuar contra

elas; 3) essa crença é susceptível de ser justificada por ações tomadas; e 4) o

conflito é um processo resultante do embate entre interações.

2

Em outras palavras,

o conflito, para Rahim, seria

“um processo interativo que se manifesta em

incompatibilidade, desacordo ou dissonância dentro ou entre entida

des sociais”.

3

Cumpre notar que o conflito é também um resultado da interação humana,

que se inicia no momento em que duas ou mais entidades sociais envolvem-se uma

com a outra, na tentativa de alcançar seus objetivos. As relações entre as pessoas

ou organizações se tornam incompatíveis ou incoerentes quando dois ou mais

deles desejam um recurso que se revela insuficiente; quando eles não

compartilham as mesmas estratégias numa ação conjunta; ou quando eles têm

diferentes atitudes, valores, crenças e habilidades.

Gianfranco Pasquino afirma que existe um acordo sobre o fato de que o

conflito é uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e

coletividades, que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos

escassos. O conflito, portanto, resulta em um elemento ineliminável capaz de

conduzir à mudança social e política. Porém, caso se desenvolva segundo regras

aceitas, sancionadas e observadas, há sua institucionalização, o que inclui suas

práticas e consequências.

4

Isso quer dizer que, ao fim e ao cabo, o conflito por si só

2 RAHIM, M. A. Managing conflict in organizations. New Brunswick: Transaction Publishers, 2011. p.

15-16.

3 Ibidem. p. 16.

4 PASQUINO, G. Conflito. In: BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. (Org.). Dicionário de política.

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não exprime todos os eventos de um mesmo episódio, ele pode estar intimamente

relacionado com outros elementos, como, por exemplo, a violência.

Pensada como uma forma de interação entre pessoas, a violência precisa de

um espaço para se desenvolver, ela é intencional, é dotada de pessoalidade e se

realiza mediante uma intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro

indivíduo ou grupo com a finalidade de destruir, ofender e coagir, mas também de

criar, defender e legitimar. Seus motivos e formas são múltiplos, exigindo cada vez

mais atenção dos especialistas. Não à toa, em 2002, a Organização Mundial da

Saúde se pronunciou em relação à violência de forma precisa, definindo-a como o

“uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio,

contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade

”, que, como

consequência, “resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão,

morte, dano psicológico, deficiência de desenvolviment

o ou privação”.

5

Independentemente dos motivos e do nível de ameaça, a violência necessita de

interação, de contato. Daí podemos dizer que ela também pode ser percebida como

uma resposta a outra violência, sendo elas inseridas em situações abertamente

conflituosas ou não. É a partir do outro que ameaças, agressões, hostilidades e

conflitos nos atingem e se fundamentam em nós, como sujeitos ou entidades

coletivas, interferindo, de maneira diversa, no cotidiano, nas identidades, nos

espaços e no desenvolvimento das sociedades.

6

Ao pensarmos em violência e conflitos, talvez esbocemos, em nossas

mentes, um episódio fisicamente catastrófico. Todavia, os atos violentos podem ser

diretos, indiretos ou mesmo simbólicos. Em resumo, a violência é direta quando

atinge de maneira imediata o corpo de um sujeito e indireta quando opera, por

exemplo, mediante uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra,

como o impedimento do livre acesso a determinadas áreas, a destruição,

danificação ou até mesmo subtração de recursos.

7

Já a violência simbólica atinge a

5 KRUG, E. G. et al. (Ed.). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organização Mundial da

Saúde, 2002. p. 5.

6 DADOUN, R. A violência: ensaio acerca do “homo violens”. Rio de Janeiro: Difel, 1998. p. 63.

7 STOPPINO, M. Violência. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (Org.). Dicionário de

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esfera psicológica e social dos indivíduos, podendo estar associada a atos físicos ou

não.

Os conflitos – violentos fisicamente ou simbolicamente –, portanto, não podem ser reduzidos a um simples embate, no qual operam relações de dualidade. Não à toa, abordagens mais psicológicas asseveram que o conflito não é inerentemente bom ou mau para os envolvidos, uma vez que, durante esse processo, haveria o desenvolvimento de outras possibilidades de negociação, organização e gestão, que indicaria resistências, rupturas e/ou transformações.8

O Mundo Antigo e a Antiguidade Tardia, decerto, não ficaram de fora dos exemplos de conflitos e atos violentos para a formação destes importantes conceitos. Ao analisarmos a vida de João Crisóstomo, em Constantinopla, por exemplo, nos deparamos com relatos de diversas situações – que podem e devem ser lidas como conflituosas – responsáveis por culminar em sua deposição, exílio e morte.

Dentre as tentativas de explicação para o desenrolar dos eventos que levaram à derrocada do bispo de Constantinopla, encontra-se uma hipótese muito difundida – e ainda aceita –, na qual se sustenta que Eudóxia, imperatriz do Oriente, teria se ofendido após um sermão de João, o que a levou a se aproximar dos inimigos do bispo para planejar sua ruína. Entre os tais inimigos, encontrava-se Teófilo, bispo de Alexandria, que nutria forte ressentimento contra ele. Assim, juntos, Eudóxia e Teófilo teriam convencido o imperador a realizar um sínodo para depô-lo.

A explicação descrita acima, como comentamos, é a mais corrente – talvez pela simplicidade em sua narrativa ou pela forte tendência em santificar a imagem de João Crisóstomo. É possível encontrá-la em diversas fontes que tratam de João, como as

Histórias Eclesiásticas de Sócrates e Sozomeno. Tanto Sócrates como Sozomeno, cronistas

eclesiásticos do século V, embora falem pouco da política imperial, concentram-se em detalhes da vida de Crisóstomo e, importa destacar, simpatizam com ele. Além dessas duas fontes, temos outra muito importante, o Diálogo sobre a vida de João Crisóstomo, elaborada por Paládio de Helenópolis. Sobre esta obra, Wolf Liebeschuetz argumenta que, em sua escrita, Paládio também é seletivo e omite alguns eventos propositalmente por razões apologéticas e literárias. Além disso, não podemos perder de vista que o autor do célebre

Diálogo foi um dos mais fiéis defensores do bispo de Constantinopla.9

8 HALL, R. H. Organizações: estrutura, processos e resultados. Rio de Janeiro: Prentice Hall, 2004. 9 LIEBESCHUETZ, J. H. W. G. The fall of John Chrysostom. Nottingham Medieval Studies, v. 29, p. 1-31,

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No que se refere à visão simplificada dos conflitos e da deposição de João Crisóstomo, acreditamos que a aceitação dos fatos reportados nos documentos acima descritos sem muita crítica pela historiografia se torna problemática, uma vez que a maioria das fontes tende a exaltar o bispo da Capital e a demonizar seus inimigos, sobretudo Eudóxia.10 Na visão tradicional sobre os eventos, até mesmo as divergências entre os textos são deixadas de lado. Portanto, se não aceitamos essa versão maniqueísta e linear sobre o episódio, então, qual seria a nossa proposta? É exatamente isso o que almejou-se expor ao longo deste artigo.

A análise dos documentos nos leva a ponderar acerca da simplicidade por meio da qual os fatos são ordenados pelos autores cristãos da Antiguidade Tardia. Isso não quer dizer que descartamos as informações transmitidas por esses autores, mas devemos tratá-las criticamente, pois sabemos que as ações de João em Constantinopla foram fundamentais para o desenrolar da situação. Diante disso, pretendeu-se, neste artigo, abordar, em âmbito geral, a passagem de João Crisóstomo por Constantinopla, o que inclui sua ascensão ao episcopado, suas propostas de reformas, os conflitos com a casa imperial e os demais clérigos e, por fim, sua deposição e exílio. Mais especificamente, buscou-se problematizar a concepção historiográfica tradicional que justifica a derrocada de João por um simples embate entre João e Eudóxia em prol de uma visão mais complexa, marcada por conflitos de naturezas diversas e significativos atos de violência. Ao mesmo tempo, apresentamos uma hipótese para o conflito que levou a derrocada do bispo de Constantinopla, que envolve questões eclesiásticas, políticas, de gênero e, sobretudo, lugares de fala e atuação.11

João Crisóstomo, de Antioquia à Constantinopla

João Crisóstomo é considerado um dos mais importantes representantes do cristianismo durante seus primeiros séculos de desenvolvimento, o que não quer dizer

10 MAYER, W. Doing violence to the image of an empress: the destruction of Eudoxia's reputation.

In: DRAKE, H. A. (Ed.). Violence in Late Antiquity: perceptions and practices. Aldershot: Routledge, 2006. p. 205-213.

11 Para isso, dispomos dos métodos de Análise de conteúdo, tal qual expostos por Lawrence Bardin,

sobretudo no que se refere à elaboração de complexos categoriais. A autora define o método como um conjunto de instrumentos cada vez mais sutis e em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a “discursos” extremamente diversificados. O fator comum destas técnicas múltiplas é uma hermenêutica controlada, baseada na inferência. Constitui-se, basicamente, de quatro etapas: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados obtidos, inferência, interpretação; e 4) síntese final. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 101.

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que fácil compreender sua trajetória. A imagem de João é complexa, como pode ser percebido por suas acaloradas homilias aos fiéis, nas quais, muitas vezes, havia espaço para denúncias contra políticos ou mesmo membros da hierarquia eclesiástica, mas também pela luta em definir espaços isotópicos e heterotópicos para os cristãos, além do cuidado e auxílio aos necessitados.12 A eloquência e o fervor com o qual realizava suas homilias lhe renderam o epíteto Chrysostomos (Χρυσόστομος), que traduzido do grego, pode significar “Boca de ouro”. Todavia, a alcunha de Crisóstomo vingou apenas anos após a sua morte, mais precisamente em 553, pelas palavras do papa Vigílio.13 Diante disso, antes mesmo de adentrarmos ao problema deste artigo, acreditamos que algumas palavras sobre a trajetória de João em Antioquia seja pertinentes para a compreensão de seus posicionamentos em Constantinopla, uma vez que a devoção cristã, a prática do ascetismo, as primeiras homilias e uma série de outros elementos político-eclesiásticos desenvolvidos em sua terra natal permaneceram nos discursos de Crisóstomo.

A data de nascimento de João Crisóstomo é estabelecida como sendo 349,

porém há ainda discussões a respeito, havendo quem defenda o ano de 347.

14

Entretanto, é fato que João nasceu em Antioquia, numa família de origem

greco-síria. A crença religiosa de seus pais também é incerta, uma vez que, para alguns,

sua mãe, Antusa, praticava cultos pagãos,

15

enquanto outros declaram que ela era

devota do cristianismo.

16

Já o pai de João, Segundo, é apresentado como um militar

de influência no exército sírio e detentor do título de illus, assegurando sua posição

12 LIEBESCHUETZ, J. H. W. G. Barbarians and bishops: Army, Church, and State in the age of Arcadius

and Chrysostom. Oxford: Claredon Press, 1990. p. 175-176.

13 BAUER, W. A Greek-English lexicon of the New Testament and other Early Christian literature. Ed.

by F. W. Gingrich and F. W. Danker, trans. by W. F. Arndt and F. W. Gingrich. Chicago: University of Chicago Press, 2001. p. 888-889.

14 No século XIX, as discussões sobre o ano de nascimento de João também geravam tantos debates

que Stephens chegou ao ponto de declarar: “Ninguém [...] está apto a fixar a data exata e o ano do nascimento de Crisóstomo”. STEPHENS, W. R. W. St. John Chrysostom: his life and times. London: John Murray, 1883. p. 9. Todavia, já no século XX, as datas para o nascimento de João variavam entre 344-354. Cf. BAUR, C. John Chrysostom and his time: Antioch. London: Sands and Co., 1959. p. 3. v. 1; CARTER, R. The chronology of St. John Chrysostom's early life. Traditio - Studies in Ancient

and Medieval History, thought and religion, v. 18, p. 357-364, 1962. p. 357-364; DUMORTIER, J. La

valeur historique du dialogue de Palladius et la chronologie de saint Jean Chrysostome. Mélanges de

science religieuse, n. 8, p. 51-56, 1951. p. 51-56; WILKEN, R. L. John Chrysostom and the Jews:

Rhetoric and Reality in the Late Fourth Century. Berkeley: University of California Press, 1983. p. 5.

15 LEWY, Y. H. John Chrysostom. In: Encyclopaedia Judaica. Ed. by Cecil Roth. Jerusalem: Keter

Publishing House, 1997 [CD-ROM edition].

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como ilustre devido a importantes serviços prestados ao Império.

17

Contudo,

Segundo veio a falecer pouco tempo após o nascimento de João, deixando-o aos

cuidados da mãe, que permaneceu em estado de viuvez até a morte.

18

João passou parte de seu tempo de formação estudando com Libânio, um

reconhecido filósofo e professor de retórica pagão.

19

Porém, por volta de 368, João

Crisóstomo foi batizado na Igreja cristã e, em seguida, nomeado lector, o que lhe

possibilitou ampliar sua participação nos cultos eclesiásticos.

20

Entre os

ensinamentos aprendidos com Libânio, o mais utilizado por João certamente foi a

retórica, abundante em seus discursos, seja como presbítero de Antioquia ou como

bispo de Constantinopla.

A relação entre João Crisóstomo e o cristianismo, aos poucos, se solidificava,

motivo que o levou a instruir-se em Teologia com Diodoro, bispo de Tarso, em seu

grupo de estudos.

21

Crisóstomo, a partir daí, inclinou-se a um estilo de vida

ascético, o que não pressupõe sua imediata reclusão. Ao invés disso, João não se

isolou prontamente no deserto, ao invés disso, teria se unido a outros jovens em

outras práticas do ascetismo, como a castidade, a simplicidade e as constantes

orações.

22

Mais tarde, João partiu em direção aos Montes Sílpios, onde, de acordo com

Andrea Sterk,

23

viveu provavelmente como um semi-eremita, na companhia

esporádica de outros anacoretas. Todavia, por dois anos, a experiência de João foi

em total reclusão, uma vez que teria sido atraído para um isolamento da sociedade,

no qual poderia vivenciar a atmosfera de clausura do ascetismo em regiões

montanhosas.

24

Portanto, sob a orientação de Diodoro de Tarso, João Crisóstomo

17 Pal., Dial., V.

18 KELLY, J. N. D. Golden Mouth: the story of John Chrysostom – ascetic, preacher, bishop. London:

Duckworth, 1995. p. 5.

19 CAMERON, A; GARNSEY, P. Education and literary culture. Cambridge: Cambridge University

Press, 1998. p. 668-669.

20 WILKEN, ibidem. p. 5-7.

21 GREER, R. A. Diodore of Tarsus. In: FERGUSON, E. (Ed.). The Encyclopedia of Early Christianity.

New York: Garland Publishing, 1997. 2 v.

22 STERK, A. Renouncing the world yet leading the Church: the monk-bishop in Late Antiquity.

Cambridge: Harvard University Press, 2004. p. 142-144.

23 Ibidem. p. 144.

24 INGALLS, M. Golden Mouth, empty pockets: an investigation of the motivations and aims behind

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36

passou a adotar um estilo de vida influenciado tanto pelo cenobitismo

25

quanto

pelo anacoretismo.

26

Como consequência negativa de um estilo de vida ascético mais rígido,

Paládio afirma que severos danos foram causados ao corpo de João,

27

principalmente ao estômago e aos rins, fato que o marcou pelo resto de sua vida,

inclusive no exílio, onde amiúde queixava-se dos problemas de saúde, como bem

atestam suas cartas.

28

Provavelmente, o agravo do quadro de saúde de João, em

sua juventude, foi uma das causas imediatas de seu regresso a Antioquia,

coincidindo com o retorno de Melécio à cidade, em 378, logo após a morte de

Valente, em Adrianópolis.

29

Entre 378 e 379, João retorna a Antioquia e por volta de 381 é ordenado diácono por Melécio, que, na época, não estava em comunhão com Alexandria e Roma. Mais tarde, em 386, foi ordenado presbítero por Flaviano, sucessor de Melécio. Em Antioquia, num período de doze anos (386-397), segundo Sócrates,30 João angariou enorme popularidade devido, sobretudo, à eloquência de seus discursos morais, nos quais mostrava-se preocupado com as necessidades dos menos abastados.

A eloquência de João Crisóstomo não se relacionava apenas à sua habilidade discursiva, mas também à interpretação simples e direta dos textos eclesiásticos, o que tornava seus discursos mais acessíveis. A escolha dessa forma de ensinamento contrastava fortemente com os discursos dotados de imagens alegóricas que, muitas vezes, não

25 O cenobitismo foi uma das formas que do monasticismo praticado nos primórdios do

cristianismo. Geralmente, os cenobitas (do grego, κοινόβιο, de κοινός, transl. koinós, “comum”, mais βίος, transl. bios, “vida”, pode significar “que vive em comunidade) pertencem a uma ordem religiosa, vivendo de acordo com um conjunto de princípios. Seus praticantes vivem em comunidades retiradas, geralmente interesses e princípios em comum. KEEN, R. The Christian

tradition. Lanham: Rowman & Littlefield, 2008. p. 104.

26O praticante do anacoretismo, ou seja, o anacoreta (do grego: Ἀναχωρητής, anachoretes, “aquele

que se retirou do mundo”) denota alguém que, por motivos religiosos, se retira da sociedade secular, de modo a ser capaz de levar uma vida intensamente orientada pelo ascetismo. Muitas vezes os anacoretas são associados aos eremitas, contudo, ao contrário desses, os praticantes do anacoretismo realizavam um voto de estabilidade de lugar. Além disso, os anacoretas estavam sujeitos a um rito religioso de consagração, no qual eles seriam considerados “mortos para o mundo”. Os anacoretas, de certa forma, possuíam certa autonomia, uma vez que não respondiam a qualquer autoridade eclesiástica senão o bispo. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. A Greek-English lexicon. Revised and augmented by H. S. Jones with the assistance of R. McKenzie. Oxford: Clarendon Press, 1996. p. 127.

27 Pal., Dial., V.

28 Ioa. Chrys., Ep. ad. Olymp., 6, 1; 15, 1. 29 ALLEN; MAYER, ibidem. p. 6.

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pareciam ter impacto significativo sobre o cotidiano dos ouvintes.

Já no início de sua carreira, como presbítero em Antioquia, João envolveu-se em uma situação extremamente complexa, o chamado Levante das Estátuas, de 387. Tal episódio é caracterizado como um conflito popular urbano ocorrido em Antioquia, após a notícia da promulgação de um novo imposto. Assim, quando do anúncio da nova taxa, os protestos resultaram na destruição das estátuas imperiais de Teodósio e de sua já falecida esposa, Élia Flacila. Contudo, após a intervenção de notáveis como Flaviano e Libânio, as autoridades imperiais suspenderam a execução dos envolvidos.31 Não obstante, Teodósio ordenou uma investigação sobre o assunto e, como medida punitiva, rebaixou Antioquia de seu status de metrópole provincial, mantendo-a submetida a Laodiceia.32

Em meio ao conflito, João Crisóstomo ofereceu alternativas para impedir a ocorrência de perigos capazes de perturbar a ordem e trazer grande infortúnio a todos. Além disso, o presbítero dedicou vinte e uma homilias ao assunto, que constituem um importante corpus para o estudo desse episódio.33 Por fim, encerrando sua participação em Antioquia, no outono de 397, João foi nomeado bispo de Constantinopla, para onde se transferiu rapidamente e sem alarde.

A atuação de João Crisóstomo em Constantinopla

Antes de prosseguirmos com nossa análise, devemos assinalar que, no século IV, à medida que a cristianização dos espaços urbanos avançava, a influência dos bispos passava a ser exercida também em outros domínios, como na administração da justiça, na organização do abastecimento de víveres em tempos de escassez e na representação do

populus junto à corte. Ou seja, a figura episcopal passou a ocupar uma posição de

autoridade diante do poder imperial, o que propiciou a intervenção da Igreja em assuntos imperiais e vice-versa.34 Nesse sentido, os bispos poderiam mais facilmente exercer

31 SILVA, E. C. M. A importância político-cultural do Levante das Estátuas nas Homilias sobre as

Estátuas de João Crisóstomo. História, v. 28, p. 697-714, 2009. p. 697.

32 CAMERON, A. The Later Roman Empire. London: Fontana Press, 1993. p. 174.

33 Informações suplementares sobre o episódio podem ser obtidas tanto na dissertação de

mestrado quanto na tese de doutorado de Érica Cristhyane Morais da Silva. Cf. SILVA, E. C. M. Igreja,

conflito e poder no século IV d.C.: João Crisóstomo e o Levante das Estátuas em Antioquia. 2006. 187

f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006; e SILVA, E. C. M. Conflito

político-cultural na Antiguidade Tardia: o Levante das Estátuas em Antioquia de Orantes (387 d.C.).

Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em História, Franca, 2012.

34 BAUMGARTNER, M. A Igreja no Ocidente: das origens às reformas no século XVI. Lisboa: Edições

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funções de reformadores sociais. Em outras palavras, devemos ter em mente que a participação de João Crisóstomo em Antioquia diferencia-se de sua passagem por Constantinopla por uma série de motivos, e a possibilidade de maior atuação, como bispo, certamente, é um deles.35

O período de João Crisóstomo em Constantinopla, em linhas gerais, foi marcada por diversas reformas eclesiásticas, o que, ao mesmo tempo, angariou respeito do povo, bem como antipatia dos demais clérigos.36 O clero era alvo constante de João, que proferia duras críticas pelo luxuoso estilo de vida que levava. A tentativa de reforma arquitetada por João associada aos seus discursos dividiu opiniões, mas, sem dúvida, os alvos de suas críticas não ficaram contentes com a situação.37

Sabemos que o estilo de vida de João influenciou suas decisões na condição de bispo de Constantinopla. Assim como descrito em Vida de Olímpia,38 João foi praticante do ascetismo, ideal que direcionou suas escolhas e embasou seus discursos.39 No que se refere às tão problemáticas relações mantidas com a corte imperial, João gozou por algum tempo da simpatia dos imperadores. Até mesmo Eudóxia, considerada uma das agentes de sua deposição, lhe era favorável, pois a imperatriz também era adepta do ascetismo e do credo niceno.40 Em um dos sermões de João, Eudóxia é, inclusive, denominada “mãe das igrejas, alimentadora dos monges, padroeira dos ascetas, apoio dos mendigos”.41 Em outro sermão, durante a celebração da chegada das relíquias de mártires do norte da Península Itálica, identificadas como pertencentes a Sisínio, Martírio e Alexandre, a piedade e a humildade da imperatriz é, mais uma vez, enfatizada.42

Apesar da relação inicialmente amigável, houve momentos em que João perdeu o favor da imperatriz, como no caso de Porfírio, bispo de Gaza. Em tal incidente, a imperatriz desejava que Porfírio recebesse a aprovação para destruir templos pagãos em sua cotidianas e ação política. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: PODER, CULTURA E DIVERSIDADE, III. Anais... Caetité: Universidade Estadual da Bahia, 2006. p. 1-10.

35 Não é nosso interesse realizar, aqui, uma reflexão geral sobre a relação entre estado e Igreja, nem

mesmo sobre as possibilidades de atuação dos bispos em assuntos eclesiásticos, políticos e sociais. Realizamos isso em outra ocasião. Para tanto, cf. FURLANI, J. C. Defensor ciuitatis et defensor

christianorum: a influência do bispo no Império Romano tardio. Revista Ágora, v. 24, p. 81-97, 2016.

36 SILVA, G. V. Um bispo para além da crise: João Crisóstomo e a reforma da Igreja de

Constantinopla. Phoînix, v. 16, n. 1, p. 109-127, 2010b. p. 113-115.

37 PARRY, K. et al. (Ed.). The Blackwell Dictionary of Eastern Christianity. Oxford: Wiley-Blackwell,

2001. p. 268-269.

38 Vita Olymp., 5. 39 Pal., Dial., V.

40 MAYER, Ibidem. p. 208.

41 Ioh. Chrys., Serm. pos. red. a pri. ex., 446, 15-17. 42 Ioh. Chrys., Hom. dic. post. reliq. mart, 467-472.

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respectiva diocese. João Crisóstomo, contudo, criticou Eudóxia pela cobiça em se apropriar dos santuários.43 Todavia, mesmo diante dessa delicada situação, João conseguiu recuperar o favor da imperatriz, pois essa ainda nutria grande respeito por ele.

Em 401, outro contratempo divide, uma vez mais, Eudóxia e João: a expulsão de Severiano de Gabala de Constantinopla, após a visita de João às dioceses do Oriente. Ao que parece, na ausência do bispo, Serapião, um arquidiácono, ficou a cargo de administrar a igreja de Constantinopla, ao passo que coube a Severiano de Gabala exercer o papel de principal pregador. Os dois logo entraram em atrito, quando Serapião insultou Severiano por se recusar a ficar de pé durante a passagem do bispo. Severiano, em resposta, queria que o arquidiácono fosse deposto de seu cargo. João tomou o partido de Serapião, pedindo que o bispo deixasse Constantinopla e voltasse para Gabala. Todavia, Severiano mantinha boas relações com a imperatriz. Ao tomar conhecimento da situação, a imperatriz ordenou que Severiano retornasse imediatamente.44 O imperador, por sua vez, solicitou a João que se reconciliasse com o bispo, entretanto sem obter êxito, o que desagradou a Arcádio e Eudóxia.45 Tal situação, não agradou a João, que sentiu sua autoridade episcopal ferida, uma vez que compreendia que a expulsão de Severiano era um assunto da Igreja a ser resolvido pela Igreja, não pela casa imperial.

O descontentamento da casa imperial com o bispo de Constantinopla se torna ainda mais evidente por ocasião do batismo de Teodósio II, em 401. Eudóxia suplicou a Severiano, ao invés de João Crisóstomo, que rogasse a Deus pelo bem-estar de seu filho, Teodósio II, lembrando que João já havia batizado Pulquéria e Arcádia. Convém ressaltar que as principais fontes literárias escritas após a morte de João, como as obras de Paládio, Sócrates e Sozomeno, são geralmente favoráveis a ele, e optam por omitir este ocorrido, considerado uma espécie de humilhação pública para o bispo de Constantinopla. Nem precisamos dizer o quanto esse episódio constrangeu João.

O pronunciamento mais famoso de João Crisóstomo a respeito de Eudóxia é mencionado por Paládio, ao afirmar que, durante o Sínodo do Carvalho, em 403, o bispo de Constantinopla teria comparado a imperatriz a Jezebel, a personificação da rainha malévola.46 Nas Histórias Eclesiásticas de Sócrates e Sozomeno, uma famigerada homilia em que João compara Eudóxia a Herodias é lembrada, aludindo-se à decapitação de João

43 LIEBESCHUETZ, Ibidem. p. 4. 44 Soc., Hist. Eccl., VI, 11, 1-7; 11-21. 45 Pal., Dial., VII-VIII.

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Batista pelas mãos de Herodes Antipas.47 Porém, os especialistas a inserem logo após o primeiro exílio do bispo, como justificativa para a deposição definitiva de João.48

A veracidade da comparação entre Eudóxia e Jezebel formulada por Crisóstomo em suas homilias é questionada pelos historiadores. Contudo, a oração fúnebre de João também oferece um relato da relação do bispo com a imperatriz, tida pelo autor como uma das principais arquitetas do Sínodo do Carvalho.49 Na oração, assim como no corpus epistolar de João, é relatada a perseguição sofrida pelos joanitas nos meses seguintes ao seu exílio e a resistência destes na Capital.50

Por último, outra situação de conflito entre a imperatriz e João estaria relacionada à dedicação de uma estátua de prata a Eudóxia por Simplício, prefeito da cidade de Constantinopla, em 403. A estátua não é mencionada em todos os documentos a respeito do exílio de João. Contudo, Sócrates dedica parte de sua obra à discussão sobre a inauguração do monumento e do seu impacto na relação de Crisóstomo com a imperatriz,51 uma vez que a estátua teria sido erguida próximo à igreja de João, conhecida como a “Grande Igreja”. Como de costume, quando imagens imperiais eram dedicadas, havia uma comemoração pública, acompanhada de dançarinos e mimos, produzindo-se, assim, uma agitação que teria irritado o bispo, uma vez que este dedicava seus esforços na separação de espaços cristãos, pagãos e judaicos, o que, sem dúvida, incluía as atividades do calendário e das festividades da cultura tradicional greco-romana.52

No que se refere ao relacionamento com outros membros da Igreja, como é sabido, a imagem de Crisóstomo gerava contradição, sobretudo pelos seus atos, que desagradavam a muitos. João era ativo no que se referia à supervisão das dioceses vizinhas a Constantinopla, tendo, inclusive, substituído o bispo da diocese do Ponto. Ele tomava tais decisões com apoio do imperador. Como bispo, convocava sínodos e oferecia suas próprias soluções para os problemas eclesiásticos, interferindo, assim, na autonomia dos bispados. Como consequência de sua intervenção, João angariou, por exemplo, a hostilidade dos bispos da Ásia, mas, ainda assim, contava com o favor imperial. Ao retornar a Constantinopla, em 401, após uma viagem pelas dioceses vizinhas, a imagem do bispo se

47 Mat., 14, 1-12; Marc., 6, 14-29; Luc., 9, 7-9. 48 BARNES; BEVAN, Ibidem. p. 36.

49 Epit. Log. Ioa. Chrys., 66-67. 50 Epit. Log. Ioa. Chrys., 117-132. 51 Soc., Hist. Eccl., XVIII.

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revelava extremamente controversa entre os clérigos, como declara Liebeschuetz.53 A situação de João Crisóstomo se complicou ainda mais ao enfrentar Teófilo no caso dos “Grandes Irmãos”, um grupo de monges de Nitria, seguidores de Orígenes. Esses monges defendiam a natureza incorpórea de Jesus, ao contrário da tese defendida por Teófilo, na qual o nazareno teria sofrido o processo de encarnação por intermédio de uma virgem.54 Teófilo, ao enviar cartas aos bispos vizinhos, convocou um sínodo para condenar os monges, sem chamá-los para se defender. Temerosos, os monges fugiram para a Palestina. Teófilo teria, então, escrito cartas aos bispos da Palestina, exortando-os a expulsá-los. Os fugitivos, que estariam aflitos com este movimento contínuo de fuga, chegaram a Constantinopla, onde João os acolheu.55 De acordo com Paládio, João pensou que poderia defender a causa dos monges e contornar o problema com Teófilo.56 Ou seja, o bispo supriu as necessidades emergenciais dos “Grandes Irmãos” e escreveu uma carta a Teófilo, relatando a situação.

Os monges, acuados por Teófilo, recorreram a Eudóxia a fim de conseguir o apoio imperial. A imperatriz também os acolheu e decidiu convocar Teófilo à corte para prestar contas das violentas queixas feitas pelos fugitivos. A presença de Teófilo foi requisitada em Constantinopla pelo poder imperial com o objetivo de resolver um problema religioso. Segundo John Kelly, João sustentou perante a imperatriz que os assuntos religiosos deveriam ser tratados dentro da própria Igreja e não fora dela.57 Diante dessa recusa, teria se instaurado um estranhamento irreversível entre o bispo e a corte.58

Paládio relata esse caso de forma mais sutil quando se refere à relação entre João e a corte imperial. Na realidade, ele atribui a culpa da situação a Teófilo, que, ao chegar a Constantinopla para conversar com o imperador, teria entrado em contato com outros inimigos de Crisóstomo. Sem dúvida, João cultivou inúmeras inimizades durante o tempo em que foi bispo. Havia dois diáconos, que tinham sido expulsos da congregação pelo bispo, sob a acusação de cometer infrações. Teófilo, então, os teria persuadido a apresentar provas contra João, prometendo restaurá-los aos seus cargos.59

Pelo que sabemos, ao receber diversas acusações contra o bispo de Constantinopla,

53 LIEBESCHUETZ, Ibidem. p. 6. 54 SILVA, Ibidem. p. 118. 55 Pal., Dial., VII.

56 Pal., Dial., VIII.

57 KELLY, J. N. D. Golden Mouth: the story of John Chrysostom – ascetic, preacher, bishop. London:

Duckworth, 1995. p. 215.

58 MAYER, Ibidem. p. 212; SILVA, Ibidem. p. 118. 59 Pal., Dial., VIII.

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Teófilo realizou uma reunião na casa de certa viúva Eugráfia. Nessa reunião, estavam presentes Severiano, Antíoco, bispo de Ptolemaida, Acácio, bispo de Beroea, e diversas outras pessoas que não eram entusiastas de João. Provavelmente, Isaque, um dos fundadores e líderes do monacato na Capital, também estava presente na reunião em que se decidiu realizar um sínodo contra o bispo.60

Paládio acusa Teófilo de esbanjar dinheiro na compra do apoio das autoridades contra João e, ainda, por meio de bajulação e promessas de promoção, de atrair partidários entre o clero da Capital. Juntos, os críticos de João apresentaram várias acusações contra o bispo, que foram registradas em uma carta entregue a ele e lida em voz alta perante a congregação, na qual o convocavam a comparecer diante do Sínodo do Carvalho, reunido entre setembro e outubro de 403.61

A carta acusava João de ser severo com seus sacerdotes e de frequentemente os repreender por corrupção e incompetência, além de expulsar muitos deles e de interferir na vida religiosa da assembleia. Sem dúvida, Crisóstomo havia realizado diversas intervenções no cotidiano da cidade e da igreja, que incluíam mudanças na rotina do clero.62 Essas alterações na gestão eclesiástica foram profundas, tendo sido sentidas pelos clérigos, que não ficaram satisfeitos. Ou seja, os motivos de deposição alegados contra ele perante o Sínodo foram resultado da sua própria atuação em Constantinopla.

Autores, como Pierre Maraval, acreditam que Teófilo há muito tempo desejava prejudicar João Crisóstomo. Tal declaração é baseada no caso da eleição para bispo de Constantinopla, em 397.63 À época, Teófilo defendia a candidatura de Isidoro, um presbítero de Alexandria, mas foi Eutrópio, o praepositus sacri cubiculi de Arcádio,64 quem obteve sucesso mediante a nomeação de João. Nesse sentido, Teófilo passaria a sustentar um profundo ressentimento contra este último, que jamais cessaria. Acreditamos que tal situação pode ter contribuído para a inimizade entre Teófilo e João, mas dificilmente seria um catalisador do Sínodo do Carvalho.

60 Pal., Dial., VI, VIII. 61 Pal., Dial., VIII. 62 Pal., Dial., V.

63 MARAVAL, P. Constantinople, I’lllycrum et l’Asie Mineure. In: MAYEUR, J. et al. Histoire du

Christianisme. Paris: Desclée, 1995. p. 225-249. t. 2.

64 O praepositus sacri cubiculi, traduzido como “prepósito do cubículo sagrado” ou “reitor do

dormitório sagrado” era um ofício da corte imperial romana tardia, no qual o titular do cargo atuava como o grande camareiro do palácio, exercendo considerável autoridade e influência. PINTO, O. L. V. O mais belo ornamento de Roma: administração, ofícios e o projeto burocrático nas

Variae de Cassiodoro (507-540 d.C.). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de

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Retomando à repercussão do Sínodo do Carvalho, João, ao recusar o pedido da corte imperial, criou uma situação desfavorável para si, resultando na perda da aprovação do imperador que, por longo tempo, o ajudou nos conflitos anteriores. Mas, dessa vez, parecia que não havia como evitar o que estava por vir: a deposição. João se recusou a comparecer perante o Sínodo, mesmo tendo sido formalmente convocado, o que acarretou sua expulsão para o distrito de Prameto, na Bitínia. Todavia, apenas passado um dia, a população se rebelou, ocorrendo conflitos e atos de violência em Constantinopla, o que causou grande alarme. Arcádio decidiu então trazer João de volta e, prontamente, Teófilo teve que sair da cidade, pois corria riscos se ali permanecesse.65

Uma metrópole em chamas

A vitória de João sobre seus inimigos parecia ter sido definitiva, uma vez que o imperador tivera de o chamar de volta a Constantinopla devido aos protestos da população em favor do bispo. Porém, segundo Paládio, essa paz foi relativa e não durou muito tempo, pois os inimigos de João ainda planejavam depô-lo.66

Teófilo tinha receio de voltar à Capital devido às circunstâncias de sua última estadia. Assim, resolveu enviar três bispos em seu lugar: Paulo, Poimeno e outro, recém-consagrado. A intenção de Teófilo era pedir ao imperador que ratificasse a deposição de João, pois o bispo teria sido expulso por um sínodo legítimo e não poderia retornar tão facilmente, sem que outro sínodo o autorizasse. O imperador, por respeito aos bispos conciliares, solicitou que João deixasse a igreja. Este, em resposta, declarou que não poderia abandoná-la e que apenas sairia à força.67

Na noite da vigília pascal, soldados são enviados para expulsar das igrejas os partidários do bispo, o que provoca uma intensa comoção popular. No dia seguinte, parte do clero fiel a João decide ocupar os banhos públicos, os chamados Banhos de Constâncio, para celebrar a Páscoa, numa audaciosa demonstração de desacato ao decreto que os desalojava de seus lugares de culto. Em seguida, passam a se reunir fora dos muros da cidade.68 Houve, então, uma exigência para que as pessoas fossem impedidas de permanecer no local. O oficial de plantão objetou que era noite e que a quantidade de pessoas reunidas era grande, o que poderia dar margem a algum incidente. De acordo com

65 Pal., Dial., VIII-IX. 66 Pal., Dial., IX. 67 Pal., Dial., IX.

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Paládio, Acácio de Beroea e sua facção apelaram contra a vigília noturna fora da igreja, declarando que se o imperador fosse até a igreja e não encontrasse ninguém lá, iria reconhecer o carinho do povo para com João, perdendo a sua autoridade.69 As forças imperiais, então, decidiram prender membros do clero leais a João, expulsando alguns da Capital. Ao mesmo tempo emitiram-se ameaças contra aqueles que não renunciassem à comunhão com João.

O ambiente da Capital se tornou bastante violento e, segundo Sozomeno, teriam ocorrido duas tentativas de assassinato contra João, o que obrigou os joanitas a manterem o bispo sob constante vigilância.70 Após dois meses de expectativa, Arcádio, por fim, ordenou o exílio do bispo que, em 20 de junho de 404, oficialmente deixou Constantinopla.71 Daí por diante, os partidários de João formaram uma espécie de facção autônoma dentro da igreja de Constantinopla: os joanitas. Tal acontecimento serviu como pretexto para mais acusações contra João Crisóstomo, sobretudo, por parte dos bispos Antíoco, Severiano e Acácio.

Paládio, sobre o episódio da deposição de João, declara que as prisões foram transformadas em igrejas, pois nelas hinos foram cantados, oblações e mistérios continuaram a ser celebradas pelos prisioneiros.72 Um dos emissários da corte teria avisado a Crisóstomo que um soldado, de nome Lúcio, estaria pronto para levá-lo à força para fora da cidade. Assim, João partiu em direção ao batistério para encontrar Olímpia, Pendátia e Procle, as diaconisas da congregação de Constantinopla, bem como Silvina, todas membros da ordem das viúvas.

Os seguidores de João e parte da população manifestaram-se contrários à decisão imperial, promovendo ainda mais conflitos na cidade.73 Como resultado, um incêndio irrompeu na igreja em que João pregava e na cúria, o recinto de reunião do Senado, o que ocasionou a destruição parcial dos prédios.74 Paládio ressalta que, mesmo que ninguém tenha se ferido, em poucas horas o fogo consumiu ambos os edifícios, tornando-se um dos episódios mais marcantes da deposição de João Crisóstomo, além de suscitar mais descontentamento contra os joanitas.75

Diversos sacerdotes partidários de Crisóstomo foram mantidos na prisão,

69 Pal., Dial., IX.

70 Soz., Hist. Eccl., VIII, 21. 71 SILVA, Ibidem. p. 119. 72 Pal., Dial., X.

73 Soz., Hist. Eccl., VIII, 22; Pal., Dial., X. 74 Soz., Hist. Eccl., VIII, 22.

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outros foram expulsos da cidade e outros se esconderam. Junto com João, Ciríaco e

Eulísio foram levados para a Bitínia sob a acusação de também terem ateado fogo à

igreja. Tendo sido julgados, foram absolvidos. João, entretanto, não teve o mesmo

destino, pois foi enviado, sob escolta, para Cucuso, uma aldeia distante, na

Armênia, de onde não voltou.

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Após o exílio de João, Arsácio, irmão de Nectário, foi nomeado bispo de Constantinopla. No entanto, Arsácio manteve-se no cargo por apenas quatorze meses, pois veio a falecer. Com o cargo novamente vago, Ático, um sacerdote que tinha participado ativamente na luta contra João, é quem assume o bispado. Paládio observa que a população e os membros da igreja que eram partidários de Crisóstomo não aceitavam o novo bispo.77 Assim, criou-se outro embate na Capital, agora entre Ático e aqueles que não reconheciam sua autoridade, em especial, os joanitas.

Os joanitas, portanto, podem ser considerados uma facção que possuía como finalidade defender a honra e a imagem de João Crisóstomo dentro da Igreja, ao mesmo tempo em que buscavam trazê-lo de volta à cidade. Ao descrever o embate dos joanitas com as demais facções existentes em Constantinopla, tanto Paládio quanto Sozomeno afirmam que muitos partidários de João, mesmo que ainda o defendessem, aceitaram a comunhão com o sucessor de João Crisóstomo, Arsácio.78 A esse respeito, Peter Van Nuffelen declara que, a partir de 404, três grupos disputavam o poder dentro da sé de Constantinopla: 1) os inimigos de João; 2) os partidários de João que aceitaram a comunhão; e 3) os defensores de João, os joanitas.79

Durante a perseguição dos partidários de João, os bispos que se recusaram a aceitar a deposição de João foram depostos e exilados, assim como uma série de outros joanitas.80 Em 406, Paládio, bispo de Helenópolis, ao defender abertamente João Crisóstomo, foi deposto e exilado para Syene, cidade localizada no sul do Egito.81 Alexandre, bispo de Basilinópolis, na Bitínia, que se consagrou no cargo episcopal por

76 Convém ressaltar que essa área sofria bastante com os ataques de isaurianos, sendo bastante

hostil para os viajantes. Ioa. Chrys., Ep. ad Olymp., 17, 1.

77 Pal., Dial., X; Vita Olymp., 10.

78 Pal., Dial., XX; Soz., Hist. Eccl., VIII, 24.

79 NUFFELEN, P. V. Palladius and the Johannite schism. Journal of Ecclesiastical History, v. 64, n. 1, p.

1-21, 2013. p. 6.

80 Pal., Dial., VIII; Soz., Hist. Eccl., VIII, 24.

81 Sabemos que, em 407, Paládio aceitou comunhão com a Igreja e, mais tarde, recuperou seu cargo

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indicação de João, também foi deposto e exilado.82

Mesmo após a morte de João, em 407, os partidários do ex-bispo continuaram a fazer oposição aos grupos em comunhão com a Igreja. Contudo, dois anos mais tarde, uma anistia foi oferecida aos joanitas, sem restaurar o nome de patriarca. Nuffelen declara que a concessão de perdão e o reestabelecimento daqueles que aceitassem o novo bispo pode ter sido suficiente para atrair alguns seguidores de João.83 Todavia, os demais joanitas, apoiados por Inocêncio de Roma,84 permaneceram fiéis na luta pela reabilitação da imagem do bispo deposto, que só ocorreria uma década mais tarde, em 418, ano em que Ático, bispo de Constantinopla, reinscreveu o nome de João Crisóstomo nos dípticos dos mortos,85 o que significou a reabilitação formal da imagem do falecido patriarca com a Igreja.86

Apontamentos e considerações finais

A complexidade da situação de João Crisóstomo em seus últimos anos, do episcopado ao exílio, para além das narrativas de Paládio, Sócrates e Sozomeno, nos leva a considerar a importância da dinâmica dos círculos de poder nos quais o bispo transitava, uma vez que apontam para problemas eclesiásticos, mas também políticos e sociais.87 Apesar de as fontes mostrarem-se demasiadamente romantizadas em relação aos últimos anos de João Crisóstomo, não quer dizer que elas não revelem possibilidades de compreensão para a ascensão, deposição, exílio, morte e reestabelecimento da memória do bispo de Constantinopla. Em outras palavras, mesmo que os motivos de determinados eventos soem duvidosos, a existência dos fatos, por si só, já confirma a existência de conflitos e interações entre os círculos políticos e eclesiásticos tardo-antigos.

Não é nosso dever – e nem deve ser – confirmar a inocência ou condenar as ações de João Crisóstomo em Constantinopla. O papel de advogado já foi excessivamente

82 NUFFELEN, Ibidem. p. 6-7. 83 Ibidem. p. 9.

84 Para mais informações sobre a intervenção de Inocêncio I na deposição de João, cf. SILVA, G. V.;

SILVA, E. C. M. Quando todos os caminhos levam a Roma: a intervenção de Inocêncio I no episódio da deposição de João Crisóstomo. In: DIAS, C. K. B.; SILVA, S. C.; CAMPOS, C. E. C. (Org.). Experiências

religiosas no Mundo Antigo. Curitiba: Prismas, 2017. p. 273-296. v. 1.

85 Soc., Hist. Eccl., VII, 25. 86 NUFFELEN, Ibidem. p. 2.

87 Realizamos um estudo aprofundado desta questão em nossa dissertação de mestrado. Para mais

informações, cf. FURLANI, J. C. Gênero, conflito e liderança feminina na cidade pós-clássica: a atuação de Eudóxia e Olímpia sob o episcopado de João Crisóstomo (397-404). 2017. 238 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017.

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exercido por seus contemporâneos e até mesmo pela historiografia. Mas, antes disso, devemos compreender um pouco mais sobre sua passagem pela Capital do Oriente e apresentar uma leitura dos eventos que o cercaram. Sobre isso, recordamos da afirmação de Herbert Moore, ao alegar que João usou demais sua liberdade de expressão com aqueles que encontrou, faltando-lhe o comando sobre si mesmo, a frieza e o tato de um político.88 Opinião essa que encontrou forte aceitação pela historiografia. Sem dúvida, o próprio comportamento assumido por João, fruto das suas convicções, acabou por potencializar os conflitos então existentes.89 Mas, para além disso, defendemos que as circunstâncias que cercavam a igreja de Constantinopla, à época, eram extremamente difíceis, seja pela luta contra o arianismo, pela redefinição dos lugares e papéis político e religiosos ou pela importância do cargo numa capital imperial.

Não podemos perder de vista, é claro, que a figura de João Crisóstomo sempre se mostrou controversa. Por um lado, havia aqueles que o criticavam e, por outro, os que o amavam. No que se refere aos seus partidários e amigos, eles o defenderam com determinação. Entre eles encontramos Lupiciano, Demétrio, e Eulísio, Germano e Severo. Além disso, Crisóstomo teve um grande número de seguidores entre a população de Constantinopla, como Olímpia e as devotas cristãs, além do próprio Paládio, um dos quarenta bispos que se posicionaram ao seu lado.90

À medida que o tempo passava na Capital, João prosseguia com sua política de reforma eclesiástica, de interferência no cotidiano e no espaço citadino, de combate à participação dos cristãos em atividades de entretenimento – como as peças teatrais e as corridas no hipódromo –,91 de reorganização da ordem das viúvas e dos monges, entre outras ações, como atestam Paládio, Sozomeno, Sócrates e também Zósimo, a oração

88 MOORE, H. Introduction. In: PALLADIUS. The Dialogue of Palladius concerning the Life of St. John

Chrysostom. Translated by H. Moore. London: The Macmillan Company, 1921. p. vii-xxv.

89 SILVA, G. V. O sentido político da prédica cristã no Império Romano: João Crisóstomo e a reforma

da cidade antiga. In: ARAUJO, S. R. R.; ROSA, C. B.; JOLY, F. D. (Org.). Intelectuais, poder e política na

Roma Antiga. Rio de Janeiro: Nau, 2010a. p. 235-271; SILVA, G. V. Um bispo para além da crise: João

Crisóstomo e a reforma da Igreja de Constantinopla. Phoînix, v. 16, n. 1, p. 109-127, 2010b.

90 LIEBESCHUETZ, Ibidem. p. 1.

91 A separação dos espaços ditos puros e impuros para os cristãos e a interferência de João

Crisóstomo no cotidiano e no espaço urbano de Constantinopla é tema de nossa pesquisa de doutorado. Alguns resultados já foram publicados, como se pode conferir em: FURLANI, J. C. O uso dos conceitos de cidade e espaço em História Antiga: João Crisóstomo e a cristianização de Constantinopla como estudo de caso. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, v. 12, p. 86-107, 2018; FURLANI, J. C. Cristianização na cidade pós-clássica: João Crisóstomo e a disputa pelo espaço de Constantinopla. In: SILVA, G. V.; SILVA, E. C. M.; LIMA NETO, B. (Org.). Usos do espaço no Mundo

Antigo. Vitória: GM, 2018. p. 357-379; e FURLANI, J. C. Religião, cotidiano e espaço citadino: João

Crisóstomo e as transformações da igreja de Constantinopla. In: SILVA, G. V.; SILVA, E. C. M.; LIMA NETO, B. M. (Org.). Espaços do sagrado na cidade antiga. Vitória: GM, 2017. p. 185-196.

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fúnebre ao bispo, a Vida de Olímpia, o epistolário e as próprias homilias de João Crisóstomo, entre outros documentos. Além disso, João opinava em assuntos de outras sés e reafirmava que a “Nova Roma” possuía autoridade especial entre as demais igrejas do Oriente, o que, sem muito espanto, desagradou os bispos das congregações mais antigas. Em outras palavras, a atitude enfática de João, por mais que tenha conquistado a população da Capital, desagradou importantes figuras do círculo eclesiástico.

O conflito entre João Crisóstomo e Eudóxia é muito conhecido entre os estudiosos da trajetória do bispo. Contudo, as discussões são quase inteiramente voltadas para o bispo, de modo que a imperatriz acaba por assumir uma posição secundária, servindo como antagonista no episódio da derrocada de João. Mais que uma bárbara, astuta e manipuladora ou uma fraca, de natureza débil e manipulada, como costumam defini-la, a imperatriz não se resumia a uma devota.92 Ao contrário, era revestida pelo título de

Augusta, aparecia em público, emitia opiniões, cunhava moedas e intervinha em assuntos

político-religiosos. Tais atitudes, mesmo que não interferissem diretamente no exercício das atividades de João, aos seus olhos, eram dignas de reprovação, pois fugiam do modelo que esperava para uma mulher.

O modelo de mulher esperado por João Crisóstomo, em suma, é variável, uma vez que o bispo procurou em seu ministério classificar diferentes condições femininas, como a esposa, a viúva, a virgem e a diaconisa. Contudo, todas essas mulheres deveriam seguir os mesmos princípios, sendo sensatas, obedientes, recatadas, colocando o plano espiritual frente ao terreno, o que inclui o desapego à riqueza, ao luxo, à fama e aos prazeres do corpo.93 Portanto, as atitudes de Eudóxia claramente entraram em choque com o comportamento feminino esperado por João Crisóstomo e pela Igreja, e, mais que isso, questionaram o próprio lugar da mulher dentro da política e da religião tardo-antiga.94 Um exemplo claro da atuação de Eudóxia reside na cunhagem de moedas, uma vez que, como

Augusta, além de usar o paludamentum púrpura e o diadema de ouro, ela também possuía

a capacidade de construir para si mesma uma imagem arquitetada capaz de se contrapor à imagem criada pelos documentos escritos, que, em suma maioria, a criticavam ou condenavam seus atos.95

92 MAYER, Ibidem. p. 209-213.

93 Ioa. Chrys., De uirg., 1-84; De non iter. con., 1-11; Ad uid. iun., 1-7.

94 Opinião também compartilhada por Wendy Mayer. Cf. MAYER, Ibidem. p. 205-213.

95 A memória da imperatriz, portanto, não se restringe à documentação escrita, ela também pode

ser discutida por meio da cultura material, sobretudo da numismática. Em outra oportunidade analisamos a imagem e a representação numismática de Élia Eudóxia transmitida por meio de um

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O conflito com a imperatriz, entretanto, se insere num processo mais amplo de intervenção de João Crisóstomo na congregação de Constantinopla, como as reformas no clero, a organização das vigílias noturnas, o controle sobre as transformações do espaço urbano e do cotidiano da Capital. Portanto, para se restaurar a imagem de João, recursos narrativos foram empregados em larga escala por seus seguidores, que trataram de construir papéis de antagonistas e vilões para seus adversários – o que inclui a imperatriz – como confirmação da santidade de João.96

Para além das explicações de um ego ferido por parte do bispo e das narrativas simplórias a que nos referimos no início deste artigo, observamos razões de natureza apologética na fundamentação do discurso de João Crisóstomo, que o levaram a situações de conflito e de violência. Razões essas que não se restringem à figura da imperatriz, mas estendem-se, em suma, às relações de gênero e à (re)definição dos lugares de atuação política e religiosa presentes em toda a passagem de João Crisóstomo por Constantinopla.

É, portanto, válido assumir que a interferência do episcopado de João em questões políticas poderia ser considerada uma afronta à casa imperial. Ao mesmo tempo, a corte intervir diretamente em assuntos das sés, considerados exclusivos à Igreja, também desagradaria o bispo da Capital, uma vez que tal intromissão feriria uma hierarquia fortemente estabelecida em preceitos sagrados.

À guisa de conclusão, não podemos tardar em afirmar que a passagem de João por Constantinopla, sem mesmo levarmos em consideração à conturbada relação com Eudóxia, é facilmente visualizada como conflituosa e violenta. Os elementos percebidos por Rahim como caracterizadores de um conflito estão presentes nos diversos episódios que cercam o episcopado de João Crisóstomo: posições diversas, incompatibilidade de atitudes, desacordo de valores, diferenças em crenças e dissonância entre entidades e interações, que, em última instância, resultam em práticas de violência.97

O decreto imperial para João deixar a igreja, a exigência para que os apoiadores do bispo fossem impedidos de permanecer em determinados locais, as perseguições, exílios e excomunhão dos joanitas, os confrontos abertos e as prisões na cidade são, ao seu modo, características de uma violência operada direta, indireta e simbolicamente, uma vez que

conjunto de moedas cunhadas em sua homenagem, durante o governo de Arcádio, levando em consideração a discussão sobre a luta de representações a respeito da figura da imperatriz. Cf. FURLANI, J. C. Anverso e reverso: a imagem monetária de Élia Eudóxia, imperatriz do Oriente (395-404). Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 9, p. 234-253, 2017.

96 Epit. Log. Ioa. Chrys., 27. 97 RAHIM, Ibidem. p. 16.

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atingem de maneira imediata os corpos dos sujeitos e alteram o ambiente físico no qual os indivíduos se encontram, impedindo o acesso a determinadas áreas, reduzindo recursos e assolando memórias.98

Referências

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