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EducaçãoeMatemáticanº69•Setembro/Outubrode2002
Formarprofessores
—umtestemunhona1ªpessoa
JoséDuarte
Inicieiaactividadedocentenoensino secundárioem1975,numaalturaem queseviviaumaépocadegrandes mudanças.ArevoluçãodeAbril,ainda ‘fresca’,agitavatodasasesferasda actividadesocialenaeducaçãoos seusefeitoscomeçavam-seasentir. Auniicaçãodoensinobásicopôsim àsduasviasqueatéaíregulavamo percursoescolardosestudantes:a vialicealeaviadoensinotécnico. Nosanosqueseseguiram,vivicom algumaintensidadeoprocessode gestãodemocráticaqueseiniciou nasescolasequemodiicouopro-tagonismodosatéaíconsiderados ‘agentesdeensino’.Osprofessores tomaramapalavraeenvolveram-se nasestruturaspedagógicasdasesco-las,participandonummovimentoque teveimplicaçõesclarasnasrelações entreosdiferentesactoresdaescola, nomeadamenteentreprofessorese alunos.
Oriundodasengenharias,compas-sagem‘obrigatória’pelaFaculdade deCiênciasdeLisboaepeloInstituto SuperiorTécnico,inicieiadocência semhabilitaçãoproissional,mascom umaboapreparaçãoemMatemática, entendidacomociênciarigorosafun-dadaempilarescomoaAritmética,a Análise,aGeometriaouaÁlgebra. Comumpercursoassociativocom gruposdejovens,diversiicadopor vertentescomoacultural,adespor- tivaeasindical,juntaram-seosingre-dientesnecessáriosparaterganhoa ‘paixão’porestaproissão.
Domeupontodevista,oque
eraprecisosaberparaserpro-fessordeMatemática?
‘Dominar’aciência,nestecasoa Matemática,ouseja,paraaquela época,sercapazderesolverepropor todootipodeexercícioscommenos oumaisartifícios,associadosounão aproblemase‘construir’umarelação empáticacomosalunoscapazdelhes captaraatenção.
Empermanenteprocuradeideias novasquetornassemaMatemática maisvivaemaisligadaàrealidade, foinoexercíciodaproissão,empar- ticularnoprocessodeproissionali-zaçãoemserviçonoiníciodadécada de80,primeirocomoformandoe depoiscomoorientador,queaprendi algunsprincípiosdepedagogiaeme entusiasmeipelosnovos‘ventos’que percorriamomovimentonacionale internacionalderenovaçãodoensino daMatemáticaequevalorizavama resoluçãodeproblemas,asaplica-çõesdaMatemáticaeasualigaçãoà realidade.EmPortugal,estasorienta-çõesaparecemclaramenteexplícitas noboletimInlexão,umafolhainfor-mativacujoprimeironúmerosaiuem Junhode1981,editadaporumgrupo detrabalhoconstituídonoâmbitoda SociedadePortuguesadeMatemática (SPM)quecontavaentreosseus principaisanimadorescomosprofes-soresJoãoPedrodaPonte,Paulo AbranteseJoãoFilipeMatos.
Asfunçõesqueserão
chamadosadesempe-
nharosnovosprofes-soresdeMatemáticado
ensinobásicoesecundá-
rioserãobemmaisdiver-siicadaseenvolverão,
paraalémdeumconhe-cimentoecapacidade
deusodosconceitos-chavedaMatemática,
capacidadesderealizar
diagnósticoeidentiicar
necessidadesdeforma-ção,degerirtrabalhoem
equipas,deconceber,
realizareacompanhar
projectosemMatemática
mastambéminterdiscipli-nares,denegociarregras
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Estemovimentoacabouporseraliás percursor,quatroanosmaistarde,da organizaçãodo1ºEncontroNacional deProfessoresdeMatemática,rea-lizadoemLisboa,queconduziuum anodepoisàcriaçãodaAssociação deProfessoresdeMatemática(APM) quecongregahojeváriosmilharesde sócios,contandoentreosseusmem-brosprofessoreseinvestigadoresque têmdedicadomuitodasuavidaapro-curarosmelhorescaminhosparaum ensinodaMatemáticaquesedirijaa todos,dotando-osdeumaferramenta essencialàcompreensãodomundo eàvidaemsociedadeenãoapenas comomeradisciplinadeselecçãoe acessoaalgunscursossuperiores. Nosprimeirosanosdadécadade80, oaparecimentodoscomputadores pessoais(osTimex,Spectrum,…)e alinguagemBASICvieramenriquecer omeupercursoproissional.Aprendi (tambémcomosalunos)aconstruir pequenasrotinasqueresolviamde formaexpeditapequenosproblemas (ocálculodom.d.c.dedoisnúmeros, umasimulaçãoexperimentaldolimite deumafunçãonumponto,etc.). Osdesaioseramconstantesenos doissentidos:professor->alunos ealunos->professor.OsClubes deInformáticaedeMatemática constituíramespaçosdeliberdade ecriatividadenosquaisparticipeie acompanhei.JánaEscolaSuperior deEducaçãodeSetúbal,em1985, participeiactivamentenainiciativa nacionalquefoioProjectoMINERVA quetrouxeumavisãopedagógica àstecnologiasdeinformaçãoe comunicaçãodaqualdestaco,no casodoensinodaMatemática,as
potencialidadesdafolhadecálculo noestudodasregularidadesnuméri-cas,daestatísticaedosproblemas deoptimizaçãoedalinguagemLogo nosprimeirosanosdeescolaridade, atravésdaconstruçãoeexploração depequenosprocedimentosparaa resoluçãodeproblemasnuméricose degeometriaelementar.
Aescolacomeçavaaquestionar-se eoscilavaentreumainstituiçãopre-dominantementedetransmissãode saberacumuladoedisseminadopor viadosprofessoreseumlugaronde osalunospodiamrealizaractividades estimulantese‘fazer’Matemática.
Oquefoimudando?
Oprocessodedemocratizaçãodo acessoàescola,trouxeàssalasde aula,comparticularincidênciaapartir dadécadade90,umapopulação muitodiversiicadanasuaorigem socialefortementemulticultural,bem diferenteda‘minoria’quevinteanos antestinhaoprivilégiodeestudarnos bancosdoliceu.
Poroutrolado,desdeadécadade 80,aexplosãoedesmassiicação dosmedia,oaparecimentodoscom-putadorespessoaise,emgeral,o desenvolvimentodastecnologiasde informaçãoecomunicaçãoconstituí-ramumdesaioàautoridadedaescola comoúnicafontedeinformaçãoe saber,querpelaformamaciçacomo invadiramoquotidianodocidadão, querdamaneiraapelativacomoo izeram,deixandoaescolapúblicade quadroegizcompletamentedesar-mada.
Aindaodesenvolvimentodainvesti- gaçãonaáreadasciênciasdaedu-caçãoe,emparticular,naEducação Matemática,trouxeparaprimeiro planopreocupaçõesacrescidascom osprocessosdeaprendizagemdos alunosesuarelaçãocomoprocesso deensino,propondooequacionarde novospapéisparaosprofessores, nomeadamenteacapacidadedelidar comumvastolequederecursose materiaiserecriarambientesdetraba-lhointelectualmenteestimulantes. Após-graduaçãoquerealizeinoinício dadécadade90,constituíumaisum passonatomadadeconsciênciade queopontodepartidaéhojebem diferente,querpelascaracterísticas dopúblicocomquesetrabalha,quer pelasnovasexigênciasqueasocie- dadedainformaçãoedoconheci-mentocoloca.
Porumlado,esta‘bricolage’multi-culturalquesesentatodososdiasà nossafrentetrazconsigoexperiências devidabemdistintaseexpectativas bemdiferenteseoprofessortempara lhe‘oferecer’umprogramaúnicoque emboradegestãolexível,otempo,o espaçoeosrecursosdisponíveisnem sempredeixamamargemdesejada paraatenderasdiferenças,principal-menteseasalaestábemcheia. Poroutrolado,osexercíciosnumé-ricosealgébricosque‘oleavam’as cabeçasdosestudantesdosanos60 e70equelhesvaliamum‘lugarao sol’noacessoàsFaculdadesdeCiên-ciaseàsEngenharias,conducentes aumdiplomaqueera,regrageral, sinónimodeempregonãosãojásui-cientes.
Comoformadoresupervisorda cadeiradePráticaeRelexãoPedagó-gicado3ºanodoCursodeFormação InicialdeProfessoresdavariantede MatemáticaeCiênciasdaNatureza, foiestarealidadequefuiconstatando nasescolasdoensinobásicoeprocu-randorespostasaoníveldocurrículo, nomeadamentenasmetodologiasda Matemática.
Oqueseesperaentãodospro-fessores?
cominformaçãodeformadiversii-66
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cada,dearelacionareusaremdife-rentescontextosedeseservirdela comoferramentaderesoluçãodepro-blemas,demodelaçãodeproblemas doquotidianoedeaplicação.Assim, asfunçõesqueserãochamadosa desempenharosnovosprofessores deMatemáticadoensinobásicoe secundárioserãobemmaisdiversii-cadaseenvolverão,paraalémdeum conhecimentoecapacidadedeuso dosconceitos-chavedaMatemática, capacidadesderealizardiagnóstico eidentiicarnecessidadesdeforma-ção,degerirtrabalhoemequipas,de conceber,realizareacompanharpro-jectosemMatemáticamastambém interdisciplinares,denegociarregrase deresolverconlitos.
Papert,o‘pai’doLogo,airmano seuúltimolivro,AFamíliaemRede, que“seosconhecimentosqueuma criançaadquireestãoultrapassados antesdeelaospoderusar,queraio decoisaséquetemosdelheensinar? Arespostaéóbvia:oúnicoconheci-mentoverdadeiramentecompetitivoa longoprazoéaprenderaaprender”. Concordoqueesteéumenorme desaioparaosformadoresquetra-balhamnasinstituiçõesdeformação inicialdeprofessores,sejamESEsou Universidades,masexigeumamplo debateparaclariicaroquepodesig-niicar.Oqueizermossobreissona formaçãoinicialtenderáaserrepro-duzidopelosfuturosprofessores‘no terreno’.
Aprendernosentidodeseapropriar, tornarseu,sóépossívelcomgosto mastambémcomesforço.Eaprender oquê?Aciênciaqueseensina,as suasbasesestruturantes,asmetodo-logias,aspedagogiasdiferenciadas etodoumconjuntodeoutrostemas quedeformaarticuladatentamosdar corposobaformadeumcurrículo cujacargahoráriaéconsideradanor-malmente‘pesada’.
Massepensarmosqueestes4anos deformaçãoinicialsãoapenasmais umaetapanaformaçãodosfuturos proissionaisequeseprocessaao longodavida,entãoexige-seque sedesenvolvaumformaçãoparaa autonomia.Tornar-seautónomona procuradoqueprecisapararesolver umproblema,saberdotar-sedasfer-ramentasnecessáriasparaoabordar, étãoimportantecomosaberresolvê-lo.Passapelosaber,saberser/estar esaberfazer.Peranteumdesaio, trata-sedesercapazdemobilizaros saberesquejátem,oqueéumacto quepressupõeumacertarelação afectivacomatarefaqueoenvolve, umaatitudepositiva.Éaquiquepenso quesemanifestaacompetênciaeé istoqueprecisamosdetrabalhar. Poroutrolado,nãopodemoscon-tinuaraignoraroenormepotencial dastecnologiasdeinformaçãoe comunicaçãonosprocessosdevisua-lizaçãodeconceitosedesimulaçãoe modelaçãodefenómenosreais,onde osaspectosnuméricos,geométricos
ealgébricossecruzamecomple-mentam,propiciandoambientesde trabalhointelectualmenteestimulan-tes,deexploraçãoedescobertade conexõesedeestabelecimentode conjecturas.
Asfolhasdecálculo,oLogo,os ambientesdegeometriadinâmica,os programasdemodelaçãoeaInternet nassuasdiferentesvertentesde pesquisa,comunicaçãoepublicação, constituempreciososauxiliaresque osprofessoresdevemconhecere saberidentiicaraspotencialidades pedagógicas,paraqueasmobilizem deformatãoadequadaenaturalcomo ofazemcomotransferidor,arégua, acalculadorabásicaouorectropro-jector.
Ofuturoprofessordeveaprender avalorizaraherançaculturalqueo alunotrazconsigoquandoláchegae forneceroscontextosondeosaber adquiresentido.Issoexigeemerece tempoparasertrabalhado,oquenem sempreseconseguecompatibilizar como‘desiar’contínuoesequencial deconteúdosemdirecçãoaotão desejadocumprimentodosprogramas (leia-secumprimentodosconteúdos indicadosnosprogramas)quetanto descansotrazemaospaiseàsautori-dadesacadémicas.
Aescolaprecisaassim,domeuponto devista,deprofessoresquenão passemsistematicamenteaosseus alunosamensagemdeuma‘vida adiada’paraoquevemaseguir.O quotidianoescolartemumsentido emsipróprioecadaciclodeestudos sejabásicoousecundáriovaleporsi, pelascompetênciasquesepropõe desenvolverepelapreparaçãoque confere.Oprofessororganizasitua-çõesdeaprendizagemegere-asde acordocomascaracterísticaseavida dessaspequenascomunidadesde aprendizes.
Parece-meserestaabatalhaque temosqueenfrentarcomoforma-doresdeprofessores:oacessode todososjovensàMatemática,apar daqualidadedasaprendizagens.