• Nenhum resultado encontrado

A multidão silenciosa : Vladimir Herzog, assassinado (São Paulo, 1975): etnografia de um evento

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A multidão silenciosa : Vladimir Herzog, assassinado (São Paulo, 1975): etnografia de um evento"

Copied!
139
0
0

Texto

(1)

i

David Creimer Reichhardt

A Multidão Silenciosa: Vladimir Herzog, Assassinado

(São Paulo, 1975). Etnografia de um Evento.

Campinas

2015

(2)
(3)

iii

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

DAVID CREIMER REICHHARDT

A Multidão Silenciosa: Vladimir Herzog, Assassinado

(São Paulo, 1975). Etnografia de um Evento.

Orientador: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para obtenção

do Título de Mestre em Antropologia Social.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno David Creimer Reichhardt e orientada pelo prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz, no dia 29/06/2015.

Campinas 2015

(4)
(5)
(6)
(7)

vii

Resumo

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975 gerou uma onda de protestos e acontecimentos que tornou o caso um símbolo na luta pelo fim da repressão política no Brasil. O cerco dos militares aos jornalistas culminou neste assassinato e ganhou destaque nos jornais. O caso levou milhares de pessoas às ruas, mas em silêncio. Herzog tinha origem judaica, e seu corpo deveria passar pelo complexo ritual judaico de sepultamento. Porém, o suicídio, versão dada pelos militares como causa da morte, é tido como um dos piores crimes no judaísmo e seu sepultamento tem um ritual particular. É objetivo desta pesquisa etnografar os eventos que cercaram estes episódios, buscando se aproximar da influência da política nos rituais religiosos, e do impacto do caso em uma comunidade traumatizada por perseguições. As opiniões sobre a postura do Rabino Henry Sobel, que optou por enfrentar o regime ao seguir o sepultamento judaico “comum”, não eram uníssonas. Para contextualizar este cenário, a pesquisa aborda o destino dos corpos de outros judeus que foram vítimas do regime antes de Herzog. A relação com os outros casos e o cuidado com o corpo humano no ritual judaico abrem caminho para um estudo sobre a tortura e a violência de estado no Brasil.

Palavras-chave: Herzog, Vladimir 1937-1975; Ditadura; Tortura; Judeus; Jornalistas – Brasil; Brasil – Política e governo.

(8)
(9)

ix

Abstract

The murder of journalist Vladimir Herzog in October 1975 generated a wave of protests and events that made the case a symbol in the fight for an end to political repression in Brazil. The siege of the government to the journalists culminated in the murder and was highlighted in the newspapers. The case led thousands of people to the streets, but in silence. Herzog had Jewish origin, and your body should go through the complex Jewish burial. But the suicide version given by the military as a cause of death, is considered one of the worst crimes in Judaism and his burial has a particular ritual. It is the aim of this research make an ethnography of this event, seeking to approach the political influence in religious rituals, and the impact of the case in a community traumatized by persecution. Views on the position of Rabbi Henry Sobel, who chose to confront the regime following the “common” Jewish burial were not in unison. To contextualize this scenario, the research addresses the fate of the bodies of other Jews who were victims of the regime before Herzog. The relationship with other cases and the care of the human body in the Jewish ritual, pave the way for a study on the torture and the state of violence in Brazil.

Key-words: Herzog, Vladimir 1937-1975; Dictatorship; Torture; Jews; Journalists – Brazil; Brazil – Politics and government;

(10)
(11)

xi

Sumário

Introdução...01

Capítulo 1 – Aproximações 1ª aproximação à missa e o assassinato de Vlado...07

Vladimir Herzog e o cerco a imprensa...24

2º aproximação à missa...36

O Medo e a Coragem I...38

Capítulo 2 – As tensões e o Medo As tensões...47

O Medo e a Coragem II...54

Chael Charles Schreier (1969)...54

Iara Iavelberg (1971)...59

Gelson Reicher (1972)...……...…64

Ana Maria Nacinovic (1972)...65

Ana Rosa Kucinski (1974)...68

Os judeus e o medo...71

O voto brasileiro na ONU...78

Capítulo 3 - Os Corpos Os corpos e o DOI-CODI...85

Conclusão...101

(12)
(13)

xiii Agradecimentos

Esta pesquisa é o resultado de um longo caminho iniciado muito antes do Mestrado no qual merecem o meu profundo agradecimento todos que de alguma maneira contribuíram das mais diferentes formas para a realização desta conquista. Agradeço sinceramente a cada um que durante esta jornada colaborou com incentivo, apoio, conselhos, e se dispôs a ouvir repetidamente sobre este trabalho em ambientes que vão de seminários a jantares de família e mesas de bar.

Agradeço ao IFCH, à UNICAMP, e a CAPES, por fornecer todo o apoio necessário ao desenvolvimento desta e de outras pesquisas anteriores.

Agradeço ao meu orientador, Omar R. Thomaz, que desde sempre apostou e incentivou minhas pesquisas sem medir esforços para que elas evoluíssem. O conhecimento acumulado na convivência destes anos certamente vai muito além do que posso expressar neste trabalho.

A minha Mãe, por todo o apoio, pelo suporte, pelos conselhos, por me fazer acreditar que esta conquista era possível desde o dia do vestibular, e por acompanhar um sonho que também é dela.

Ao meu Pai, pelo suporte, pelos conselhos, e pelo esforço para estar o mais próximo possível ignorando a distância física.

Aos meus Avós Rodolfo, Esther, Henrique e Izabel, que participaram de forma ativa e fundamental para esta pesquisa.

A minha namorada Geovana, pelo companheirismo, pela enorme paciência, e pelo incentivo permanente.

Ao meu Irmão Jonathan, por ser uma fonte de inspiração e incentivo.

A todos os colegas de Campinas, da Unicamp à República G8, meu profundo agradecimento por estes anos incríveis.

Aos amigos de São Paulo, que pacientemente toparam discutir inúmeras vezes os assuntos polêmicos desta pesquisa fosse numa mesa de bar ou durante o futebol.

À banca de Qualificação, Bela Feldman e Ronaldo Almeida pelas enormes contribuições.

(14)

xiv

À banca de Defesa, Guita e Michel, pela honrosa presença e fundamentais contribuições para esta pesquisa.

Aos colegas do NIEJ (UFRJ) e do “Fórum18”, um agradecimento especial pelo apoio e diálogo durante estes anos.

Aos professores e colegas na Argentina, em especial a Emmanuel Kahan e Laura Schenquer, cujo apoio e contribuições abriram um mundo novo dentro deste trabalho.

(15)

xv

“Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra os outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados” - Vladimir Herzog

(16)
(17)

1

Introdução

O maior protesto contra a violência da ditadura militar no Brasil, que vigorou entre os anos de 1964 a 1985, foi realizado sem um único grito ou ato violento sequer. No dia 31 de outubro de 1975, na Catedral da Sé de São Paulo – local que procurava manter-se longe da política e próximo aos direitos humanos – assistiu-se o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog. A multidão silenciosa ali reunida foi responsável pela mudança progressiva de postura dos militares em relação à repressão política e a prática de tortura no Brasil.

O assassinato cruel de uma figura pública que sempre se opôs à resistência clandestina e violenta chocou o país e uniu diversos setores da sociedade em favor de uma mesma causa: o respeito aos direitos humanos. O descontentamento da sociedade, expresso em meio aos limites de uma ditadura, foi suficiente para uma mudança de postura por parte dos militares em direção à abertura política e teve efeito fundamental na troca, poucos meses depois, daqueles que dirigiam os órgãos efetivamente no comando da repressão no Estado de São Paulo. O jornalista Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas, foi visitado dias depois por militares que lhe asseguraram que a área em São Paulo estava “pacificada” e que não havia mais com o que se preocupar.

Mesmo com o fim da ditadura militar em 1985, muitos dos crimes cometidos por agentes do Estado durante este período continuam sem uma explicação detalhada ou sem o julgamento dos responsáveis, dentre eles o caso Herzog. A lei de anistia de 1979 no Brasil não apenas promoveu o indulto daqueles crimes definidos como políticos, mas também pretendeu o esquecimento dos crimes de tortura. A fim de trazer uma explicação aos familiares das vítimas e as próprias vítimas da ditadura, a presidenta da República Dilma Rousseff estabeleceu, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade para apurar os acontecimentos e tentar encerrar este capítulo da história brasileira, ainda que esta comissão não tenha poderes para julgar os acusados por estes crimes.

Uma série de trabalhos e estudos acerca do caso Herzog já foram publicados. O propósito desta pesquisa é, contudo, dar conta de forma minuciosa de um capítulo pouco debatido sistematicamente acerca deste caso: o envolvimento da comunidade judaica e de costumes a ela associados em todos os atos e narrativas que cercaram a tortura e o assassinato de Herzog. Segundo o Rabino Henry Sobel, Herzog, que era judeu, pouco

(18)

2

frequentava as instituições comunitárias e possuía um perfil político mais universalista, como muitos outros membros desta comunidade. Sua pertença à comunidade judaica acabou por envolvê-la num mundo que, enquanto minoria, procurou evitar ao longo dos anos de chumbo: o da política.

Geralmente, atribui-se este relativo isolamento da comunidade judaica com relação aos múltiplos conflitos que acabaram por opor movimentos mais ou menos violentos à ditadura militar a sua própria história peculiar. Parte significativa da comunidade seria formada por famílias de refugiados ou sobreviventes da II Grande Guerra, caso da própria família Herzog. A chegada a um novo país dos remanescentes de uma comunidade historicamente perseguida viria marcada pela tentativa de superar traumas que supunha, em muitos casos, a afirmação de um já histórico distanciamento do mundo da política. Pelo menos enquanto comunidade1.

Se o ponto de partida deste trabalho era, tendo como evento central o assassinato de Vladimir Herzog, desvendar as relações entre distintos setores da comunidade judia paulistana e a política num momento particularmente difícil da história recente do Brasil um tema crescentemente se impôs: o comunicado oficial de que Vladimir teria cometido suicídio.

O judaísmo possui um rito de sepultamento particular, que passa por um processo de lavagem dos corpos antes do enterro, além de conferir um tratamento diferenciado aos mortos em decorrência de suicídio. Estes são enterrados em uma área especial no cemitério judaico. Frente às evidências de que o suicídio não era a causa real da morte de Herzog, seu enterro foi realizado em área nobre do cemitério israelita do Butantã. Isto representou mais do que um protesto, mas a afirmação clara de que os militares haviam passado dos limites, e que suas afirmações em torno de suicídios ou mortos em combate não apenas não convenciam como não podiam mais ser aceitas: tratar-se-iam de assassinatos após horas, dias ou meses de confinamento, tortura e execuções.

1. Ficará claro que não defendemos a existência de uma comunidade judaica em São Paulo ou no Brasil. A noção de “comunidade” é antes uma representação do que a tradução de qualquer sorte de grupo coeso. Entre os judeus de São Paulo encontraremos uma imensa diversidade, construída por referência a relação individual ou familiar com a religião, instituições ou lideranças religiosas; relação com o mundo da política; origem familiar; etc.

(19)

3

Este ritual, contudo, não foi realizado com a tranquilidade esperada para uma cerimônia de sepultamento. O ritmo da cerimônia foi acelerado pela entidade controladora do cemitério, a Chevra Kadisha2, a ponto de que a mãe do jornalista não chegou a tempo de ver o sepultamento. Ainda que o rabino Sobel – personalidade sobre quem nos deteremos mais adiante – tenha participado da dinâmica que possibilitou a realização do enterro em área nobre, ele não estava em São Paulo no momento, e nenhum outro rabino compareceu para conduzir a cerimônia, o que irritou sobremaneira familiares e amigos que consideraram que o ritual não havia sido completo nem realizado de forma adequada.

A centralidade do Caso Vladimir Herzog não é casual num estudo que pretende compreender pelo menos uma das facetas da ditadura militar no Brasil, qual seja, aquela que diz respeito a atuação de distintos setores da comunidade judaica de São Paulo. O caso abalou toda a estrutura da ditadura, e o estudo etnográfico têm o objetivo de rever de forma detalhada, trinta e oito anos depois, os detalhes deste episódio, referência na história de uma longa transição entre a ditadura militar e a ansiada redemocratização do Brasil. Esta etnografia se debruça sobre um evento específico, o Culto Ecumênico promovido na Catedral da Sé uma semana após o assassinato de Vladimir Herzog, por ser um momento singular de tensão nos diversos atores envolvidos.

Excelentes estudos e investigações acerca do caso já foram realizados por jornalistas e colegas de Vladimir Herzog, como Fernando Pacheco Jordão (2005) e Audálio Dantas (2012). O primeiro trabalho apresenta um estudo extenso sobre a dinâmica dos acontecimentos que precederam e sucederam a morte do jornalista; o segundo, tem como foco a vida do jornalista considerando seu entorno familiar, sua origem e sua vida pessoal, mas destacando a atuação do sindicato dos jornalistas no Caso Herzog entre o período ditatorial e o processo de abertura. Incorporando os dados sistematizados por estes dois trabalhos de caráter jornalístico, a pesquisa ora apresentada tem como propósito a compreensão do Caso Herzog a partir de um ponto de vista específico, recuperando uma coletividade que, de certa forma, foi protagonista ao longo do processo: a perspectiva da comunidade judaica de São Paulo bem como sua atuação.

2. Chevra Kadisha, significa “Santa Irmandade” em Hebraico. É o nome da entidade formada por voluntários, que controla o Cemitério Israelita do Butantã.

(20)

4

Com o propósito de compreender o impacto do assassinato de Vladimir Herzog junto a distintos setores da comunidade judaica paulistana, demos início a esta pesquisa. Recuperar distintas posições e iniciativas e assim perceber a forma como os judeus de São Paulo percebiam a ditadura militar norteavam nosso esforço em entrevistas e sistematização de fontes escritas dos mais diferentes tipos. Conforme a pesquisa avançava, ficava evidente a dificuldade em entender posições tão antagônicas que vão do silêncio de algumas instituições à vanguarda de outras, associadas à comunidade durante os anos da ditadura bem como na atualidade.

A construção das diferentes identidades políticas nos diversos núcleos da comunidade, acompanhada de uma breve descrição do desenvolvimento de suas principais instituições, foram fundamentais para construir o cenário político interno da comunidade no momento em que ela se torna, mais uma vez, sujeito em uma situação de denúncia contra a ditadura, ainda que tivesse um “ótimo comportamento” e reivindicasse uma boa relação frente às autoridades da repressão.3

Para além da pesquisa bibliográfica, pesquisa nos documentos do DOPS disponíveis no acervo do arquivo público do Estado de São Paulo, além de pesquisa de imprensa, foi crucial a pesquisa de campo, com a realização de conversas informais e entrevistas mais ou menos estruturadas com as pessoas que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidas com os acontecimentos. Trata-se da etnografia de um evento, que busca compreender qual foi seu impacto não apenas no âmbito político e social brasileiro, mas quais os seus sentidos para os que o viveram com maior proximidade, com destaque para a comunidade judaica de São Paulo, além do sindicato dos jornalistas, da família e dos amigos.

Os estudos sobre a relação entre os órgãos de repressão do governo e as comunidades judaicas de São Paulo foram feitos pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro (1988) no que diz respeito ao período da Era Vargas, mas não há nenhum estudo sistemático sobre esta mesma relação durante os anos de chumbo4 no Brasil.

3. O discurso imperante no ambiente da comunidade judaica de São Paulo era o de manter um

comportamento “Low Profile”, de forma a evitar “atrair o ódio da ditadura para cima da comunidade”. (Sobel, 29/5/2013)

4. Usaremos esta expressão algumas vezes ao longo do texto para designar o período que vai de 1964 a 1985, anos do regime militar no Brasil.

(21)

5

Com um Arquivo Público deficiente, e evidentes lacunas bibliográficas, conversas e entrevistas, somadas do apoio dos acervos da imprensa, se tornaram a ferramenta mais importante para a condução do projeto. Algumas importantes entrevistas foram realizadas com pessoas situadas em diferentes contextos sociais da comunidade naquele período, e ficou evidente que estávamos num bom caminho para entender os desafios políticos, bem como as contradições, de diferentes setores de uma comunidade claramente multifacetada.

É de interesse deste estudo, a partir da descrição destes fatos, discutir como uma comunidade formada, em grande parte por refugiados e seus descendentes, se inseriu num novo contexto marcadamente autoritário e de exceção. Será objeto de especial atenção suas percepções da violência política e do corpo humano tendo em vista as paradoxais relações entre política e religião numa comunidade historicamente marcada como a dos judeus da diáspora.

O estabelecimento de um diálogo com pesquisadores que se debruçaram sobre o mesmo universo temático na Argentina foi fundamental. Destaque-se que neste país vizinho, pesquisa e política caminham a passos largos e de mãos dadas no sentido de elucidar as complexas relações entre a comunidade judaica argentina e eventos tão marcantes como a violência política e a tortura, os desaparecidos e o exílio, a guerra das Malvinas e tudo o que diga respeito à ditadura militar neste país. Ali, o debate alcança imensa densidade, e foi instalada, em 2012, uma espécie de ‘’comissão da verdade’’ ( Daia, 2009) na AMIA/DAIA5 em Buenos Aires, com o propósito de apurar a atuação6 desta instituição judaica que fazia a intermediação entre parte da comunidade judaica argentina, o governo militar e o Estado de Israel.

Chegaremos, enfim, a uma reflexão acerca das percepções de corpo e da violência de estado em meio ao debate político-religioso que se desenvolveu dentro destas comunidades, possibilitando também uma discussão acerca da violência de Estado no

5. AMIA/DAIA é a entidade que centraliza e representa a maior parte das organizações judaicas argentinas.

6. A instituição é alvo de críticas por parte das famílias que tiveram seus filhos judeus presos e procuraram ajuda.

(22)

6

Brasil e na Argentina, e como esta foi percebida por uma esfera específica destas sociedades que é a comunidade judaica.

(23)

7

Capítulo 1: Aproximações

I

1ª aproximação à missa e o assassinato de Vlado

A manhã de 31 de outubro de 1975 amanheceu nublada em São Paulo. Os jornais destacavam notícias como o “monólogo a dois”, existente entre a ARENA (partido governista) e MDB (frente que reunia a oposição tolerada pela ditadura), cuja temperatura aumentava desde o fim do milagre econômico ocasionado pela crise do petróleo, e os acontecimentos que se precipitavam na Espanha com a morte eminente do ditador, o general Francisco Franco, o que representava a abertura do caminho para a reforma política, que futuramente levaria o país a uma democracia parlamentar. Era notícia o grande acordo de energia nuclear que o Brasil fechava com a Alemanha bem como, no período em que se acusava o fim do milagre econômico, a busca de apoio energético no Oriente Médio.

Os editoriais dos principais jornais traduziam ainda um certo cansaço diante de uma situação política crescentemente intolerável e, sobretudo, o cerco governamental à imprensa, na medida em que não eram poucos os jornalistas detidos no departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, um dos órgãos responsáveis diretamente pela repressão.

Em diversos jornais, chamava atenção a seção de obituário: muitos organismos de imprensa, além da família, e do próprio sindicato dos jornalistas, lotaram esta sessão nos principais jornais de São Paulo com uma única e simples mensagem: o convite para a celebração de um “culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog”, diretor jornalístico da TV Cultura assassinado dias antes nos porões do temido Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, localizado na capital paulista na rua Tutóia, Vila Mariana.

(24)

8

(25)

9

Fazer uma grande quantidade de pequenos anúncios fúnebres em seu formato mais tradicional foi a maneira encontrada pelo Estadão de realizar uma importante convocatória, dividindo de certa forma a responsabilidade do convite entre os diversos atores. A estratégia do jornal conseguia dar um bom destaque ao culto ecumênico sem transformar o evento em uma provocação política aberta. Caso o ato se transformasse num comício, os militares ameaçavam uma tragédia na Praça da Sé.

Ainda pela manhã, o presidente Ernesto Geisel, que estava em São Paulo, proibiu a menção ao culto em Rádios e TV’s, mas não foi presto o suficiente para censurar os jornais que rodaram na madrugada. O máximo que o Exército conseguiu foi inserir alguns comunicados dias antes, alertando sobre as possíveis consequências no caso do culto se tornar uma manifestação política, evitando, contudo, veicular qualquer tipo de comunicado oficial.

O texto foi distribuído com a exigência de que não houvesse referência à sua origem. Falhou, A Folha de São Paulo publicou a nota com o lembrete de que aquilo era o que “dizem as autoridades”. O Globo identificou-a como considerações dos órgãos de segurança. A TV Globo transmitiu-a a seco. (Gaspari, 2004:194)

“Observadores militares” ouvidos pel’O Estado de S. Paulo avisavam que o governo usaria “todo o rigor contra a desordem”. (Gaspari, 2004:196)

A Folha de São Paulo também deu grande destaque em sua seção de obituários, mas foi nos editoriais que este órgão de imprensa deu grande destaque ao culto que estava para acontecer. Ainda que os artigos não tivessem grandes acusações ou denúncias ao governo, procuravam através da análise política fria demonstrar a delicada situação que envolvia o culto ecumênico. O simples fato destes jornais conseguirem falar sobre o assunto discretamente, já mostrava que o impacto da morte do jornalista Vladimir Herzog fora tão grande dentro das redações que nem a censura conseguira forçar uma repressão eficaz à onda informativa.

O editorial da Folha de S. Paulo tratou diretamente da tensão vivida por todos os que pretendiam participar da cerimônia. A evidência de que, se tudo corresse tranquilamente, o culto poderia abalar moralmente a ditadura e mesmo provocar uma mudança na atuação do regime contrapunha-se o temor diante daqueles interessados em transformar a cerimônia em um protesto facilmente convertido em um banho de sangue.

(26)

10

O ato que se realizará na catedral de São Paulo, esta tarde, tem um significado político que transcende o aspecto religioso da cerimônia fúnebre, por causa dos interesses envolvidos. É elementar que o Governo, embora monolítico, se divide em esferas de influência, e que entre elas existe emulação para aumentar a cota de participação nas decisões de poder. O mecanismo é o mesmo em Washington, Paris ou Moscou, independendo de crenças e regimes.

Dentro desse raciocínio, a morte de Vladimir Herzog foi um acidente político do qual extrairão consequências não apenas as oposições – aqui compreendidos todos os grupos, o legal e os que existem á margem da lei – mas também, e principalmente, os integrantes da estrutura responsável pelo Governo.

Se a vítima fosse escolhida a dedo, dificilmente se encontraria alguém capaz de provocar mais embaraços que Vladimir. Judeu, trazendo consigo uma conotação milenar de perseguições; jornalista, o que prometia uma reação dos meios de comunicação; ex-funcionário da BBC, tornando previsível a repercussão internacional, e servidor da administração do Estado, envolvendo seus superiores. Como se isto não bastasse, a ocasião não poderia ser pior, com a presença dos participantes da conferência da Associação Interamericana de Imprensa e alguns milhares de americanos da Asta.

As autoridades do II Exército não poderiam ter o mínimo interesse no que ocorreu, e isto vale, num plano maior, para o Governo federal. Por isso a classificação de acidente político, com todas as implicações do conceito, inclusive a de que se assumiu o risco de produzi-lo.

O desgaste que a administração Geisel sofreu com o episódio, no Brasil e no exterior, será levado a débito dos órgãos de segurança de São Paulo e, por extensão, aos que advogam medidas radicais no combate aos subversivos. A perda de substância dessa área será compensada, nas engrenagens do poder, por um avanço indiretamente proporcional da linha moderada para a qual não se justificam excessos mesmo na guerra ao comunismo.

A manifestação será um campo de prova de importância fundamental para o desdobramento do processo político. Se ocorrer alteração da ordem, ficará evidente que ainda não se pode pensar em abrandamento dos controles, e a posição dos defensores do endurecimento, abalada com o episódio, tenderá a se fortalecer novamente. Se tudo transcorrer normalmente, os moderados terão marcado mais um ponto.

Concordando com essas premissas, parece lógica a conclusão de que somente a extrema-direita e os grupos esquerdistas partidários da luta armada teriam interesse no desvirtuamento do ato. Todas as tendências restantes, desde os adeptos do Governo, até os comunistas da linha que objetiva a conquista do poder por vias pacíficas, estarão empenhados em que tudo acabe bem. (Folha de S. Paulo, 31/10/1975:2)

Logo na terceira página da Folha vinha uma curta nota informando sobre o culto que aconteceria às 16:00 horas, seguida de um manifesto do sindicato que informava sobre a situação dos jornalistas presos e incomunicáveis na tutela do DOI-CODI. Vlado já havia sido professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, centro universitário que representava fortemente a luta estudantil no país e estava mobilizando os estudantes para o comparecimento em massa ao culto.

(27)

11

A polícia, por sua parte, havia dado diversos recados públicos e privados ao longo dos dias anteriores procurando intimidar a celebração do culto. “Temiam” que ele se tornasse um protesto violento ou motivo para comício enquanto os organizadores argumentavam que era apenas um culto ecumênico. Ao longo da semana que sucedeu a morte do jornalista, os alertas de que a cerimônia poderia acabar em violência por conta de “aproveitadores” era em si um fator intimidador que foi usado exaustivamente pelos militares como desincentivo ao comparecimento em massa da população.

Entre notas mais ou menos explícitas à imprensa e da imprensa, a semana que antecedeu o culto foi ainda marcada por um sem-fim de rumores e boatos, tanto mais intensos quanto mais próximos ou do regime ditatorial ou de círculos da oposição democrática se encontrava o grupo ou o indivíduo. Não eram poucas as conversas que eram entremeadas pelo “Diz que...”, início de um rumor ou boato que exime aquele que o pronuncia de explicitar a fonte. Podemos dizer que São Paulo foi marcado por boatos e rumores que, de um lado, alertavam para um possível endurecimento do regime após a repressão de que seria objeto o culto previsto na catedral da Sé, de outro afirmavam que o culto em si seria obra de maquinações da extrema esquerda que, diante da violência militar, viria legitimada a luta armada – naquela altura absolutamente enfraquecida ou mesmo inexistente após os anos do General Garrastazu Médici (1969).

Entretanto, duas grandes operações policiais foram montadas para o evento. A primeira, uma operação de bloqueio chamada de “Terço”, organizada pela Coordenação de Informações e Operações (Ciop) sob comando da secretaria de segurança pública. A operação tinha como objetivo intimidar a população e causar um trânsito insuportável através de diversos bloqueios no centro da cidade, realizados por 500 homens da polícia militar. Foram trinta bloqueios (Godoi, 2005), cinco deles nas pontes do Rio Pinheiros e avenidas que ligavam a Cidade Universitária ao centro, que possuía os outros vinte e cinco bloqueios. O secretário se segurança pública Erasmo Dias, citado em artigo de Marcelo Godoi para o Estado de S. Paulo (2005), explicava:

A idéia era esvaziar. Massa é massa: quanto maior, mais difícil de controlar (...) queríamos fechar os caminhos principais para chegar a catedral. Em vez de demorar dez minutos, ia demorar duas horas e muita gente desistiria no caminho.(apud O Estado de S. Paulo, 23/10/2005:A15)

(28)

12

Às 13:00h, as barreiras foram montadas em pontos estratégicos e a polícia parava os veículos civis simulando uma fiscalização. Examinavam documentos dos motoristas e em pouco tempo promoveram o maior congestionamento que já havia sido registrado na cidade (Dantas, 2012:310).

A operação surtiu certo efeito, o que não impediu que parte da população chegasse a pé. O reverendo Jaime Wright, um dos protagonistas da cerimônia, chegou com enorme dificuldade para o culto, que apesar do atraso, aguardou a sua chegada.

Todas as vias de acesso à avenida Washington Luís, caminho natural para atingir a 23 de maio, na direção do centro, estavam engarrafadas. Angustiado, Wright colocou-se nas mãos de Deus e do motorista do táxi, de quem aceitou a sugestão de tentar chegar à estação de metrô mais próxima, na Vila Mariana. O caminho, por ruas escondidas, parecia não ter fim. Assim como a sua angústia. A celebração da qual deveria participar transcendia o ato religioso, tinha o sentido de um libelo contra a opressão que dominava o país, que torturava e matava. (Dantas, 2012:312)

O pastor Jaime Wright levou quatro horas e meia para chegar à catedral! A cerimônia, contudo, não teve início até sua chegada. O pastor buscava ainda notícias de seu irmão, ex-deputado em Santa Catarina, desaparecido nos porões da ditadura (Jordão, 2005). A busca de quartel em quartel aproximou-o da luta pelos direitos humanos da qual fazia parte o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

Junto a Dom Paulo e ao rabino Henry Sobel, Jaime Wright participaria do projeto “Brasil: nunca mais”, que reuniu um grupo que, na clandestinidade, dedicou-se a reunir julgamentos e testemunhos oficiais (reconhecidos pelo Superior Tribunal Militar) sobre a prática da tortura no Brasil.

O arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns era referência na defesa dos direitos humanos. O arcebispo foi um dos responsáveis pela criação, em 1972, da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e recebia, diariamente, familiares e amigos de presos e desaparecidos em busca de informações. Não bastasse os pesadelos dos desaparecimentos, os presos muitas vezes passavam meses incomunicáveis.

No livro do projeto “Brasil: Nunca Mais”, o arcebispo relata alguns exemplos do tipo de pedidos por informações que recebia da população:

(29)

13

A primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: É a aliança de meu marido desaparecido há dez dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. Padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que continue a procurá-lo? (Arquidiocese de São Paulo, 1985:11)

Simultaneamente, militares desesperados também o procuravam. Na obra, o arcebispo relata momentos em que se surpreendeu não apenas com a tortura, mas com seu efeito nos torturadores.

Instados a abandonar esta terrível ocupação, respondiam: “Não dá. O senhor sabe por quê! (...)” um deles, meses após, me esperava ao final da missa, sozinho, na igreja da Aclimação. Abordou-me, num grito de desespero: “Tem perdão para mim? ” (Arquidiocese de São Paulo, 1985:13).

Dom Paulo acompanhou os acontecimentos do caso Herzog próximo aos familiares e aos jornalistas. Após um turbulento enterro no cemitério do Butantã, a ideia de realizar o culto havia surgido junto com Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas.

Além do Arcebispo e de Jaime Wright, preparavam-se para subir ao altar da cerimônia dois rabinos e um cantor lírico judaico. O renomado cantor Paul Novak acompanhava os rabinos Henry Sobel e Marcelo Ritner. Os três eram integrantes do corpo religioso da Congregação Israelita Paulista (CIP), importante instituição judaica na cidade de São Paulo. O rabino Sobel chegara à cidade apenas em 1974, após suaformação na escola rabínica norte-americana de Abraham Joshua Heschel, referência importante responsável pela “exportação” de rabinos estadunidenses para a América Latina. Os rabinos originários desta escola apresentavam um judaísmo conservador, mas não ortodoxo, e, especialmente em países afetados por ditaduras militares ou regimes de exceção, revelaram grande empenho na defesa dos direitos humanos. Dentre seus ensinamentos, Heschel dizia aos seus alunos que “ninguém podia assumir o monopólio da verdade, seja política, ideológica ou religiosa. ” (Rosemberg, 2010:22)

Os rabinos Kreiman no chile e Marshall Meyers na Argentina destacaram-se na luta contra a tortura e na busca por mortos e desaparecidos. No Brasil, Sobel, rabino chefe da Chevra Kadisha, instituição responsável pela administração do cemitério israelita do Butantã, autorizou que Vladimir Herzog fosse enterrado em uma área nobre

(30)

14

no cemitério israelita, e não naquela reservada aos suicidas. O rito judaico considera a vida o bem mais importante do ser humano e, até recentemente, era costume generalizado reservar uma área do cemitério judeu aos que atentam contra ela. No entanto, a iniciativa de Sobel era mais um sintoma de que a versão oficial do exército segundo a qual Herzog havia cometido suicídio não convencia uma sociedade cada vez mais farta do arbítrio violento promovido pelos militares.

O rabino Sobel havia assumido a responsabilidade religiosa (e consequentemente política) pelo feito. Enterrar Vlado em uma área nobre era uma ação arriscada: desafiava a versão oficial da ditadura e poderia expor uma comunidade traumatizada por perseguições. Sua iniciativa foi ainda objeto de comentários acusatórios sobre sua condição de estrangeiro – “só fez isso por ser norte-americano” - destacando cautela militar em enviar para os seus porões cidadãos de outras nacionalidades.7 O rabino

compareceu à missa, o que acabou alavancando sua figura como principal representante dos judeus em São Paulo. Vlado era judeu e sua família refugiada do nazismo.

O último nome que seria protagonista no culto ecumênico, ainda que não fosse um representante religioso, foi o do presidente do sindicato dos jornalistas Audálio Dantas. O sindicato não protestara apenas pela morte de Herzog. A situação geral era tensa, pois sabiam que estavam no meio de uma séria disputa entre MDB e ARENA. Os jornais era um dos principais instrumentos de manipulação e propaganda do regime. No próprio dia 31 de outubro, logo abaixo da informação sobre o culto ecumênico, a Folha de S. Paulo publicou uma nota do sindicato cobrando explicações sobre a situação dos jornalistas que seguiam presos. Após seu encaminhamento ao DOI-CODI, as notícias sobre o preso – o porquê de sua prisão, a possível defesa, suas condições de saúde etc. - cessavam; restava um maior ou menor tempo de angústia dos entes queridos, antes que o preso fosse libertado, a família fosse chamada para recolher o corpo, ou ele fosse dado como desaparecido. A questão da incomunicabilidade, somada às torturas e

7. Trata-se de uma afirmação que deve ser matizada. Se é certo a cautela dos ditadores latino-americanos com relação a cidadãos estrangeiros, anunciando assim temores de possíveis escândalos internacionais, não é menos verdade que estrangeiros e descendentes foram tidos como particularmente suspeitos, dado o próprio caráter nacionalista e mesmo xenófobo destas ditaduras. No Brasil não foi diferente e podemos dizer, sem medo, que um passaporte estrangeiro paradoxalmente protegia e expunha.

(31)

15

desaparecimentos, era suficiente para deixar em desespero familiares e amigos de qualquer preso que fosse transferido para as celas do DOI-CODI.

Audálio Dantas enquanto presidente do sindicato esteve à frente da movimentação dos jornalistas acerca do caso. A morte de Herzog supôs um inusitado nível de tensão dentro das redações e fez com que muitos jornalistas se sentissem na obrigação de tentar furar, ainda que de forma discreta, o bloqueio da censura e denunciar as violações sistemáticas de direitos humanos cometidas pelos distintos corpos militares. Apesar de todas as dificuldades impostas pela “Operação Terço”, oito mil pessoas conseguiram se aproximar da catedral da Sé. Cinco das trinta barreiras se encontravam na marginal Pinheiros com um objetivo importante: barrar a presença maciça de estudantes da USP que há dias convocavam e organizavam a ida ao culto. O sindicato orientava que a população caminhasse para o centro em pequenos grupos, em silêncio, evitando um caráter de protesto explícito e prevenindo, assim, qualquer incidente violento no meio do caminho.

Poucas horas antes do culto, chegou ao sindicato uma notícia tranquilizadora: os estudantes haviam decidido seguir estas orientações e comparecer em massa, mas discretamente.

Essa decisão, tomada depois de duas horas de discussão, incluía algumas regras de segurança: dirigir-se à catedral em grupos de, no máximo, cinco pessoas; não fazer nenhuma manifestação paralela (cartazes, faixas ou passeata); não levar manifestos e abandonar os que na igreja eventualmente fossem distribuídos e não permanecer nas imediações da catedral após o ofício. ” (Sydow e Ferri apud. Dantas, 2014:300).

Desde o sepultamento de Vlado, trinta mil estudantes de diversas universidades entraram em greve. Os líderes estudantis constituíam parte daqueles que se organizavam para mobilizar estudantes e a população em geral para o culto ecumênico. Foram distribuídos panfletos por toda parte com a nota do sindicato que denunciava a tortura e as prisões. A Folha de S. Paulo anunciava que os estudantes “...organizaram-se para comparecer aos teatros da cidade a fim de convidar a classe teatral para o culto. ” (Folha de S. Paulo, 31/10/1975:3)

(32)

16

Na saída da Cidade Universitária, o bloqueio policial era ainda mais rigoroso, e além do pedido da documentação pessoal, cada veículo era sujeito a uma minuciosa revista na busca de “material subversivo”. (Dantas, 2012; Godoi, 2014)

No campo político a tensão em torno da morte de Herzog chegava aos altos escalões do governo. As ações do DOI-CODI que resultavam em tragédias como a de Vlado caíam na conta dos mais altos generais, que tentavam se justificar publicamente prometendo instaurar um Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar o ocorrido, com o propósito evidente de responsabilizar os radicais do II Exército, que ameaçavam seu governo com estas ações. A oposição ultra-radical de direita realizada por setores militares era quem bancava politicamente o DOI-CODI e suas operações. Geisel, apesar de ser um presidente do ARENA, entendeu o acontecimento como um ataque a autoridade de seu governo. Um IPM que acusasse os envolvidos não só colocaria em cheque o trabalho do DOI-CODI, como representava, principalmente, uma afronta a estes setores radicais do exército, aumentando a tensão já existente na cúpula civil e militar do regime. A presença do presidente Geisel em São Paulo, planejada anteriormente, foi, em função do culto ecumênico, estendida por mais um dia, sendo adiado assim seu retorno a Brasília. Com Geisel na cidade, a tensão gerada entre MDB e ARENA deveria ser aliviada pois se supunha uma firme atuação do presidente no sentido de enquadrar a ultradireita. De fato, o presidente aproveitou sua estadia na capital paulista para exigir a instauração do IPM, enfurecendo a ala radical que tanto se orgulhava do trabalho realizado nos porões. A permanência do presidente parecia ser, sobretudo, a afirmação de sua autoridade sobre uma ultradireita crescentemente “rebelde”. Tantos anos de autonomia para o DOI-CODI deu a determinados setores internos ao próprio regime a confiança e a independência de que precisavam para esboçar um golpe dentro do golpe.

A população que enfrentou o medo e as dificuldades para passar pelos bloqueios montados pela operação “Terço”, não estava sozinha nos arredores da catedral. 172 agentes do DOPS chegavam à praça em torno das 13:00 horas para montar a “Operação Gutenberg” que estava sob o comando do tristemente célebre delegado Sérgio Paranhos Fleury, nome conhecido nos porões da ditadura. O jornalista Marcelo Godoi teve acesso aos documentos da operação, até 2005 tidos como perdidos.

(33)

17

Eram 13 horas do dia 31 de outubro de 1975 quando os primeiros dos 172 agentes do DOPS chegaram à praça da Sé. Eram 10 homens que fariam a chamada “observação indireta”. No jargão da repressão, aquilo significava usar binóculos, máquinas fotográficas e filmadora para acompanhar a movimentação. Os últimos a aparecer por ali seriam os dois delegados e os dez investigadores que receberam missão de entrar na igreja e se infiltrar na multidão. Eram os “agentes especiais. ” (O Estado de S. Paulo, 23/10/2005: 15)

Estes “agentes especiais” vestiam discretas fitas vermelhas no braço como se em algum momento pudessem ser confundidos com comunistas infiltrados. O registro em filme e fotográfico começou logo cedo, e pretendia identificar principalmente lideranças que estivessem presentes. Estes registros já eram uma prática conhecida do DOPS e comumente presente até em cerimônias de enterro e luto.

A cerimônia marcada para as 16:00 horas interferiu em toda a rotina da cidade. Aos rumores que se multiplicavam some-se os bloqueios constituindo um quadro de tensão crescente entre aqueles que pretendiam chegar à região da Sé. Logo nos primeiros minutos após as 16:00 o pastor Jaime Wright ainda não havia chegado, e um padre veio a público perguntar se os estudantes de biologia da USP que haviam se candidatado para o coral já estavam na Igreja. Ninguém se manifestou, pois eles haviam sido barrados nas barreiras policiais (Jordão, 2005:89). Para alívio dos jornalistas, as assembleias estudantis da noite anterior ao ato definiram que a participação dos estudantes seria maciça, mas silenciosa. Sem faixas, protestos ou provocações, seguiriam a recomendação de Audálio Dantas para seguir em pequenos grupos e em silêncio.

O pastor chegou depois de meia hora de espera e a cerimônia teve, então, início. O silêncio na catedral era total. Entre o altar e a abside, encontrava-se o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, o arcebispo de Recife e Olinda Dom Helder Câmara, recém-chegado de Londres onde recebera homenagens por sua luta pelos direitos humanos, o pastor Jaime Wright, os rabinos Henri Sobel e Marcelo Ritner, e o cantor lírico judeu Paul Novak, todos acompanhados por mais de duas dezenas de sacerdotes católicos.

Na nave, oito mil pessoas que enfrentaram o medo e as barreiras policiais. Dentre elas, artistas, estudantes, intelectuais, jornalistas, políticos e simplesmente famílias, com suas crianças, que se solidarizaram com o que estava acontecendo. Estava

(34)

18

claro que aquela não era a congregação de uma família em particular, tampouco a manifestação política de um grupo específico ou cerimônia de uma religião em detrimento de outra: o culto ecumênico parecia ser potencialmente de todos os que estavam efetivamente fartos do arbítrio, da violência e do medo.

A transcendência do ambiente não evitou, contudo, a clara percepção da existência de infiltrados de organizações como o DOPS e o DOI-CODI ou mesmo de indivíduos ligados a setores da ultradireita, com o propósito claro não só de vigiar, mas de, efetivamente, fichar os presentes como possíveis subversivos.

A decisão dos estudantes da USP de não se manifestar e nem panfletar na cerimônia foi fundamental para a manutenção do caráter ecumênico do ato. Atitudes na direção contrária poderiam ser percebidas como provocações e seriam fatais, pois dariam a escusa esperada por setores ultras dos corpos militares, particularmente do exército, para reagir violentamente. Se era evidente o caráter político daquele encontro, havia que evitar transformá-lo numa manifestação explicitamente política. O silêncio desempenhava um papel central.

Mas não só: diante dos rumores que tomaram conta dos círculos que pretendiam se fazer presentes na semana anterior ao culto, um foi particularmente marcante. Não foram poucos os que se lembram de, ainda crianças, terem acudido à catedral com seus pais e familiares. Ora, por que levar crianças a uma cerimônia que podia devir em violência? “Diz que...” mulheres e crianças foram incentivadas a se fazerem presentes com o propósito de coibir uma possível reação violenta do exército.

Enquanto todos aguardavam silenciosamente o início da cerimônia, um padre orientado por Dom Paulo Evaristo Arns deu alguns avisos à multidão silenciosa, entre elas a que advertia o atraso do reverendo Jaime Wright e aquela que quebrou o silêncio com as palavras: “Nas minhas dores, ó senhor, fica a meu lado. ” (Jordão, 2005:86) e trouxe um comunicado sobre estudantes da USP:

Os estudantes da USP, reunidos em assembleia, resolveram marcar sua presença aqui nesta Casa, mas pediram que se explicasse que não elaboraram nenhum documento para ser distribuído neste dia. Portanto, se algum documento circular na Catedral, ele não será da responsabilidade dos estudantes da USP. (...) (Jordão, 2005: 86)

(35)

19

Em seu depoimento ao documentário “Vlado, 30 Anos”8 Dom Paulo lembra

o que sentiu:

Quando entrei na Catedral e vi tanta gente, e gente tão comovida, chorando, a frente de uma pessoa querida na cidade, e estimada na cidade, quando vi isso me enchi de esperança em favor do povo brasileiro.

Na sequência, veio a frente D. Paulo Evaristo Arns, acompanhado dos sacerdotes católicos, pastores e rabinos que ocupavam o altar e a abside:

Esta é a casa de Deus e de todos os homens que aceitam o caminho da Justiça e da Verdade. (...) Purifiquemos o nosso coração de todo o ódio. Procuremos ser irmãos que rejeitam toda espécie de terrorismo, venha de onde vier. Observemos um momento de silêncio, para se criar um clima de oração e de solidariedade entre os homens e por aqueles que Deus amou e ama, neste momento de dor. (Jordão, 2005:86)

Depois das palavras do Arcebispo, tomaram a frente os rabinos Henri Sobel e Marcelo Ritner e o cantor lírico Paul Novak. Recitaram juntos a reza El Malerachamim, tradicional reza judaica pela elevação das almas dos falecidos. A escolha deste rito judaico em homenagem a Vladimir Herzog colocava em xeque, mais uma vez, a versão oficial de suicídio. Repetia-se na Catedral da Sé a contestação religiosa que marcara o enterramento judaico, pois o judaísmo tem cerimônias específicas para os suicidas. Assim, cada vez que um rabino rezava pela alma de Herzog tratava-se do reconhecimento religioso de seu assassinato.

Após a reza, o rabino Henry Sobel discursou para a multidão silenciosa com seu forte e carregado sotaque norte-americano:

Sou um rabino. Estou aqui, participando deste culto ecumênico, porque um judeu morreu. Um judeu que fugiu da perseguição nazista. Um judeu que imigrou para o Brasil e aqui se educou, se formou, e se integrou plenamente no mundo da filosofia, das artes, do jornalismo e da televisão. Para Vladimir Herzog, ser judeu significa ser brasileiro.

Sou um rabino. Estou aqui porque um judeu morreu. Porém, mais importante ainda, estou aqui nesta catedral porque um homem morreu. E como rabino, não defendo apenas os direitos dos judeus, mas sim os direitos fundamentais de todos os seres humanos, de todos os credos, de todas as raças, vivam eles no Brasil ou em qualquer outro país do mundo. E Vladimir Herzog era um homem: um homem de visão, profundidade e dedicação.

(36)

20

Conta-se uma história sobre o rabino Elimelech. Quando sentiu que a morte se aproximava, o rabino chamou seus quatro discípulos e lhes pôs a mão na testa, dizendo que a cada um deixaria uma parte de seu ser: a um deu a luz dos seus olhos; a outro, a bondade do seu coração; ao terceiro, a inteligência de sua mente; e ao último, o poder de sua voz.

Meus amigos: é porque Vlado colocou suas mãos em todos nós, que podemos ainda – apesar da tristeza, da dor, e da revolta – ter esperanças. Pois ele nos deixou uma luz digna de ser recordada, e uma voz cuja sabedoria nem mesmo a morte pode silenciar. (Sobel, 2014:41)

Com o fim do discurso de Sobel, Paul Novak veio a frente para recitar o

Kadish, tradicional reza judaica para os enlutados. A “Oração dos mortos”, como é

conhecida, em nenhum momento menciona o falecido. A oração é uma reafirmação do reconhecimento da onipotência de Deus, e, portanto, acima de tudo, um ato de Fé. Este ato de fé de quem reza, acompanhado e repetido pela congregação presente, traz méritos para a alma do falecido. Ao final da oração, Dom Paulo pediu à multidão que com ele repetisse três vezes a palavra Shalom, que significa paz em Hebraico.

A palavra, repetida em coro, foi ouvida em toda a catedral e alcançou as pessoas que ocupavam as escadarias e depois as que se aglomeravam na praça, e que repetiram: Shalom, Shalom, Shalom! (Dantas, 2012:315)

O segundo a se pronunciar, o pastor Jaime Wright, trouxe uma fala “sóbria e quase toda do Livro dos Salmos” (Jordão, 2005:87).

O senhor é meu pastor, e nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; Refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça e por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, por quê tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre. (Salmo 23, Salmos de David)

O reverendo estava acompanhado da multidão que em coro repetia: E as nossas angústias, Senhor, estão todas na vossa presença.

Em seguida, falou diretamente de Vlado apenas neste único momento (Jordão, 2005:88): Quando cai a noite, o pastor não vai para casa e jamais abandona suas ovelhas. Quando a noite vem, o perigo é maior. É durante a noite que elas mais precisam dele. Quando as sombras da noite caírem, o bom pastor nos levará para casa.

(37)

21

E o bom Pastor já investiu demais em cada um de nós, inclusive em Vladimir Herzog, para nos abandonar agora.

Segundo Fernando Pacheco Jordão, neste momento a cerimônia chegava ao seu ponto mais forte. Dom Paulo era o terceiro a falar, e uma vez que estava à frente, decidiu aguardar que a imprensa terminasse seu registro. Pediu-lhes para que apagassem as luzes, e não estourassem mais flashes. O tom de voz se mostrou mais firme e explícito: Deus é o dono da vida. Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor em favor dos demais homens. Desde as primeiras páginas da Bíblia Sagrada até a última, Deus faz questão de comunicar constantemente aos homens que é maldito quem mancha suas mãos com sangue de seu irmão. Nem as feras do Apocalipse hão de cantar vitória diante de um Deus que confiou aos homens sua própria obra de amor. A liberdade – repito – a liberdade humana nos foi confiada como tarefa fundamental, para preservarmos, todos juntos, a vida do nosso irmão, pela qual somos responsáveis tanto individual como coletivamente.

O Senhor da História não aceita a violência em fase alguma, como solução de conflitos. (...) E no meio do Decálogo aparece a ordem, como imperativo inarredável, princípio universal, indiscutível: Não Matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus.

(...) justiça que possa consubstanciar-se nas leis, mas que tenha sua força no interior de cada homem, disposto a dizer a si mesmo e aos outros: basta! É hora de se unirem os que ainda querem olhar para os olhos do irmão e ainda querem ser dignos da luz que desvenda a falsidade. A esperança reside na solidariedade. Aquela solidariedade que é capaz de sacrificar os egoísmos individuais e grupais no altar de uma Pátria, no altar de um Estado, no altar de uma cidade.

Neste momento, o Deus da esperança nos conclama para a solidariedade e para a luta pacífica, mas persistente e corajosa, em favor de uma geração que terá como símbolos os filhos de Vladimir Herzog, sua esposa e sua mãe.” (Dantas, 2012:318; Jordão, 2005:87)

O discurso de D. Paulo Evaristo Arns apontava diretamente na direção do assassinato. A citação do mandamento “Não Matarás” acusava publicamente os militares pelo assassinato de Herzog. Porém, Dom Paulo evocou principalmente a esperança, através de uma luta persistente, mas fundamentalmente pacífica. Ele sabia que se, de alguma forma, seus discursos conduzissem a uma reação violenta, ele estaria fazendo exatamente o jogo que os militares da ultradireita desejavam. Todos sabiam que a ordem dada aos policiais que cercavam não só a catedral, mas todo o centro, era para que atirassem ao primeiro grito.

(38)

22

Os fotógrafos, cinegrafistas, cães, peruas da polícia e fuzis que cercavam o templo mostravam a todos que os militares presentes estavam preparados para uma verdadeira guerraao redor da catedral.

Após a fala de Dom Paulo, veio a vez de Audálio Dantas, representante do sindicato dos jornalistas. O sindicato havia articulado o culto junto das lideranças religiosas, e passava por um momento especialmente tenso. Além da morte de Vlado, aproximadamente outros dez jornalistas seguiam presos. Em seu livro As duas guerras de Vlado (2012), Audálio relata o que sentiu quando se aproximou da multidão, logo após o discurso de Dom Paulo:

De onde me encontrava, no altar, vi a multidão que se comprimia, em silêncio; tentei conter a emoção. Teria, no fim, de falar em nome dos jornalistas. Temi que não conseguisse dizer uma palavra sequer. Ruminei pensamentos; revi, como se fossem cenas embaralhadas de um filme, os dias de angústia vividos desde o início da onda de prisões, até o sábado em que Vlado fora morto, e os dias que se sucederam, desde a denúncia do assassinato até a mobilização dos jornalistas e a resposta da sociedade civil. Esses dias tensos e intensos pareciam uma eternidade.

A multidão silenciosa que ocupava a catedral e transbordava para a praça era uma resposta a violência. Era a primeira manifestação de massa desde a imposição do AI-5. Era uma denúncia. Aquela multidão simbolizava, naquele momento, a consciência nacional, que dizia basta à ditadura. Seria esse o discurso, se eu conseguisse arrancar as palavras que estavam presas em minha garganta. Mas o discurso se resumiu, em palavras quebradas pela emoção, a um apelo para que todos deixassem a catedral em silêncio e buscassem, nas ruas, os caminhos da paz. (Dantas, 2012:318)

O Discurso de Audálio dizia:

Em nome de Deus homem, nós pedimos paz. Nós desejamos a paz. A paz, que é uma necessidade do Homem. Nós pedimos em nome da consciência do Homem. Neste momento de dor, para todos nós, não só jornalistas, mas todos os nossos irmãos, de todas as crenças religiosas aqui presentes. Eu quero fazer um apelo, uma última homenagem, neste momento de dor para todos nós. Ao nosso irmão morto, ao homem morto, ao deus homem morto, ao deus que está em todos os homens, silêncio. Saiamos daqui deste templo sob o qual se reúnem todas as crenças, saiamos em silêncio, saiamos e aguardemos o caminho da paz.9

Após a fala de Audálio, Dom Paulo finalizou:

Vamos sair em silêncio, em pequenos grupos, de cinco ou dez pessoas que se conheçam. Ninguém grite, ninguém ouça quem queira gritar. (Dantas, 2012:318).

(39)

23

Com o mesmo silêncio, transcendente de tensão, emoção e respeito, a multidão que se apertava na catedral começou a se retirar. Cada um que saía da catedral tinha para si uma câmera ou filmadora do DOPS apontada para o rosto. Devagar e com calma, todos deixaram o culto sem dar o pretexto tão aguardado pelos militares. Se por um lado a multidão parecia consciente do risco que corria se abria mão do silêncio – era evidente que não seria tolerada nenhuma provocação contra o regime – sua dispersão era marcada pela percepção de que, naquele contexto, o silêncio era sua arma mais eficaz.

O presidente Geisel aguardava em sua sala oficial no aeroporto de Congonhas o fim da cerimônia. Com a notícia de que tudo acabara em paz, embarcou para Brasília tranquilo e “convicto de que havia acabado de vencer uma batalha”. (Dantas, 2012:320). A história contradiz claramente a convicção do general. O culto ecumênico é hoje percebido claramente como o início do fim da triste era dos generais.

*

A proposta inicial desta pesquisa era a de enfrentar as relações entre aquelas instituições e pessoas que encarnaram a ditadura militar no Brasil e a comunidade judaica, cujo maior centro neste país era a cidade de São Paulo. A inspiração vinha, certamente, do debate em curso na Argentina, onde não foram poucos os autores que destacaram um caráter eminentemente antissemita da junta militar que governou este país entre 1976 e 1983 (Senkman, 1989; Lotersztajn, 2008) e mesmo iniciativas de caráter claramente antissemita na Guerra das Malvinas (Dobry, 2012).

Na medida em que avançava na pesquisa, entre fontes primárias, secundárias, entrevistas e conversas informais, a inexistência de traços, debates ou iniciativas antissemitas por parte dos militares contrapunha-se ao impacto que determinados eventos teriam tido junto às comunidades judias no Brasil, em função da prisão ou morte de alguns dos seus membros que ou haviam se envolvido com a luta armada contra a ditadura militar, ou passaram a engrossar parte daqueles grupos que faziam críticas à ditadura dentro do que poder-se-ia definir de uma certa legalidade. Neste contexto, a prisão de Vladimir Herzog, seu assassinato, o enterro e o culto ecumênico a ele dedicado ganharam

(40)

24

força para compreender, ainda que fragmentariamente, as relações que setores da coletividade judia tinham com a política, com o Estado e com a repressão, mas mesmo uma das facetas da oposição à ditadura e dos meandros que promoveram a democratização no Brasil.

Um grande volume de fatos novos apareceu nos últimos anos, e o debate sobre os anos da ditadura ganhou imenso espaço na cena pública brasileira com as atividades da Comissão Nacional da Verdade10. Para além do material levantado pela CNV, várias comissões locais, regionais, institucionais ou voltadas para grupos específicos foram criadas. Some-se livros publicados, depoimentos, memórias, artigos de imprensa, documentários e chegamos a um panorama inédito no que diz respeito a um adensamento sobre a história da repressão no Brasil. Neste contexto, o caso de Vladimir Herzog ganhou uma centralidade peculiar, quer no que diz respeito a seu impacto junto a sociedade brasileira, quer junto à comunidade judia brasileira, que se via às voltas com suas próprias vítimas.

II

Vladimir Herzog e o cerco a imprensa

A família de Herzog, originária da Croácia, então Reino da Iugoslávia, sobrevive clandestinamente na Itália à catástrofe que se abate sobre boa parte da Europa e muito particularmente sobre os judeus entre 1933, o início da Segunda Grande Guerra e seu fim em 1945. A obra de Audálio Dantas, “As duas guerras de Herzog” (2012), traz detalhes sobre a infância de Vlado antes da viagem para São Paulo em 1946, onde chega como refugiado. Dantas descreve a vida da família Herzog e os tumultuados anos marcados pelo antissemitismo, pela guerra e por fugas e deslocamentos sucessivos que terminam no Brasil.

10. A Comissão Nacional da Verdade foi instituída pela lei nº 12.528 de 2011 e foi oficialmente instalada em maio do ano seguinte. Seu propósito era o de investigar as violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988. Sua atuação gerou debates, polêmicas e expectativas e em dezembro de 2014 foi entregue um minucioso relatório à Presidente Dilma Roussef. (Comissão Nacional da Verdade, 2014).

(41)

25

Em 1946, o Brasil era uma promessa de liberdade. Confiantes nessa promessa, Zora e Giga fizeram a sua escolha. A ideia de um pais longínquo, a milhares de quilômetros da Europa destroçada pela guerra confortava-os. No canto do mundo escolhido por uma nova vida, não mais precisariam esconder seus nomes verdadeiros, escritos nos passaportes fornecidos pela Cruz Vermelha. (Dantas, 2012:35)

O estilo de vida escolhido pela família Herzog no Brasil foi o mesmo de muitas outras famílias judias refugiadas de guerra: esquecer os problemas vividos por causa do judaísmo na Europa e construir uma vida que fosse a mais próxima possível da cultura e da população local. Foi esta a opção de inúmeras famílias judias, que viram na integração total à sociedade brasileira um sonho a ser realizado.

Este mesmo perfil será encontrado em todas as vítimas judias que morreram sob custódia da ditadura. Destaque-se que são não apenas os que perderam suas vidas, mas também seus familiares e aqueles que foram torturados; uns e outros são portadores de sequelas permanentes. Muitos faleceram posteriormente por conta destas sequelas, e tornam difícil sua identificação neste momento. Aqueles que morreram na mão dos militares possuem fichas e material organizado em Acervos Públicos e ONG’s como a “Tortura Nunca Mais” por exemplo.

Das vítimas judias em São Paulo, das quais trataremos melhor mais a frente, Chael Charles Schreier, Iara Iavelberg, Gelson Reicher, Ana Maria Nacinovic, Ana Rosa Kucinski e o próprio Vlado Herzog têm origem em famílias refugiadas, que viram integração completa a melhor opção para uma vida em paz no Brasil, o que significou um crescimento mais distante (mas não inexistente) dos centros comunitários judaicos e mais próximo às escolas e ambientes comuns a qualquer jovem paulistano não-judeu da época.

As organizações e partidos de esquerda após o golpe de 1964 procuraram continuar suas atividades com maior ou menor grau de intensidade na clandestinidade, sendo que alguns resistiram mesmo com dezenas de seus militantes sendo sequestrados, torturados e mortos pelo aparelho repressivo. O repúdio à opção armada por parte de algumas organizações como o Partido Comunista Brasileiro, não foi suficiente para livrar seus integrantes das acusações de subversão. Concomitantemente, aqueles que não foram poucos os grupos que, discordando das diretrizes do PCB, se lançaram à luta armada, como por exemplo a ALN liderada por Carlos Marighella.

(42)

26

A luta armada no Brasil já estava liquidada após os primeiros anos da década de 1970 (Gaspari, 2012). Com as guerrilhas sob controle e uma população assustada com a repressão, crescia a pressão civil em torno da abertura ‘’lenta e gradual’’ prometida pelo presidente Ernesto Geisel (1974 – 1978), sucessor do mandatário responsável pelo período de maior violência por parte do Estado, Garrastazu Médici (1969 – 1974).

Na verdade, a distensão ’lenta, gradual e segura’ iniciada pelo sucessor de Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, logo depois de assumir a presidência da República, fora o caminho encontrado pelos militares, que se viam numa encruzilhada e buscavam uma saída para o regime, que começava a dar sinais de que não poderia ir muito longe mantendo-se a ferro e fogo. A abertura não era, portanto, mera concessão. E foi graças a este processo que os militares conseguiram permanecer no poder durante mais 11 longos anos. (Dantas, 2012:62)

Com a guerra contra as guerrilhas ganha, divergências no próprio campo dos promotores e aliados da ditadura começaram a ganhar espaço.

Um verdadeiro furacão se formava em torno das disputas entre as diferentes linhas do exército. A abertura prometida por Geisel transforma-se numa demanda da oposição tolerada, o MDB, a qual fazia coro o governador de São Paulo Paulo Egydio Martins (1975 - 1979), escolhido a dedo pelo presidente Geisel. Na contramão dos sinais que apontavam uma possível abertura, boa parte das altas hierarquias militares fazia “vista grossa” à tortura, confirmada nos autos (secretos) do Superior Tribunal Militar (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Os generais sabiam que a tortura escancarada era um tiro no pé da ditadura. Um regime que defendia a moral e os bons costumes se preocupava em transformar qualquer execução em “um grande tiroteio”, como no caso de Iara Iavelberg e Chael Charles Schreier, ou um “acidente de carro” como no caso de Gelson Reicher, ou mesmo “suicídio”, versão que seria usada pelos militares no caso Herzog.

A preocupação em não oficializar a tortura e a violência do regime militar, ainda que em muitas ocasiões não redundasse na sua negação, dava-se no sentido de prevenir a formação das provas contra as versões criadas pelos médicos legistas, que assinavam laudos de óbito sem sequer olhar os corpos.

Geisel afirmava publicamente ser contra as torturas, o que certamente criava algum receio entre os militares no comando do DOI-CODI. O “porão” acreditava que o seu trabalho era essencial à manutenção da ordem, mas temia ser abandonado por seus

Referências

Documentos relacionados

Note on the occurrence of the crebeater seal, Lobodon carcinophagus (Hombron & Jacquinot, 1842) (Mammalia: Pinnipedia), in Rio de Janeiro State, Brazil.. On May 12, 2003,

pelo capricho", e "com os tres poderes bem divididos." Para redigir o projecto da magna carta, ele-- geu-se uma comissão composta de sete membros: Antonio Carlos Ribeiro

Maior dispersão entre as lojas Mais lançamentos Mais estoque Mais vendas Média Vendas/mês: 27 Estoque médio: 572 Média Vendas/mês : 45 Estoque médio: 1.219 Média Vendas/mês

Fonte do dados primários: Manual de projeto geométrico de rodovias rurais (BRASIL, 1999, p.. Com os dados obtidos através da Figura 4, foi possível dar inicio ao desenho do traçado.

Nas últimas décadas, os estudos sobre a fortificação alimentar com ferro no país têm sido conduzidos na tentativa de encontrar uma maneira viável para controle da anemia

Após 90 dias da semeadura (primeiro subcultivo), protocormos com um par de folíolos foram selecionadas visualmente, mantendo um padrão de altura de cerca de dois milímetros

Os dados contínuos ou de contagem geralmente podem ser convertidos para dados de classificação ou hierarquização, mas não na direção inversa. Por exemplo, as medições

A união dos nossos painéis origina uma tração perfeita, a qual permite a deslocação de veículos com as cargas mais pesadas sobre os nossos painéis, mesmo que estejam colocados