Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Área: 24,78 x 33,59 cm² Corte: 1 de 5
ID: 32926004 27-11-2010
Entrevista
Recebeu-nos na casa onde vive há mais de 40 anos. Assim que abriu a porta per- cebemos que é muito mais pequena do que parece na televisão. Numa voz gas- ta pelo tabaco, que consome desde os 14 anos – “primeiro eram as barbas de milho, depois vieram os cigarros” – dá-nos as boas-vindas e conduz-nos a uma sala cheia de móveis, cadeiras, muitas cadei- ras, fotografias e o retrato de D. Miguel, o Absolutista, na parede. Filipa Vacon- deus tem 77 anos e mede um metro e meio. Numa só resposta salta dos tem- pos em que trabalhou na TAP para as recordações de infância, na Lapa, quan- do saía de casa à procura de histórias para depois contar à mãe. Sozinha, apa- nha o comboio para Vila Nova de Gaia às sete da manhã, carregada de sacos cheios de tachos e ingredientes para os cozinhados da televisão. A “senhora dos restinhos” tem um novo livro, “Os Tru- ques da Filipa”, onde ensina receitas bara- tas, para os tempos de crise.
Tem uma opinião muito particular sobre a nouvelle cuisine, ou cozinha de autor.
Aquilo é um horror, foi um passarinho que andou a voar, deixou cair uma coi- sa no prato e nós somos obrigados a comer a quantidade que estes senhores
acham que sim. Para mim é uma cozi- nha incaracterística, universal que se pode comer em todos os restaurantes.
Acho que devemos manter a nossa cozi- nha tradicional portuguesa. Levámos anos para que fosse considerada patri- mónio nacional. Conseguimos e agora todos fazem estes pratos, que são muito bonitos à vista, mas não são o nosso pala- dar.
Como é que a cozinha surge na sua vida?
É um bichinho que nasce connosco. Quem não gosta, não gosta mesmo e é um sacri- fício fazer café com leite e pão com man- teiga. Com nove anos, a primeira coisa que fazia quando chegava a casa era ver o que a cozinheira tinha feito. Provava e depois dizia o que é que faltava: “Ponha mais disto, mais daquilo.” Nessa altura, no mês de Agosto, governava a casa, cha- memos-lhe assim a brincar, para dar
férias à minha mãe. E sabia muito bem dizer à cozinheira o que era para fazer.
E isso nasce connosco, não há nada a fazer.
Alguma vez pensou que iria ter livros, programas de culinária e que iria se tornar numa espécie de guru da cozinha portuguesa?
Nunca me passou pela cabeça. Aliás, tudo o que é escrever chateia-me. Esta histó- ria dos livros é sacrifício. Só que também tenho outra coisa, eu gosto de transmi- tir aos outros as coisas que eu sei, para depois não irem comigo lá para a cova e isso dá-me gozo e faz parte da minha vida.
Quem a ensinou a cozinhar?
Ninguém. Por isso é que eu me rio imen- so quando falam de chefes… eu não sou chefe coisa nenhuma. Sou uma dona de casa, ou uma leiga, que a única coisa que fez foi aprender com o tempo. E depois há outra coisa muito importante: eu tinha talvez dez anos quando foi a Segunda Guerra Mundial. Durante esse período existiam as senhas de racionamento, em que as pessoas tinham uma determina- da quantidade de alimentos por mês. Isso ensinou, mesmo as famílias mais abas- tadas, a fazer contas e saber o que é que podiam gastar. E esse talvez tenha sido o grande ensinamento que tive. Isso foi depois trabalhado na minha cabeça.
Depois o grande boom surgiu com o res- taurante de luxo que tive em Alfama, o
Cota de Armas, em que a carta era toda com receitas minhas e da minha chefe de cozinha, a minha Clotilde, que é fan- tástica. Não tínhamos um prato igual aos outros restaurantes, era tudo feito da nossa cabeça e isso deu-me um grande traquejo.
O restaurante fechou pouco depois do 25 de Abril. Porquê?
Era um restaurante de luxo, conotado com tudo o que era banqueiros, fachos da época, não havia hipótese de conti- nuar. Foi horrível, ia lá o Copcon [Coman- do Operacional do Continente] a toda a hora, buscar este e aquele, foi terrível.
Do pessoal que restou, os bons foram todos para outros restaurantes, partiam a loiça de propósito, as melhores loiças que eu tinha. Foi uma época tremenda nesse aspecto, porque eu não merecia, de todo. Um dia cheguei lá e disseram- -me: “Pode ir-se embora, não a quere- mos mais aqui.” Fui-me embora e eles ficaram com aquilo. Durou quatro meses.
Deixaram de pagar as contas e pronto.
E ficou com dívidas e sem trabalho.
Faltava pagar 10% do restaurante. O meu marido, que fundou o jornal “O Tempo”
e depois “O País”, como eu estava aflita, lembrou-se de pôr um anúncio no jor- nal a dizer “fazem-se ceias de Natal, a 1500$”, que não era nada, mas nessa altu- ra ajudava muito. Tinha canja, bacalhau, peru e doces de Natal. Bom, assei 18 perus.
Foi uma doideira. Depois comecei a fazer
Filipa Vacondeus.
“Não sou chefe.
Sou uma dona
de casa que aprendeu com o tempo”
A senhora que faz dos restos pratos maravilhosos tem um novo livro que ensina aos portugueses receitas low cost
DIANA GARRIDO
diana.garrido@ionline.pt
“A nouvelle cuisine
é um horror. Foi um
passarinho que andou
a voar e deixou cair uma
coisinha no prato”
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País: PortugalPeriod.: Diária
Âmbito: Informação Geral
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ID: 32926004 27-11-2010
jantares para fora, mas jantares assim fabulosos, de gansos recheados, patos desossados, levava as travessas grandes de prata para casa das pessoas, punha as mesas, arranjava tudo. E fazia dinhei- ro para pagar o que era preciso pagar.
Entretanto o meu marido teve uma ideia, que me saiu bastante do pêlo, mas foi gira: todas as sextas dava jantares cá em casa, a tudo o que se possa imaginar, da extrema esquerda à extrema direita, todos aqui uns com os outros, a come- rem ao lado uns dos outros.
Como é que surge a televisão?
Num desses jantares veio a Maria Elisa, que tinha acabado de entrar para diri- gir a RTP, e que me lançou o desafio de ir para a televisão. Eu disse que não, por- que nem nas peças de teatro da escola entrava. Não me sei armar em mais nada senão nisto que eu sou, percebe? Todos os disparates, o que sei ou não sei, eu iria dizer. Mas correu muito bem. Che- guei ali e pronto. A câmara está ali, mas eu estou a falar para as pessoas que estão ali comigo, como estou aqui a conversar consigo e a coisa sai natural.
E tinha de levar tudo, tachos, panelas, ingredientes, para os estúdios, no Porto.
Ainda é assim. Tenho de levar sacos para todo o lado porque eles [RTP] não têm nada, só têm fogão. Levanto-me às cinco da manhã para apanhar o comboio das sete, para chegar lá a tempo, com os sacos
todos. Às vezes desespero e protesto mui- to. O meu marido pergunta: “Estás a falar com quem?” Olha, estou a falar comigo porque isto é um inferno e já não posso.
E vai sozinha com tantos sacos?
Claro, não tenho ninguém. Ainda ontem levava dois sacos cheios e perguntaram- -me: “Mas a Filipa não tem ninguém que a ajude?” Eu não, não tenho ninguém. A menos que alugue alguém na rua “olhe quer vir trazer-me os sacos à televisão?”
E pronto. Mas o que se passa é que gos- to muito do que faço. Hoje estou nesta refilice toda porque tenho coisas todos os dias em todo o lado, mas gosto mui- to e divirto-me muito.
Voltemos atrás. Antes da cozinha, foi hospedeira da TAP. Como é que essa aventura começou?
Eu não fazia a mais pequena ideia de tra- balhar, porque na minha família as mulhe- res não trabalhavam. Era tudo dondo-
cas, passavam o dia a fazer tricô e a tomar chá. Eu fui sempre muito rebelde e acha- va aquilo uma chatice. Houve um momen- to crítico na família e eu de repente vi um anúncio para a TAP e disse “lá vai ela”. Como falava cinco línguas passei.
O inferno foi quando me mediram. Por- que eles queriam 1,56 m e eu só tenho um metro e meio e não podia crescer, não é? Como éramos medidas descalças, deixei crescer as unhas dos pés e quan- do o médico olhava para cima, pus-me em cima das unhas e passei, não sei como!
Mas fiquei lá durante um ano. Foi mui- to difícil, porque quando chegava a casa, era um ambiente terrível, porque eu dor- mia muitas vezes fora. Isso numa famí- lia muito conservadora como era a minha, não dava. Ainda por cima tinha estado para casar e tinha acabado o namoro há pouco tempo.
Porque é que acabou o namoro? Tinha que idade?
Tinha uns 20 anos. Achei que aquilo não era nada, que não era para mim. Se me tivesse casado naquela altura, hoje era uma velha dondoca a fazer tricô, chatea- da. E isso fez-me lindamente. Pensei:
“Não vou ficar aqui, solteira, a pedir 20 escudos à minha mãe para ir à Benard tomar chá”, que era o que as meninas de bem faziam na época. Ninguém tra- balhava, iam para a Benard tomar chá, e a um cinema à tarde. Isso não me diz nada, não tem nada a ver comigo. O meu
Filipa Vacondeus fotografa- da na sua casa em Lisboa, onde já deu dezenas de jan- tares, desmanchou um por- co inteiro e foi convidada por Maria Elisa para fazer um programa de televisão de culinária
FILIPE CASACA
avô chamou-me e disse: “Uma neta minha, a trabalhar?” e eu respondi, “ó avô, se me der os 4500$ que me vão pagar na TAP eu vou para a Benard tomar chá!”
Ficou da cor deste sofá [vermelho] e dis- se que eu tinha muita lata.
Com que idade casou?
Tinha 35 anos. O mais tarde possível e casei cedo de mais. Não sou galinha de capoeira.
E não teve filhos. Porquê?
Porque casei tarde. Ou os tinha naque- la altura ou não tinha. Estes filhos de mãe e pai serôdios, acho um horror. Mas não fiz tragédia com isso. Sou realmen- te muito crente e achei que se não tive, foi porque Deus não quis.
É muito devota?
Sou. Sou católica, apostólica, romana, praticante. Tenho uma fé desmedida que faz parte de mim. Aquilo que dou cá de dentro faz parte da educação gira que levei. A educação que tive de casa foi muito boa e a religiosa também. Não é uma religião de beatice… ensino cate- quese mas não estou lá o dia inteiro a rezar Pai Nosso, Avé Maria. Acho que a religião serve para mostrar os valores que devemos ter durante a vida: respei- tar os pais, respeitar os outros, ter cari- dade com quem tem menos do que nós, não ser arrogante. E isso é que são os ensinamentos de Cristo. Sou monárqui- ca e o meu marido é ultra-republicano
“Eu não fazia a mais pequena ideia de trabalhar, porque na minha família as
mulheres não trabalham”
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Âmbito: Informação Geral
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ID: 32926004 27-11-2010
“Os Truques da Filipa”
Editora: Matéria Prima Preço: 16,50€
Filipa Vacondeus partilha segredos e truques “que aprendeu com a experiência”
em mais de 200 receitas, saídas directamente da sua cabeça. Por pouco mais de dois euros por pessoa, aprenda a fazer bons pratos (e simples).
ALGUNS TRUQUES DA FILIPA
SopaPonha um raminho de coentros e um bocadinho de hortelã a cozer junto com os legumes. Na altura de passar a sopa, deixe-os ficar lá dentro e triture-os também. A sopa vai ficar muito mais saborosa.
Puré de batataPara que o puré fique muito mais apetitoso e fofo, junte uma clara em castelo.
Refogado saudávelNo refogado junte um pouco de água, para que o alho e a cebola cozam, em vez de fritarem. O sabor é o mesmo (ou melhor) e é muito mais saudável. Ou então ponha os ingredientes em cru, todos ao mesmo tempo, e deixe cozinhar em lume brando. É saboroso e não faz mal à saúde.
– vivemos os dois lindamente com isso – e uma vez ele deu um jantar cá em casa com socialistas radicais. Havia um que era o Raul Rego, conversámos muito e tal. No fim veio cumprimentar-me: “A senhora é a maior socialista de nós todos.
Estou de queixo caído.” E eu: “Não, não sou socialista, sou monárquica. O que eu sou é cristã.” E assim me tenho gover- nado na vida. Nunca feri ninguém e toda a gente tem o direito a ser o que quer.
Desde que não me impinjam nada, eu também não impinjo nada a ninguém.
Falou há pouco da sua família e de como as mulheres não trabalhavam.
Como foi a sua infância?
Foi passada na Lapa, numa espécie de vila, como havia antigamente. Era da minha bisavó, uma pessoa muito rica mas com um coração sem fim. Além de sustentar a igreja da zona, ajudava todos.
Uma das suas criadas namorava um taxista. A minha avó, como dote de casa- mento, dava-lhe um táxi. Depois a outra namorava um barbeiro. A minha avó montava-lhe uma barbearia, ali mesmo em frente da porta, que era o Manel Cava- linho. Aquilo era como se vivêssemos numa quinta. Todas as quartas-feiras as crianças da vila iam lá a casa tomar banho, despiolhar e lanchar. Eu, que tinha umas tranças enormes e lindas, tive de as cortar porque tinha tanto pio- lho que sei lá. Passava a vida a fazer de
cabeleireira e os piolhos saltavam para mim. Lembro-me da minha mãe chorar como se eu tivesse lepra. Havia sempre muitas coisas a acontecer.
Ficou muito conhecida depois de Her- man José a ter imitado no programa
“Tal Canal”. Sabia que ele ia fazer a sua caricatura? Como reagiu?
Eu não o conhecia antes disso. Estáva- mos num jantar e ele vem direito a mim.
“Ó Filipa, a menina importava-se que eu me metesse consigo num programa que
vou ter agora chamado ‘O Tal Canal’”?
Eu respondi-lhe. “Eu não. Se for engra- çado, ai filho, por amor de Deus, faz o programa, porque eu nunca vi nada mais chato do que a televisão de agora!” E foi.
Não teve nada de mal. Houve pessoas que se insurgiram que disseram que eu o devia pôr na polícia, em tribunal. Tri- bunal? Mas era tão engraçado, aquilo.
Hoje não nos vemos muitas vezes, mas se ele me encontra no Algarve, como já aconteceu algumas vezes, dá logo um grito. “Hoje vem jantar a minha casa.”
E a gente vai, nem que seja para comer quatro massas iguais, e diverte-se.
E de onde é que vem a paprica?
Dele, da cabeça dele! Nunca usei na vida!
O que eu uso, por exemplo, é o pimen- tão, moído na altura, com alho e sal, que dá um tempero óptimo!
Como é que se cria uma receita? Perde muito tempo a fazer experiências, a pensar em ingredientes?
A cabeça das pessoas que trabalham na cozinha está feita. Nós sabemos que aqui- lo não vai bem com aqueloutro. Às vezes podem fazer-se umas experiências, mas normalmente temos tudo na cabeça. Há um bocadinho disto, um bocadinho daqui- lo, o que é que eu vou fazer? Junto e nor- malmente sai bem, não tem grande mis- tério. Flui na cabeça, tal qual como um poeta que está a falar e cujas palavras vão fluindo.
E depois aponta tudo, não?
Não, fica tudo na cabeça. Por enquanto.
Por enquanto ainda tenho o número de BI e de contribuinte, telefones, está tudo na cabeça. Não sei é por quanto tempo.
Se me gastam o resto dos miolos que tenho cá dentro...
Este novo livro, é uma espécie de com- bate à crise?
É. É ensinar às pessoas que se tiverem o mínimo para comprar conseguem fazer bons pratos. Porque tenho um grande problema, quando estou a fazer as recei- tas. “Eu tenho isto e posso fazer de sobra mas há muita gente que não tem, nem tem dinheiro para comprar e isto para elas não serve”. Essa é a minha grande aflição. Dá muito trabalho. É voltar atrás, lembrar-me das receitas, tirar isto ou aquilo, porque vai encarecer. Mas é um prazer e é uma forma de ajudar.
Tem alguma receita preferida para comer e para cozinhar?
Para comer, cozido à portuguesa, é o pra- to mais rico. Para cozinhar é difícil, por- que tudo me dá prazer. Eu quando che- go ali [à cozinha] e tenho materiais à mão, adoro mexer naquilo. Mas acho que gosto menos de cozinhar peixe. Gos- to de o comer simples, cozido ou grelha- do, dá-me imenso prazer. A carne dá-me mais gosto porque posso imaginar.
Maria Filipa Carneiro de Mendonça Côrte-Real Vacondeus defende a gas- tronomia nacional com unhas e dentes. E garante que nunca usou “imeeeensa paprika”.
FILIPE CASACA
“Houve pessoas que se insurgiram, que o
[Herman José] devia pôr em tribunal.Tribunal?
Mas era tão engraçado.”
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Filipa VacondeusCozinheira adora Herman, mas diz que nunca usou paprika nos seus pratosPP. 34-36
Mais
D
Nós, os outros e o desporto
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As receitas low cost de Filipa Vacondeus
// PÁGS. 34-36