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As Cores Negras da Lama : Etnoecologia Abrangente na Comunidade Quilombola Salamina Putumuju, Recôncavo da Bahia

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Academic year: 2021

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VIVIANE SOUZA MARTINS

As Cores Negras da Lama:

Etnoecologia Abrangente na Comunidade Quilombola Salamina Putumuju, Recôncavo da Bahia

Campinas 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

VIVIANE SOUZA MARTINS

As Cores Negras da Lama:

Etnoecologia Abrangente na Comunidade Quilombola Salamina Putumuju, Recôncavo da Bahia

Orientador: Dr. José Geraldo Wanderley Marques Co-orientadora: Dra. Sônia Regina da Cal Seixas

Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) e Instituto de Filosofia Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) como requisito para obtenção do título de doutora em Ambiente e Sociedade na área de concentração Aspectos Biológicos da Sustentabilidade e conservação.

Este exemplar corresponde à tese final defendida pela aluna Viviane Souza Martins, orientada pelo professor Dr. José Geraldo Wanderley Marques e co-orientada pela professora Dra. Sônia Regina da Cal Seixas, aprovada no dia 27 de outubro de 2014.

Campinas 2014

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vii RESUMO

A etnoecologia é um campo de pesquisas que visa elucidar as relações entre sociedades humanas e natureza. Na margem oeste do Recôncavo Baiano, situa-se a Baía do Iguape, localizada na interface da foz do rio Paraguaçu com a Baía de Todos-os-Santos. Na localidade, onde em agosto de 2000 foi criada a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape, está situada a comunidade quilombola Salamina Putumuju. A renda e subsistência de grande parte da comunidade se baseiam no extrativismo de recursos naturais tais como pescado e espécies vegetais como dendê e piaçava. A reserva convive atualmente com a operação de empreendimentos de infraestrutura com grande potencial causador de impacto que incidem, sobretudo nas atividades pesqueiras. Optou-se por abordar as relações pessoas/ambiente através de etnoecologia abrangente e contextualizá-las no tempo e nos processos históricos vividos pelos extrativistas. Além disso, foi verificada a percepção nativa a respeito dos impactos ambientais provocados pela instalação e operação dos empreendimentos. Uma combinação de ferramentas de coleta de dados qualitativos (entrevistas, observação direta, turnês guiadas) foi utilizada. O território abrigou um quilombo de escravos fugidos no período colonial e o trabalho escravo esteve presente na comunidade até a recente certificação quilombola. O Conselho Pastoral dos Pescadores teve papel decisivo no processo de transformação social. Os extrativistas possuem aprofundado conhecimento da dinâmica dos recursos pesqueiros e do fenômeno das marés o que otimiza o exercício da atividade pesqueira. Além disso, compreendem aspectos ecológicos do recurso piaçava que historicamente é considerado como principal fonte de renda da comunidade local. Os empreendimentos geradores de grandes impactos, principalmente a operação da Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo têm sido interpretados pelos pescadores como principais responsáveis pela diminuição dos estoques pesqueiros na região.

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ix ABSTRACT

Ethnoecology is a field of research that seeks to elucidate the relationship between human societies and nature. On the west bank of the Reconcavo Baiano, is located Baia do Iguape, placed on the mouth of the river Paraguaçu interface with the Baía de Todos-os-Santos. In this place, which in August 2000 was created the Marine Extractive Reserve Baía do Iguape, is situated a quilombola community called Salaminas Putumuju. The income and livelihood of much of the community is based on the extraction of natural resources such as fish and plant species such as palm oil and palm fiber (dendê and piaçava). The reserve is currently experiencing the operation of large infrastructure projects with potential impact that caused concern, particularly in fishing activities. We chose to analyze the relationships human/environment based on the comprehensive ethnoecological proposal of Marques and contextualize them in time and historical processes experienced by extractivists. Furthermore, we investigated the native perception about the environmental impact of the installation and operation of projects. A combination of qualitative data collection (interviews, direct observation, guided tours) tool was used. The territory took a Quilombo of runaway slaves during the colonial period and slavery labor was present in this community until the recent accreditation quilombola. The Pastoral Council Fishermen (Conselho Pastoral dos Pescadores) played a decisive role in the process of social transformation. The local extractivists have in-depth knowledge of the dynamics of fish stocks and the phenomenon of the tides which optimizes the exercise of fishing activity. Also, understand the ecological piaçava resource that is historically regarded as the main source of income of the local community aspects. The generating enterprises large impacts, especially the operation of the Hydroelectric Plant Pedra do Cavalo have been interpreted by fishermen as primarily responsible for the decline in fish stocks in the region.

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xi SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

OBJETIVOS ... 15

ASPECTOS METODÓGICOS DA PESQUISA ... 17

Coleta de dados ... 17

Análise de dados ... 21

RESULTADOS E DISCUSSÃO ... 25

A COMUNIDADE DA SALAMINA ... 25

A Dimensão Espacial: área de estudo e aspectos da paisagem ... 25

O nativo multi-estrategista ... 29

A Dimensão temporal ... 47

Breve contextualização histórica do Recôncavo Baiano e sua ocupação ... 47

Uma história da Salamina tal como contada pelos nativos ... 49

Os vários contextos das atividades produtivas ... 75

Bases Conflitivas ... 75

Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo ... 79

Canteiro de São Roque ... 83

Estaleiro Paraguaçu ... 85

Conflitos com fazendeiros ... 89

Bases Emotivas ... 95

Etnoecologia Abrangente da Pesca do Camarão ... 99

Bases Cognitivas ... 99

Hidrodinâmica ... 99

Aspectos biológicos e ecológicos ... 105

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xii Interpretação da paisagem ... 123 Bases Conexivas ... 127 Pessoa /Mineral ... 127 Pessoa / Vegetal ... 129 Pessoa / Animal ... 137 Pessoa / Pessoa ... 155 Pessoa / Sobrenatural ... 161

Etnoecologia Abrangente do Extrativismo de Piaçava ... 163

Bases Cognitivas ... 163

Aspectos biológicos e ecológicos ... 163

Interpretação da paisagem ... 169 Bases Conexivas ... 171 Pessoa / Mineral ... 171 Pessoa / Vegetal ... 173 Pessoa/ Animal ... 183 Pessoa / Pessoa ... 185 Pessoa / sobrenatural ... 191

Temporalidade e apropriação dos recursos: conexões ao longo do tempo ... 193

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 201

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 205

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Esta tese é dedicada: aos quilombolas da Salamina Putumuju e sua trajetória de luta e resistência. à minha família, razão primeira e última dessa jornada.

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Agradecimentos

“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”

Chico Science

Diz um poeta “Há sempre um lado que pesa e outro lado que flutua” (Otto). Estou certa de que um dos lados que flutua nessa conclusão de doutorado é a imensa gratidão que sinto.

Agradeço a Deus por sua infinita generosidade e por ter me concedido tantas oportunidades, por ter iluminado meus caminhos e por ter me dado força sempre que achei que o lado que pesa, pesava demais.

À minha mãe, por todo amor que há nessa vida, pelos sacrifícios, dedicação, conforto e compreensão. Ao meu pai pela vibração com cada conquista, por me erguer e impulsionar. Aos meus irmãos que me ensinaram desde sempre o que é partilhar (dores e alegrias!) e viver e aos meus sobrinhos por me encherem de felicidades. A minha querida tia-dinda (in memorian) por ter me incentivado, ajudado e torcido por mim.

A todos e a cada um dos meus amigos da Salamina por terem me feito crescer de forma tão generosa, por terem compartilhado seus saberes e seu dia-a-dia comigo e ainda por toda atenção, todo afeto e toda a partilha. A Vidal, Carminha e Felipe também por me hospedarem. A Raquel, Paula e Saúna também por me acompanharem nas entrevistas.

Ao meu queridíssimo amigo e orientador José Geraldo W. Marques por ter sido tão presente ao longo dessa jornada, por me aceitar, acolher, incentivar, orgulhar muito e ainda me encher de poesias. Por ter sido tão compreensivo, companheiro e confidente, sobretudo nos momentos em que Shiva fez as suas danças.

Ao querido amigo Franzé por acompanhar o desenvolvimento intelectual e afetivo dessa tese, discutir assuntos, aguçar olhares e mais que tudo por seu companheirismo, conselhos, amizade e carinho.

Ao meu querido companheiro Leonardo D’Icarahy, através de quem vi as coisas mais lindas, agradeço além de tudo pela luz que traz aos meus dias.

Aos meus queridos amigos por existirem e serem tão especiais e fundamentais e mais que tudo por todo amor, amparo e dedicação. Aos irmãos que me emprestaram as asas: Sintia, Kleyson (Matin e Tales), Leo Macedo, Dani, Mony, Nara, Dea, Lala, Xande,

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Taty e Kátia por todo apoio, amizade, generosidade e pelos ouvidos emprestados. Raquel, Gabi e Luziana por terem representado minha família campineira e por terem compartilhado tantas emoções, frustrações, alegrias e ainda por gentilmente estarem às voltas com documentos para resolver alguma pendência minha na Unicamp. Às meninas do projeto Siris (Ana Teresa, Carol e Ketlen) por dividirem um trabalho de campo tão divertido e compartilhar momentos ótimos no LETNO. A Gilsimar por ter me ajudado a conduzir esse trabalho desde o início, agradeço pela partilha, pela torcida, pelo apoio logístico e pelo grande afeto com o que fez tudo isso. Ao extra-bem e agregados (Mari, Brena, Paulinha, Alan, Thaís, Thiago e os já citados) pela diversão garantida! A Libério, Parísio, Cris, Jammili pelos bons e necessários momentos de terapia e descontração. A João Ricardo pela “luz acesa no quarto escuro”. A Dani, Marcos e Patrícia por terem sido além de tudo, um valioso suporte emocional na minha chegada a São Paulo. A Luciana e Helena por terem tão generosamente me acolhido no primeiro mês em Campinas. A minha família paulista (Nóbia, Céu & companhia) pelo carinho e acolhida aconchegante.

A Sônia Regina da Cal Seixas, por ter aceito me coorientar e por acolher o desafio, sobretudo da minha distância física e por ter feito tudo isso com muita calma e generosidade.

Aos queridos colegas da turma 2010 do NEPAM pelos divertidos e produtivos momentos que passamos juntos. Aos professores do Doutorado Interdisciplinar em Ambiente e Sociedade por suas importantes contribuições acadêmicas.

À CAPES pela concessão da bolsa de doutorado sem a qual não teria sido possível desenvolver esse trabalho.

À UNEF, e em especial ao coordenador dos cursos de Comunicação Social, Thiago Oliveira por terem gentilmente concedido afastamento para finalização dessa tese. Aos amigos banda B pela alegria do convívio e amizade.

À UEFS através do Laboratório de Etnobiologia e Etnoecologia (LETNO) por prestar estrutura e apoio logístico ao desenvolvimento dessa pesquisa.

Àqueles que de uma forma discreta, mas decisiva, emprestaram qualquer momento de atenção para que fosse possível chegar até aqui. Sigo dizendo: é muita gratidão!

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"O mangue é um paraíso, sem o côr-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejos" (GRIFO NOSSO)

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“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

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“Se aí você teve estudo, Aqui, Deus me ensinou tudo, Sem de livro precisá

Por favô, não mêxa aqui, Que eu também não mexo aí, Cante lá, que eu canto cá. Você teve inducação, Aprendeu munta ciença, Mas das coisa do sertão Não tem boa esperiença. Nunca fez uma boa paioça, Nunca trabaiou na roça, Não pode conhecê bem, Pois nesta penosa vida, Só quem provou da comida Sabe o gosto que ela tem.”

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"...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..."

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xxv ÍNDICE DE ILUSTRAÇÃO

Figura 1 - Realização de entrevista semi-estruturada ... 4 Figura 2 - Observação direta do extrativismo da piaçava ... 17 Figura 3 - Esquema do processo de coleta de dados... 20 Figura 4 - Análise da dimensão Etológica (baseado em MARQUES, com.pess.) ... 20 Figura 5. Ilustração da análise de dados ... 23 Figura 6 – Localização da Resex Baía do Iguape e Comunidade da Salamina Putumuju ... 27 Figura 7 - Mapa de remanescentes florestais destacando a área de estudo – comunidade da Salamina Putumuju (Baseado em mapa elabora do pela Fundação SOS Mata Atlântica e INPE, 2009) ... 28 Figura 8 - Localização dos bairros que compõem a comunidade Salamina e principais pontos de referência utilizados pelos extrativistas ... 31 Figura 9 – Portos de vilarejos da comunidade da Salamina (A- Porto do Tororó; B- Porto do Ferreiro; C- Porto do Dunda; D – Porto da Olaria; E – Porto do Engenho Novo; F – Porto do Forte da Salamina) ... 32 Figura 10 – Obtenção e transporte de água em riacho na comunidade do Tororó ... 33 Figura 11 – Pescador obtendo água em bica para consumo durante pescaria ... 34 Figura 12- Atividades infantis na Salamina ... 35 Figura 13- Residência de um extrativista com roça situada ao lado ... 45 Figura 14 – Etapas da produção do azeite de dendê. A - cozimento dos frutos de dendê; B - maceração em pilão. C – bagaco obtido após peneiração; D – Produto da peneiração pronto para novo cozimento ... 46 Figura 15 – Locais utilizados pelo fazendeiro no tempo de Rosalvo Velho: A- Local onde

funcionava a venda; B – Local onde a os extrativistas entregavam a piaçava e onde eram feitas as contas do pagamento; C – residência do fazendeiro ... 56 Figura 16 – Área e limites do território quilombola Salamina Putumuju (aguardando titulação) – Elaborado com base em INCRA (2005) ... 74 Figura 17 - Localização dos empreendimentos geradores de grande impacto na Baía do Iguape77 Figura 18 – Canteiro de Obras de São Roque a partir do Rio Paraguaçu ... 84 Figura 19 – Faixa de manifestação contra a instalação do Estaleiro Paraguaçu durante o II Encontro das Reservas Extrativistas do estado da Bahia, Maragogipe, 2009. ... 85 Figura 20 – Ilustração do ciclo hidrodinâmico segundo as luas na percepção êmica ... 101 Figura 21 – Figura ilustrando o comportamento das marés de quebra (acima) e de lançamento (abaixo) de acordo com a percepção êmica ... 103 Figura 22 – Peixes de água escura (a. papa-terra, b. caratupanha, c. barbudo, d. sapoca-vermelha, e. regalada) ... 121 Figura 23 – Referências utilizadas para localização de pesqueiros: A – Pedra do Angelim; B – Pedra da Gameleira; C – Cais do Engenho ... 124 Figura 24 – Utensílios de origem vegetal empregados na pesca: A – Cesto, que possui múltiplos usos; B – Esteira para secagem e defumação de camarão; C – Panacum ou caçuá, utilizado para transportar pescado; D – Cofo de isca, utilizado para armazenar iscas durante a pesca; E –balaio, que também possui múltiplos usos ... 132 Figura 25 – Camboa de pau ... 133 Figura 26 – Talas de dendê em processo de secagem para confecção de esteiras para camboa133 Figura 27 – Canoa de uma pau só- principal tipo de embarcação utilizado para pesca na

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Figura 28 - Rede camarãozeira com detalhe do tamanho da malha ... 140 Figura 29 – Pesca do Camarão com rede camarãozeira ... 142 Figura 30 – Processo de defumação do camarão. A- Ferventação (pré-cozimento); B- Separação dos tamanhos; C1-Camarões graúdos sendo arrumados em “espetos” e C2- Espetos em cesta para defumação; D1- Camarões miúdos prontos para arrumação em cesta de degumação e D2- Camarões miúdos em defumador. ... 143 Figura 31 – Pindobeira (em primeiro plano) ... 175 Figura 32 – Extrativistas realizando o processo de separação das fibras de piaçava (catação)177 Figura 33 – Partes da fibra de piaçava com as respectivas denominações êmicas ... 178 Figura 34 – Vista da margem do rio ocupada por uma fazenda ... 182 Figura 35 – Vista da margem do rio ocupada por quilombolas da Salamina ... 182 Figura 36 – “Quintal” de um extrativista com pindobeiras ... 188 Figura 37 – Camboa de paus em manguezal nas proximidades da cidade de Maragogipe .... 196

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INTRODUÇÃO

A etnoecologia é um campo de pesquisas relativamente recente, eminentemente interdisciplinar, que visa conhecer, sob uma ótica particular, as relações entre sociedades humanas e natureza. Como parte das etnociências - folk science (BERKES, 2008), a etnoecologia estuda o conhecimento ecológico e as relações entre culturas e ambiente (NAZAREA, 1999). Desta forma, busca-se comparar duas tradições intelectuais distintas na interpretação da natureza: a ocidental, através da ciência normal e a tradicional através do conhecimento ecológico tradicional1 (TOLEDO e BARRERA-BASSOLS, 2009).

Sob a ótica da etnoecologia, conhecimentos locais e/ou tradicionais são reconhecidos e valorizados, considerando o contexto cultural onde se inserem. Os saberes sistematicamente produzidos por sociedades humanas a respeito da natureza já haviam sido abordado por Levi-Strauss (1962) que os denominou de “ciência do concreto”.

Os primeiros estudos sistemáticos do conhecimento ecológico tradicional foram conduzidos por antropólogos (HUNN, 2006; BERKES, 2008) e em seguida, o tema despertou o interesse de pesquisadores de outras áreas do conhecimento, especialmente das ciências biológicas. Apesar de ter suas raízes na antropologia e na biologia, a etnoecologia apresenta influências, tanto de natureza teórica quanto metodológica, de outras áreas do conhecimento (TOLEDO, 1992). Segundo Ellen (2006), há um discurso comum, mas não uma teoria unificadora em etnobiologia.

1

Com a intenção de evitar o aprofundamento na questão conceitual em torno da tradicionalidade, adota-se para efeito dessa tese a definição “operacional” de Conhecimento Ecológico Tradicional (Tradicional Ecological Knowledge – TEK) de BERKES (2008), segundo a qual TEK corresponde ao “conjunto de conhecimentos, práticas e crenças envolvendo processos adaptativos, difundidos através das gerações por transmissão cultural, sobre as relações de todos os seres vivos (incluindo seres humanos) entre si e com o seu ambiente”.

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Na definição de Marques (2001), etnoecologia é “o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos que intermediam as interações entre populações humanas e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como dos impactos ambientais daí decorrentes”. Já segundo Toledo e Barrera-Bassols (2009) a etnoecologia consiste em um enfoque interdisciplinar “que estuda as formas pelas quais os grupos humanos veem a natureza, através de um conjunto de conhecimentos e crenças; e como os humanos, a partir de seu imaginário, usam e, ou, manejam os recursos naturais”.

Pesquisas em etnobiologia inicialmente produziam listas de nomes populares e científicos de animais e plantas úteis para determinada cultura e tais estudos representavam uma descrição do conhecimento ecológico dos até então considerados “povos primitivos” (ELLEN, 2006). De acordo com este autor, em uma segunda fase, as pesquisas buscavam contextualizar histórica e logicamente esses conhecimentos, enfatizando em princípio, aspectos da classificação do mundo natural. Nesse contexto, surgiu o trabalho de Harold Conklin sobre o uso de vegetais pelo povo Hanunoo em 1954. A partir de então, emergiu o foco na percepção nativa acerca do mundo natural e a expressão “abordagem etnoecológica” começou a ser utilizada (NAZAREA, 1999).

Ellen (2006) afirma que hoje a etnobiologia atua muito mais numa perspectiva analítica do que descritiva. Pode-se constatar o mesmo com relação à pesquisa em etnoecologia, que atualmente além de contemplar temas historicamente tratados, tem vivenciado o surgimento de novas temáticas. Segundo Reyes-García e Sanz (2007), as principais linhas de pesquisa atuais nesse campo são os sistemas locais de conhecimento ecológico, as relações entre diversidade biológica e diversidade cultural, os sistemas de manejo de recursos naturais e as relações entre desenvolvimento econômico e bem-estar humano. Hoje os estudos estão focados no entendimento de como as culturas interpretam, conceituam, representam, se relacionam, utilizam e manejam o

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ambiente (ELLEN, 2006) e para tanto, Hunn (2006) salienta a necessidade de entendimento da linguagem local no sucesso dos trabalhos em etnociências.

Totalmente inserido em uma perspectiva descritiva e analítica, o presente estudo utiliza o aporte teórico-metodológico da etnoecologia abrangente. Tal teorização emergiu da prática (grounded theory) através das pesquisas realizadas por José Geraldo Marques na Várzea da Marituba, estado de Alagoas (MARQUES, 1995; 2001) e está em processo de construção e aperfeiçoamento. Segundo o autor, essa teorização foi construída com o objetivo de proceder a análise de dados quando nenhuma outra teoria testada, produzia resultados que facilitassem a interpretação e sistematização dos mesmos.

A abordagem etnoecológica abrangente difere de outras abordagens em etnoecologia principalmente por propor um modelo analítico que abrange quatro dimensões das relações entre pessoas e ambiente2 como categorias:

1. Bases Conflitivas: Aprofunda as questões geradoras de conflito na localidade e sua interferência na relação entre seres humanos e o restante do ambiente;

2. Bases Cognitivas: Analisa os conhecimentos a respeito dos recursos explotados (etnotaxonomia, ecologia trófica, hidrodinâmica, etnofenologia, etc.) e as crenças locais, especialmente aquelas que possam exercer alguma interferência nas atividades extrativistas;

3. Bases Emotivas: Aborda os sentimentos e possíveis implicações destes na conservação de recursos naturais, tal como tratado por Marques (2005);

4. Bases Consexivas: Analisa aspectos relacionados ao comportamento dos extrativistas com relação aos recursos explotados. Nesse contexto, considera-se que as pessoas mantém cinco conexões básicas com o ambiente: pessoas/minerais, pessoas/vegetais,

2

A separação em quatro dimensões tem finalidade de facilitar a análise dos dados. Considera-se que para a cultura local, tais elementos estão imbricados ou mesmo sobrepostos de modo que para o(a) nativo(a) seja difícil ou até mesmo impossível distingui-los.

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pessoas/animais, pessoas/pessoas, pessoas/sobrenatural. Tais conexões podem ser caracterizadas de acordo com (Figura 1):

a. Tipologia Conexiva: Finalidade para a qual se estabelece a conexão (ex: trófica, econômica, estética, lúdica, etc.);

b. Grau de Conectividade: Importância cultural da conexão (forte/média/fraca);

c. Status Conexivo: Comportamento da conexão ao longo do tempo (emergente, permanente, resiliente, evanescente, etc.);

d. Modalidade: Pode ser classificada como “limpa” ou “suja” quanto a natureza social, ambiental e/ou política.

Figura 1 - Análise das bases conexivas– baseada na abordagem etnoecológica

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As inovações propostas pela etnoecologia abrangente possuem implicações teórico-metodológicas relevantes. A primeira delas é a possibilidade de aplicação da abordagem aos mais diversos contextos socioculturais, uma das razões pela qual a mesma recebe a denominação abrangente. De acordo com Marques (2001) essa abordagem pode ser aplicada a todos os sistemas ecológicos, inclusive o urbano. Tal visão surge no contexto de uma etnoecologia que sempre esteve mais ocupada em estudar as sociedades culturalmente diferenciadas, ou tradicionais.

Do ponto de vista analítico, a etnoecologia abrangente apresenta alguns pontos de divergência da abordagem de Toledo (1992). A última considera as relações entre seres humanos e natureza de acordo com o sistema k-c-p (kosmus, corpus e práxis) onde kosmus corresponde às crenças, corpus aos conhecimentos e práxis à prática produtiva. A etnoecologia abrangente agrega conhecimentos e crenças em bases cognitivas, trata a prática produtiva como comportamento em bases conexivas e incorpora as dimensões conflitiva e emotiva (pathos) à análise.

Além disso, se constituem em características típicas etnoecologia abrangente, a abordagem predominantemente qualitativa que preconiza uma análise do ponto de vista emicista/eticista3, onde os memes - fragmentos reconhecíveis de informação cultural passados de pessoa a pessoa dentro de uma cultura (DAWKINS, 1979; BLACKMORE, 2000) - são utilizados como ferramentas capazes de aferir a consistência das informações obtidas em campo.

A partir da valorização do conhecimento empiricamente construído por comunidades locais, certos setores da ciência têm admitido a existência de outras formas de conhecimento que não o científico stricto sensu. A etnoecologia considera que populações não-letradas, que não estão totalmente inseridas no

3

Abordagem emicista-eticista associando as visões nativa (êmica) e acadêmica (ética). É importante ressaltar que as denominações êmico/ético são provenientes de vocábulos lingüísticos (fonêmica e fonética) de modo que, neste caso, a palavra “ético(a)” não é empregada no sentido de “moral”. Nesta abordagem não se pretende corroborar ou depreciar um ou outro tipo de conhecimento ou fazer qualquer julgamento de mérito ou valor com relação aos mesmos, e sim apenas compará-los.

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contexto da sociedade abrangente, possuem conhecimentos válidos a respeito dos recursos naturais e que tal conhecimento influencia o manejo dos recursos naturais.

A preocupação com o meio ambiente e com a diversidade cultural tem estimulado o crescente interesse na etnoecologia. Desse modo, devido à sua natureza multifacetada, os problemas de uso e conservação dos recursos naturais precisam integrar conhecimentos de populações locais e científicos naturais e sociais numa perspectiva interdisciplinar. Reyes-García e Sanz (2007) consideram a conservação de ambos como um fator chave de adaptação ao meio ambiente e reiteram que, justamente por isso, e também devido ao caráter multi-escalar de suas análises, a etnoecologia pode contribuir para compreender e interpretar problemas envolvendo ambiente e sociedades.

Alguns autores acreditam que diferentemente do uso desordenado que a sociedade industrializada faz dos recursos naturais, algumas comunidades (tradicionais ou não) vêm utilizando-os de forma a não colocá-los em risco de esgotamento (e.g. DIEGUES, 2000). Hanazaki (2003) considera indubitável que populações tradicionais provocam impacto sobre os recursos naturais, porém afirma que este é “quantitativa e qualitativamente distinto do que aquele gerado por sociedades modernas/urbanas”. Begossi et al. (2002) afirmam que, à medida que as populações tornam-se urbanas, os processos de decisão passam provavelmente a depender mais de fatores econômicos do que ecológicos.

No âmbito científico, a conservação da biodiversidade por comunidades locais foi abordada habitualmente dentro de duas concepções antagônicas: os mitos do “poluidor primitivo” e do “bom selvagem” (DIEGUES, 1994; HANAZAKI, 2003; SOUTO, 2006). A primeira concepção trata as populações tradicionais como elementos externos aos ecossistemas e a sua presença seria inevitavelmente responsável por efeitos deletérios ao ambiente, enquanto a segunda considera que essas comunidades vivem em plena harmonia com os demais componentes do mundo natural, sem lhes causar danos.

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Na prática, esta questão é bastante polêmica. De acordo com Gerhardt (2008), o debate polarizado tem gerado uma frenética e generalizada busca por evidências (sejam elas baseadas em casos, exemplos, números, dados, informações, relatórios, reportagens, relatos-denúncia, etc.) tanto por parte daqueles que defendem a tese de que populações tradicionais (do passado ou do presente) sempre depredaram a natureza quanto pelos que querem comprovar que estas mesmas populações ajudam a preservar a biodiversidade. É evidente que a complexidade no que tange à conservação dos recursos naturais por comunidades locais vai muito além do reducionismo colocado pelas concepções citadas, dada a complexidade das relações entre ser humano e natureza.

Os conhecimentos e práticas locais de povos tradicionais ainda que de qualidade sub ou superestimadas, são hoje consideradas chaves para a conservação da biodiversidade (BACELAR e SOUZA, 2008). Tal temática já havia sido tratada no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, na qual é citado o potencial do acervo de conhecimentos historicamente acumulados pelas comunidades locais na conservação da diversidade biológica (MMA, 2000).

O debate, ao menos em tese, tem alcançado a esfera das políticas públicas. O conhecimento tradicional tem sido reconhecido como relevante, tanto para os estudos da biodiversidade quanto para a conservação do patrimônio biológico e genético no país. Acrescenta-se a isso, a diversidade cultural brasileira que é representada por um grande número de comunidades locais detentoras de considerável conhecimento sobre as espécies da flora e da fauna e de sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais renováveis (MMA, 2002).

O termo “tradicional” foi utilizado no âmbito desta tese para fazer referência tanto à comunidade da Salamina quanto ao conhecimento de extrativistas daquela localidade. Tal escolha se fez assumindo a inexatidão, controvérsia, complexidade e ainda o caráter político-ideológico implícito neste conceito (VIANNA, 2008), mas considerando a importância dessa terminologia

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para explicitar: 1. A relevância da tradição como referencial para construir o futuro (VIANNA, 2008), 2. O caráter político do conceito, que se tornou um instrumento capaz de garantir territórios “tradicionalmente ocupados” e 3. A inclusão de comunidades quilombolas na categoria “povos e comunidades tradicionais” no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT) criada em 2007.

A existência de “comunidades remanescentes de quilombo” foi reconhecida oficialmente pelo Estado Brasileiro na Constituição de 1988, que em seu artigo 68 afirmou o direito dessas comunidades aos seus territórios. Segundo Linhares (2004), tal inclusão na esfera legislativa se deu pela pressão de movimentos sociais afro-brasileiros que assim se colocavam, de acordo com Schmitt et al (2002) devido às expropriações incessantes que sofriam as comunidades negras rurais. Leite (2000) afirma que, apesar do texto da constituição expressar “a necessidade de reconhecimento da cidadania étnico-cultural”, não se sabe se esse reconhecimento se dá com intenção de preservar o patrimônio cultural ou se por garantir o direito à terra e à diversidade étnica.

Após a inserção do artigo 68, a identidade quilombola passou a ser um elemento capaz de garantir a sobrevivência material e simbólica dos grupos negros. A construção da realidade enquanto “remanescente”, segundo Arruti (1997), passa a ser um elemento de força ainda maior que a própria comprovação da etnicidade negra. Esta identidade é considerada por Schimitt et al (2002), não como algo fixo, mas sim em curso, que se estabelece a partir das relações de diferença formadas em decorrência de eventos históricos e torna-se fundamental para a garantia do direito de território e consequente transmissão da cultura das populações negras rurais. Quando a identidade de “remanescente de quilombo” passa a ser admitida, as diferenças que se colocavam entre essas e as demais comunidades como forma de estigma, a exemplo da utilização das denominações “negro” e “preto”, passam a ser adotadas e valorizadas (ARRUTI, 1997).

Quilombos, mocambos, comunidades negras rurais, terras de preto e comunidades remanescentes de quilombo, segundo Linhares (2004), são termos

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correlatos, criados por grupos com diferentes pontos de vista para se referirem a uma situação social singular. Considera-se que os grupos negros se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos (SCHIMITT et al, 2002) e que a terminologia utilizada no âmbito da legislação (“comunidades remanescentes de quilombo”) não contempla esta dinâmica. Um aspecto que contribui para a inexatidão do termo é a sua vinculação à noção de temporalidade (ARRUTI, 2006) com o propósito de solucionar a “relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico em que a descendência parece não ser laço suficiente” (ARRUTI, 1997). Segundo Linhares (2004), a terminologia é criticada por acadêmicos e pelo próprio movimento social por considerar apenas a fuga e negação do regime de escravidão e desconsiderar outras formas de resistência. O autor afirma que ativistas negros preferem a denominação “comunidades negras rurais” porque consideram a forma de vida social independentemente do seu processo histórico de formação. Da mesma maneira, a expressão “terras de preto” mais utilizada no norte e nordeste do Brasil, enfatiza o caráter comum das propriedades e recursos.

A palavra “quilombo” por sua vez possui uma grande quantidade de significados – ora designando lugar, ora povo, ora manifestações populares, etc – e por este motivo seria útil para construir um aparato simbólico capaz de representar a história das Américas (LEITE, 2000). A autora afirma que este conceito pode ser visto pelos militantes como elemento aglutinador que permita dar sustentação à afirmação da identidade negra. A palavra quilombo de acordo com Leite (2008) foi ressemantizada pelos movimentos sociais, passando a incorporar os princípios de liberdade e cidadania negados aos afrodescendentes tais como direito à terra, ações em políticas públicas que ampliem a cidadania e proteção às manifestações culturais.

Para efeitos deste estudo, opta-se pela utilização da expressão comunidade quilombola para designar a Salamina Putumuju, em concordância com autores que consideram que tal terminologia agrega elementos socioantropológicos além do significado exclusivamente histórico, que se percebe

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na expressão “remanescentes de quilombo” (ARRUTI, 1997; 2006; LEITE, 2000; SCHMITT et al. 2000).

De acordo com Gomes (1995), a formação de quilombos tinha reconhecida tradição na capitania da Bahia. O autor afirma que, no Recôncavo Baiano, a existência de mocambos está registrada em documentos que datam da década de 1580. Esta região, por reunir elementos das culturas indígena, negra e européia, é considerada por Souto (2004) como o berço da cultura baiana. Pedrão (2007) classifica o Recôncavo como um lugar de uma pluralidade de situações agregando tanto aquelas determinadas pela escravidão e pela servidão quanto aquelas constitutivas do universo do extrativismo reunindo ainda um elenco de situações pertencentes ao que se aceita como moderno.

Fisicamente, o Recôncavo Baiano possui limites bem definidos, uma vez que corresponde à faixa de terra que circunda a Baía de Todos-os-Santos. De acordo com Pedrão (op. cit), a região apresenta uma identidade cultural única no Estado da Bahia porque as pessoas se sentem parte da região, mais do que de uma localidade ou município.

Na margem oeste do Recôncavo da Bahia, situa-se a Baía do Iguape, sistema hídrico formado a partir da falha geológica Salvador - Maragogipe (SANTOS, 2007), localizado na interface da foz do rio Paraguaçu com a Baía de Todos-os-Santos. Ao longo do seu curso, o rio Paraguaçu percorre trechos da Chapada Diamantina e da caatinga até chegar ao Recôncavo Baiano compondo a bacia hidrográfica com o mais importante sistema fluvial de domínio inteiramente estadual (PEREIRA, 2008). De acordo com Ramos (1993), o estuário lagunar que forma a Baía de Iguape abrange aproximadamente 80 km2 e se comunica com a Baía de Todos-os-Santos através do Canal de São Roque.

Nesta localidade, abrangendo parte dos municípios de Maragogipe e Cachoeira, situa-se a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape4, criada em

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Sobrepõe-se a esta, uma Unidade de Conservação Estadual: a Área de Proteção Ambiental Baía de Todos-os-Santos, que inclui as águas da Baía de mesmo nome.

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agosto de 2000, com a finalidade de garantir a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população extrativista local. Nessa região, estão localizados os manguezais mais bem preservados da Baía de Todos-os-Santos, de onde são extraídos recursos que se constituem em importantes fontes de renda e subsistência para as pessoas da região.

A área aproximada da Resex até 2009 era de 8.117,53 ha, sendo 2.831,24 ha em terrenos de manguezais, e 5.286,29 ha de águas internas brasileiras (D.O.U., 11/08/2000). A partir de então, a unidade sofreu alteração em seus limites por meio de emenda à Medida Provisória nº462 de 2009 que foi convertida na Lei nº 12.058 de 13 de outubro de 2009.

Atualmente, conflitos socioambientais envolvendo a instalação de empreendimentos (principalmente navais, hoteleiros e portuários) e interesses de populações locais e grupos ambientalistas têm se tornado manifestos no litoral do estado da Bahia. A Baía do Iguape, particularmente, convive com a operação de três empreendimentos causadores de grande impacto ambiental: ao norte, a Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo e ao sul, os estaleiros de São Roque e Enseada do Paraguaçu. A inexistência do plano de manejo da unidade acaba por facilitar a inserção de atividades industriais nas adjacências da Resex.

A Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo atua na geração de energia desde o ano de 2004. A partir de então, a liberação de água pela barragem parece ocorrer de modo aleatório, o que prejudica atividades pesqueiras provocando, inclusive, o desaparecimento de espécies da localidade (PROST, 2007a; SANTOS, 2008; ICMBio, 2009; OLIVEIRA, 2012). O estaleiro de São Roque foi instalado na década e de 1950, passou um período desativado e voltou a operar após o estabelecimento da Resex Baía do Iguape. A implantação do estaleiro Enseada do Paraguaçu ocorreu em uma área que até meados do ano de 2009 integrava a reserva. Segundo documento de caracterização da unidade (ICMBio, 2009), na ocasião, os extrativistas locais de um modo geral estavam em

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desacordo com a implantação do empreendimento por entenderem que o mesmo representaria prejuízo às atividades pesqueiras.

Segundo dados do ICMBio (2009), cerca de 92 comunidades vivem nas adjacências da Resex, dentre as quais, 26 são reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares como “remanescentes de quilombo” (ICMBIO, 2009). Grande parte dos quilombolas que habitam a região tem sua única ou principal fonte de renda proveniente das atividades pesqueiras e da extração de produtos vegetais tais como o dendê e a piaçava (ICMBIO, 2009).

Dentre as comunidades, insere-se a Salamina Putumuju, que está localizada na parte sul da Baía do Iguape e foi reconhecida como “remanescente quilombola” pela Fundação Cultural Palmares em 10 de dezembro de 2004 (ICMBIO, 2009). Após o reconhecimento, a comunidade anteriormente conhecida apenas por Salamina resgatou o nome do antigo quilombo: Putumuju. De acordo com dados do INCRA (2006), na ocasião de realização do laudo antropológico, em toda a comunidade viviam cerca de 40 famílias5.

O aumento na quantidade de estudos etnoecológicos realizados nos últimos anos é reflexo do crescente interesse acadêmico pelas maneiras como as diferentes sociedades se apropriam dos recursos naturais. Apesar disso, pesquisas com essa temática ainda são escassas considerando a sociobiodiversidade brasileira. Pesquisas envolvendo conhecimentos e práticas tradicionais de comunidades quilombolas, por exemplo, são raras. Na região do Recôncavo Baiano, alguns estudos etnoecológicos têm sido desenvolvidos a respeito da pesca artesanal, mas não foram localizados trabalhos abordando o extrativismo vegetal em áreas de remanescentes de Mata Atlântica locais. De acordo com o ICMBio (2009) os aspectos culturais de atividades produtivas na Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape necessitam ser aprofundados para a elaboração do Plano de Manejo da Unidade de Conservação.

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Dados obtidos através do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola de Salamina Putumuju realizado pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 2006).

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Ainda que escassas, algumas pesquisas têm contemplado a pesca artesanal na região do Recôncavo Baiano do ponto de vista etnoecológico (SOUTO, 2004; 2007; 2008; SOUTO e MARTINS, 2009). No que se refere ao extrativismo vegetal de produtos como piaçava e dendê, os estudos de cunho etnoecológico certamente são ainda mais raros. Não foram localizados trabalhos que investigassem as relações entre pessoas e ambiente em atividades extrativistas florestais desta naureza no Recôncavo Baiano.

Considerando a riqueza da cultura e da biodiversidade da região do Recôncavo Baiano e em particular, da cultura de origem predominantemente africana dos quilombolas da Salamina Putumuju e sua singularidade devido a: 1. seu relativo grau de isolamento com relação às comunidades adjacentes; 2. o exercício das atividades extrativistas como principal meio de sobrevivência; e, 3. as recentes modificações ambientais ocorrentes na localidade, propôs-se, com esta pesquisa, documentar os conhecimentos, crenças, sentimentos e comportamentos da população local com relação aos principais recursos explotados através de um estudo etnoecológico, comparando conhecimentos tradicional e acadêmico e analisando práticas extrativistas do ponto de vista da conservação. Além disso, buscou-se verificar a percepção dos extrativistas quanto aos efeitos das modificações no ambiente na relação da comunidade local com os demais elementos dos ecossistemas que as incluem e contextualizar a produção do conhecimento tradicional, abordando os processos históricos e relações de poder vividas pela comunidade ao longo do tempo.

Do ponto de vista teórico-metodológico, pretendeu-se avançar na incorporação de modelos de análise de dados qualitativos em etnoecologia e ainda contribuir para o amadurecimento da teorização etnoecológica abrangente (MARQUES, 1995, 2001) numa avaliação crítica sobre a sua aplicabilidade no contexto das atividades extrativistas realizadas na comunidade da Salamina.

Além de desenvolver análises a respeito do contexto de reprodução simbólica e material da comunidade estudada, foram enfocadas no estudo etnoecológico as duas atividades de maior relevância dentro do seu contexto

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cultural e socioeconômico: a pesca de camarão e o extrativismo da piaçava. Dessa maneira, essa tese está organizada de forma a primeiramente inserir o leitor no universo da comunidade estudada, trazendo no capítulo 1 aspectos de localização, paisagem, modo de vida e a contexto histórico da Salamina Putumuju conforme narrados pelos extrativistas entrevistados.

O capítulo 2 trata de duas dimensões da etnoecologia abrangente (conflitiva e emotiva) envolvendo de forma ampla as relações entre extrativistas e demais elementos da natureza. Percebeu-se, nas análises, que esses aspectos não poderiam ser avaliados separadamente de acordo com cada uma das modalidades de extrativismo enfocadas, uma vez que incidem sobre o modo de vida da comunidade como um todo.

Optou-se por apresentar as dimensões cognitiva e conexiva separadamente para pesca do camarão (capítulo 3) e piaçava (capítulo 4) uma vez que se tratam de recursos provenientes de ecossistemas distintos. Fez-se essa escolha com objetivo heurístico, visando facilitar a análise de conhecimentos e comportamentos relacionados a cada um dos recursos explotados.

Finalmente, buscou-se analisar o fator temporal no capítulo 5 enfocando a dinâmica das conexões na comunidade estudada. A destinação de um capítulo exclusivo para tratar essa análise se deu por considerar que esta é mais importante contribuição deste estudo à teorização etnoecológica abrangente. Nesse sentido, abordou-se no último capítulo as mudanças ocorridas na Salamina tanto diante da sua própria dinâmica cultural interna quanto àquelas relacionadas às recentes modificações ocorridas externamente à comunidade.

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OBJETIVOS

GERAL

– Realizar um estudo etnoecológico sobre as relações pessoas/ambiente na comunidade quilombola da Salamina Putumuju;

- Verificar se as modificações no ambiente (decorrentes da operação da Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo e da instalação do Estaleiro Paraguaçu) influenciaram/influenciam na relação da comunidade local com os demais elementos da natureza.

ESPECÍFICOS

- Registrar o conhecimento etnoecológico relacionado manguezal, à mata atlântica e seus recursos;

- Conhecer os diversos aspectos cognitivos e comportamentais que mediam as relações entre pessoas e ambiente na comunidade da Salamina;

- Caracterizar o zoneamento ecológico local percebido pelos extrativistas, inferindo as diversas atividades extrativistas exercidas pela comunidade;

- Analisar as práticas e estratégias de pesca e extrativismo vegetal sob o prisma da etnoconservação;

- Descrever as possíveis modificações ocorridas nas formas de apropriação dos recursos (pesqueiros e vegetais) ao longo do tempo.

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ASPECTOS METODÓGICOS DA PESQUISA

Coleta de dados

Inicialmente foram realizadas entrevistas informais6 com extrativistas encontrados ad libitum7 com o intuito de se conhecer aspectos mais gerais da comunidade nativa, dos ecossistemas locais e das práticas de utilização nele desenvolvidas. Após esta etapa, foram gravadas entrevistas semi-estruturadas (figura 2) com extrativistas que desenvolvem as diversas modalidades de pesca, mariscagem e extrativismo vegetal. A pesquisa privilegiou, a princípio, a abordagem de questões históricas e de percepção de impacto ambiental.

Figura 2 - Realização de entrevista semi-estruturada

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Entrevistas informais são aquelas em que o pesquisador escreve registros de uma conversa casual (ALEXIADES, 1996).

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Posteriormente foram realizadas 21 entrevistas semiestruturadas abordando assuntos relacionados à biologia e ecologia dos recursos (etnotaxonomia, etnofenologia, ecozoneamento, hidrodinâmica, territorialidade...), crenças locais, estratégias de captura, utilização e conservação. Particularmente no que se refere ao estudo da compreensão dos ciclos naturais pelos nativos (etnofenologia – NABHAN, 2010), foram agregados indicadores vernáculos (grassroots indicators - MARARIKE, 1996; ORONE, 1996) identificados pelos extrativistas para relacionar eventos fenológicos distintos. Através das entrevistas, foi investigado se os nativos percebem mudanças nos ciclos etnofenológicos e se atribuem alguma causa a estes fenômenos.

A percepção local sobre as mudanças ocorridas no ambiente foi estudada através da história oral. Para tanto foram realizadas entrevistas semi-estruturadas empregando o gênero “história oral temática”, que segundo Freitas (2006), permite a comparação entre diversas informações, apontando convergências, divergências e evidências de uma memória coletiva. Todas as entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e transcritas de forma verbatim, respeitando o linguajar nativo. Dentre os entrevistados, privilegiou-se contactar aqueles indivíduos considerados “especialistas nativos(as)”, pessoas auto-reconhecidas e auto-reconhecidas pela própria comunidade como culturalmente competentes no exercício de determinada atividade (MARQUES, 1995). A ampliação amostral foi possibilitada pela inclusão de novos indivíduos, sucessivamente indicados a partir dos anteriormente contatados.

Todas as entrevistas foram precedidas pela identificação do entrevistador, explanação sobre os objetivos do trabalho e apresentação de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme indicações do Comitê de Ética em Pesquisa (autorização em apêndice 1). O projeto de tese foi avaliado e autorizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)8 por

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No ano de 2011, a solicitação de autorização de acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade em pesquisas que não envolvam o acesso direto ao componente genético e nem a intenção de gerar produtos e patentes, deixou de ser uma atribuição do Conselho do Patrimônio Genético (CGEN) e

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tratar de conhecimento tradicional associado à biodiversidade (processo 02000.000446/2012-10 DPI/IPHAN/MinC – D.O.U. 18/07/2012 – apêndice 2). Por tratar-se de uma pesquisa em unidade de conservação federal o projeto também foi submetido a avaliação pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e aprovado sob o número 27644-3(apêndice 3). Por se tratar de uma unidade de conservação de uso sustentável, o projeto foi submetido ainda à apreciação do Conselho Deliberativo da Resex Baía do Iguape, tendo sido apresentado e discutido em reunião.

A coleta de dados também ocorreu através de observações diretas (figura 3), quando os informantes foram acompanhados em suas atividades extrativas rotineiras, ocasião em que também foram realizadas as entrevistas de campo (ALEXIADES, 1996). Complementarmente, foi utilizada a técnica de percursos guiados em campo, onde os próprios extrativistas serviram de guias em áreas de extrativismo ou atividades que desenvolvem (GRENIER, 1998). Durante essas incursões, foram feitos registros fotográficos (conforme permissão do sujeito da pesquisa) das atividades cotidianas de extrativistas nos sítios de pesca e coleta, nas ruas ou em suas residências. Nessas ocasiões, foram evitadas interferências no trabalho desses profissionais para que o registro das imagens seja fidedigno e para não atrapalhar o rendimento de suas atividades.

passou a ser analisado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), desta forma, o projeto desta tese que aguardava parecer do CGEN, foi transferido para apreciação do IPHAN.

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Figura 3- Observação direta do extrativismo da piaçava

Um esquema do processo de coleta de dados é representado na figura 4.

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Análise de dados

Optou-se por analisar as atividades extrativistas sob abordagem da Etnoecologia Abrangente (MARQUES, 1995, 2001). A escolha de compreender as relações entre extrativistas e o restante do ambiente a partir desta óptica se justifica principalmente pela natureza eminentemente qualitativa da proposta e pelas categorias empregadas que facilitam a análise.

A partir das entrevistas foram identificados memes que, enquanto ferramenta de análise qualitativa, serviram como instrumento para verificar a consistência das informações obtidas. Também através das entrevistas, buscou-se no prebuscou-sente estudo comparar os conhecimentos locais com a literatura científica (cognição comparada) e os comportamentos foram observados de acordo com as implicações ambientais decorrentes. Inferências relacionadas à etnoconservação (PITT, 1987) foram abordadas de forma mais pragmática, utilizando a perspectiva adotada por Smith e Wishnie (2000) para avaliar conservação em sociedades de pequena escala9, segundo os quais existe conservação quando há prevenção ou mitigação de: depleção de recurso, extirpação de espécies e degradação de hábitat.

Reunindo informações a respeito dos conhecimentos, crenças e comportamentos dos extrativistas com relação aos recursos por eles explotados, será elaborado um diagrama baseado no calendário agrícola, climático e festivo elaborado por BARRERA-BASSOLS e ZINK (2003). Nesta ilustração serão mostrados elementos que influenciam na atividade extrativista agregando elementos simbólicos e práticos. Integrando dados obtidos nas entrevistas, observações de atividades extrativistas e percursos guiados foi construído um modelo ilustrando as principais unidades de manejo da paisagem da maneira como são percebidas pelos nativos (MAIMONE-CELORIO et al, 2008).

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Sociedades de pequena escala são caracterizadas essencialmente por possuir algumas centenas a poucos milhares de habitantes e certa autonomia política (SMITH e WISHNIE, 2000).

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Optou-se nesta pesquisa por abordar o extrativismo pesqueiro e vegetal na comunidade da Salamina Putumuju a partir de uma análise de caráter etnográfico, privilegiando assumidamente uma análise qualitativa dos dados. A análise escolhida parte do arcabouço teórico-analítico da etnoecologia abrangente (MARQUES, 1995; 2001) e buscou integrar outros elementos com a intenção de tornar as dimensões espacial e temporal os eixos da análise. Para tanto, agrega-se um entendimento mais amplo de paisagem, assumindo-a de acordo com a perspectiva de Ingold (1993) considerando a vida humana como um processo que envolve a passagem do tempo e nela são construídas as paisagens que a pessoa vive. Além disso, procurou-se associar aspectos trazidos pela etnoecologia da paisagem, que tem assumido a importância dos processos históricos e relações de poder na geração do conhecimento e manejo de recursos naturais (ELLEN, 2009; JOHNSON E HUNN, 2010a).

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

A COMUNIDADE DA SALAMINA

A Dimensão Espacial: área de estudo e aspectos da paisagem

A Baía de Todos-os-Santos (BTS) é um acidente geográfico com superfície de 1.233 km2 que inclui 56 ilhas, estuários de rios, manguezais, restingas, matas, além de duas baías menores: Aratu e Iguape (CAROSO et al., 2012). No entorno da BTS distribuem-se os municípios que compõem o Recôncavo Baiano (BOMFIM, 2006), região com grande importância histórica e econômica ao longo da história do Brasil, pioneira no ciclo da cana-de-açúcar, da indústria fumageira e do petróleo no país (PEDRÃO, 2007).

O estuário do rio Paraguaçu, localizado na margem oeste da BTS, é composto por três setores: baixo curso do rio, Baía do Iguape e canal do Paraguaçu (REIS-FILHO et.al., 2010). Este último serve de ligação entre as Baías de Iguape e de Todos-os-Santos. Neste local se encontram manguezais bem preservados e áreas de remanescentes de Mata Atlântica.

Com a finalidade de conservar os ecossistemas locais e o modo de vida das populações que vivem basicamente do extrativismo, foi criada em agosto de 2000 a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape. A Resex atualmente abrange os municípios de Cachoeira, São Félix e Maragogipe e a comunidade quilombola Salamina Putumuju é uma das beneficiárias da unidade (figura 6).

Localizada entre a Baía do Iguape e o Canal do Paraguaçu, na margem direita do rio (em direção à sua foz), essa comunidade se encontra relativamente isolada, principalmente por não possuir via de acesso terrestre ligando-a às localidades vizinhas. Desta maneira, o deslocamento da população local até a

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sede do município ocorre por meio de embarcações, principalmente canoas de madeira (predominantemente a remo e/ou vela) ou de fibra movida a motor. Além disso, as embarcações disponíveis para o transporte de pessoas até as demais localidades são escassas.

O local onde se situa a comunidade é caracterizado por vegetação de substituição de Mata Atlântica com duas regiões fitoecológicas distintas (Floresta Ombrófila Densa e Áreas de Formações Pioneiras), clima úmido a semiúmido, temperatura média anual de 25,4°C e período chuvoso de abril a junho (INCRA, 2006). É possível comprovar a sobreposição dos remanescentes de Mata Atlântica na área da comunidade através dos dados da Fundação SOS Mata Atlântica do ano de 2010 (figura 7). A manutenção desse ecossistema em bom estado de conservação se deve ao uso e manejo de práticas agrosilvícolas praticadas pela comunidade (INCRA, 2006). Ainda de acordo com o INCRA (2006), a presença de árvores frutíferas como mangueiras, cajueiros e coqueiro e jaqueiras são indícios comprobatórios da ancianidade da ocupação do local pelos quilombolas.

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Figura 6 – Localização da Resex Baía do Iguape e Comunidade da Salamina Putumuju10

10 O mapa representa a Resex Baía do Iguape com as limitações originais, antes das alterações sofridas em 2009. Material gentilmente elaborado por Simony Reis.

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Figura 7 - Mapa de remanescentes florestais destacando a área de estudo – comunidade da Salamina Putumuju (Baseado em mapa elabora do pela Fundação SOS Mata Atlântica e INPE, 2009)11

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O nativo multi-estrategista

"Às vez o cara diz assim: 'não pode ser pescador e lavrador'. Mas pode! Pode sim! "

Oito pequenos vilarejos denominados localmente de bairros formam a comunidade da Salamina. São eles: Tororó, Ferreiro, Dunda, Olaria, Cais do Engenho, Rio do Navio, Putumuju e Forte da Salamina (figura 8).

Poucas casas podem ser vistas na Salamina a partir do rio Paraguaçu, a quase totalidade delas se encontra escondida pela densa mata e manguezais que cobrem grande parte do território. Algumas estruturas de valor histórico, entretanto, podem ser visualizadas do leito do rio. Próximo à Ilha dos Coelhos estão localizadas as ruínas do Engenho Novo, que foi sede da fazenda no período colonial e atualmente possui uma casa ocupada por uma família de extrativistas. Um pouco mais no sul do Canal do Paraguaçu, precisamente na Ponta da Salamina está edificado o Forte da Salamina, ou forte colonial de Santa Cruz que de acordo com Etchevarne e Fernandes (2012) é a única estrutura defensiva encontrada na região.

O acesso às comunidades é possível apenas por meio de embarcações, por isso, cada bairro possui um porto para ancorar as canoas, todos sem nenhuma infraestrutura e a maioria com condições inadequadas para embarque e desembarque. Em Locais como Tororó e Olaria, as pessoas precisam passar pela lama do manguezal para chegar e sair das canoas, o que dificulta o transporte de alguns itens como materiais de construção. Nas localidades margeadas por pequenas porções de areia como Dunda, Ferreiro e Forte da Salamina o fundo arenoso torna o embarque e desembarque um pouco mais fácil (figura 9).

Atualmente a população da Salamina se encontra distribuída em áreas próximas à margem do rio, denominadas localmente de marés, o que facilita o deslocamento para a cidade e o acesso à pesca. As residências se encontram

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afastadas umas das outras em todas as localidades com exceção do bairro Forte da Salamina. De forma geral, trilhas na mata e no manguezal separam as casas e não existem ruas. A ocupação do espaço é predominantemente dada de acordo com os laços de parentesco (INCRA, 2006).

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Figura 9 – Portos de vilarejos da comunidade da Salamina (A- Porto do Tororó; B- Porto do Ferreiro; C- Porto do Dunda; D – Porto da Olaria; E – Porto do Engenho Novo; F – Porto do Forte

da Salamina)

A B

C D

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Embora esteja sob a influência de uma Usina Hidrelétrica há quase dez anos, a comunidade da Salamina só passou a ter energia elétrica em 20 de junho de 2013, cabendo à população extrativista local durante muito tempo apenas arcar com o ônus do impacto produzido pela operação do empreendimento. Essa realidade não se aplica às fazenda Mutuca e Jaqueira, que com recursos financeiros suficientes e alheias ao descaso do poder público com a comunidade local, há muito tempo possuem eletrificação. As residências não possuem água encanada, saneamento básico e a maior parte também não possui banheiro.

A água, entretanto, é abundante no território e a população local tem acesso a este recurso através de fontes e riachos de água doce (figura 10). A água obtida nesses locais é utilizada para os diversos fins: consumo familiar, limpeza, lavagem de roupas e higiene. Alguns locais conhecidos localmente como bicas estão situados bastante próximos à margem do Paraguaçu e são utilizados pelos pescadores para obter água potável nos intervalos da pescaria (figura 11).

Figura 10 – Obtenção e transporte de água em riacho na comunidade do Tororó

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As fontes recebem os nomes das pessoas que moram próximo a elas (exemplos: fonte de Bié, fonte de Ademário). Apesar dos topônimos serem sugestivos de posse, neste caso, as fontes são de uso comum, embora sejam mais utilizadas por aqueles que moram próximos a ela. Esta mesma situação se estende a alguns portos (exemplo: porto de Vidal, porto de Egídio), que apesar dos topônimos também não se constituem em “pedaços possuídos” (Marques, 2001). Desta maneira, o espaço em geral é concebido localmente como uma propriedade coletiva, com exceção das residências, quintais e roças que são compreendidos como locais pertencentes a cada família. O território comum e indivisível é uma característica comum entre quilombolas, dessa maneira, o espaço é ocupado e explotado obedecendo a regras consensuais do grupo (ANDRADE, 2011).

Figura 11 – Pescador obtendo água em bica para consumo durante pescaria

A tarefa de buscar água na fonte envolve toda a família, incluído as crianças, que também se inserem de outras maneiras no cotidiano do extrativismo,

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principalmente num contexto lúdico. Há que se destacar, entretanto, o potencial pedagógico implícito nessas brincadeiras, que acabam por inserir naturalmente a criança no universo do extrativismo (figura 12). As brincadeiras infantis refletem a dinâmica local: ao invés de carros, as crianças utilizam as brácteas penducunlares das palmeiras como se fossem canoas, constroem armadilhas para capturar guaiamuns e brincam nos riachos.

Assim, tal como foi tratado por Marques (2001), a infância na Salamina propicia inúmeras vivências ecossistêmicas e, em muitos casos, as brincadeiras contribuem para a complementação da alimentação familiar, ainda que isso não se constitua em uma obrigação infantil e também não seja considerado como trabalho. Os adolescentes, por sua vez, frequentemente são recrutados a trabalharem na pesca como ajudantes e é desta forma que eles acabam se inserindo profissionalmente no universo extrativista, inclusive levando o rendimento do trabalho para suas famílias.

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A solidariedade e ajuda mútua são características presentes nas relações entre os extrativistas. Assim sendo, transporte de materiais, construções de residências e outras atividades que demandam maior esforço são realizadas por um grupo em regime de mutirão que atribui a estas tarefas o nome de digitório.

Muitas residências da Salamina são feitas de taipa, construídas com material autóctone como madeiras e barro. Um número cada vez maior de extrativistas está edificando novas casas utilizando tijolos e aproveita as antigas para guardar redes, defumar pescado e produzir azeite de dendê. As casas de taipa estão sendo substituídas tanto devido à precariedade das construções que possuem baixa durabilidade, quanto por causa do risco de infestação por barbeiros. Na comunidade do Tororó duas pessoas moradoras de casas de taipa afirmam ter adquirido doença de Chagas.

"Olha, aqui tem muitos problema que poderia ser resolvido, só que as autoridade, as pessoas responsáveis fica só enrolando pra lá e pra cá e nada se resolve. Aqui tem muito barbeiro, barbeiro é o transmissor da doença de Chagas. Então aqui não era mais pra existir casa de taipa. Aqui era pra todo mundo ter sua casa de bloco, tudo direitinha, bonitinha.”

“As nossas casas a maioria 50% é picada de barbeiro. Eu mesmo sou porque das casa de taipa."

Outras dificuldades vividas pela comunidade dizem respeito à precariedade no acesso à saúde. Extrativistas afirmam que a falta de um posto de saúde na comunidade prejudica muito a qualidade de vida da população principalmente em situações de emergência, uma vez que o atendimento médico mais próximo só pode ser alcançado na cidade de Maragogipe. Não obstante, os entrevistados afirmam que atualmente a situação está um pouco melhor devido à presença ocasional de profissionais de saúde que realizam vacinação em crianças e proporcionam às mulheres a realização de exames preventivos.

Referências

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