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EXISTÊNCIA E VERDADE EM MARTIN HEIDEGGER

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ISSN 1984-3879, SABERES, Natal – RN, v. 1, n.6, fev. 2011

“EXISTÊNCIA” E “VERDADE” EM MARTIN HEIDEGGER

J. C. Marçal

Resumo:

O objetivo deste artigo é discutir a compreensão heideggeriana sobre a verdade – encetada principalmente no § 44 de Ser e Tempo e no tomo Parmênides – e demonstrar que este conceito está atrelado à sua compreensão de existência, ou seja, à própria existência do Dasein, o ser humano. Discutiremos, portanto, o sentido originário que Heidegger dá ao termo alh/qeia (alétheia), sua relação com o lógoj (lógos), o destinamento do ser e o sentido originário para existência como este é entendido pela Analítica Existencial.

Palavras-Chave: Verdade, Existência, Transcendência, Analítica Existencial.

Abstract:

The aim of this article is discuss the heideggerian´s comprehension on truth – as it mainly takes into the Being and Time´s § 44 and the book Parmenides – and demonstrate that this concept is linked to his understanding on existence, i.e., the own Dasein existence, the human being. We will discuss, therefore, the original sense that Heidegger gives to alh/qeia word, its relationship to the lógoj, the Being destination and the original sense to existence as it is understanding by the Existencial Analysis.

Keywords: Truth, Existence,Transcendence, Existencial Analysis.

1 INTRODUÇÃO

Martin Heidegger, na sua obra Ser e Tempo (Sein und Zeit) de 1927, elabora um novo conceito para o termo existência. Heidegger faz a distinção entre existência (Existenz) e ser simplesmente dado (Vorhandenheit). Todas as coisas, os entes, são, mas não existem;

apenas o homem, que Heidegger denomina Dasein

56

, existe. Vorhandenheit fornece o sentido

Professor da Faculdade Joaquim Nabuco e doutorando em Filosofia pelo PDFIL – UFPE. E-mail:

introitu@hotmail.com.

56

A tradição em língua portuguesa se reserva o direito de traduzir Dasein por ser-aí, ser-o-aí ou pre-sença. As

discussões estão ainda longe de chegar a um término e definir com clareza qual o melhor modo de traduzir tal

vocábulo alemão. De fato, o termo já existia antes de Heidegger – Kant o usa como modo de traduzir o

vocábulo latino existentia – porém, neste caso, dentro da Analítica Existencial, a palavra ganha uma nova

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espacial e temporal que designa o modo de ser da coisa “enquanto o que se dá simplesmente antes e diante de qualquer especificação”

57

. As coisas “são”, ou seja, a pedra “é”, a casa “é”, Deus “é”, mas apenas o homem, o Dasein, possui o privilégio ontológico de existir. Existenz, aqui, é entendida como o modo próprio que surge das relações recíprocas estabelecidas entre Dasein e ser, entre o Dasein e todas as entificações – e a entificação privilegiada é o homem, daí a afirmação de que só o homem existe, pois apenas este ente está posto na clareira do ser.

Possivelmente Heidegger deriva o conceito de Existenz da tese de Kant sobre o ser como esta é elaborada na Crítica da Razão Pura

58

. Ali lemos: “Ser evidentemente não é um predicado real, isto é, um conceito de qualquer coisa que possa ser acrescido ao conceito de outra coisa. É simplesmente a posição de uma coisa, ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico, é unicamente a cópula de um juízo”

59

. Heidegger entende que o conceito de existência em Kant corresponde ao termo escolástico existentia. A compreensão heideggeriana aponta para o fato de que apenas o Dasein possui “um modo de ser específico”

60

. O conceito kantiano ainda indica a existência como um modo de subsistência, o modo de ser das coisas naturais. Existência e realidade se mesclam, portanto, já que em Kant a realidade significa o predicado dotado de conteúdo quididativo que se põe afirmativamente.

Assim, “[...] realidade pertence às categorias da qualidade. A existência, ou efetividade, pertence às categorias de modalidade”

61

.

Heidegger passa pela síntese predicativa e a síntese existencial para afirmar que em Kant a existência não é pensada no predicado da proposição, mas sim em seu sujeito. Ao determinar que a existência não é um predicado real – e deste modo negar a premissa menor da demonstração ontológica da existência de Deus segundo a tradição escolástica – Kant

dimensão. Se com ser-aí ou ser-o-aí quer se justificar uma dimensão espaço-temporal dos modos de se dar do homem, o que mantém de certo modo a distinção metafísica de existência e essência, deve-se notar o que o próprio Heidegger comenta, sobre o Da, no primeiro seminário de Zollikon que “este Da não significa, como acontece comumente, um lugar no espaço próximo do observador. O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira” (in HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes. 2001.p. 33); por outro lado, o termo pre-sença, mesmo centrado na idéia de movimento de tais dinâmicas, não traduz, também, a dimensão real do termo, já que em alemão o prefixo Da pode indicar, também, aqui ou ali, o que nos remete para uma maior elasticidade do conceito, já que o ser-aí pode ser meu ou de outrem, o que justifica a variação de aí e aqui e o existencial ser-com como constitutivo do ser-no-mundo. Manteremos, na falta de um termo adequado em português, o vocábulo em alemão, assim como o faz a tradução chilena de Rivera e a americana de Macquarrie e Robinson.

57

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 1988. Nota N 8 à página 312.

58

Anteriormente, entretanto, Kant já havia elaborado este conceito em 1763 na obra O único fundamento possível para uma demonstração da existência de Deus. Cf. HEIDEGGER, M. Los problemas fundamentales de la fenomenologia. Trotta: Madrid, 2000. p. 53.

59

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. B 626.

60

HEIDEGGER, M. Op. Cit. p. 54.

61

Op. Cit. p. 63.

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afirma que ser é uma posição. Segundo Heidegger, a existência em Kant está atrelada à questão de sabermos se uma coisa nos é dada de tal modo que a percepção da mesma possa preceder ao conceito

62

. As leis empíricas da percepção permitem que alcancemos a existência no sentido kantiano, já que em Kant “o caráter específico da posição absoluta [...] se mostra como percepção”

63

. Heidegger entende que Kant alinha ou iguala existência com posição absoluta, percepção e percepção absoluta. Mas a existência não é uma percepção, mas sim algo efetivo num sujeito efetivo, a efetividade. Ou melhor: “A percepção não é a existência, senão aquele que percebe o existente, o subsistente e se relaciona com o percebido”

64

.

Se em Kant a existência não equivale à percepção e nem ao sentido de perceber, o que ela será exatamente? Há, de fato, uma obscuridade em Kant na relação entre existência e percepção. Para Heidegger, entretanto, a existência em Kant “[...] não se equipara ao existente percebido, porém talvez se dê como o caráter de ser-percebido [Wahrgenommensein] do percebido, ao ser-percebido [Wahrgenommenheit]”

65

. Em Kant, portanto, a percepção significará “[...] o ser-percebido, o estar-descoberto [Entdeckheit] no perceber”

66

. Kant tampouco esclarece se o seu conceito de posição significa pôr (Setzen) como comportamento do sujeito ou a posição em que se coloca o posto (Gesetze) ou, ainda mais, o caráter de estar posto (Geseztheit). Heidegger interpreta esta falta de clareza indicando que entende a existência como “o ser-percebido ou o caráter de ser-posto de forma absoluta e, correspondentemente, o ser em geral como o caráter de ser posto em geral”

67

.

Na relação que se dá entre perceber, o percebido e o ser-percebido do percebido, Heidegger reserva para Kant o conceito de existência como subsistência ou ser simplesmente dado (Vorhandenheit). Existenz, em termos kantiano, portanto, transforma-se agora em Vorhandenheit. Existenz, a existência, em termos heideggerianos, está reservada para o homem, o Dasein. Cabe, então, esclarecer – mesmo que de modo sucinto, o que Ser e Tempo entende por existência e daí derivar como a Analítica Existencial aglutina os sentidos de verdade, transcendência do Dasein e destino do ser à própria existência, agora entendida de um modo pensado radical e ontologicamente.

62

Cf. Op. Cit. p. 73.

63

Op. Cit. p. 74.

64

Op. Cit. 75.

65

Op. Cit.

66

Op. Cit. p. 76.

67

Op. Cit.

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ISSN 1984-3879, SABERES, Natal – RN, v. 1, n.6, fev. 2011 2 ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA: O DASEIN

A Analítica Existencial, portanto, inicia-se com a exposição de uma análise preparatória do Dasein à luz deste novo conceito para a existência. Heidegger nos diz que o ente que devemos analisar somos nós mesmos, já que “em seu ser, isto é, sendo, este ente se comporta sempre com o seu ser” (Im Sein dieses Seienden verhält sich dieses selbst zu seinem Sein)

68

. Diferentemente da tradição escolástica - e assim como fizeram os existencialistas franceses e alemães - que diferenciava os conceitos de existência (existentia) e essência (essentia), Heidegger “une” estes dois termos e afirma que a essência do Dasein está em sua existência (“Das ‘Wesen’ des Dasein liegt in seiner Existenz”

69

). Assim:

A “essência” deste ente está em ter de ser. A quididade (essentia) deste ente, na medida em que se possa falar dela, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter do Dasein.

O Dasein não pode ser apreendido ontologicamente como um gênero de entes simplesmente dados, uma vez que este ente em particular possui o privilégio de não ser indiferente frente ao seu ser. O Dasein, sendo, já se comporta desde sempre com o seu próprio ser e com a sua possibilidade mais própria – o “Dasein é sempre sua possibilidade”

70

: o ser é sempre meu.

Não é possível nem mesmo querer determinar uma igualdade entre o Dasein e os seres simplesmente dados no que se refere a estar dentro do mundo, uma vez que mundo e Dasein não são aqui entendidos como duas entidades distintas em si mesmas, como se pudéssemos pensar o homem surgindo fora do mundo e depois entrando no mesmo. Ao dar-se o homem, o Dasein, dar-se (Es gibt

71

) mundo.

68

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Op. Cit. p. 77. (No original In: Idem. Sein und Zeit. 19ª Ed. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2006. p. 41.).

69

Op. Cit. p. 42.

70

Idem. Ser e Tempo. Op. Cit. p. 78.

71

Cf. a nota explicativa 19 de Ser e Tempo de Carneiro Leão: “Para distinguir o plano ontológico de instauração

das estruturas do plano ôntico das derivações, Ser e Tempo reserva o verbo dar-se (geben), incutindo o

sentido ativo e transitivo no processo designado pelo verbo haver. Por isso, dar-se remete sempre para os

movimentos de ser e sua verdade no Dasein, na existência, na temporalidade, na história”.

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O sentido formal da constituição existencial do Dasein reside no fato de que este se

“determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ele é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser”

72

. Neste sentido, Heidegger conquista a possibilidade de explicar o Dasein através de sua estrutura existencial, denominando de existenciais os seus caracteres ontológicos. Os existenciais alargam ainda mais a distância entre o modo de ser dos seres simplesmente dados e o Dasein, já que cabe apenas ao último possuir tais caracteres, reservando para os primeiros as categorias, ou seja, há uma diferença constitutiva entre a existência do Dasein e o modo de ser dos seres simplesmente dados.

Heidegger poderá, então, indicar que a ontologia tradicional ou antiga retirava “dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo, a base de sua interpretação do ser”

73

. Com este novo modo de compreender a existência temos a possibilidade de pensar o ser não mais a partir do

“mundo”, das coisas, dos seres simplesmente dados, mas sim a partir do próprio homem, desta entificação privilegiada.

Esta ontologia considerava como vias de acesso ao ser o pensar (noein) e o lógos (lógoj). Heidegger entende que no lógos o ente vem ao encontro, mas isso só é possível devido ao fato de que o ser deste ente só poder ser apreendido num modo de deixar e fazer ver (le/gein) privilegiado. Isso significa que o modo de abertura para o ser dos entes se dá numa relação entre as coisas e o Dasein, mas apenas este último possui o privilégio desta abertura, deste reconhecimento e aproximação. São as categorias (xathgori/ai) que se deixam ver e se tornam visíveis nesta relação, neste deixar ver. O estudo dos existenciais, portanto, tarefa essencial da Analítica Existencial, é a busca pelo sentido ontológico mais profundo do ser e do Dasein. Assim, ser-no-mundo, ser-com, cura, de-cadência, ser-para-a-morte, temporralidade, etc, são modos próprios de ser deste ente privilegiado que é o Dasein e que constituirão a tarefa desta Analítica.

Por fim, vale ressaltar que Heidegger considera que a “essência” do homem, aquilo que o homem é, reside em sua ec-sistência. O que nos diz este termo, ec-sistência? Já vimos que Heidegger alinha essência e existência ao afirmar que a essência do Dasein reside em sua existência. Não há aqui, entretanto, uma contraposição entre essência e existência. Nas palavras do próprio Heidegger: “O homem desdobra-se assim em seu ser (west) que ele é a

‘aí’, isto é, a clareira do ser. Este ‘ser’ do aí, e somente ele, possui o traço fundamental da ec- sistência, isto significa, o traço fundamental da in-sistência ec-stática na verdade do ser”

74

.

72

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Op, Cit. p. 79.

73

Op. Cit. p. 80.

74

Idem. Sobre o “Humanismo”. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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A ec-sistência não pode ser pensada à luz da existentia, nem quanto ao seu conteúdo ou forma. Em relação ao seu conteúdo próprio, a ec-sistência significa “estar posto na verdade do ser”

75

. Isso indica que a essência (Wesen) do homem não pode ser mais determinado a partir nem do esse essentiae nem do esse existentiae, mas sim “a partir do elemento ec-stático do Dasein”

76

. A partir destas considerações é que Heidegger poderá afirmar que aquilo que Sartre considera como existência no seu Existencialismo não possui nada em comum com aquilo que é dito em Ser e Tempo. Para Sartre, a existência precede a essência. Em Heidegger, a ec-sistência “une” os dois termos. O que se abre aqui, com Heidegger, é a possibilidade de pensarmos a dimensão da verdade do ser e saber como este mesmo ser se dirige ao homem e como o requisita. Assim, a clareira em que o Dasein está posto é o próprio ser. Então, como se comporta o ser em relação à ec-sistência? Para Heidegger, “o ser mesmo é a relação, na medida em que retém, junto a si, a ec-sistência em sua essência existencial, isto é, ec-stática, e a recolhe junto a si como o lugar da verdade do ser, no seio do ente”

77

.

Ec-sistindo, o homem está postado no destino do ser. É o próprio ser que destina ao homem para sua ec-sistência e aqui temos esta como a essência do Dasein. Estamos na proximidade do ser e isto nos diz que estamos na proximidade da verdade do ser. É nesta proximidade que os entes podem ser desvelados. Heidegger, então, coloca a essência da verdade na liberdade do homem e atrela, de modo radical, a própria verdade à existência do Dasein, do homem. Para que esta relação entre verdade, existência e liberdade possa se torna mais clara, devemos encetar, primeiramente, a tarefa de compreender o lógos de acordo com a Analítica Existencial, o conceito heideggeriano para liberdade para, por fim, atingirmos sua compreensão sobre a verdade e sua relação com o destino do ser que conduz, portanto, à relação definitiva entre a essência da verdade e a existência.

2 O DIZER DO LÓGOS.

Alétheia (alh/qeia), Lógos (lógoj) e destinamento do ser. Esta trindade nos fala de um momento muito particular encetado pela ontologia fundamental. Trata-se, com efeito, de

(Os Pensadores). p. 155.

75

Op. Cit. p. 156.

76

Op. Cit.

77

Op. Cit. p. 158.

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conceitos que permitirão à Analítica pensar de modo fincado à tradição o nada, a diferença ontológica e a transcendência do Dasein. Inicialmente, Ser e Tempo abre uma discussão com a Tradição quando entende que a expressão grega faino/menon (phainómenon) é derivada do verbo grego mostrar-se, significando, portanto, o que se mostra, o que se revela. Para justificar a afirmação de que “manifestar-se é um não mostrar-se”

78

, a Analítica deve encetar a tarefa de trazer o sentido originário daquilo que se mostra, expressão esta conquistada inicialmente pela tradição grega. Este mostrar-se possui um duplo sentido: um anunciar-se, um não mostrar-se em si mesmo e outra, ou seja, o que se anuncia em si mesmo, mas o faz sempre indicando algo que não se mostra. Deve-se buscar, neste horizonte, entender como a Tradição pode pensar este manifestar-se; ou melhor ainda, deve-se reconquistar o sentido originário daquilo que a Tradição nos legou sobre este manifestar-se.

Ora, a Analítica nos faz ver - § 7 de Ser e Tempo – que o conceito de lógoj em Platão e Aristóteles é polissêmico. Tal polissemia conduz a uma dispersão de seus vários significados, impedindo, de certo modo, que se conquiste uma orientação positiva em relação a seu sentido básico. É este sentido básico de lógoj que a Analítica quer reconquistar. Por se perder em seus vários significados é que a tradição posterior interpreta lógoj como “razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação, proporção”

79

. Todas estas traduções, segundo Heidegger, encobrem o sentido básico de lógoj. Ele explica que

Como discurso, lógo j diz, ao contrário, um revelar aquilo de que trata o discurso [...] O lógos deixa e faz ver (fai/nesqai) aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem discorre (médium) e para todos aqueles que discursam uns com os outros. O discurso ‘deixa e faz ver’ apò... a partir daquilo sobre o que discorre.

80

Como o lógoj é um deixar e fazer ver é que o mesmo pode se “mostrar” como falso ou verdadeiro. Entra em jogo aqui, então, um dos pontos fundamentais da Analítica: devemos nos libertar do conceito construído de verdade como “concordância”. Numa conferência de 1930, Sobre a essência da verdade (Vom Wesen der Wahrheit), Heidegger nos mostra que o conceito tradicional da essência da verdade, na tradição pós-grega, é dado pela proposição

78

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Op. Cit. p. 59.

79

Cf. TRINDADE, José. Antes de Sócrates. Lisboa: Gradiva,1988. Este platonista traduz lógov por discurso, razão, medida, chave. Op. Cit. p. 87.

80

HEIDEGGER, M. Op. Cit. p. 62-3.

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Veritas est adaequatio rei et intellectus.

81

Verdade, aqui, é entendida como a adequação da coisa com o conhecimento, o que pode ser entendido como adequação.

82

Deste modo, é possível pensar que a verdade da enunciação está numa adequação e que esta repousa na relação que reina entre o enunciado e a coisa enunciada. Deve-se buscar, portanto, a natureza mesma desta relação para que o conceito de verdade possa vir à tona em toda a sua expressividade.

Entendendo-se que há uma relação entre a enunciação e a coisa, podemos vislumbrar o caráter de apresentar-se desta coisa – a enunciação “apresentativa exprime, naquilo que diz da coisa apresentada, aquilo que ela é, isto é, exprime-a tal qual é, assim como é”

83

. O caráter deste apresentar-se, portanto, é determinado como o fato de que esta coisa surge diante de nós enquanto objeto. Tal aparição se “realiza no seio de uma abertura cuja natureza de ser aberto não foi criado pela apresentação, mas é investido e assumido por ela como campo de relação”

84

. Este campo de relação se traduz por um comportamento (Verhalten) e este, o comportamento, “está aberto sobre o ente”

85

. Assim, entende-se que é pela abertura que o comportamento pode tornar possível a conformidade da enunciação, sendo aquilo que torna possível tal conformidade considerada como o que possui um direito mais original para ser considerada como a essência da verdade. E que essência é esta? Heidegger afirma que “a essência da verdade é a liberdade”

86

. Então devemos nos perguntar: o que a Analítica entende por liberdade? Explica Zarader:

A quem esteja preocupado com a mais extrema precisão, e pergunte o que é exatamente a liberdade em relação ao Dasein, responderemos que é o traço de união que separa e que une o Da-sein no meio deste. A liberdade é, no sentido estrito, o que permite ao ‘ser’ ter um ‘aí’, ao Sein ter um Da. E é precisamente porque ela é esta permissão, dada ao ser, de ser ‘aí’, que em troca clarifica e define a essência do Dasein, quer dizer o que Heidegger chama ‘Ek-sistência’

87

.

Só quando entendemos aquilo que Heidegger chama de manter-se aberto do comportamento

81

Cf. HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 133. (Verdade é a concordância entre a coisa e o intelecto).

82

CF. AQUINO, Tomas de. Questões discutidas sobre a verdade. In:______. Seleção de Textos. São Paulo:

Abril Cultural, 1985. (Os Pensadores).

83

HEIDEGGER, M. Op. Cit. p. 135.

84

Op. Cit.. p. 136.

85

Op. Cit..

86

Op. Cit.. p. 137.

87

ZARADER, Marlene. Heidegger e as palavras de origem. Lisboa : Piaget, 2004. p. 72.

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é que podemos conectar a idéia da liberdade aqui exposta com a determinação da própria essência da verdade. O § 44 de Ser e Tempo é a busca pela conquista deste sentido, já que ali se afirma que a verdade se encontra num nexo com o ser. Neste sentido, Heidegger poderá afirmar que o ser-verdadeiro, a verdade, diz sempre ser-descobridor. É aqui que Heidegger, para se livrar do caráter arbitrário deste enunciado, irá conectar o lógoj com a alh/qeia.

Assim temos que:

O ser-verdadeiro do lógoj enquanto apo/fansin é alhqeu/ein, no modo de apofai/nesqai: deixar e fazer ver (descoberta) o ente em seu desvelamento, retirando-o do velamento. A alh/qeia, identificada por Aristóteles nas passagens supracitadas com pragmafaino/mena , indica as

‘coisas elas mesmas’; o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta.

88

Estabelece-e, então, uma conexão entre o lógoj e a alh/qeia. Como compreender, portanto, a dimensão exata daquilo que pertence propriamente ao lógoj e que está em relação íntima com o desvelamento (Unverborgenheit), a própria verdade originária, a alh/qeia? Conquistar o sentido originário da verdade é atrelar tal conceito à própria existência do Dasein.

3 O SENTIDO ORIGINÁRIO DE ALH/QEIA

O que pertence ao lógoj (que diz como o ente se comporta), portanto, é o desvelamento, alh/qeia. Para Heidegger, a tradução deste vocábulo para verdade – e toda a carga que as determinações teóricas da mesma encobrem – impedem uma visão mais clara e originária sobre o sentido originário da alh/qeia. Neste confronto, Heidegger nos aponta que desde sempre a Filosofia correlacionou verdade e ser. É com Parmênides que, através da primeira descoberta do ser dos entes, pode-se, pela primeira vez, “identificar” o “ser com a compreensão que percebe o ser”

89

. Isto se refere ao célebre fragmento 3: [...] o mesmo é para pensar e para ser

90

ou, como traduz Heidegger, “o mesmo, pois, tanto é apreender (pensar)

88

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, I. Op. Cit. p. 287.

89

Op. Cit.. p. 280.

90

To\ ga\r au\to\ noein esti/n te kai\ einai.

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como também ser”

91

. O tomo Parmênides, obra baseada nos cursos dados por Heidegger na universidade de Freiburg nos anos de 1942 e 1943, traduzem a sua busca por uma demonstração segura de que o sentido de alh/qeia deveria ser devidamente repensado pela Tradição. Aqui, novamente, Heidegger afirma que “pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro na sua essência”

92

. Pensar, portanto, é centrar-se no essencial; é a própria atenção para o essencial.

93

Nesta tarefa, aqui relacionada com o pensar sobre a alh/qeia. Heidegger se vê na incumbência de pensar, primeiramente, lh/qh já que para ele esta é a base da própria alh/qeia e para quem ela mesma se refere antes de tudo. Se nós traduzirmos a palavra grega alh/qeia de modo direto, teremos o termo desvelamento (Unverborgenheit). O que se pensa com esta afirmação é que a alh/qeia é, mais precisamente, “a saída para fora da lh/qh, o surto ao aparecer, a vinda à presença”

94

. A alh/qeia fala de um deixar para trás a lh/qh, sua origem e, neste deixar para trás, assinala sua desocultação, ou seja, ela mesma, como condição de conhecimento do ente, aponta para a primeira determinação da fu/sij grega, ou seja, “a eclosão mesma do ente no seu ser”

95

, já que o ser é o que se oculta e se vela e se mostra a partir deste ocultamento

96

. Esta direção aponta para um sentido oposto aquilo que a tradição em Schelling e Hegel trazem como entendimento da alh/qeia já que desde Descartes este vocábulo ganha o status de certitudo, estampado como a essência da veritas.

97

Isto se faz necessário porque a Analítica quer pensar a verdade como atrelada ao ser e como, a partir dela mesma, a busca pelo sentido do ser foi obstruída pela Tradição. Ao direcionar o sentido da alh/qeia como desvelamento - e todas as implicações que este sentido traz consigo – Heidegger quer justificar a própria transcendência do Dasein e a possibilidade de se pensar a diferença ontológica. Isto se torna mais claro quando ele ajunta alh/qeia ao termo alhqev.

Eis a explicação dada por Heidegger:

alhqej na significação de “descoberto” se aplica a “objetos” que nos

91

Idem. Identidade e Diferença. . In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

(Os Pensadores).. p. 180.

92

Idem. Parmenides. Petrópolis: Vozes. 2008. p. 13.

93

Cf. Op. Cit. p. 16.

94

ZARADER, M. Op. Cit. p. 78.

95

HEIDEGGER, Martin. Einführung in die Metaphysik. Tübigen: Niemeyer. 1953. p. 77. Apud ZARADER, M.

Op. Cit. p. 78.

96

Cf. ao ser como ser dos objetos da experiência – e sua relação com o poder de conhecer – ver o segundo capítulo, § 27,

γ, da obra

Que é uma coisa?(Die Frage nach dem Ding) de Heidegger. Rio de Janeiro:

Edições 70, 1990. pp. 228-9.

97

Cf. HEIDEGGER, M. Parmenides. Op. Cit. p. 37.

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aparecem a nós, homens, e alhqej no sentido de ‘não-encobrido’ se aplica a asserções e a conhecimento sobre “objetos”,portanto, ao comportamento do “sujeito” com os objetos. Esta solução soa convincente. Mas ela permanece na pressuposição de que no âmbito de alh/qeia e alhqe j , isto é, para os gregos, haveria algo como a distinção entre “objeto” e “sujeito” e a assim chamada relação sujeito-objeto. Mas é precisamente a essência da alh/qeia que torna impossível o surgimento de uma relação do tipo sujeito- objeto.

98

Alhqej é o descoberto e o que descobre. Platão e Aristóteles realizam a mudança no interior da alh/qeia em direção à alhqej. O homem só pode descobrir o ente, aquilo que é descoberto, apenas se o seu “comportamento revelador se ativer ao descoberto e permanecer numa concordância com ele”

99

. Aristóteles une o sentido de alhqeu/ein (aletheíein) com o/moi/wsij (omoíosis). Assim nos explica Heidegger:

Aristóteles usa a palavra alhqeu/ein para este comportamento: para ater-se de modo revelador ao descoberto num falar que deixa aparecer. Esta atinência e concordância com o descoberto é, em grego,

o/moi/wsi

j – a correspondência reveladora que expressa o descoberto. Essa correspondência toma e mantém o descoberto como o que ele é. Ter algo como significa em grego

oi1esqai. O lógo

j , que significa agora asserção, é constituído pela

oi1esqai . Essa correspondência reveladora se

atém e se realiza ainda completamente no espaço essencial da enquanto desencobrimento

100

.

Quando o/moi/wsij exerce a função normativa da alh/qeia é que o sentido mais originário da verdade-revelação se concretiza num sentido único. Fica claro que esta definição rompe com a Tradição que associa veritas a rectitudo e iustitia – como a tradição dos dogmas eclesiásticos e da teologia evangélica – bem como seu aparecimento em Descartes como certum e usus rectus, bem como a compreensão kantiana do considerar-algo-verdadeiro (Fürwahrhalten) ou a transformação da veritas em “justiça” por Nietzsche

101

. O que nos diz o desvelamento da ocultação – que Heidegger propõe num termo único, Lichtung – é atingir a compreensão da clareira, da abertura. Na conferência O Fim da Filosofia, Heidegger afirma que “designamos esta abertura, que garante a possibilidade de um aparecer e de um mostrar-

98

Op. Cit. p. 57.

99

Op. Cit. p. 78.

100

Op. Cit.

101

Cf. a Nietzsche, sobre o assunto, ver o capítulo “A Vontade de Verdade” de Roberto Machado no seu livro

Nietszche e a Verdade. 2 ed. Rio de Janeiro : Rocco, 1985. pp. 84-91.

(12)

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se, como a clareira”

102

. Zarader nos mostra que essa claridade – o que se dá na clareira –

“pressupõe ela mesma um espaço prévio de aparição, uma região livre onde possa difundir a sua radiação. É esta região livre que Heidegger chama Lichtung”

103

. O que rege esta clareira é o desabrigo (Entbergung), ou seja, o trazer à claridade o que se oculta. Esta assertiva pode ser conectada com uma interessante observação que Heidegger fez nos Seminários de Zollikon de 8 a 16 de março de 1968. Ele afirmou que:

O estado-de-abertura como o qual o homem existe não deve ser mal entendido como um estar simplesmente presente de uma espécie de saco mental vazio, no qual ocasionamente algo poderia cair. O homem como estado-de-abertura é um estar-aberto para a percepção de presença e de algo que está presente, é abertura para a coisidade. Sem este estado-de-abertura nenhuma coisa poderia aparecer a partir de si, nem mesmo estar aqui. O homem, que existe como abertura, é sempre abertura para a interpelação da presença de algo.

104

Neste ponto, a elucidação que Heidegger nos dá sobre a relação entre a essência de dai/monion - no sentido de atingirmos o significado da essência das deidades gregas – é conquistada quando se assegura sua relação com qei/on Pode parecer estranho, num olhar inicial, que tente se estabelecer tal correlação como um modo de nos aproximarmos do sentido originário de alh/qeia.

105

Heidegger, além de querer se centrar na experiência mesma da vida (Lebenserfahrung) grega, também acentua um dos momentos fundadores da alh/qeia na constituição original do termo qei/on a relação é óbvia com a palavra alh/qeia.

O mito platônico de Politeia responde à transição estabelecida entre o aí e o lá, e isto mesmo como um campo, o campo de lh/qh trata-se de uma região em que o aparecer pode se dar.

106

Esta relação aqui estabelecida se coaduna a um só tempo com a compreensão heideggeriana do estado-de-abertura. Além do mais, se estabelece uma compreensão originária do entendimento de Anaximandro, Heráclito e Parmênides sobre os deuses. Indo mais além, Zarader nos mostra uma das intenções primordiais de Heidegger ao encetar tal relação,

102

HEIDEGGER, M. O Fim da Filosofia. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores).. p. 77. No original, temos : “Wir nennen diese Offenheit, die ein mögliches Scheinenlassen und Zeigen gewährt, die Lichtung”. Apud ZARADER, M. Op. Cit. p. 84.

103

ZARADER, M. Op. Cit. p. 84.

104

HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 230.

105

Cf. Idem. Parmenides. Op. Cit. pp. 175-186. Heidegger também se debruçou de modo mais detalhado, apesar de sucintamente, sobre esta questão – uma interpretação original sobre a verdade e seu dizer - nas suas conferências Alétheia e Lógos in Ensaios e Conferências. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

106

Cf. Op. Cit..

(13)

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal – RN, v. 1, n.6, fev. 2011 especialmente quando este analisa o verbo recolher-se em Homero :

Heidegger mostra que o permanecer-oculto, pensado em grego, não deve de maneira nenhuma ser compreendido como um ato do sujeito, nem sequer como um qualquer comportamento do homem, mas como o fato de estar rodeado de lh/qh, quer dizer de se conservar (eventualmente estando iluminado aí) numa ocultação entendida como um modo da presença, senão, talvez, como o seu modo fundamental.

107

Assim, ao estabelecermos no pensamento heideggeriano uma relação entre ser, Dasein e verdade – portanto entendemos a verdade como propriedade do ser e o ser como aquele que possui a propriedade do desvelamento – devemos estar cientes de seus momentos cruciais, de suas viragens. Primeiramente, naquilo que se convencionou chamar do primeiro Heidegger – e que Schérer chama da primeira tópica heideggeriana

108

- em que se pensa que podemos aceder ao ser, ao Sein, a partir do Dasein. Depois, o segundo momento, a Kehre heideggeriana, em que se impõe pensar a história do retiro do ser como modo de se pensar o ser mesmo. Por fim, no terceiro momento, e que absorve de modo definitivo o privilégio dado à compreensão heideggeriana da alh/qeia esta entendida como Lichtung – percebe-se que à luz de sua história mesmo, o seu retiro, se mostra a abertura onde se pode dar este retiro – isto nos diz que a viragem passa da Analítica do Dasein para um debruçar-se sobre a história do retirar-se do ser, onde ser e homem são agora pensados a partir da clareira. É neste ponto crucial que temos estabelecido o destinamento do ser como um dos momentos essenciais desta viragem.

4 O DESTINAMENTO DO SER.

Neste momento, a clareira, em que o ser se dá e em que o homem pode recebê-lo

109

,

107

ZARADER, M. Op. Cit. p. 91.

108

Cf. SCHÉRER, R. Heidegger. Paris: Seghers, 1973.

109

Daí a famosa frase de Heidegger de que o homem é o pastor do ser.

(14)

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salvaguardando o ser mesmo, somos obrigados a perguntar: qual a natureza mesmo deste destinamento? Qual a estrutura que possibilita este encontro? A resposta dada por Heidegger está no destinamento do ser. Esta definição se encontra de modo explícito nas conferências O Princípio do Fundamento. Lemos que:

Quando nós dizemos a palavra <<destino>> do ser, então queremos dizer que o ser se nos atribui e se aclara e clarificante arruma o tempo-espaço, onde o ente pode aparecer. No destino do ser, a história do ser não é pensada a partir de um acontecer, que é caracterizado através de uma evolução e de um processo. Pelo contrário, define-se a essência da história a partir do destino do ser, a partir do ser enquanto destino, a partir daquilo que se nos remete, ao retirar-se. Ambos, remeter-se e retirar-se, são um e o mesmo. Não de duas maneiras distintas. Em ambos rege de um modo diferente o perdurar mencionado anteriormente, em ambos, isto é, também na retirada, aqui até ainda mais essencialmente. O termo destino do ser não é uma resposta, mas uma pergunta, entre outras a pergunta pela essência da história, na medida em que nós pensamos a história enquanto ser e a essência a partir do ser.

110

Ao afirmar que o ser “do que-se-abre-a-partir-de-si e do que é presente-a-partir-de-si”

111

como fu/sij, temos o retorno àquilo que foi pensado em conexão com a alh/qeia. Mas aqui devemos ir um pouco além. O que significa ta\ onta em grego, ens em latim, l’être em francês e das Seiende em alemão – o ente em português – só pode ser pensado a partir da

“clareira epocal do ser”

112

. Neste jogo daquilo que se mostra, e daquilo que pode ser pensado a partir do ocultamento e desvelamento do ser, somos nós – nós que estamos postados em sua clareira – que somos enviados por ela. O ser nos chama, coloca-nos em seu destinamento mesmo e, assim, faz seu apelo. “O destino do ser permanece em si a história essencial do homem ocidental, na medida em que o homem histórico é necessário no habitar edificante da clareira do ser”

113

. Neste habitar reside o próprio destino do ser e seu apelo. Heidegger, portanto, fecha deste modo aquilo que se inicia com o discurso sobre a verdade colocando o homem nesta clareira. A verdade, podemos dizer, é pensada a partir deste destino, já que ela mesma só pode ser pensada a partir da abertura. O nada, que traz em si a Negatividade do mundo, do plano ôntico, aponta para a transcendência do Dasein e para a diferença mesma desta clareira. Toda re-velação, então, conclama o destinamento desta abertura originária e

110

HEIDEGGER, M.. O Princípio do Fundamento. Lisboa : Piaget, 2000. p. 95.

111

Op. Cit.. p. 96.

112

Op. Cit.. p. 125.

113

Op. Cit.. p. 137.

(15)

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adquire seu advento por ela e somente por ela. Este é o significado da frase “o ser se nos atribui e se aclara e clarificante arruma o tempo-espaço, onde o ente pode aparecer”

114

. Aí reside o destino do ser, neste arrumar e clarificar.

5 A TRANSCENDÊNCIA DO DASEIN

Nas discussões levadas a termo por Martin Heidegger em dois textos de grande acuidade filosófica ( Sobre a Essência do Fundamento (Vom Wesen des Grundes) de 1929 e O Princípio do Fundamento (Der Satz vom Grund) de 1955 e que marcam os dois pólos fundamentais dentro da Kehre do pensar heideggeriano) a despeito do principium rationis trazido à tona por Leibniz no seu tratado Primae Veritas, é apontado, numa nota de rodapé ao primeiro texto, que um dos escopos essenciais da tarefa de Ser e Tempo não era outro que o projeto concreto-desvelador da transcendência do Dasein para se conquistar o horizonte transcendental da questão do ser. A compreensão heideggeriana da transcendência marca uma ruptura definitiva entre seu pensar e o pensar metafísico da Tradição, mais especificamente aquele consolidado pelo Idealismo em que se pensava o sujeito e o objeto como duas esferas distintas de articulação. Aqui, o que temos é a compreensão de que o “mundo como totalidade não ‘é’ ente, mas aquilo a partir do qual o Dasein se dá a entender a que ente pode dirigir- se”

115

, logo deve-se abrir a possibilidade de compreender que o Dasein é de um modo tal que existe em-vista-de-si-mesmo e que o mundo se mostra como “aquilo em-vista-de-que o Dasein existe”

116

.

Esta discussão não surge primariamente neste texto de 1928, mas já era a base de articulação do pensar heideggeriano sobre o mundo e o Dasein em Ser e Tempo. No § 16 do referido tomo já temos o questionamento sobre o mundo a partir do fato de que este não é um ente intramundano – mesmo que o determine – e o atrelamento da questão do mundo com a cotidianidade que se entende como o fato de que “à cotidianidade do ser-no-mundo pertecem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa”

117

. Heidegger irá

114

Idem. Ser e Tempo. Vol. I. Op. Cit.. p. 95.

115

Idem. Sobre a essência do fundamento. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 115.

116

Op. Cit..

117

Op. Cit. p. 115.

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analisar os quatro sentidos fundamentais da expressão mundo ao longo da Tradição para deles extrair o conceito ontológico radical da mundanidade.

Deste modo, é usada uma compreensão quaternária da questão mundo: 1. é conceito ôntico e significa a totalidade dos entes; 2. ontologicamente é o ser dos entes; 3. é o contexto, na esfera ôntica, “em que” de fato o Dasein vive e 4. trata-se do conceito existencial- ontológico da mundanidade – discussão do § 18 e que traz à tona o conceito de conjuntura que se dá pela abertura da “significação como constituição existencial do Dasein, o ser-no- mundo”

118

que se trata de uma condição ôntica da possibilidade da descoberta da totalidade inerente à conjuntura.

Entretanto, quando nos damos conta desta ruptura levada a termo por Heidegger, vislumbramos um fato inevitável: ela só é possível na medida em que o alicerce desta ontologia já está plenamente assentado sobre um ponto nevrálgico dentro da exposição heideggeriana: a diferença ontológica. Não é sem motivo aparente que ele se debruça sobre o principium rationis que reza que nihil est sine ratione. Aqui, Heidegger afirma no curso O Princípio do Fundamento que:

O principium rationis é para Leibniz, pensado rigorosamente, o principium reddendae rationis. Rationem reddere significa: devolver o fundamento. Por que razão devolver e para onde dar de volta? Porque nos métodos demonstrativos, falando em geral do reconhecimento, tratando-se da re(a)- presentação dos ob-jetos, entra em jogo este ‘devolver’. A linguagem latina da Filosofia di-lo mais claramente: o conceber é re-presentatio. Aquilo que vem ao encontro, vem em direção ao eu representante, de volta para ele é apresentado ao seu encontro, (de)posto num presente. Conforme o principium reddendae rationis, o representar tem de, caso pretenda que seja reconhecedora, dar de volta o fundamento daquilo que vem ao encontro ao representar, e isto quer dizer, dá-lo de volta a si mesmo (reddere).

119

E, mais à frente, no mesmo curso, nos informa que o nada – e isso quando a entonação do princípio sofre sua primeira mudança de acento – “é”, e explica que “o que diz: ‘é’? [...]

<<Nada>>, isto é, nenhum que de certo modo é um ente <<é – sem fundamento>>”.

120

A mudança desta entonação é muito própria quando se percebe que o que está sendo visado aqui é fundar a própria diferença ontológica, já que neste momento – mais precisamente o prefácio

118

Op. Cit., p. 133.

119

Idem. O Princípio do Fundamento. Op.Cit. p. 40.

120

Op. Cit., p. 78.

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à terceira edição do texto de 29 – o nada se assume como o não do ente e que, por isso, trata- se do ser experimentado a partir do ente.

O não nadificante do nada e o não da diferença não são idênticos, mas pertencem ao mesmo, ou seja, fundam a comum-unidade que para Heidegger conduz o pensar a pensar aquilo que foi esquecido e que exige, portanto, uma nova abordagem. O mais importante aqui, entretanto, é perceber que é pela articulação perene das esferas ônticas e ontológicas, guiadas pela própria diferença – e isso quando já se estabeleceu a transcendência do Dasein e seu lugar privilegiado dentro de tal ontologia – que se dão mundo e transcendência. Estas esferas, além do mais, mantêm um rigor de relação e se completam numa interação ontológica que permite ao Dasein possuir exatamente a existência. Daí a necessidade de, em termos filosóficos, tratar do conceito de nada. Retomando este ponto de inflexão, este que pensa o dito de que o nada é, Heidegger afirma:

Da Gramática sabemos: ‘é’ pertence à flexão do verbo auxiliar ‘ser’. Não é necessário no entanto o recurso à Gramática. O conteúdo do princípio dá informação suficiente. ‘Nada’, isto é, nenhum que de certo modo é um ente

‘é – sem fundamento’. O ‘é’ nomeia, se bem que de modo totalmente indeterminado, o ser do sempre de cada vez ente. O princípio do fundamento, que agora existe como enunciado sobre o ente, diz: ao ser do ente pertence qualquer coisa como que um fundamento. Com isso comprova- se o princípio do fundamento, não apenas como enunciado sobre o ente. Nós temos antes isto: o princípio do fundamento fala do ser do ente. O que diz o princípio? O princípio do fundamento diz: ao ser pertence qualquer coisa como fundamento. O ser é de caráter fundamental, é de tipo fundamental.

121

A mudança da tonalidade sobre o princípio do fundamento – Nada é sem fundamento – não aponta agora para a idéia de que o ente tem um fundamento. Isto leva Heidegger a pensar que tal princípio, na verdade, é um falar sobre o ser, de que o ser mora em si como fundamentado.

A radicalidade de tal postura leva a uma conclusão peculiar: o fundamento e o ser “são” o mesmo, mas o mesmo aqui não indica o igual – aponta para o fato inequívoco de que a essência do ser “é” fundamento, e este já entendido como permanecendo fora do ser. Esta é a célebre compreensão do ser como o sem-fundo (Ab-Grund) da tradição Negativa que ganha maior expressão em Eckhart e seu discípulo Suso e atinge a mística de Jacob Boheme.

Escutemos Heidegger:

121

Op. Cit..

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Ser e fundamento pertencem um ao outro de modo concomitante. A partir da sua copertença com o ser enquanto ser, o fundamento recebe a sua essência.

Inversamente, o ser enquanto ser rege a partir da essência do fundamento.

Fundamento e ser ‘são’ o mesmo, não o igual, o que logo a diferença dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’ indica. Ser ‘é’ na essência: fundamento. Por isso o ser nunca pode anteriormente ter um fundamento, que o deva fundamentar.

Em conseqüência disto o fundamento do ser permanece fora. O fundamento permanece fora do ser. No sentido de um tal permanece-fora do (Ab- bleibens) fundamento do ser, ‘é’ o ser o sem-fundo (Ab-Grund). Na medida em que o ser enquanto tal é fundamentado em si próprio, permanece ele mesmo sem fundamento. O ‘ser’ não cai no domínio do poder do princípio do fundamento, mas apenas no do ente.

122

Marlene Zarader, na sua obra Heidegger e as Palavras de Origem, citando um dos cursos de Heidegger sobre o Lógos em Heráclito, nos faz ver que a articulação das esferas ônticas e ontológicas dentro da Analítica Existencial fundamentam, também, o modo de apreender aquilo que se busca quando se quer restabelecer a questão do sentido do ser ao seu lugar de direito. Por quê? Ora, Heidegger afirma que o pensamento lógico – aquele que opera na esfera ôntica – pode conformar-se com a norma do pensamento, mas nunca ser elevado à instância do verdadeiro.

123

Adentrar a esfera do verdadeiro é, portanto, adentrar o questionamento sobre o sentido do ser. A questão do fundamento e do nada se casam para dar novas possibilidades ao que a Tradição ontológica havia soterrado: desvencilhar o pensamento de uma interpretação equivocada a respeito de suas origens e, num caminho de retorno, desvelar o sentido mais próprio do que nos foi legado pela tradição grega – e no caso de Heidegger, mais especificamente os pensadores tidos por ele como originários: Anaximandro, Heráclito e Parmênides.

O percurso de uma análise histórica – que aqui se dá especificamente através de um trabalho hermenêutico sobre o referido texto de Leibniz – visa demonstrar que aquilo sobre o que a nossa Tradição havia se debruçado tão longamente deveria ser pensado a partir de um restabelecimento adequado da questão do sentido do ser, sobre novos prismas, ou seja, reconquistando o lugar devido que o dizer desta mesma Tradição possui. Ao traduzir fu/sij por Aufgehung, Heidegger quer nos fazer ver que “fu/sij é o movimento de eclosão, a emergência pensada verbalmente e dita na forma nominal (nunca réplica precisa à palavra

122

Op. Cit.. p. 80-1.

123

Cf. ZARADER, Marlene. Heidegger e as palavras de origem. Piaget: Lisboa. 2004, p. 54.

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grega), e é essa emergência que é ser”

124

. Na verdade, o que se quer mostrar é que este terreno do fundamento, o ser, só pode ser pensado pela diferença ontológica, pelo rendimento do pensamento a tal diferença, sem jamais querer enquadrá-lo através das regras que se dão na esfera ôntica. O Abgrund é trazido novamente à baila no universo do discurso filosófico para que o pensar possa ir além dos seus limites positivos e encarar o questionamento essencial de sua própria tradição e de seu elemento negativo.

Apenas possibilitando e desarticulando a rigidez com que esta mesma Tradição pensou o homem e o mundo – daí a colocação da necessidade de se estabelecer a transcendência do Dasein e o lugar privilegiado do nada – é que se faz surgir no horizonte do pensamento o estabelecimento da diferença ontológica e uma nova possibilidade de pensar esta mesma Tradição. Heidegger está muito ciente de sua tarefa: ao retomar a questão do sentido do ser em toda a sua radicalidade – e vislumbrar a necessidade de pensar o impensado daquilo que nos foi legado

125

– ele afirma que “o pensamento do ser não procura apoio no ente”

126

. Trata-se, com efeito, de uma atitude que dentro da Analítica Existencial visa permitir ao pensamento essencial encontrar as palavras através das quais a verdade do ser chegue à linguagem. É nesta busca, pela possibilidade de escutar-se atentamente o apelo do ser, que a Analítica Existencial se vê na incumbência de ir além do pensamento estabelecido pela Tradição pensando o nada e o ser.

Quando Heidegger afirma que “o nada não permanece o indeterminado oposto do ente, mas se desvela como pertencente ao ser do ente”

127

já temos uma indicação de sua concordância com a afirmação hegeliana de que o puro ser e o puro nada são o mesmo. Mas aqui há uma questão nitidamente pertencente apenas à esfera da Analítica Existencial: neste enunciado, segundo Heidegger, não se trata de uma igualdade entre ser e nada, mas sim de um co-pertencer – e isto mesmo porque o ser mesmo é finito em sua manifestação no ente (Wesen), e só pode se manifestar na transcendência do ser no Dasein dentro do nada. Este é,

124

Op. Cit.. p. 49.

125

A questão de pensar o impensado de nossa Tradição é delimitado por Heidegger em três questões basilares nomeadamente em relação ao pensar hegeliano: 1. Qual o objeto do pensamento em Hegel e Heidegger? 2.

Qual a medida em um e outro para estabelecer-se um diálogo com a história do pensamento? e, por fim, 3.

Qual é em um e outro o caráter deste diálogo? Em Heidegger temos: 1. O objeto do pensamento é o mesmo, portanto o Ser, mas o Ser sob o ponto de vista de sua diferença com o ente; 2. Estabelece-se um diálogo com a tradição historial enquanto se penetra na força do pensamento antigo e 3. O caráter deste diálogo não é mais o suprassumir (Aufhebung), mas o passo de volta apontando para o âmbito a partir do qual a essência da verdade se torna digna de ser pensada. CF. HEIDEGGER, Martin. A Constituição Onto-teo-lógica da Metafísica. Identidade e Diferença. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). pp. 191-2.

126

HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 51.

127

Op. Cit.. p. 43.

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portanto, o ponto basilar de nossa discussão até aqui. É assim que Heidegger pode assinalar que “somente no nada do Dasein o ente em sua totalidade chega a si mesmo”

128

.

Chegar a si mesmo nos fala desta finitude radical que é a manifestação do ser no Dasein dentro do nada. É assim que o pensamento originário pode apropriar-se daquilo que Heidegger chama de o único acontecimento: que o ente é. A transcendência do Dasein – e devemos entender esta transcendência aqui como aquilo que se refere ao próprio Dasein humano, ou seja, sua constituição fundamental enquanto ente e que acontece antes de qualquer comportamento – é colocada para ajustar, dentro deste percurso, o nada e o ser e sua manifestação. Ensina Heidegger:

A transcendência constitui a mesmidade (ipseidade). Mas, novamente, não apenas a ela; a ultrapassagem sempre se refere também, ao mesmo tempo, ao ente que não é o Dasein ‘mesmo’; mais exatamente: na ultrapassagem e através dela pode apenas distinguir-se e decidir-se, em meio ao ente, quem e como é um ‘mesmo’ e o que não o é. Na medida, porém, em que o Dasein existe como mesmo – e somente nesta medida – pode ele ter um comportamento (relacionar-‘se’) para com o ente, que, entretanto, deve ter sido ultrapassado antes disso. Ainda que sendo em meio ao ente e por ele cercado, o Dasein enquanto existente já sempre ultrapassou a natureza

129

.

A ultrapassagem aqui indicada se refere, com efeito, à própria transcendência que é, em si mesma, a ultrapassagem que possibilita a existência. O indicativo aqui é: só sendo transcendente é que o Dasein pode “ultrapassar” a natureza e ser o mesmo, relacionando-se com os outros entes que se dão no mundo. Sem a transcendência não haveria Dasein, mas apenas seres simplesmente dados

130

. Deste modo é possível colocar a transcendência como ser-no-mundo. Assim, estabelecidos estes pontos essenciais da nova abordagem heideggeriana para a problemática da questão do sentido do ser, percebemos que esta estrutura só é possível de ser montada se houver de fato a compreensão da diferença ontológica e que se torna o centro gravitacional do próprio pensar heideggeriano

131

. Centro este que obriga o próprio

128

Op. Cit..

129

Idem. Sobre a essência do fundamento. Op. Cit. p. 104-5.

130

Evidente que isso é apenas uma figura de linguagem, uma vez que é apenas através e pela própria transcendência que nós podemos pensar um ser simplesmente dado.

131

Cf. o ensaio As Aventuras da Diferença de Gianni Vattimo na sua obra homônima. In:______. As aventuras

da diferença. Edições 70: Lisboa, 1989.pp. 143 a 160. (Vattimo, neste ensaio, propõe discutir o esgotamento

da força histórica da diferença ontológica a partir da conferência parisiense de Jacques Derrida de 1980, La

Différance. Mesmo indicando o ocaso da diferença, e isto mesmo a despeito de seus pensadores mais

contemporâneos – Derrida, Deleuze, Lévinas e Foucault – ele ressalta que mesmo havendo uma nostalgia no

(21)

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pensar a delinear melhor suas possibilidades e debruçar-se de modo radical sobre a sua própria tradição. Ao pensarmos o nada e a transcendência do Dasein, dentro da Analítica Existencial, já somos naturalmente transportados para a necessidade de contemplar o estabelecimento da diferença ontológica, ou seja, aquela que demarca a diferença entre ser e ente. O Dasein, então, o homem, é apropriado ao ser na sua co-pertença (Zusammengehören) que se dá na Ereignis

132

. Eis como Zarader explica este último vocábulo:

Ereignis deve ser entendido segundo três direções semânticas: a ideia de captar com o olhar (er-äugen), a ideia do ser próprio (eigen), a ideia de ter lugar ou de se produzir (sich ereignen) . Se mantivermos juntas estas três direções, o Ereignis aparece como esse ‘deixar vir a si’, essa ‘apropriação’ ou melhor ainda esse

‘advento’, pelo qual o ser (da mesma maneira que o homem) se ilumina no que lhe é próprio, quer dizer na sua essência e na sua proveniência

133

.

É determinado, deste modo, que o comum-pertencer (Zusammengehörigkeit)

134

aloja uma identidade entre ser e homem que só se pode dar exatamente pela diferença mesmo entre ser e ente. O Ereignis, enquanto advento, permite que o pensar se debruce tanto sobre a identidade quanto sobre a diferença. A trindade estabelecida aqui – nada, transcendência do Dasein e diferença ontológica – forma o solo fundante de todas as possibilidades de se interpretar a própria Analítica Existencial numa perspectiva que conduz à possibilidade de convergência com a tradição da Negatividade. A Analítica Existencial, portanto, é devedora desta nova possibilidade aberta ao pensamento ocidental. O todo do processo trazido à tona por tal trindade se desdobra num complexo modo de pensar o próprio homem a partir de uma reconquista que se torna o marco principal do pensamento heideggeriano: re-gressar em busca do pro-gresso – busca já indicada na Lógica de Hegel – e que aqui se acentua, como já indicamos, por pensar o impensado da nossa Tradição.

O processo mesmo de estabelecimento da diferença no pensamento heideggeriano,

pensamento de Heidegger, já que o próprio Heidegger nomeia An-denken o pensar que pode pensar a diferença através de uma recordação que, ao recordar a diferença, recorda o ser, deve-se estabelecer uma distinção entre o modo de se debruçar sobre esta questão em Derrida e no próprio Heidegger. Para nós, de fato, este é um campo ainda muito vasto para o pensar e que aponta para questionamentos ainda não pensados).

132

Na tradução brasileira para a conferência Identität und Differenz, Ernildo Stein segue os passos da tradução francesa, evénément-appropriation, e traduz Ereignis por acontecimento-apropriação.

133

ZARADER, M. Op. Cit. p. 169.

134

Comenta Ernildo Stein que há uma dupla acentuação neste termo, ou seja, ora acentua-se comum-pertencer

ora comum-pertencer. O primeiro, segundo Stein, demonstra um certo sentido hegeliano da identidade entre

ser e pensar, ser e homem e que conduz a uma síntese, enquanto o segundo aponta para um âmbito do qual

fazem parte, no mesmo, o homem e o ser. Cf. Identidade e diferença. Op. Cit.Nota 2 à p. 181.

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ISSN 1984-3879, SABERES, Natal – RN, v. 1, n.6, fev. 2011

ao flutuar entre a escolha dos termos Differenz e Unter-Schied já é um indicativo da necessidade de Heidegger pensar a diferença mesmo como um movimento de diferenciação, ou seja, não há a idéia de um congelamento, de uma verificação a posteriori daquilo que se dá pela diferença; ao contrário, a diferença mesma é que permite que possa “haver” tanto ser como ente.

135

Neste percurso, por fim, estabelece-se o nexo originário em que a verdade encontra- se com o ser. Indo mais além, estabelece-se que o ser-verdadeiro enquanto ser-descobridor é um modo de ser do próprio Dasein, já que descobrir é um modo de ser-no-mundo (Das In- der-Welt-sein). Conquista-se, assim, a clareza necessária para a afirmação de que “a verdade não diz o ser-descobridor (o descobrimento) mas o ser-descoberto (descoberta)”

136

, pois foi exatamente através da compreensão da transcendência do Dasein – e o sentido de sua abertura – que se alcança o fenômeno “mais originário da verdade”

137

. É neste âmbito que se atrela a abertura à descoberta dos entes intramundanos – o Dasein, portanto, está, deste modo, na verdade e na não-verdade. Verdade e existência – no seu sentido originário – ganham nova compreensão e pertencem, pois, ao mesmo.

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______. Ensaios e Conferências. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Ser e Tempo. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 1988.

135

Cf. ZARADER, M. Op. Cit. pp. 183-4.

136

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Op. Cit. p. 288.

137

Op. Cit. p. 289.

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