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Atualização em Insuficiência Renal Aguda: Insuficiência renal aguda após acidente crotálico

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Academic year: 2021

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I n t r o d u ç ã o

Os acidentes ofídicos representam sério problema de saúde pública nos países tropicais, pela freqüência com que ocorrem e pela morbi-mortalidade que ocasionam.

Existem no mundo aproximadamente 3 mil espécies de serpentes, das quais 10 a 14% são consideradas pe-çonhentas.1 A OMS (Organização Mundial da Saúde)

calcula que ocorram no mundo 1.250.000 a 1.665.000 acidentes por serpentes peçonhentas por ano, com 30.000 a 40.000 mortes.2 A mortalidade dos acidentados varia

nas diferentes regiões do mundo.3 Na Ásia,

principal-mente Índia, Paquistão e Birmânia, os acidentes ofídi-cos provocam de 25.000 a 35.000 óbitos por ano, sendo uma das serpentes mais importantes a Vipera russelli.4

Na Nigéria, ocorrem 500 casos por 100.000 habitantes, com uma taxa de mortalidade em torno de 10%.5 Nos

Estados Unidos, 12 a 15 dos 8 mil casos anuais são fa-tais, levando a uma mortalidade de 0,2%.6

No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem entre 19.000 a 22.000 acidentes ofídicos por ano, com mortalidade ao redor de 0,5%.7 A maioria

desses acidentes deve-se a serpentes do gênero Bo-throps (jararaca, jaracuçu, caiçara, urutu, combóia e outros) e Crotalus (cascavel), sendo raros os produzi-dos por Lachesis (surucucu, surucutinga) e Micrurus (coral).8 Segundo a Coordenação Nacional de Controle

de Zoonoses e Animais Peçonhentos (CNCZAP) do Ministério da Saúde, no período de 1990 a 1993 ocor-reram 81.611 acidentes, com uma média de 20.000 ca-sos/ano para o país. A média de incidência foi de 13,5 acidentes/100.000 habitantes, com a região Centro-oeste contribuindo com o maior índice do país (33

aciden-Atualização em Insuficiência Renal Aguda: Insuficiência renal

aguda após acidente crotálico

Fábia O Pinho

a

, Edivaldo C Vidal

b

, Emmanuel A Burdmann

c

aDisciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade

Federal de Goiás. bDisciplina de Nefrologia da Faculdade de

Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. cDisciplina de

Nefrologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto Endereço para correspondência: Emmanuel A. Burdmann Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto Av. Brigadeiro Faria Lima, 5416

15090-000 São José do Rio Preto, SP Tel./Fax: (0xx17) 227-5733 ramal 135

tes/100.000 habitantes).9 Dentre os casos em que o

gênero da serpente foi informado, Bothrops foi respon-sável por 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, Lachesis por 1,4% e Micrurus por 0,4%.9 A letalidade geral foi

de 0,45%, sendo maior nos acidentes crotálicos, onde em 5.072 acidentes ocorreram 95 óbitos (1,87%).9

A insuficiência renal aguda (IRA) é uma das prin-cipais complicações do acidente ofídico, sendo im-portante causa de óbito para esses pacientes. Lesão renal associada a acidente ofídico tem sido descrita com praticamente todas as serpentes, porém casos de IRA são mais freqüentes após acidentes por Vipe-ra russelli, na Ásia, e serpentes do gênero Bothrops e Crotalus, na América do Sul. A etiopatogenia da lesão renal tem sido atribuída a nefrotoxicidade di-reta da peçonha, miólise, hemólise, hipotensão, co-agulação capilar glomerular, ação tóxica vascular e até mesmo reações de hipersensibilidade à toxina ou ao soro antiofídico.10

Acidente crotálico A serpente

As serpentes do gênero Crotalus encontradas no Brasil apresentam características comuns às serpentes peçonhen-tas, tais como cabeça triangular, um par de fossetas loreais (órgão sensorial termorreceptor), olhos pequenos com pupilas em fenda, escamas na cabeça e dentes inoculado-res de veneno. Além disso, apinoculado-resentam na porção terminal da cauda o guizo ou chocalho, uma característica peculiar desse gênero, que facilita a sua identificação.11

Estão representadas no Brasil por apenas uma espécie, a Crotalus durissus ou cascavel, e distribuí-das em cinco subespécies (Tabela 1):12

• Crotalus durissus terrificus, encontrada nas zonas altas e secas da região sul oriental e meridional, desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. A sua denominação popular é cascavel ou boiquira; • Crotalus durissus collilineatus, distribuída nas

regi-ões secas do centro-oeste do Brasil (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e norte do Estado de São Paulo). As denominações populares são cas-cavel e maracabóia;

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• Crotalus durissus cascavella, encontrada nas áreas de caatinga no Nordeste brasileiro, desde o Mara-nhão até Minas Gerais. Popularmente denominadas cascavel e cascavel de quatro ventas;

• Crotalus durissus ruruima, observada nos Estados de Roraima, Amapá, Pará, Amazonas e Rondônia, de-nominadas popularmente por boiçununga e maracá; • Crotalus durissus marajoensis, observada na Ilha de Marajó, onde recebe denominações de boicininga, boiçununga e maracá.

Essas serpentes são geralmente encontradas em cam-pos abertos, áreas secas, arenosas e pedregosas e rara-mente na faixa litorânea. Não ocorrem em florestas nem no Pantanal.9 Alimentam-se de ratos, preás e pequenos

roedores. São menos agressivas que as do gênero Bo-throps, porém mais agressivas que as dos gêneros Lache-sis e Micrurus. Não tem hábito de atacar e, quando exci-tadas, denunciam sua presença pelo ruído característico do guizo ou chocalho.13

As serpentes do gênero Crotalus são responsáveis por aproximadamente 9% dos acidentes ocorridos em nosso meio. O acidente crotálico é mais freqüente no período chuvoso, acomete mais indivíduos do sexo masculino, faixa etária de 20-39 anos e trabalhadores rurais. Os membros inferiores e superiores são as re-giões anatômicas mais atingidas.13-16

A peçonha

A peçonha crotálica é considerada a mais tóxica entre as peçonhas de serpentes brasileiras, com letali-dade de 72% nos casos não tratados e de 5% nos casos em que houve soroterapia.14,15 A sua composição é

com-plexa incluindo enzimas, toxinas e peptídios.17,18

Algu-mas de suas toxinas já foram identificadas: crotamina, crotoxina, giroxina, convulsina, crotapotina e fosfoli-pase A2(Tabela 2).

O efeito da peçonha é multifatorial, afetando os

mús-Tabela 1

Sub-espécies do gênero Crotalus terrificus collilineatus Crotalus durissus cascavella

ruruima marajoensis

culos esqueléticos, vasos sanguíneos, sistema nervoso, rins e componentes do sangue.8,19,21-26 As três principais

ações do veneno crotálico são (Tabela 3):

• Ação neurotóxica: produzida principalmente pela fra-ção crotoxina, uma neurotoxina de afra-ção pré-sinápti-ca que atua nas terminações nervosas, tanto em nível de sistema nervoso central quanto periférico, inibin-do a liberação de acetilcolina. Essa inibição é o prin-cipal fator responsável pelo bloqueio neuromuscular do qual decorrem as paralisias motoras e respiratóri-as apresentadrespiratóri-as pelos pacientes. A convulsina e a giroxina contribuem para produzir convulsões e per-turbações circulatórias e respiratórias, comprovadas em animais de experimentação.24,26,29

• Ação miotóxica: produz lesões de fibras muscula-res esqueléticas, afetando preferencialmente as do tipo 1, podendo causar importante rabdomiólise, com liberação de enzimas e mioglobina para o soro, com posterior excreção urinária, levando à mioglo-binúria. Não está identificada a fração do veneno que produz esse efeito miotóxico sistêmico. Exis-tem evidências que sugerem que a crotamina e a crotoxina possuam ação miotóxica local.14,28,30

• Ação coagulante: decorre de atividade de enzima similar a trombina, que tem a capacidade de trans-formar fibrinogênio em fibrina. Isso provoca con-sumo dos fatores de coagulação, principalmente fibrinogênio e, por fim, incoagulabilidade sanguí-nea. Geralmente não há redução do número de plaquetas.13,27

Tabela 2

Componentes identificados na peçonha crotálica Crotamina Crotoxina Girotoxina Crotapotina Fosfolipase A2 Tabela 3

Principais ações da toxina crotálica

Neurotóxica: paralisias motora e respiratória, convulsões, alterações respiratórias e circulatórias.

Miotóxica: rabdomiólise generalizada, mioglubinúria.

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Quadro clínico (Tabela 4)

• Manifestações locais: no local da picada pode-se ob-servar desde um simples arranhão até marca puntifor-me única ou dupla. Em geral não há reação local, embora um pequeno edema possa estar presente. A dor, quando ocorre, não é intensa. Há parestesia local ou regional, que pode persistir por várias semanas.13

• Manifestações sistêmicas gerais: mal-estar, prostra-ção, sudorese, náuseas, vômitos, sonolência ou in-quietação e sensação de boca seca podem aparecer precocemente, estando relacionadas a estímulos de origem diversas.9

• Manifestações neurológicas: surgem nas primeiras horas e melhoram a partir do segundo dia do aci-dente. O fácies miastênico é característico e deno-minado “fácies neurotóxico de Rosenfeld”, eviden-ciando ptose palpebral uni ou bilateral, flacidez da musculatura da face, alteração do diâmetro pupilar (midríase bilateral semiparalítica), incapacidade de movimentação do globo ocular (oftalmoplegia), vi-são turva e/ou vivi-são dupla (diplopia), indicando por-tanto o comprometimento do III, IV e VI pares cra-nianos. Como manifestações menos freqüentes, pode-se encontrar paralisia velopalatina, com difi-culdade de deglutição, alterações do paladar e olfa-to e dificuldade respiratória.13

• Manifestações musculares: a miotoxicidade do ve-neno é evidenciada por intensa mialgia generaliza-da, que pode ser acompanhada por discreto edema muscular. A miólise causa mioglobinúria, que con-fere cor avermelhada ou vinhosa à urina.13,22,25,31

• Manifestações hematológicas: pode haver incoagu-labilidade sanguínea ou aumento do tempo de coa-gulação em aproximadamente 40% dos pacientes, observando-se raramente gengivorragia. Essas alte-rações ocorrem após algumas horas do acidente e involuem com o tratamento adequado.9,27

Diagnóstico

O diagnóstico de certeza é realizado pelo exame e reconhecimento do gênero da serpente. Quando o paciente desconhece ou não traz o animal agressor, o diagnóstico deverá ser confirmado pelos sinais e sinto-mas característicos do quadro clínico, pois esse é de instalação precoce.

O diagnóstico diferencial mais importante é com o acidente elapídico. Embora a picada por Micrurus tam-bém possa determinar fácies miastênica, não causa miólise, mioglobinúria maciça e alterações da coagula-ção sanguínea, presentes no acidente crotálico.14,32,33

Serpentes jovens do gênero Bothrops podem provocar lesão local muito leve, porém a ausência de fenôme-nos neurológicos e as importantes alterações de coa-gubilidade sanguínea presentes nesse tipo de acidente botrópico permitem fazer o diagnóstico diferencial.34

Exames laboratoriais

A rabdomiólise pode ser comprovada pela presen-ça de mioglobina no soro e na urina. Os níveis séricos de creatinoquinase (CPK), desidrogenase lática (DHL) e aspartase-alanino-transferase (AST) encontram-se ele-vados. A CPK aumenta precocemente, usualmente 4 a 8 horas após o acidente, podendo atingir níveis extre-mamente elevados de 100.000 UI/l ou mais. A AST ele-va-se nas primeiras 24 horas e a DHL, em geral, au-menta após 48 a 72 horas, permanecendo alta por alguns dias, constituindo-se assim em exame complementar potencialmente útil para diagnóstico tardio de envene-namento crotálico.9 A rabdomiólise maciça pode

indu-zir hipocalcemia, hipoalbuminemia, hiperuricemia, hiperfosfatemia e hipercalemia.25

O hemograma pode mostrar leucocitose, com neu-trofilia e desvio à esquerda no 1º e 2º dias, observan-do-se na maior parte dos casos eosinofilia a partir do 3º dia do acidente. Ao contrário do que se afirmava previamente, não ocorre hemólise significativa.20,21

O tempo de coagulação (TC) está freqüentemen-te prolongado e geralmenfreqüentemen-te se normaliza após 12 horas do início do tratamento.9,13

Os níveis de uréia e creatinina podem estar eleva-dos se houver presença de insuficiência renal aguda. O sedimento urinário geralmente é normal na ausência de IRA. Podem haver proteinúria e/ou glicosúria dis-cretas. A presença de mioglobina urinária pode ser detectada por métodos imunoquímicos específicos, como imunoeletroforese, imunodifusão ou de

agluti-Tabela 4

Quadro clínico do acidente crotálico • Lesão local leve.

• Ptose palpebral, midríase, oftalmoplegia, diplopia. • Mialgia intensa.

• Oligúria.

• Sangramentos (raro). • Dificuldade respiratória (rara). • Choque/hipotensão (raros).

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nação.9 Os exames usuais de fita que utilizam

benzidi-na não diferenciam entre hemoglobibenzidi-na e mioglobibenzidi-na e portanto podem apresentar-se fortemente positivos.19,21

Tratamento e prognóstico

O tratamento específico é realizado com soro anti-crotálico (SAC), que deve ser administrado endoveno-samente, em dosagens superiores a 150 mg. A dose varia de acordo com a gravidade do caso, devendo-se ressaltar que a quantidade a ser administrada à criança é a mesma da do adulto.9,13 Não foi ainda determinado

de forma conclusiva se a administração precoce do soro tem efeito benéfico em diminuir a incidência de IRA, embora dados indiretos associem atendimento tardio a maior risco de desenvolvimento de IRA.35

Como no local da picada as manifestações são mí-nimas, com sinais flogísticos leves, recomenda-se ade-quada assepsia e analgésicos, se necessário. O uso de antibioticoterapia está condicionado à evidência de infecção, lembrando que os germes patogênicos po-dem provir da boca do animal, da pele do acidentado ou do uso de contaminantes sobre o ferimento. Deve-se realizar corretamente a profilaxia do tétano.9

A adoção de medidas “clássicas” para prevenção de lesão renal secundária à rabdomiólise é particular-mente importante. Dentre essas, a principal é certa-mente a manutenção de hidratação adequada e satis-fatória, com fluxo urinário de 1 a 2 ml/kg/hora na criança e 30a 40 ml/hora no adulto.9 Dados

experi-mentais recentes demonstram de forma clara que a desidratação agravou e a hiperhidratação atenuou a gravidade da lesão renal.36 Pode-se induzir diurese

osmótica com solução de manitol a 20% (50 a 100 mg em 24 h) infundido a cada 6 horas ou de forma con-tínua, por um período de 3 a 5 dias, em função da gravidade e da evolução do caso.13 Advoga-se que esse,

além de proteger as células tubulares renais, contri-buiria para diminuir o edema cerebral e da muscula-tura esquelética.13 Pode-se também manter a urina

al-calina com a administração parenteral de bicarbonato de sódio monitorada por controle gasométrico. Essa manobra, que visa atenuar ou evitar a lesão renal cau-sada pela rabdomiólise, deve ser realizada com extre-ma cautela, pois pode causar efeitos colaterais impor-tantes como alcalose metabólica grave, hipernatremia e hipervolemia.9,13,15,25,31

O prognóstico nos acidentes leves e moderados e

nos pacientes atendidos nas primeiras seis horas após a picada é bom, observando-se regressão total de sin-tomas e sinais após alguns dias. Acidentes graves, com atendimento tardio ou acompanhados por IRA apre-sentam prognóstico mais reservado.9,13,22,23,32

Insuficiência renal aguda após acidente crotálico Prevalência da IRA

A IRA é a principal complicação do paciente que sobrevive às ações iniciais da peçonha crotálica.8,14,37

A prevalência descrita de IRA após acidente crotálico é elevada, variando de 9 a 31%.15,35,38,39 Apesar do

aci-dente crotálico ser aproximadamente 10 vezes menos freqüente do que o botrópico, o número absoluto de casos de IRA reportados com os dois gêneros de ser-pente é semelhante.40 Não existem, até o momento,

trabalhos que tenham avaliado de forma sistemática e através de parâmetros adequados o número real de pacientes que desenvolvem lesão renal após acidente crotálico. Os dados disponíveis baseiam-se em análi-ses retrospectivas com utilização de parâmetros de função renal pouco sensíveis. Dados preliminares de um estudo prospectivo demonstram que ao redor de 25% dos pacientes apresentam queda significativa da depuração de creatinina nos primeiros três dias após o acidente crotálico.*

Fatores de risco para o desenvolvimento de IRA

Em estudo retrospectivo recente, Silveira e Nishio-ka demonstraram que idade mais avançada e intervalo de tempo mais longo entre o acidente e o atendimento médico associaram-se ao maior risco de desenvolvi-mento de IRA. Concluíram também que para pacientes maiores de 40 anos de idade, mialgia e face neurotóxi-ca eram fatores preditivos de lesão renal.35

Segundo Ward, em presença de rabdomiólise o grau de elevação do nível sérico de CPK, potássio, fósforo e diminuição do nível sérico de albumina são fatores preditivos para IRA, evidenciando a presença de lesão muscular mais grave.41

Outros fatores possivelmente associados ao risco de IRA são a idade e o tamanho da serpente, a época do ano e o local do acidente (pois existem variações sazonais e geográficas nas peçonhas), a quantidade de veneno injetada, o nível de hidratação, a presença de doenças de base no indivíduo picado ou o uso conco-mitante de drogas nefrotóxicas.

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Etiopatogenia da lesão renal

Diversos mecanismos têm sido relacionados com a gênese da lesão renal causada pela peçonha crotálica: rabdomiólise, choque, hemólise e coagulação intravas-cular, entre outros. A alta prevalência e a rapidez com que se instala a insuficiência renal também levaram diversos autores a sugerir que a peçonha ou um dos seus componentes possua efeito nefrotóxico direto.

Em 1966, Amorim et al. injetaram peçonha crotáli-ca por via subcutânea em cães e obtiveram quadro histológico renal de necrose tubular aguda.23 No

mes-mo ano, Hadler e Brazil induziram necrose tubular agu-da em cães por injeção de crotoxina, demonstrando altas concentrações dessa fração da peçonha no tecido renal dos animais inoculados.42 Em 1978, Rovere et al.

injetaram experimentalmente peçonha crotálica em ra-tos e observaram queda do fluxo sanguíneo renal, au-mento da resistência vascular renal e trombose glome-rular, que ocorreram na ausência de queda significativa da pressão arterial.43

Em estudo recente, Vidal et al. estudaram experi-mentalmente o efeito da injeção endovenosa da peço-nha sobre a função renal, pressão arterial, músculo e hemáceas. Esses autores observaram que o veneno cro-tálico causou queda precoce da filtração glomerular e do fluxo sanguíneo renal, com recuperação parcial após 24 horas. A peçonha não provocou hipotensão ou he-mólise mas induziu rabdomiólise sistêmica significati-va. A desidratação agravou a lesão renal e a expansão de volume a atenuou. A peçonha mostrou nefrotoxici-dade direta, agravada por hipóxia, em suspensão de túbulos proximais isolados. A histologia mostrou ne-crose tubular aguda. Esses dados sugerem fortemente que a patogênese da IRA por peçonha crotálica está relacionada a rabdomiólise, vasoconstricção e nefroto-xicidade direta (Figura 1).36

Clinicamente, a gravidade da lesão muscular pare-ce ser o fator mais claramente relacionado ao desen-volvimento de IRA. A fisiopatologia da IRA associada à rabdomiólise permanece ainda obscura. Têm sido su-geridos como prováveis mecanismos o efeito tóxico direto da mioglobina, a isquemia renal devido ao dese-quilíbrio entre mediadores vasoconstritores e vasodila-tadores e/ou a obstrução tubular por cilindros forma-dos pelo pigmento mioglobina. Sabe-se que fatores como desidratação, hipotensão arterial, choque e aci-dose metabólica podem estar associados à rabdomióli-se e contribuir para a instalação da lesão renal.25

Hemólise e hemoglobinúria foram incriminadas

durante anos como fatores desencadeadores da IRA após acidente crotálico. A peçonha é hemolítica “in vitro” e durante muito tempo a cor vinhosa da urina e a reação de benzidina positiva urinária após acidente crotálico foram atribuídos à hemoglobinúria.30 No

en-tanto, como já comentado, a alteração de cor da urina e o teste da benzidina são inespecíficos, podendo ocor-rer tanto na mioglobinúria como na hemoglobinúria. Em 1987, Azevedo-Marques et al. comprovaram a ocor-rência de miólise (mioglobina positiva no sangue e urina, elevação de enzimas e alterações na biópsia muscular) na ausência de hemólise (hemoglobina livre e haptoglobina normais e ausência de hemoglobinú-ria) em pacientes picados por Crotalus.21 Esse achado

foi posteriormente confirmado por outros autores em nível clínico e experimental, levando ao questionamento da real importância da hemólise no acidente crotálico. Embora hipotensão e alterações do sistema de co-agulação possam potencialmente contribuir para o de-senvolvimento de IRA, são eventos raros nos acidentes com cascavel.44

Finalmente, fenômenos inflamatórios desencade-ados pela peçonha e/ou soro antiofídico em interstí-cio renal podem estar relainterstí-cionados à etiopatogenia da lesão renal, havendo relato de casos de nefrite in-tersticial aguda após acidente crotálico.45

Características da IRA

A IRA pode ser extremamente precoce, surgindo horas após a picada. É geralmente diagnosticada nas

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primeiras 24 a 48 horas. É freqüentemente oligúrica, hi-percatabólica, dependente de tratamento dialítico e re-versível, durando em média 3 a 4 semanas. É considera-da a principal causa de óbito no acidente crotálico.8,14,37

A alteração histológica renal mais freqüentemente descrita é necrose tubular aguda (NTA).8,46,47 Por outro

lado, já foram descritos casos de IRA após acidente crotá-lico com biópsia renal mostrando nefrite intersticial agu-da (NIA) associaagu-da a NTA. Todos os pacientes apresenta-ram quadro clínico semelhante ao de NTA. Não foapresenta-ram observados eosinófilos no infiltrado celular intersticial.45

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Referências

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