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ICMS DECLARADO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA: A COMPOSIÇÃO DA BASE TRIBUTÁRIA BRASILEIRA COMO INCENTIVO À INADIMPLÊNCIA

Bruno Bastos de Oliveira

Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Marília – UNIMAR.

Fellipe Vilas Bôas Fraga

Doutorando e Mestre em Direito pelo PPGD/UNIMAR. Doutorando em Direito pela UMSA – Buenos Aires.

José Luiz Mansur Júnior

Doutorando em Direito no PPGD/UNIMAR. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes, Marília – SP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade de Marília – UNIMAR.

SEÇÕES DO ARTIGO 1. Introdução

2. Antecedente: o Caso American Virginia 3. A Criminalização do

Inadimplemento do ICMS Próprio pelo STF 4. A Composição da Base

Tributária Brasileira 5. Análise da Hipótese

Apresentada 6. Considerações Finais Referências Bibliográficas Notações

RESUMO

Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal fixou tese sobre a criminalização do contribuinte por dívidas de ICMS próprio declarado, a fim de coibir a inadimplência dolosa e contumaz do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços. Um dos argumentos apresentados foi o de que empresas que dolosa e sistematicamente descumprem o regramento fiscal, não recolhendo aos cofres públicos o referido imposto, atuam com vantagem indevida em relação às demais empresas do segmento, o que, em última análise, constituiria afronta ao princípio constitucional da livre concorrência. Através do presente artigo, conjectura-se, no entanto, a hipótese de que o referido comportamento empresarial, genericamente considerado e desvinculado de determinadas circunstâncias factuais, pode estar diretamente relacionado à má distribuição da carga tributária brasileira, posto que a tributação indireta sobre o consumo de bens e serviços (IPI, ICMS e ISS), correspondente a mais da metade da referida base, resultaria em sobrecarga tributária. Tal fato, aliado à possibilidade de postergação, incentivaria a citada prática empresarial, o que garantiria maior competividade no mercado. O presente artigo tem por objetivo, assim, a análise crítica da hipótese proposta. Para tanto, utiliza-se do método hipotético dedutivo e, como sistema de referência, da Análise Econômica do Direito. Conclui-se, ao final, que a hipótese testada não pode ser falseada, razão pela qual é provisoriamente corroborada.

PALAVRAS-CHAVE

ICMS. Inadimplência. crime. Apropriação. Base tributária.

ABSTRACT

In December 2019, the Federal Supreme Court established a thesis on the criminalization of taxpayers for their own declared ICMS debts, in order to curb the willful and persistent default of the tax on the circulation of goods and services. One of the arguments presented was that companies that intentionally and systematically fail to comply with tax regulations, failing to collect the said tax from public coffers, act with an undue advantage in relation to other companies in the segment, which, in the final analysis, would constitute an affront to the principle constitutional principle of free competition. Through this article, it is conjectured, however, the hypothesis that the referred business behavior, generally considered and disconnected from certain factual circumstances, may be directly related to the poor distribution of the Brazilian tax burden, since the indirect taxation on consumption of goods and services (IPI, ICMS and ISS), corresponding to more than half of the referred base, would result in tax overload. Such fact, coupled with the possibility of postponement, would encourage the aforementioned business practice, which would guarantee greater competitiveness in the market. The present article thus aims at the critical analysis of the proposed hypothesis. For that, it uses the hypothetical deductive method and, as a reference system, the Economic Analysis of Law. It is concluded, in the end, that the tested hypothesis cannot be falsified, which is why it is provisionally corroborated.

KEYWORDS

ICMS. Default. Crime. Appropriation. Tax base.

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1. Introdução

A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (BRASIL, 1990), define, entre outros, os crimes contra a ordem tributária, especificando não apenas as condutas que importam em sonegação fiscal (art. 1º)01, como outros crimes da mesma natureza, dentre os quais, a apropriação indébita tributária (art. 2º, II)02.

Tradicionalmente, no entanto, a inadimplência de ICMS próprio declarado não vinha sendo considerada sonegação tributária por nossos Tribunais, nem tampouco apropriação indébita. Em 2019, todavia, no julgamento do RHC 163.334 (BRASIL, 2019), o Supremo Tribunal Federal fixou uma nova tese, criminalizando a referida inadimplência tributária, desde que dolosa e contumaz. Para tanto, um dos argumentos invocados foi o de que a empresa que opta contumaz e voluntariamente pelo não pagamento do ICMS próprio estaria em posição de vantagem em relação às demais empresas daquele seguimento. Tal prática, por sua vez, importaria em violação ao princípio da livre concorrência, devendo ser coibida.

Partindo de tal premissa, objetiva-se, com o presente artigo, analisar uma hipótese correlata, a saber: a de que a base tributária brasileira, composta, na sua maioria, por tributos incidentes indiretamente sobre a produção, circulação e consumo de bens e serviços, contribuiria para inadimplemento empresarial, na medida que sobrecarregaria os custos de transação, de forma a afetar a competividade.

Por fim, visando assegurar maior rigor científico à pesquisa, adota- se não apenas o método hipotético-dedutivo, possibilitando, assim, o eventual falseamento da hipótese aventada, como também a Análise Econômica do Direito, como referencial teórico, de modo a incorporar a análise do custo-benefício.

2. Antecedente: o Caso American Virginia

A mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito à criminalização do não pagamento do ICMS próprio declarado,

foi antecedida por outra decisão paradigmática, relatada pelo então Ministro Joaquim Barbosa.

Em maio de 2013, a Suprema Corte Brasileira, ao negar provimento ao recurso extraordinário 550.769 (BRASIL, 2013), da empresa de cigarros American Virginia Indústria e Comércio de Tabacos Ltda., interposto contra decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que havia considerado constitucional dispositivo que condiciona a concessão de registro especial para a fabricação e comercialização de cigarros à regularidade fiscal da empresa, já havia manifestado repúdio ao inadimplemento sistemático e voluntário do IPI (imposto sobre produtos industrializados) como vantagem concorrencial, destacando-se do voto do Ministro Relator o fato de não haver que se falar em sanção política se as restrições à prática da atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial03.

Extrai-se, ainda, do citado aresto, mais especificamente do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que a empresa que insiste em descumprir normas fiscais, atua com vantagem indevida em relação às outras empresas do setor, o que constitui afronta ao princípio da livre concorrência, previsto no art. 170, IV, da Constituição Federal, além de macro delinquência tributária (BRASIL, 2013)04.

Na mesma linha, o voto do Ministro Luiz Fux, destacando que no caso haveria uma estratégia dolosa contra a administração pública, não se tratando, portanto, de uma dívida tributária normal, bem como os votos da Ministra Rosa Weber e dos Ministros Dias Toffoli. Restaram vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, estando ausente a Ministra Carmem Lúcia (BRASIL, 2013).

3. A Criminalização do Inadimplemento do ICMS Próprio pelo STF

Em dezembro de 2019, ou seja, após seis anos da decisão paradigmática proferida no caso American Virginia, o Supremo Tribunal Federal brasileiro

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voltou a enfrentar a questão do inadimplemento sistemático e voluntário de tributo próprio declarado, mas sob a ótica penal.

No caso, houve o julgamento de recurso ordinário em habeas corpus, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, interposto contra decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 163.334/SC) que, por considerar o não recolhimento de ICMS próprio crime de apropriação indébita tributária, havia denegado a ordem (BRASIL, 2019) .

Ao apreciar o referido recurso (BRASIL, 2019), o Supremo Tribunal Federal reiterou a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS próprio, mas cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, pratica o crime de apropriação indébita tributária, previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 (BRASIL, 1990)05.

Para chegar a tal conclusão, a Suprema Corte utilizou três ordens de interpretação. Em primeiro lugar, a interpretação semântica e sistemática da citada regra penal, estabelecendo que a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas, para tipificação da conduta, o não recolhimento do tributo. Em segundo, a interpretação histórica, asseverando que, a partir dos trabalhos legislativos, seria possível verificar que a intenção do Congresso Nacional era de tipificar a conduta.

Finalmente, a interpretação teleológica, voltada à interpretação da ordem tributária, destacando, por um lado, que a apropriação indébita do ICMS geraria graves danos ao erário público, bem como à livre concorrência, e, por outro, que seria virtualmente impossível que alguém fosse preso por tal delito (BRASIL, 2019).

Cumpre destacar, ainda, as três premissas apontadas pelo Ministro Relator Luís Roberto Barroso para equacionamento da matéria. A primeira, de que o Direito Penal deve ser sério (efetivo), igualitário (não distinguindo pobres e ricos, poderosos e comuns) e moderado (evitando o excesso de tipificações). A segunda, de que o pagamento de tributos é um dever fundamental de todo cidadão de que os crimes tributários privam o Estado brasileiro de recursos necessários. A terceira e última, de que o mero inadimplemento tributário não deve ser considerado crime, exigindo-se um

nível especial de reprovabilidade que justifique o tratamento mais gravoso (BRASIL, 2019).

Em relação à derradeira premissa, o que distingue a conduta prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 (BRASIL, 1990) da mera inadimplência e a circunstância de o sujeito passivo da obrigação tributária se apropriar de um valor que não lhe pertence e, como forma de reforçar a diferenciação entre crime e mera inadimplência, é necessário que a conduta lesione de modo significativo o bem jurídico protegido06.

Assim, seguindo a última das premissas apontadas, o Supremo Tribunal tomou o cuidado de restringir a criminalização do não pagamento do ICMS próprio declarado, exigindo a presença de circunstâncias objetivas factuais que evidenciariam o dolo de apropriação07.

Por fim, considerando as ressalvas apontadas, a Suprema Corte acabou por fixar a seguinte tese: “O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990” (BRASIL, 2019).

4. A Composição da Base Tributária Brasileira

Para consecução dos fins pretendidos no presente artigo, passa-se a uma análise da base tributária brasileira, destacando-se, de início, que a estrutura do sistema tributário de um país impacta diretamente nas finanças e na economia interna, influindo, por conseguinte, na maior ou menor concentração de renda.

Os referidos sistemas tributários, por sua vez, são classificados em progressivos, regressivos e neutros. Os primeiros arrecadam mais daqueles quem tem mais recursos, sendo normalmente compostos por tributos diretos, incidentes sobre o patrimônio e a renda. Sistemas regressivos, a seu turno, costumam onerar mais os mais pobres, posto que preponderantemente compostos por tributos indiretos, incidentes sobre a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços. Por

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fim, há os sistemas neutros, que tributam de forma igualitárias todas as faixas de renda.

De acordo com Gremaud, Vasconcellos e Toneto Júnior:

[...] pode-se classificar os sistemas tributários em progressivo, regressivo ou neutro. Um sistema tributário é dito progressivo quando a participação dos impostos na renda dos indivíduos aumenta conforme a renda aumenta, isto é, paga mais (em termos relativos) quem ganha mais. Um sistema é regressivo quando a participação dos impostos na renda dos agentes diminui conforme a renda aumenta (paga mais quem ganha menos). E é neutro quando a participação dos impostos na renda dos indivíduos é a mesma, independentemente do nível de renda. (GREMAUD;

VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2007, p. 199).

No Brasil, em particular, prevalece a chamada tributação indireta, posto que, de forma regressiva, a maior parte dos tributos incide sobre a produção, circulação e consumo de bens e serviços, sendo o caráter regressivo da carga tributária para Rossignoli e Saneshima (2017, pp. 231- 232), uma das causas da concentração de renda e elevada desigualdade social, uma vez que a ênfase da arrecadação é na tributação indireta recai principalmente sobre o consumo, onerando as famílias mais pobres e, de certa forma, privilegiando os mais abastados. E como nessa sistemática os custos tributários acabam sendo integrados nas despesas gerais das empresas e posteriormente embutidos no preço até chegar ao destinatário, o pagamento do tributo acaba sendo idêntico para qualquer pessoa, independentemente da faixa de renda.

E de acordo com Anselmini e Buffon (2018, p. 230) esta tributação indireta corresponde a mais da metade da carga tributária brasileira, seguido pela tributação sobre a renda e uma pequena quantia derivada da tributação sobre o patrimônio, atingindo a carga tributária de forma muito elevada as camadas com menor poder aquisitivo.

No mesmo sentido, analisando a carga tributária brasileira no ano de 2015, Rossignoli e Saneshima alertam para o fato de que a receita proveniente da arrecadação de tributos indiretos chega a ser mais de três vezes maior do que aquela resultante da arrecadação de tributos diretos:

[...] tem se que, pela soma dos percentuais referentes à tributação direta (sobre renda e propriedade) no ano de 2015, foi arrecadado apenas 22,71%

com tributos com esta característica, o que representou somente 7,2%

do PIB nacional. Por outro lado, a tributação indireta (sobre a folha de salários e bens e serviços, comumente repassada ao consumidor final) foi responsável por nada menos que 76,15% da arrecadação do mesmo ano, ou 24,66% do PIB brasileiro (mais de três vezes maior que a tributação direta). Deste total, a maior arrecadação proveio do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), conforme se comprova através dos dados divulgados pela Receita Federal […] (ROSSIGNOLI; SANESHIMA, 2017, p. 234).

Contudo, há que se trazer à baila a observação de Celso Furtado (2002, p.

22) ao analisar a pobreza do Brasil, no sentido de que o imposto socialmente mais correto seria o indireto, pelo fato de incidir exatamente sobre o ato de consumo e, assim, podendo atingir os grupos de maior coeficiente de desperdício ou mais beneficiados pelo sistema de preços.

É uma distribuição de carga tributária bastante diferente daquela observada em países desenvolvidos, como os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, que priorizam a tributação direta, incidente, portanto, sobre o patrimônio e a renda.

Nese sentido:

A carga tributária é um indicador que expressa a relação entre o volume de recursos que o Estado extrai da sociedade sob a forma de impostos, taxas e contribuições para financiar as atividades que se encontram sob sua responsabilidade, e o Produto Interno Bruto (PIB). Diversos estudos revelam que a carga tributária brasileira aumentou muito nos últimos anos, saltou de 29% para 37% do PIB, no período de 1994 a 2005. De fato, já é mais alta que a de muitos países centrais. Mas o Brasil, ao contrário dos países desenvolvidos, tira a maior parte da sua receita de tributos indiretos e cumulativos, que oneram mais o trabalhador e a classe média, pois tem uma alta carga tributária sobre o consumo – mais da metade da carga provém de tributos que incidem sobre bens e serviços – e uma baixa tributação sobre a renda – 25%. Situação inversa é a estrutura tributária dos países da OCDE: os impostos sobre o consumo representam 32,1%, em média: o imposto sobre a renda 35,4%. (SALVADOR, 2006, p. 2).

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Assim, incidência da tributação indireta apresenta caráter regressivo, evidenciando efeito negativo no que concerne à pobreza e distribuição de renda, uma vez que os indivíduos inseridos em classe de renda mais alta se beneficiam, enquanto a classe pobre tem maior perda na renda total (SILVA; DUARTE; OLIVEIRA, 2021, p. 20).

5. Análise da Hipótese Apresentada

Como visto, a hipótese construída pelo Supremo Tribunal Federal, de criminalização do não pagamento do ICMS próprio, declarado e escriturado, foi estribada na ideia de que o inadimplemento contumaz e doloso, por parte de empresas que sistematicamente descumprem o regramento fiscal, acaba por criar uma vantagem concorrencial indevida em relação às demais empresas do setor08.

Ademais, segundo o Ministro Relator, julgados no Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a atipicidade da apropriação do ICMS, teriam incentivado a inadimplência proposital de muitos empresários, fazendo com que diversos contribuintes passassem a declarar os valores devidos, sem recolhê-los, contando com a impunidade, havendo uma “migração”

do crime de sonegação para o crime de apropriação indébita, com efeitos deletérios graves para a livre concorrência (BRASIL, 2019).

Contudo, a livre concorrência é um dos princípios basilares da ordem econômica nacional (BRASIL, 1988)09 que, dentre outras questões, protege os consumidores de abusos de poder econômico e dos lucros arbitrários (FERRER; MOLLICA, 2017, p. 785), partindo o sentido de tal princípio da ideia de liberdade de competição no mercado por meio da igualdade de condições entre os agentes econômicos (FORTES; BASSOLI, 2010, p. 240), pressupondo, portanto, competitividade em pé de igualdade (DIAS; FRAGA;

OLIVEIRA, 2020, p. 139).

O fato é que o próprio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC nº 399.109/SC, já havia pacificado o entendimento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é fato típico.

O presente artigo, no entanto, apesar de reconhecer a existência de casos como os descritos pelo Supremo Tribunal Federal, aventa uma outra hipótese (não necessariamente conflitante), de que o referido comportamento empresarial também pode estar diretamente relacionado à má distribuição da carga tributária, preponderantemente composta por tributos indiretos.

Para tanto, verifica-se, por primeiro, que o sistema tributário brasileiro, além de sobrecarregar o consumidor final, também impacta negativamente nos custos do empresariado, estando o Brasil entre os países que mais cobram tributos sobre os alimentos, o que, segundo Alves, Rossignoli e Oliveira (2020, p. 435), demonstra quanto o sistema tributário brasileiro é falho e injusto, prejudicando o desenvolvimento social e econômico do país.

Discorrendo sobre encargos financeiros, Jonathan Barros Vita alerta para o fato de que nem sempre o consumidor final é quem arca com ônus econômico dos tributos indiretos:

Quando se fala em ônus econômico, tem-se um elemento de capital negativo sob o ponto de vista não necessariamente de dispêndio de valores, mas também daquilo que poderia se estar ganhando em um cenário ideal.

Entretanto, os encargos financeiros pressupõem um dispêndio efetivo de valores com alguma finalidade, no caso concreto, relacionável, apenas, a produção de alguma riqueza, lucro, receita. Quando se fala destes conceitos nitidamente vinculados à percepção da economia, talvez seria possível dizer que (a depender do lado observado) ambos ou sujeitos envolvidos em uma transação sofrem ônus econômico da mesma, sendo normalmente muito maiores para o sujeito vendedor, mesmo que os encargos financeiros não necessariamente existam na mesma intensidade. Em casos ideais, quando a curva de oferta é horizontal (ou perfeitamente elástica) ou a demanda é vertical (ou perfeitamente inelástica), o ponto de equilíbrio do mercado tem uma tendência a gerar ônus aos compradores. No extremo oposto, quando a curva de oferta é inelástica ou a curva de demanda é elástica, a tendência é de que o ônus econômico dos tributos seja produzido para os vendedores. Nos casos de elasticidade plena, tem-se que o preço praticado é o fator preponderante pra modular a posição de encontro de tais curvas, enquanto nos casos de inelasticidade, este não é o fator preponderante. Deixa-se claro que, normalmente as situações apresentam-se mais próximas de uma demanda mais elástica (vertical e volátil) que a oferta (menos vertical

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e volatizada), o que implica (como regra geral) ônus econômico mais próximo do vendedor do que do comprador. [...] Complementarmente, lembra-se que a menor elasticidade da oferta ocorre pelo fato que viabilizar a produção e/ou a comercialização é extremamente complexo e comporta vários riscos e investimentos diluídos no tempo, implicando uma menor volatilidade (elasticidade) dos comportamentos dos vendedores, deixando claro que os riscos assumidos representam um fator que faz com que a citada presunção do encargo econômico como sendo do vendedor seja (materialmente) legitimada. (VITA, 2012).

De se verificar, portanto, que em mercados muito competitivos, nos quais a relação oferta-demanda é mais equilibrada, o ônus econômico dos tributos tende a ser suportado, como regra, pelo vendedor (ou produtor), posto que qualquer variação no preço do produto pode influir na demanda. Tal fato acaba por dificultar a transferência da carga tributária para o consumidor final, principalmente no que diz respeito aos pequenos empresários, que têm maior custo de produção por unidade.

Essa constatação contradiz a conclusão de que, em mercados de produtos de alta demanda, o comerciante que deixa de recolher ICMS, vendendo seus produtos muitas vezes abaixo do preço de custo, o faz necessariamente com o intuito de inviabilizar a atividade lícita de seus competidores. Isso porque, para o pequeno empresário, empenhado em se manter no mercado, o não pagamento imediato do tributo pode ser a única estratégia concorrencial viável.

Fundamental, portanto, que se separe o joio do trigo, a fim de que o mero inadimplemento fiscal, ainda que proposital, não seja indevidamente criminalizado. Para tanto, passa-se a analisar o pressuposto subjetivo indicado pelo Supremo Tribunal Federal para o enquadramento da conduta do empresário contribuinte no disposto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 (BRASIL, 1990).

Destaca-se que, na apropriação indébita tributária, a censurabilidade da conduta decorre da circunstância de que o agente toma para si um valor que não lhe pertence, ao qual teve acesso pelo único e específico motivo de lhe ter sido atribuído o dever de recolher o tributo (BRASIL, 2019)10.

Exige-se, no entanto, uma gravidade especial, que evidencie que o devedor age de forma reiterada, sistemática e contumaz, como verdadeiro modelo de negócio dirigido ao enriquecimento ilícito, à lesão da concorrência ou a o financiamento de suas próprias atividades11.

Tal gravidade, por integrar o elemento subjetivo do tipo penal, deve ser demonstrada pelo órgão acusatório, não bastando, para a responsabilização criminal, a mera constatação do inadimplemento voluntário e reiterado, pois, como verificado, outros fatores podem influir no referido comportamento.

Com base no estudo realizado, é possível inferir que a hipótese apresentada não pode ser refutada, ou seja, que a base tributária brasileira, composta na sua maioria por tributos indiretos, sobrecarrega os custos do empresário, principalmente daquele de pequeno porte, a ponto de influir na decisão estratégica de não recolher aos cofres públicos tributos próprios, declarados e escriturados.

Assim, há de se separar, através da identificação de circunstâncias factuais específicas, o inadimplemento criminoso, característico daqueles que objetivam uma vantagem competitiva em relação aos seus concorrentes, da inadimplência meramente fiscal, ainda que eventualmente proposital, quando motivada por uma estratégia de sobrevivência típica de pequenos empresários.

6. Considerações Finais

A partir das ideias expostas, com a finalidade de manter a lógica entre as premissas estabelecidas e o objeto da presente investigação, apresenta-se as seguintes conclusões:

Em que pese a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (BRASIL, 1990) definir como crime a apropriação indébita tributária, os Tribunais não vinham considerando como sonegação ou apropriação indébita tributária a inadimplência de ICMS próprio declarado, o que se transmutou com o julgamento do RHC 163.334 (BRASIL, 2019), tendo o STF fixado nova tese criminalizando a referida inadimplência tributária, desde que dolosa

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e contumaz, por entender que estaria a empresa em posição de vantagem em relação às demais do mesmo seguimento, causando com tal prática a violação ao princípio da livre concorrência.

A última premissa adotada pelo Ministro Relator Luís Roberto Barroso para equacionamento da matéria distingue a conduta prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 (BRASIL, 1990) sendo necessário que a conduta lesione de modo significativo o bem jurídico protegido.

A composição da base tributária brasileira tem prevalência na chamada tributação indireta, por incidir a maior parte dos tributos, de forma regressiva, sobre a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços, o que pode gerar concentração de renda e elevação de desigualdade social.

Em que pese o fato de se reconhecer a existência de casos como os descritos pelo STF, entende-se, de forma não necessariamente conflitante,

que tal comportamento empresarial também pode estar diretamente relacionado à má distribuição da carga tributária, preponderantemente composta por tributos indiretos, que além de sobrecarregar o consumidor final, impacta negativamente nos custos necessários ao desenvolvimento da atividade empresarial.

A fim de que o mero inadimplemento fiscal, ainda que proposital, não seja indevidamente criminalizado, conclui-se por fundamental a necessidade de análise do pressuposto subjetivo indicado pelo STF para o enquadramento da conduta do empresário contribuinte no disposto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 (BRASIL, 1990), ou seja, a conduta de forma reiterada, sistemática e contumaz, como verdadeiro modelo de negócio dirigido ao enriquecimento ilícito, à lesão da concorrência ou a o financiamento de suas próprias atividades.

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Notações

01. Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. (BRASIL, 1990).

02. Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: [...] II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. (BRASIL, 1990).

03. [...] Em suma, a Corte tem historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para tanto, o direito ao exercício e atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, par. ún. da Constituição), a violação do substantive due process of law (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários) e a violação do devido processo legal manifestado no direito de acesso aos órgãos do Executivo ou do Judiciário tanto para o controle da validade dos créditos tributários, cuja inadimplência pretensamente justifica a nefasta penalidade, quando para controle do próprio ato que culmina na restrição. É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática da atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício da atividade econômica deve ser desproporcional e não-razoável. (BRASIL, 2013).

04. Segundo consta, a American Virgínia é devedora de quase R$ 2.000.000,00 (dois bilhões de reais), sendo que, em agosto de 2007, os débitos inscritos na dívida ativa da União alcançaram a cifra de R$ 1.043.259,27 (um bilhão, quarenta e três milhões, duzentos e cinquenta e nove mil, novecentos e cinquenta e dois reais e vinte e sete centavos). Consta, ainda, do memorando expedido pela Coordenação-Geral de Grandes Devedores, de fls.

2.462-2.490, que o patrimônio da empresa e de seus sócios seria suficiente para garantir apenas cinco por cento do valor do débito. A situação revela-se ainda mais grave, na espécie, por tratar-se do não recolhimento de impostos sobre produtos industrializados – IPI, o qual incide, em função da essencialidade do produto, sobre 70% (setenta por cento) do total da arrecadação de impostos do setor. Em outras palavras, o descumprimento injustificado e reiterado de obrigações tributárias principais e acessórias por parte do recorrente acarreta notória distorção no sistema concorrencial do mercado tabagista, na medida em que lhe permite comercializar os seus produtos em patamar de preço inferior ao de seus concorrentes. [...] Senhor Presidente, eu queria fazer uma brevíssima manifestação e reiterar a minha observação no sentido de que estamos diante de um caso absolutamente excepcional, estamos diante de uma macrodelinquência tributária

reiterada. São firmas que se dedicam a essa atividade de forma ilícita, na clandestinidade.

Quando o Fisco fecha uma dessas empresas, imediatamente outra é aberta, e assim sucessivamente, sem pagar o IPI, numa concorrência absolutamente predatória. Não estamos diante de uma situação normal em que a empresa que atua licitamente merece toda a proteção constitucional. (BRASIL, 2013).

05. EMENTA: HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS.

APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE.

DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS ‘DESCONTADO E COBRADO’. ABRANGÊNCIA.

TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA. 1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária – tal qual se dá com a apropriação indébita em geral – o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade. 2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial. 3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão ‘descontado ou cobrado’, o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n.

8.137/1990, mas somente aqueles que ‘descontam’ ou ‘cobram’ o tributo ou contribuição.

4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo ‘descontado’ é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo ‘cobrado’ deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito. 5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal. 6. Habeas corpus denegado. (BRASIL, 2019).

06. Conforme voto do Ministro Relator: [...] o que distingue a conduta prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 da mera inadimplência é a circunstância de o sujeito passivo da obrigação tributária se apropriar de um valor que não lhe pertence. Mais do que isso, como forma de reforçar essa diferenciação entre crime e mera inadimplência, é necessário que a conduta lesione de modo significativo o bem jurídico protegido. Impõe-se, nesse sentido, uma interpretação restritiva do tipo. 60. Nem todo devedor de ICMS comete o delito. Não haverá crime nos casos em que o comerciante, em virtude de circunstâncias excepcionais, deixar de pagar o tributo em um ou outro mês. 61. A situação é diversa em relação aos devedores contumazes, que fazem do inadimplemento seu modus operandi. Trata-se de

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Notações

devedores que utilizam os valores de ICMS arrecadados dos consumidores para financiar suas atividades empresariais, permanecendo no mercado, de forma predatória, por vários anos. Quando promovidos atos de cobrança contratais contribuintes, no mais das vezes não se encontram bens penhoráveis e a execução se mostra infrutífera.62. A propósito, vale ressaltar que o STF tem reconhecido a constitucionalidade de normas que preveem medidas de combate a devedores contumazes, como a cassação de registro especial para fabricantes de cigarros perante a Receita Federal. Para o Tribunal, “não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial” (RE 550769, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. 22.05.2013). 63. É preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades.

Trata-se de elemento de valoração global do fato, a ser apurado pelo juiz em cada processo concreto. Além da própria conduta atual de inadimplência reiterada, também deve-se levar em consideração o histórico de regularidade de recolhimentos tributários do agente, apesar de episódios de não recolhimentos específicos, justificados por fatores determinados. 64. Ressalte-se que o delito examinado não admite a forma culposa, sendo necessária a demonstração do dolo. Dado o conhecimento de que a conduta típica implica a apropriação de valores alheios, o elemento subjetivo assume a forma de dolo de apropriação, a intenção de efetivamente tomar para si os valores do ICMS auferidos do adquirente da mercadoria ou do serviço. 65. É esse propósito de manter para si, de se apropriar, de modo sistemático, dos valores cobrados do adquirente da mercadoria ou do serviço, sem a intenção de repassá-los ao Estado, que confere significado à conduta de não recolhimento do tributo. Não se trata, portanto, de deixar de adimplir a obrigação tributária com alguma intenção externa a essa conduta, mas do próprio propósito que define o sentido da conduta. 66. O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo. (BRASIL, 2019).

07. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do

preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado, etc. (BRASIL, 2019).

08. A falta de recolhimento intencional e reiterada do ICMS não prejudica, porém, apenas o erário, mas também afeta a livre concorrência. Empresas que deixam sistematicamente de recolher o ICMS colocam-se, ilicitamente, em uma situação de enorme vantagem competitiva em relação a seus competidores. São verdadeiros free riders, que se beneficiam duplamente: ao se apropriar do valor do ICMS e ao usufruir dos serviços públicos bancados pelos demais contribuintes. A prática produz, então, um efeito cascata, em que aqueles que deixam de recolher o imposto acabam por pressionar os concorrentes a seguir o mesmo caminho, e assim sucessivamente. Para se ter ideia da dimensão do problema, conforme informação da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, 40% dos impostos não recolhidos naquele Estado são devidos por devedores contumazes. Essa distorção da concorrência fica mais evidente no comércio de produtos de alta demanda, elevada carga tributária e baixa margem de lucro, como nos setores de combustíveis, bebidas, cigarros e medicamentos. O comerciante que metodicamente deixa de recolher o ICMS vende seus produtos muitas vezes abaixo do preço de custo, inviabilizando a atividade lícita de seus concorrentes. (BRASIL, 2019).

09. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV – livre concorrência; (BRASIL, 1988).

10. Voto do Ministro Relator.

11. É esse propósito de manter para si, de se apropriar, de modo sistemático, dos valores cobrados do adquirente da mercadoria ou do serviço, sem a intenção de repassá-los ao Estado, que confere significado à conduta de não recolhimento do tributo. Não se trata, portanto, de deixar de adimplir a obrigação tributária com alguma intenção externa a essa conduta, mas do próprio propósito que define o sentido da conduta. O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo (BRASIL, 2019).

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