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A produção de sentidos de imigrantes haitianos sobre a inserção sociocultural no processo migratório para a região da Grande Florianópolis

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Academic year: 2021

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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS DE IMIGRANTES HAITIANOS SOBRE A INSERÇÃO SOCIOCULTURAL NO PROCESSO MIGRATÓRIO PARA A REGIÃO

DA GRANDE FLORIANÓPOLIS

Marina Broering Righetto1 Daniel Kerry dos Santos2

Resumo

O início do século XXI tem sido marcado por um intenso fluxo migratório em todo o mundo. No contexto brasileiro, nos últimos sete anos, foi eminente a chegada de imigrantes haitianos em razão do terremoto ocorrido no Haiti em 2010. O processo migratório não implica em mudanças apenas sociais, provocando transformações na constituição subjetiva daquele que migra. Assim, a presente pesquisa objetivou compreender a produção de sentidos de imigrantes haitianos sobre a inserção sociocultural no processo migratório para Região da Grande Florianópolis. Para este fim, buscou-se apreender como os imigrantes haitianos percebem as diferenças socioculturais entre seu país de origem e o Brasil; caracterizar quais aspectos os imigrantes haitianos percebem como facilitadores e dificultadores para sua inserção sociocultural no Brasil; e identificar as Redes de Apoio aos/dos imigrantes haitianos na região em que estão inseridos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e de campo, constituída por entrevistas semiestruturadas, conversas informais e registros em diários de campo. Participaram deste estudo 3 homens imigrantes haitianos residentes na Região da Grande Florianópolis. Para análise dos dados, seguiu-se a metodologia de análise das Práticas Discursivas e de Produção de Sentidos de Spink e Medrado. As análises indicam elementos da Identidade Cultural do Haiti; a falta de Redes de Apoio organizadas aos imigrantes na Região da Grande Florianópolis; o trabalho e a segurança como facilitadores de inserção no Brasil; e a presença de racismo e xenofobia como dificultadores de inserção sociocultural na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Migração. Inserção sociocultural. Haitianos. Produção de sentidos. 1. Introdução

A migração é um fenômeno que ocorre na humanidade desde os tempos mais remotos, tendo sido motivada pelos mais diferentes fatores, como desastres climáticos, perseguições políticas e religiosas, discriminações étnico/raciais ou pela busca voluntária por uma vida melhor. Nesse início do século XXI o mundo revive um intenso fluxo migratório, principalmente de povos se deslocando do continente africano para a Europa, fugindo de conflitos armados; e de povos do Oriente Médio, em especial a população síria, que tem seu país devastado pela guerra e busca no refúgio sua sobrevivência. De acordo com o Alto

1 Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

2 Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e docente do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

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Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, 2016) um total de 65,3 milhões de pessoas foram deslocadas por guerras e conflitos até o final de 2015, gerando um aumento de quase 10% se comparado com o total de 59,5 milhões de pessoas deslocadas registradas em 2014. No Brasil, tal realidade migratória não é diferente e para além dos dados estatísticos, se torna necessário compreender as características de inserção sociocultural de pessoas que passam pelo processo migratório.

O tema migração suscita muitas opiniões e por vezes divergentes, havendo aqueles que se manifestam a favor do acolhimento e proteção de imigrantes e aqueles que entendem essa questão como um problema de segurança nacional e enxergam no imigrante um invasor, uma visão que tem nome e chama-se xenofobia. Na declaração Universal dos Direitos Humanos3, artigo XIII.2 está escrito que “todo ser humano tem o direito de deixar

qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. No entanto, tem-se assistido muitas

ações de países cuja política de segurança é a de proteger sua nação e barrar a entrada de imigrantes. Pode-se citar como exemplo o BREXIT, referendo ocorrido em 2016, que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia, dificultando ainda mais a entrada de imigrantes para os seus territórios. O BREXIT ocorreu em paralelo à ascensão de ideologias de extrema direita na Europa e com a eleição nos Estados Unidos da América de Donald Trump, cuja campanha eleitoral incluía ataques xenofóbicos e racistas, de posicionamento nacionalista contrário à imigração. No contexto brasileiro, também se percebe o crescimento da extrema direita que enxerga os grupos minoritários - imigrantes, negros, índios, quilombolas, mulheres, homossexuais, transexuais e travestis - como inferiores. Notícias de hostilidade e agressão a imigrantes estão presentes na mídia e discursos de representantes políticos em nome de proteção e segurança nacional acabam incentivando ações dessa natureza contra grupos minoritários.

O fluxo migratório no Brasil cresceu significativamente nos últimos 10 anos. De acordo com dados do site da Polícia Federal (2017) somente no ano de 2016, 126,258 estrangeiros deram entrada no país, enquanto no ano de 2006 o número era de 44,73. Quanto às modalidades de visto, no ano de 2016, o número de estrangeiros com visto temporário era de 502,116, seguido do visto permanente com 400,016 e o número de refugiados de 4,582. Os

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imigrantes haitianos ocupam um lugar de destaque na migração brasileira, figurando na terceira posição por nacionalidade, ficando atrás somente da Bolívia e dos Estados Unidos.

Com o visto de caráter humanitário4 concedido a eles pelo Governo Federal a partir do ano 2012, se estabeleceram no Brasil em busca de trabalho e moradia. De acordo com reportagem publicada em 2016 no Portal Brasil, existem no país 80.000 imigrantes5 haitianos que foram formalizados com a concessão de visto humanitário ou estão em processo de residência permanente, tendo ainda o visto em caráter humanitário sido prorrogado pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) até outubro de 2017 (PORTAL BRASIL, 2017).

Visto que há vários tipos de migrações, é importante especificar que tipo de migração este trabalho irá abordar. Nessa pesquisa, considerando as narrativas dos interlocutores e o contexto sócio-político-ambiental do Haiti, a categoria mais apropriada seria a de migração forçada. Trata-se de um termo genérico usado para descrever um movimento de pessoas em que se observa coerção, incluindo ameaças à vida e meios de subsistência, quer por causas naturais ou humanas - como no caso dos movimentos de refugiados e pessoas deslocadas internamente, bem como as pessoas deslocadas por desastres naturais ou ambientais, desastres nucleares ou químicos, projetos de fome ou de desenvolvimento (OIM, 2006, tradução minha). Será considerado o termo migração forçada para se referir ao processo migratório dos imigrantes haitianos que estão no Brasil resguardados pelo visto por razões humanitárias, uma vez que o principal motivo de sua migração para o Brasil foi um desastre natural - o terremoto de 2010 – que colocou em risco a própria sobrevivência dessas pessoas.

Diante desse contexto é que surge o interesse em realizar uma pesquisa relacionada às migrações, visto que é um fenômeno complexo e que atravessa vários campos do saber, incluindo a Psicologia. A migração haitiana é escolhida como recorte para a pesquisa devido ao meu contato anterior com esses imigrantes a partir do Projeto "Cultura em

4 O visto permanente por razões humanitárias foi concedido aos haitianos através da Resolução Normativa n° 97, de 12 de janeiro de 2012 permitindo que ingressassem legalmente no Brasil. Consideram-se razões humanitárias àquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010 (BRASIL, 2012).

5 O pesquisador Handerson (2017) também traz o dado do Ministério da Justiça de 80.000 vistos permanentes concedidos a haitianos num período de 6 anos, mas afirma que não significa dizer que todos esses 80.000 haitianos estão atualmente no país. Segundo o autor, por se tratar de um universo de mobilidade, muitos deles depois de dois ou três anos de residência no Brasil já partiram para outros países como Chile, República Dominicana e Guiana Francesa, onde possuem familiares.

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Movimento", desenvolvido no Estágio Básico em Psicologia Social6 da Unidade de Aprendizagem: Planejamento, Execução e Avaliação de Intervenção em Psicologia Social do curso de Psicologia. A experiência possibilitada pelas trocas culturais que os encontros promoveram, as leituras de preparação para o campo de estágio e as afetações que as falas dos imigrantes tiveram em mim, motivaram essa escolha em me aprofundar na temática das migrações escolhendo os haitianos como protagonistas da pesquisa. O interesse por outras culturas me levou aos haitianos pela primeira vez e os encontros cheios de ruídos de linguagem, mas repletos de significados, me fizeram querer continuar essa pesquisa que começou muito antes de eu perceber. Nesse sentido, o que pretendo é responder a questão:

quais os sentidos produzidos por imigrantes haitianos sobre a inserção sociocultural no processo migratório para a Região da Grande Florianópolis?

Busquei, assim, ouvir dos próprios imigrantes, os protagonistas desse processo, como tem sido lidar com as diferenças socioculturais desde sua chegada ao Brasil, como são acolhidos pelas instituições de apoio e como se percebem em relação à integração na sociedade brasileira. Essas são informações importantes e que auxiliam a todos os profissionais que atendem esse público, como assistentes sociais, psicólogos/as, educadores/as e profissionais da saúde, a desenvolverem estratégias de intervenção. No caso da rede pública de saúde e assistência, é necessário que os profissionais estejam capacitados para atender as demandas desse público específico. O atendimento eficaz, aberto à alteridade e sensível às diferenças que se busca promover na rede das Políticas Sociais é uma das formas de promover a integração dos imigrantes na sociedade de acolhimento7.

No intuito de conhecer o estado da arte sobre a temática das migrações dentro do campo da Psicologia no Brasil, foi realizada uma revisão narrativa de literatura nas principais

6 O Projeto Cultura em Movimento foi desenvolvido dentro de uma faculdade municipal da região e consistia em um grupo aberto voltado para imigrantes. Foi conduzido por mim e mais duas acadêmicas de Psicologia

(Jaqueline Patrícia do Amaral e Rafaela Clarice Gesser) sob orientação da Profª. Dra. Marcele de Freitas Emerim, no período de 7 encontros. Utilizando como tema central o intercâmbio cultural entre imigrantes e brasileiros, o objetivo era promover reflexões acerca do que é ser imigrante e as implicações que isso gera na vida desses sujeitos. A cada encontro escolhia-se uma temática relacionada à cultura (culinária, festividades, música, etc.) para orientar as discussões. Tanto as estagiárias, quanto os participantes do grupo apresentavam aspectos de sua cultura para o grande grupo. Com o intuito de promover este compartilhar cultural é que surgiram relatos sobre as dificuldades vivenciadas pelos participantes do grupo em sua inserção no novo país. 7 O termo sociedade de acolhimento é utilizado nos Estudos Culturais para designar a sociedade que acolhe o imigrante.

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bases de dados utilizadas na área: Bvs, Pepsic e Scielo. Nas pesquisas selecionadas, alguns autores (MORO, 2015; FREITAS, 2013; MARTINS-BORGES, 2013; MOUNTIAN e ROSA, 2015) destacam a importância da cultura na constituição psíquica do sujeito e na sua saúde

mental no contexto de migração. Em relação à chegada no país de acolhimento, há estudos

que demonstram as dificuldades encontradas pelos imigrantes na inserção e adaptação na nova sociedade (PEREIRA, 2011; PASQUA e MOLIN, 2009; MORO, 2015). Nesse sentido, a vulnerabilidade da população imigrante e o impacto na saúde decorrente do processo migratório são destacados por alguns autores (MARTINS-BORGES, 2013; GRANADA, et al., 2017; MARTINS-BORGES e POCREAU, 2009; KNOBLOCH, 2015). A maioria das pesquisas desenvolvidas sobre a migração haitiana no Brasil teve como foco de estudo a chegada dos imigrantes haitianos pela região amazônica e o processo de acolhimento e inserção na sociedade brasileira (SILVA, 2015; OLIVEIRA, 2015; SANTOS, 2016; SILVA, 2016; VERAN, NOAL e FAINSTAT, 2014).

Diante dos estudos que demonstram o impacto da experiência migratória na vida dos sujeitos migrantes é que se propôs essa pesquisa de Psicologia no campo das migrações. Entendemos que os saberes da Psicologia são importantes para a compreensão dos fenômenos migratórios, uma vez que a mudança geográfica e inserção numa nova cultura provocam transformações na constituição da própria subjetividade do imigrante. É pouco significativo o número de artigos que abrangem os imigrantes do século XXI que entram no Brasil na situação de refugiados ou com visto humanitário, como é o caso dos haitianos e que caracterizam a migração forçada. Destaca-se que as transformações advindas com as migrações modificam o sujeito migrante assim como os membros da sociedade que o acolhe, nesse caso, nós brasileiros. Trata-se, desse modo, de um processo histórico e dialético que transforma o cotidiano e a realidade material e subjetiva de todos/as os/as envolvidos/as nesses processos de interação e de encontros com a diferença.

Diante desse quadro, o objetivo geral da pesquisa foi compreender a produção de

sentidos de imigrantes haitianos sobre a inserção sociocultural no processo migratório para a Região da Grande Florianópolis. Como objetivos específicos buscou-se: 1) compreender

como os imigrantes haitianos percebem as diferenças socioculturais de seu país de origem e do Brasil; 2) caracterizar quais aspectos os imigrantes haitianos percebem como facilitadores e dificultadores para sua inserção sociocultural no Brasil; e 3) reconhecer como os imigrantes

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haitianos percebem as Redes de Apoio acessadas na região da Grande Florianópolis.

1.1. Migração haitiana para o Brasil

O fluxo migratório de haitianos para o Brasil é um fenômeno recente, dos últimos 7 anos, tendo como marco impulsionador o terremoto de 12 de janeiro de 2010 ocorrido no país. No entanto, a migração do povo haitiano para diversos países do mundo não começou no século XXI devido ao terremoto, sendo muito mais antiga e motivada por um conjunto de fatores de ordem política, econômica e social. O terremoto, cuja magnitude devastou cidades importantes do país em 2010, agravou ainda mais a crise humanitária que aquele país já vivia, sendo considerado, antes mesmo da catástrofe, o país mais pobre das Américas. Além do cenário de instabilidade política e econômica, somam-se à vulnerabilidade do Haiti os desastres naturais que assolam a ilha devido a sua posição geográfica no mar do Caribe.

Que fatores, afinal, levaram os haitianos a migrarem para o Brasil? De acordo com Thomaz (2013), a população haitiana se impulsiona a escolher países os quais não preveem visto turístico, como Argentina, Equador, Chile e Peru, sendo que o Brasil apareceu como alternativa de um país em desenvolvimento econômico no cenário mundial. O apoio humanitário oferecido pelo então Presidente Luís Inácio Lula da Silva, através de 1.200 cotas mensais de vistos humanitários, somado às tropas do exército brasileiro já localizadas no Haiti, acabaram fazendo com que o Brasil adquirisse para os haitianos uma feição acolhedora (THOMAZ, 2013).

Quanto ao perfil dos imigrantes haitianos que chegaram ao Brasil, Fernandes e Castro (2014) apontam que o grupo de imigrantes é formado em sua maioria por homens. Após a entrada dos primeiros deles no Brasil e estabelecimento de Redes de Apoio, ampliou-se a chegada de mulheres e crianças em situações de reunificação familiar. A maioria desampliou-ses imigrantes tem idade compreendida entre 20 e 50 anos, havendo poucas pessoas idosas. Parte das crianças já é detentora da nacionalidade brasileira, pois nasceu no país. Devido à dificuldade com a língua portuguesa, à baixa instrução ou à impossibilidade de equivalência de diplomas, a maioria dos haitianos buscou trabalho em ocupações que exigiam pouca qualificação, como construção civil, atividades auxiliares ou linhas de montagem industrial,

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havendo com frequência pessoas de nível universitário assumindo estes postos de trabalho (FERNANDES; CASTRO, 2014).

Os primeiros haitianos chegaram a Santa Catarina através de recrutamentos realizados na fronteira do Brasil com o Peru por empresas da região do Vale do Itajaí, e em razão do setor de atividade econômica dessas empresas foram alocados em serviços como de limpeza urbana, operações portuárias, logística e construção civil. A presença dos imigrantes em cidades dessa região (Balneário Camboriú, Itajaí e Navegantes) a partir de 2011, fez com que empresas de recrutamento de outras regiões catarinenses, especialmente do setor agroindustrial da região Oeste do estado, focassem nesses imigrantes impulsionando o deslocamento deles para outras partes do estado (GAIRF, 2015). A região da Grande Florianópolis também recebeu imigrantes haitianos e com a ausência de Políticas Públicas de Migração, o acolhimento deles vem sendo realizado principalmente pela Pastoral do Migrante, Universidades e Sociedade Civil. Destaca-se o Grupo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (GAIRF), criado em abril de 2014 pela Arquidiocese de Florianópolis diante da demanda crescente de imigrantes.

2. Metodologia

A presente pesquisa caracteriza-se como qualitativa e foi constituída por entrevistas semiestruturadas, conversas informais e produções de diários de campo. Para a análise do que foi produzido durante a pesquisa de campo, seguiu-se a metodologia de análise

das práticas discursivas e de produção de sentidos (SPINK E MEDRADO, 2004; SPINK,

2004). Sobre a pesquisa qualitativa Lakatos e Marconi (2010) afirmam que esta se preocupa em analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano. Já a produção de sentidos, conforme Spink (2004), é uma prática social e dialógica que implica a linguagem em uso e não uma atividade cognitiva intra-individual. A produção de sentidos é um fenômeno sociolinguístico, já que o uso da linguagem sustenta as práticas sociais geradoras de sentido, e busca entender tanto as práticas discursivas que atravessam o cotidiano (como narrativas, argumentações e conversas) como repertórios utilizados nessas produções discursivas (SPINK, 2004).

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O projeto desta pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisas Humanas da Universidade do Sul de Santa Catarina. Antes das entrevistas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Termo de Gravação de Voz foi lido para os participantes8. No documento constavam as orientações sobre a pesquisa, os objetivos, os riscos envolvidos, os benefícios acadêmicos e sociais, assim como a garantia de sigilo e anonimato, e, por fim, a autorização para gravação de voz. Todos os participantes assinaram o TCLE e autorizaram a gravação de voz.

Participaram da pesquisa aqui apresentada 3 imigrantes haitianos residentes no município de Palhoça que fazem parte da minha rede de contatos formada durante o estágio acadêmico, através do Projeto Cultura em Movimento. Todos os participantes foram convidados via mensagem, pelo aplicativo WhatsApp e aceitaram o convite no primeiro contato. Foi explicado que a temática da pesquisa seria sobre Cultura e sugerido a eles que eu fosse ao seu encontro ou que eles viessem ao meu encontro na universidade. Todos eles disseram que conheciam a universidade e que era fácil para eles irem ao meu encontro, pois moravam perto, sendo que no dia da entrevista dois participantes foram de bicicleta e um foi a pé. Dessa forma, as três entrevistas foram realizadas na universidade, em uma sala do Serviço de Psicologia. A fim de aproximar a entrevista de uma conversa, para que os participantes se sentissem mais à vontade, optei por antes de ir para o Serviço de Psicologia, apresentar o

campus a eles, como forma de diminuir a ansiedade. Assim, andamos pela universidade

conversando, enquanto eu mostrava as instalações e os serviços oferecidos, como a biblioteca, o espaço do complexo aquático e a área de conveniências. Além das gravações, utilizou-se como recurso adicional o diário de campo a fim de registrar as conversas antes e após a entrevista, assim como as minhas percepções de pesquisadora.

Os três imigrantes haitianos que participaram da pesquisa são homens, negros e com idades compreendidas entre 25 e 32 anos. Quanto ao nível de escolaridade, todos os participantes possuem o segundo grau completo concluído no Haiti e, quanto ao estado civil, são todos solteiros. O tempo de residência no Brasil é de pelo menos 2 anos, sendo que um dos participantes mora sozinho, outro mora com amigos e o terceiro com o irmão. Dois deles estão trabalhando, um com carteira assinada e outro com trabalhos eventuais (“bicos”); o

8 Devido à dificuldade com o idioma, o TCLE era conciso e objetivo, e para facilitar a compreensão optei por fazer a leitura em voz alta para garantir o entendimento e esclarecimento de dúvidas.

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terceiro participante está desempregado, apesar de já ter trabalhado no Brasil em sua chegada em serviços de construção civil. A ocupação que cada um exercia no Haiti antes de migrar para o Brasil era de estudante, bombeiro voluntário e cargo na construção civil.

2.1. Procedimentos da pesquisa

Utilizando-se como base teórica as práticas discursivas como forma de produção de sentidos de SPINK (2004) elaborou-se um roteiro de entrevista semiestruturado contendo questões iniciais com dados sociodemográficos e em seguida perguntas abordando 4 eixos que buscavam responder aos objetivos específicos da pesquisa. Os 4 eixos norteadores do roteiro foram: 1) percepção dos haitianos sobre as semelhanças e diferenças socioculturais; 2) percepção dos haitianos sobre as facilidades de inserção sociocultural; 3) percepção dos haitianos sobre as dificuldades de inserção sociocultural e 4) percepção dos haitianos sobre as Redes de Apoio acessadas na região.

Nos dados sociodemográficos perguntou-se: nome, data de nascimento, idade, estado civil, nível de escolaridade, cidade que morava no Haiti, ocupação no Haiti, com quem mora no Brasil, ocupação no Brasil e religião. Para responder às questões dos 4 eixos centrais da pesquisa o roteiro semiestruturado continha 10 perguntas que foram aprimoradas depois da primeira entrevista e foram feitas conforme a dinâmica estabelecida com o participante. São estas: Você se lembra quando chegou ao Brasil o que achou de mais diferente na cultura do Brasil e do Haiti? O que você acha que tem de parecido/semelhante comparando as culturas do Brasil e do Haiti? Que características você acha que tem no Brasil que facilitam a vida do imigrante? Quais as dificuldades de ser um imigrante no Brasil? Como os brasileiros tratam os haitianos, em sua opinião? Você recebeu ajuda de alguém na sua chegada no Brasil, do Governo, da Igreja, Órgãos Públicos? O que você mais sente falta da cultura do Haiti? O que você mais gosta da cultura do Brasil? O que você não gosta da cultura do Brasil? O que você levaria da cultura brasileira para o Haiti?

As perguntas foram criadas para auxiliar na condução das entrevistas, porém com a dificuldade em se expressar e elaborar uma resposta em outra língua, que não a sua materna, as narrativas apareceram muitas vezes fora do roteiro, nas conversas que se mantinha com os participantes após a entrevista. Percebeu-se que nas associações livres dos

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participantes apareciam elaborações sobre a inserção sociocultural no Brasil. Mesmo que como critério de seleção dos participantes tenha-se optado por aqueles com boa compreensão da Língua Portuguesa, é importante evidenciar que mesmo entendendo as questões propostas, se expressar sobre aspectos mais subjetivos em outra língua é complexo, por isso, todos os trechos de conversas em que se verifica uma elaboração serão considerados na análise.

Para a análise das entrevistas foram seguidos os seguintes passos: escrita dos diários de campo imediatamente após a entrevista; transcrição literal das entrevistas; padronização dos arquivos com dados sociodemográficos, transcrição e diário de campo; organização das narrativas por objetivos específicos; organização das narrativas por temáticas e por fim, análise das narrativas. Para realizar a análise das narrativas tomou-se como base o enquadre teórico de Mary Jane Spink (2004).

3. Discussão dos Resultados

3.1. Diáspora haitiana: do Haiti para o mundo

O Haiti está situado na maior ilha do Caribe, a Ilha de Hispaniola, ocupando a parte ocidental numa faixa de terra de 27.750 quilômetros quadrados, enquanto a República Dominicana ocupa o restante da ilha, do lado oriental. Os povos originários da ilha eram índios e foram massacrados ou escravizados pelos espanhóis, seus primeiros colonizadores, que também levaram para ilha os negros africanos para o trabalho escravo. A maior produção agrícola do país no período colonial era a do açúcar, do café e do cacau, o que tornou o Haiti a colônia mais rica da França, sendo chamada na época de Pérola do Caribe. O Haiti é também conhecido por ser a primeira República Negra das Américas e o primeiro país latino-americano a se declarar independente. Sua independência, proclamada em 1º de janeiro de 1804 por Jean-Jacques Dessalines, foi uma conquista dos negros escravizados que se rebelaram contra os colonizadores e derrotaram as tropas francesas de Napoleão Bonaparte (GOULART, 2015).

Após a independência, no entanto, a história do Haiti continuaria marcada por desigualdades sociais, ditaduras, violência e miséria. Diante desse cenário de violação de direitos, por conta de sucessivas crises políticas e econômicas e a alta vulnerabilidade social, a migração passou a fazer parte da história do povo haitiano. Segundo Handerson (2015), a

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partir da década de 1990 a diáspora haitiana virou objeto de estudo de muitas pesquisas, sendo que na mesma época o uso do termo se expandiu no espaço transnacional haitiano, principalmente no discurso político. A maior parte da literatura (Audebert, 2012; Basch; Glick-Schiller; Szanton-Blanc, 1994, entre outros) que trata da migração haitiana acentua a configuração da diáspora nos Estados Unidos, França, Canadá e Caribe (HANDERSON, 2015). O autor ainda aponta que, segundo os dados oficiais do Ministério dos Haitianos Residentes no Exterior, entre 4 a 5 milhões de haitianos estão espalhados pelo mundo, a maior parte nos países mencionados.

O fenômeno da diáspora, fundamental na constituição da cultura do Haiti, está presente nos relatos dos participantes da pesquisa, aparecendo de forma recorrente em suas falas. Surgiram comentários sobre parentes que vivem no exterior; sobre a falta de perspectiva no Haiti, fato que impulsiona os haitianos a migrarem para outros países; e sobre a diáspora como busca por uma vida melhor. Em conversa informal com Nicolas9, percebeu-se as referências que ele faz de suas próprias experiências e de percebeu-seus familiares em outros países, conforme segue:

Quando estamos falando das belezas naturais do Haiti, menciono para ele a República Dominicana que é mais conhecida entre os brasileiros. Ele diz que não gosta de lá, que morou por 5 meses no país e que os dominicanos não gostam de haitianos. Fala que tem muitos haitianos na República Dominicana. Relata ainda, que o pai morou no Equador e em outro momento comenta também que tem parentes em outros países. No Brasil, tem família no Paraná, São Paulo e em Santa Catarina. (Trecho de diário de campo)

Handerson (2015), em seu artigo "Diaspora10. Sentidos sociais e mobilidades haitianas", para além de definir a palavra diáspora ou discutir se existe ou não uma diáspora

haitiana, se propõe, do ponto de vista etnográfico, a explorar os sentidos sociais da diáspora entre os haitianos. Ele revela que a categoria diáspora pode qualificar pessoas, objetos, casas, dinheiro e ações: haitianos que vivem no exterior são considerados diásporas; casas construídas no Haiti com dinheiro de residentes no exterior são chamadas de casas de diáspora; remessas de dinheiro enviadas ao Haiti são chamados de dinheiro de diáspora. A

9 Para preservar a identidade dos participantes dessa pesquisa foram utilizados nomes fictícios. 10 O autor utiliza a palavra diaspora em itálico e sem acento para destacar o seu uso em créole entre os haitianos, língua oficial do Haiti junto com o francês.

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diáspora é vista como uma categoria de interação, pois ao mesmo tempo em que constrói múltiplas identidades a partir de duas sociedades ou mais, ela não se desenraiza do Haiti. Dessa forma, explica o autor, a diáspora interconecta o universo haitiano com o do exterior (aletranje em créole) realizando sínteses culturais entre os diferentes espaços de mobilidade internacional e o Haiti.

Do ponto de vista etnográfico, o termo diaspora tem um sentido articulado por três verbos: residir (viv) aletranje, voltar (tounen) ao Haiti e retornar (retounen) aletranje. Quem retorna definitivamente ao Haiti não é considerado diaspora e isso pode ser interpretado como o fracasso do seu processo de mobilidade. Essa epistemologia evoca ir-voltar-retornar, enfim, a mobilidade (HANDERSON, 2015. P. 61, grifo meu).

A narrativa abaixo do participante Jacques revela o sentido da diáspora em sua cultura, confirmando os dados apresentados acima. A narrativa de Jacques apresenta a dinâmica migratória de seu país, de como o povo haitiano se relaciona com outras culturas e de seus parentes que, assim como o de muitos outros haitianos, residem no exterior:

[...]

J: Mas lá no Haiti já tinha várias culturas por que os haitianos só viajam outros país e volta pra passar um mês, seis meses, e volta.

M: então já ta acostumado? E as pessoas trazem novidades de fora?

J: sim, se uma pessoa vive lá nos Estados Unidos quando você vai lá no Haiti só as estrutura do país que é a diferença, mas o jeito que a gente ta se vestir, se falar, é quase o mesmo.

M: o jeito como se veste...

J: si, igual por que as ropas a gente usa lá tudo do design lá dos Estados Unidos M: Tudo americano? Haitiano gosta de coisa americana?

J: mas, demais! (risos) M: tu já foi pra lá? J: não

M: tem algum parente lá? Alguma família?

J: si! Tem irmão, tem um tio, tem madrinha, tem primo, prima... [...]

(Participante Jacques)

Em seguida, Jacques prossegue com sua fala, tentando elaborar as possíveis motivações dos haitianos para migrarem do Haiti para outros países, demonstrando a falta de perspectiva para os jovens daquele país, como as dificuldades nos estudos e busca por trabalho e, por fim, a memória da destruição causada pelo terremoto que atingiu sua cidade:

M: então vocês já tão acostumados? Todo mundo que pode vai pra fora?

J: (risos) é... é o povo do Haiti mesmo, não sei por que, Haiti é um país pobre… a situação econômica, política…

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M: sim dai as pessoas tem vontade de procurar uma vida melhor...

J: sim depois acabo de estuda é bem complicado viu? A vida parece quase preto. M: quase preto? Como assim?

J: porque, vou te explica uma coisa... imagina 17 anos pra estuda até chegar num ensino médio, segundo grau, pra entrar na universidade é complicado, se faze uma escola profissional pra poder achar uma profissão, é bem complicado pra achar trabalho…e agora?

M: isso antes do terremoto já era difícil? J: sim..

M: na cidade que tu morava não teve? J: o que?

M: coisas do terremoto?

J: é aqui mesmo que passa direto, tem muito estado que não passa... na capital passa, quebrou...não sei como dizer aqui, quebrou….

M: vários prédios...

J: acho que quebro tudo! escola, cidade...

J: quebro tudo, tudo, tudo... (pausa e baixa a cabeça encerrando sua fala) (Participante Jacques)

Hall (2003) ao falar sobre as diásporas dos povos do Caribe retrata que a interpretação do conceito de diáspora entre eles é de que os legados do Império - a pobreza, subdesenvolvimento e a falta de oportunidades - podem forçar as pessoas a migrar, causando o espalhamento, a dispersão, porém “[...] cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor” (HALL, 2003, p. 28). Mezzadra (2005) aponta que a migração não implica uma ruptura total e abrupta com as condições de origem, mas que o mesmo tecido social do país de origem será modificado pelas novas relações estabelecidas com o país de chegada. O autor complementa que este processo tem uma face econômica muito óbvia: as remessas de moeda estrangeira enviadas pelos migrantes para suas famílias são muitas vezes mais importantes para os países de origem do que a "ajuda ao desenvolvimento" concedida pelos países mais ricos. Conforme Handerson (2015), boa parte da economia do Haiti é mantida por remessas de diáspora. Em 2007, as remessas enviadas para os familiares no Haiti superaram US$ 1.065.000.000, valor que representa 24% do Produto Interno Bruto (PIB) anual. Nesse sentido, a diáspora haitiana possui um papel crucial na vida social e econômica do país (HANDERSON, 2015).

3.2. Identidade Cultural

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cultura é o de identidade. Brah (2011) explica que cultura e identidade são conceitos

indissociáveis. Assim, para definir identidade, Brah (2011) discorre sobre o que é cultura, que segundo a autora, não possui uma única definição correta e definitiva:

De um modo geral, podemos dizer que a cultura é a construção simbólica da grande variedade de experiências vitais de um grupo social. A cultura é a encarnação, a crônica da história de um grupo. Dado que as histórias de grupos de diferentes setores da sociedade diferem de forma importante, suas culturas são, consequentemente, diferentes. Além disso, as histórias dos grupos estão intimamente ligadas a condições materiais da sociedade, de modo que as culturas são marcadas por condições econômicas e sociais de cada grupo em vários estágios de sua história. Culturas nunca são estáticas: elas evoluem através da história. [...] (BRAH, 2011, tradução minha).

A identidade se forma na cultura e através dela. Sendo ao mesmo tempo subjetiva e social, ela diz respeito ao reconhecimento de nós mesmos e do outro, que muda constantemente, a depender de diferentes situações e contextos. No entanto, a ilusão instável é o que vemos como real e concreto em nós e nos demais, sendo essa visão um processo tanto psicológico quanto social (BRAH, 2011). De modo semelhante à perspectiva de Brah, Hall (2006) apresenta a concepção de identidade do sujeito pós-moderno que não tem mais uma identidade fixa, essencial ou permanente e sim várias identidades, por vezes contraditórias e não resolvidas. “A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação as formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987 apud HALL, 2006). Nesse sentido, o autor apresenta o que denomina "identidades culturais" que são aspectos de nossas identidades que surgem de nosso "pertencimento" a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, sobretudo, nacionais.

É possível verificar nas narrativas dos interlocutores vários aspectos da identidade cultural de um povo. Foram mencionadas como diferenças socioculturais elementos da culinária, da música, das festividades, da religião, dos costumes e da língua. A culinária (“comida” como foi verbalizada nas falas) foi citada por todos os participantes ao falar das diferenças entre Brasil e Haiti. Heitor e Jacques elencaram a "comida" como principal diferença que encontraram ao chegar no Brasil. Nicolas também mencionou a culinária e chegou a me enviar fotos pelo celular de pratos típicos do Haiti após a entrevista. Ao falar das semelhanças culturais entre os países, Nicolas cita o futebol e o carnaval. Diz que os

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haitianos adoram futebol, especialmente o futebol brasileiro: "- quando tem jogo do Brasil,

haitiano não trabalha pra pode assiti", relata. Quanto ao carnaval, comenta que também é

parecido com o carnaval no Haiti, e afirma "- carnaval de Brasil e Haiti melhores do mundo!".

Quando perguntado sobre o que mais sentia falta da cultura do Haiti falou novamente do carnaval, e complementa falando do Vodu11 e da música, citando os ritmos típicos do Haiti:

rara, raboday, kompa.

A religião Vodu é lembrada nas narrativas dos demais participantes. Heitor, em suas anotações que trouxe no dia da entrevista, apresenta o Vodu como uma prática religiosa que tem relação com a libertação, afirmando que há a presença forte do catolicismo no país, demonstrando os dados que encontrou em sua pesquisa (de 80% a 85% são cristãos no Haiti), mas que na verdade quase todos os haitianos praticam Vodu. Fato confirmado pelo participante Jacques, que também menciona a prática do Vodu como elemento cultural de forte presença no Haiti, apesar de não ser um praticante:

[...] J: por que lá no Haiti na história, o Vodu parece sair do catolicismo ... entendeu, saiu com violência, tira bota pra fora como uma coisa ruim entendeu?

M: hum

J: cada santo que tem no Vodu tem referência no católico, entendeu? Só que é outra história [...]

J: Haiti é um pais pobre, quase todo país pobre gosta de pratica macumba, Vodu, santeria, mas Haiti não gosta de pratica de catolicismo [...] lá no Haiti acho que gente bota catolicismo pra absurda (explicar) as coisas viu? Mas quando a gente tá na realidade pra ver, é Vodu!

(Participante Jacques)

Handerson (2010) apresenta o Vodu como elemento fundamental da cultura haitiana e de expressão desse povo, tendo sido determinante na resistência anticolonial dos negros escravizados. O Vodu não é só um conceito espiritual, mas um modo de vida fundamentado em uma filosofia e em um código ético que regula o comportamento social de quem o pratica. O autor afirma que a importância do Vodu no Haiti ultrapassa o âmbito religioso, sendo o elemento principal da mentalidade haitiana, apresentando-se como um fenômeno cultural que deve ser compreendido e avaliado em termos da cultura de que faz parte. O Vodu, assim como outras manifestações religiosas de matrizes africanas, muitas

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O Vodu é “um conjunto de crenças e de ritos de origem africana que, estreitamente ligados a práticas católicas, constituem a religião da maior parte da população camponesa e do proletariado urbano da República Negra do Haiti” (MÉTRAUX, 1958, p. 11 apud HANDERSON, 2010, p. 122).

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vezes está pejorativamente associado à “feitiçaria”, “magia negra”, “ato diabólico”, devido às racionalidades das culturas dominantes e colonizadoras que combatem e visam exterminar o que é diferente. Hurbon (1987, p. 26) apud Handerson (2010, p. 133) afirma: “O Vodu é uma experiência religiosa autêntica, linguagem cultural válida como qualquer outra, que satisfaz o praticante em sua tentativa de compreender e dar sentido ao mundo e à existência”.

Outra diferença sociocultural que aparece em destaque por meio da narrativa do participante Jacques é a língua (idioma). Sua fala revela o desafio no aprendizado da nova língua em sua chegada no Brasil, que inicialmente aconteceu de forma autodidata, sem o auxílio de professores em aulas formais:

M: teve alguma outra coisa que quando tu chegou aqui tu achou diferente, muito? além da comida?

J: depois é a língua, eu pensei, falei: - oh meu deus será, que eu vou consegui fala essa língua?

M: já ta falando! J: é! (risos)

M: achou muito difícil?

J: não, não, é, a primeira vez eu achei bem difícil, mas depois, dois meses por aí, eu achei um pouquinho fácil por que, quando eu vem aqui, depois dois meses eu comecei a trabalhar, depois quatro, cinco meses por ai, já comecei falar, assim por que, por que não tem escola lá na (faculdade).

M: não tinha?

J: isso, não, não, eu fui lá no internet procurar uma gramatíca, português, gramatíca da língua português, eu copia todinha na numa (aponta para o caderno)

J: como o nome disso aqui? M: um caderno?

J: eu copiei tudo, usou o caderno inteiro, ta até lá na minha casa… M: a primeira vez que tu estudou foi assim, na internet?

J: sim, depois acabou de copiar, estudar na caderno, já consegui falar, entendeu? (Participante Jacques)

O participante Heitor, que ainda cursa aulas de Língua Portuguesa em uma faculdade que oferece curso gratuito para estrangeiros, também apresenta uma fala relacionada à língua, quando questionado sobre do que sentia falta da cultura do Haiti e do que mais sentia saudades:

H: o saudade também de conversação, é diferente, de pessoa que conversa (fala incompreensível) de se ajuda...

M: de conversar na tua língua?

H: de conversar... Si, a língua também, si

M: é diferente conversar com a língua que a gente fala e conversar em outra língua né?

H: ah si é difícil si, moito difícil

M: a gente não consegue falar tudo que a gente queria, né? H: si, tem que aprender, si, entendeu? (Participante Heitor)

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É importante destacar que dos três participantes da pesquisa, apenas Jacques tinha um bom domínio da Língua Portuguesa, o que refletiu na qualidade de suas respostas sempre completas e bem elaboradas. O participante Heitor possui uma boa compreensão do português, tanto que por mais de uma vez me falou que estava entendendo o que eu falava, que sua dificuldade maior era falar. Por fim, o participante Nicolas tinha dificuldades na compreensão da língua e na elaboração de suas falas, mas ainda assim conseguiu elaborar suas respostas utilizando-se da linguagem verbal, de gestos e com a ajuda do celular para traduzir alguma palavra ou mostrar fotos sobre o que falava.

Em relação aos diferentes costumes, um tópico que se destaca na fala dos participantes é a saudação haitiana. Na experiência anterior que tive no estágio acadêmico com o grupo de imigrantes, eram recorrentes as falas sobre a saudação no Haiti diferente do Brasil. Eles explicavam que enquanto no Haiti todos se cumprimentam na rua, independente de se conhecerem, no Brasil isso não ocorre, sendo algo que incomoda a maioria dos imigrantes com os quais tive contato. Nas entrevistas, os participantes trouxeram novamente a questão da saudação como um ponto de diferença entre haitianos e brasileiros:

H: quando eu ando no meu pais, no meu pais a pessoa cumprimenta a ote quando encontrave e quando chega no Brasil não é mesma coisa, por que mesmo, ta, mesmo ta de pessoa e pessoa, tem pessoa que não responde, tem pessoa que responde, e no Haiti toda pessoa igual. (Participante Heitor)

M: E se pudesse trazer algo do Haiti pra cá, que tu iria trazer? J: é a salutação.

M: como? J: a salutação M: a saudação?

J: é, do jeito que é lá no Haiti não precisa conhecer a pessoa pra dar um oi, como você está?

M: todos os haitianos que eu converso falam isso, todo mundo! J: risos, viu? É uma cultura! (Participante Jacques)

Os haitianos sentem falta da saudação muito comum em sua terra natal e no Brasil percebem como indiferença a não reciprocidade dos brasileiros. Em contrapartida, na narrativa de Jacques aparecem outras menções referente à linguagem, nesse caso não somente verbal, mas que diz respeito aos diferentes modos de expressar as emoções no Brasil e no Haiti. Tais diferenças provavelmente guardam relação com as diferentes colonizações, no caso do Haiti, de forte influência francesa:

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M: e o que tu mais gosta da nossa cultura do Brasil? O que tu mais gosta? J: Depende a pessoa, eu falo, eu fazer amizade, eu gosta o carinho que tem o Brasil do jeito que a gente se apreciar..

M: do jeito do brasileiro, que é mais carinhoso? É diferente do haitiano? J: diferente, eu gosto também do jeito que o povo brasileiro exposar emoção M: expõe?

J: é [...]

M: e a gente até já fez a pergunta no grupo, o que tu levaria da cultura brasileira pro Haiti se tu pudesse?

J: eu penso quando eu vo voltar lá eu vou mais direto pra falar, eu vou ser mais direto pra falar, por que lá no Haiti cada haitiano tem uma linguagem reservada, entender? Antes de falar tem que pensar um pouquinho se a palavra vai ser correta, vai ser boa, ma no Brasil a gente é mais direto, qualquer coisa fala, mas no Haiti não sei se vai mudar. (Participante Jacques)

3.3. Falta de Rede de Apoio organizada aos imigrantes

Buscou-se nesse trabalho identificar o acolhimento nas Redes de Apoio acessadas pelos imigrantes na região da Grande Florianópolis. Entendeu-se por Redes de Apoio, num primeiro momento, o acolhimento em instituições voltadas ao atendimento específico de imigrantes. Observou-se que na região onde a pesquisa foi realizada não há uma Rede de Apoio do Governo estruturada que se articule com as Políticas Públicas voltadas a imigrantes. Além disso, constatou-se que o acolhimento realizado pelas Igrejas, Universidades e Sociedade Civil também funcionavam como Redes de Apoio. Dessa forma, utilizou-se nessa pesquisa um conceito ampliado de Redes de Apoio, que também engloba o acesso à Rede de Saúde, Assistência Social, Educação, as redes de amizades com brasileiros, e o acolhimento na religião.

Percebeu-se nas falas dos interlocutores dessa pesquisa que há pouco envolvimento dos imigrantes com Redes de Apoio oferecidas na região pela igreja (através da Pastoral do Migrante) e universidades, uma vez que elas nem são citadas. O participante Heitor fala que “fez tudo sozinho, governo só ajudou com carteira de trabalho”, atribuindo isso como responsabilidade do governo brasileiro que precisa facilitar o acesso dos haitianos ao trabalho. Em fala informal com Heitor, ele relata frequentar os cultos da Igreja perto de sua casa todos os domingos, podendo se configurar como uma forma de Rede de Apoio e relata ainda que faz aulas de português e informática numa faculdade da região duas noites na semana.

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O participante Nicolas afirma que não recebeu apoio de ninguém quando chegou na região, quem o ajudou e ajuda até hoje é somente a família. Relata que na família todos se ajudam: se ele está sem dinheiro, a família no Haiti manda dinheiro, se um primo está sem dinheiro, ele ajuda, evidenciando uma rede de apoio familiar. Isso vem ao encontro do que o participante Jacques, que mora com o irmão, relatou em conversa informal antes da entrevista. Ele disse que aquele era o último dia de férias do trabalho, então, perguntei se havia descansado bastante, e a resposta foi: "- nada, não parei". Ele relata que passou as férias ajudando os amigos haitianos, já que ele fala português. Relata que levou uma colega no médico, levou um amigo na Polícia Federal, ajudou outro amigo a fazer documentos e finaliza dizendo que todos os dias tinha algo para resolver. Quando questionado se recebeu ajuda de alguma Rede de Apoio (Governo, Órgãos Públicos, Igreja) ele fala que recebeu ajuda só em sua entrada pelo Acre, rota migratória mais utilizada pelos haitianos, "- o governo dar lugar

pra dormir, dar comida... por que todo mundo que passa pelo Acre é assim, tem que passar no refúgio pra poder fazer CPF, carteira de trabalho."

A literatura aponta a falta de organização de uma Rede de Apoio aos imigrantes, não havendo Políticas Públicas estruturadas de atendimento ao imigrante no Brasil. Em Florianópolis, a entidade que mais presta auxílio aos imigrantes é a Pastoral do Migrante, vinculada à Igreja Católica, em parceria com Núcleos de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), que atuam diretamente com imigrantes. Está em andamento o processo de abertura do primeiro Centro de Referência e Acolhida para Migrantes e Refugiados (CRAI) de Santa Catarina em Florianópolis. Porém, mesmo após convênio firmado em janeiro de 2016 entre os governos Estadual e Federal, o CRAI segue sem data para instalação por falta de repasse de verba do Governo Federal12.

3.4. Trabalho e Segurança como facilitadores de inserção sociocultural

As respostas dos três participantes em relação aos aspectos facilitadores para inserção sociocultural no Brasil foram unânimes: trabalho. Todos eles percebem como

12 Informações obtidas na reportagem: Audiência pública em Florianópolis discute ausência do CRAI em Santa Catarina. Disponível em: http://migramundo.com/audiencia-publica-em-florianopolis-discute-ausencia-do-crai-em-santa-catarina/. Acesso em 12 nov. 2017.

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atrativo no Brasil a possibilidade de encontrar trabalho, uma vez que em suas falas revelam que no Haiti não tem trabalho. Conforme aponta Fernandes e Castro (2014), o Brasil se tornou rota de imigração entre os haitianos, concentrando inicialmente sua entrada nos estados do Norte, e posteriormente nas demais regiões, incluindo, a região Sul, tendo como principal objetivo a inserção no mercado de trabalho e a melhoria na qualidade de vida. (FERNANDES e CASTRO, 2014, grifo meu). As narrativas de Heitor, mencionando o trabalho e a busca por uma vida melhor, e de Jacques, reforçando o trabalho como aspecto facilitador, expressam bem essa temática:

M: e o que tu acha que no Brasil ajuda quando o imigrante vem, o que que facilita para migrar para o Brasil? O que tem no Brasil que facilita pra migrar?

H: ah si, por que quando a gente sai do Haiti, vem pra Brasil, por que depois terremoto teve muito dificuldade pra, muita empresa quebrou, loja, tudo as coisas quebro, por que pra genti trabalhar é muito difícil, pois se eu tenho um negócio, ta fazendo e tudo quebrar por que a gente vem pro Brasil pra procurar vida melhor (Participante Heitor)

J: o que que eu acho que é bom no Brasil... que facilita a vida de imigrante acho que é serviço, por que todo mundo que vem aqui quer trabalhar (…)

(Participante Jacques)

Do mesmo modo, o participante Nicolas afirma também que o que facilita a vida do imigrante no Brasil é o serviço, trabalho, pois “Haiti tem poco trabalho”. Fala também da segurança e de sua qualidade de vida no país: “Brasil é um país bom, tem paz, pode andar

tranquilo, Haiti é muito violência e não tem trabalho”. Relata que gosta do verde, da

natureza, por isso gosta da região, pois pode andar por todas as ruas, sem perigo. Na fala dos demais participantes a segurança também aparece como motivador, relatam que no Haiti há muita violência, corrupção e não há justiça. No trecho abaixo, quando estamos conversando sobre quem pode desfrutar dos destinos turísticos do Haiti, Jacques relata:

M: Quem aproveita mais, é americano?

J: tem bastante haitiano, por que sabe que lá no Haiti tem bastante traficante M: traficante de drogas?

J: sim!

M: Dai eles tem dinheiro?

J: Demais.. Quase toda pessoa que trabalha no governo é traficante, é traficante mesmo, por que lá no Haiti tem uma regra que diz assim ó, não da pra um senador, um deputado, ministro, presidente no horário que exerce o poder não da pra ir na prisão, por isso quando a gente é deputado já sabia ninguém pode pegar, prender… M: e aqui achas que os políticos são corruptos?

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J: mais ou menos, aqui parece que tem justiça, lá não tem, lá não tem, num país pobre a genti que tem o dinheiro tem a justiça

(Participante Jacques)

3.5. Preconceito: racismo e xenofobia

Nessa análise da inserção sociocultural de imigrantes haitianos na região, é imprescindível levar em consideração pelo menos duas questões: a nacionalidade e a raça/etnia. Além de estarem na condição de imigrantes e poderem ser alvo de xenofobia, o fato de serem negros os coloca também em contato com o racismo da sociedade de acolhimento, no caso o Brasil. Por serem imigrantes de um dos países mais pobres do continente americano, sofrem discriminação e são menos valorizados que imigrantes provenientes de países ricos. Portanto, as categorias “nacionalidade” e “raça/etnia” se relacionam e não podem ser desconsideradas, pois impactam diretamente na inserção sociocultural e nas experiências desses imigrantes. Ao discutirmos sobre os dificultadores para inserção sociocultural no Brasil, surgem nas falas dos participantes aspectos das dificuldades para encontrar emprego, para dar continuidade aos estudos e fragmentos que revelam o preconceito que sofrem em seu dia-a-dia.

M: sim, e tu acha que as pessoas é…. digamos, os brasileiros, tratam bem os haitianos? respeitam?

H: si, tem um monti que respeita, bem tem também que não respeita, por que pelo jeito Brasil é igual, tem gente boa.. mesmo tem bem e tem mal, as pessoas assim mesmo. (...) mesmo quando procurar serviço tem pessoa que mesmo eu procurando serviço, a gente falar bem comigo, mesmo quando acha não tem vaga, não tem emprego esse pessoa fala bem comigo e eu fica feliz e tem pessoa quando aparece ele ir embora ele no tem tempo pra falar com pessoa, tem pessoa assi.

M: nem pra poder conversar?

H: si, pra conversar, só tem… eu pra mim eu acho humilhacion também de causa de preconceito também

M: humilhação? H: uhum

M: sim, tu acha que pode ser por causa do preconceito também? H: si, um preconceito também

M: sim, e lá no Haiti tinha isso? É por que é imigrante aqui?

H: no, quando em mi pais, fica normal, por que meu cultura tudo igual. (Participante Heitor)

Segundo o participante Heitor, quando está em seu país ele não sente preconceito, por serem todos iguais, revelando um tratamento diferenciado no Brasil pela condição de

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imigrante e negro. Em nossas conversas informais, Nicolas relatou suas vivências em relação ao preconceito que sofreu ao migrar do Haiti para República Dominicana. Quando cito o país em nossa conversa, Nicolas muda sua expressão e diz que morou lá, mas não gostou, pois segundo ele: "- dominicanos não gostam de haitianos, chamam de negão, falam mal, brigam

e até matam", falo então que eles são racistas e ele finaliza: "- sim! e são negros também!"

Em relação a essa vivência do preconceito no Brasil, Nicolas não se aprofunda em sua fala, mas diz que o que ele não gosta no Brasil é que as pessoas contem mentira para ele (mintam), fala “- a crise é pra todos, como dizem, mas não gosta quando procura emprego e

brasileiro conta mentira dizendo que vão liga depois e não liga”. A fala demonstra a

dificuldade na busca por emprego e a possibilidade do tratamento diferente pela condição de imigrante, não tendo sido afirmado por ele, mas podendo ser uma hipótese.

A visão que os haitianos têm do Brasil é a de aqui seria um país onde a maioria da população é negra, inclusive não se imagina que exista tanta discriminação racial no país, devido à presença maciça de negros brasileiros em certas profissões do mundo dos espetáculos, na esfera do lazer (sobretudo nos esportes como futebol, na música e na dança/carnaval) (HANDERSON, 2010). De fato, em termos estatísticos13, a maioria da população brasileira é de negros/as. Talvez haja uma percepção diferente dos haitianos que migram para Santa Catarina, estado onde a maioria da população é de brancos, fazendo com que o imigrante sofra maior discriminação racial.

Segundo Oliveira (2004) o racismo no Brasil é praticado de forma sutil e velada, fazendo com que boa parte da população não se considere racista, apesar de praticarem atos dessa natureza. Uma das características das práticas de discriminação indireta vigentes no Brasil é que elas costumam aparecer de maneira dissimulada, sendo de difícil identificação, mesmo para aqueles que sofrem na pele seus efeitos (OLIVEIRA, 2004). O autor explica que o fato do racismo se tratar de uma prática ilegal no país, com consequências penais previstas em lei, e por ser visto de forma negativa no plano moral, demonstrar preconceito não é de

13 Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2014, realizada pelo IBGE, 53% dos brasileiros se declararam negros (pardos ou pretos) diante de 45,5% que se declararam brancos. A partir de 2007 a população preta e parta superou a branca. Disponível em:

https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000024052411102015241013178959.pdf. Acesso em: 14 nov. 2017.

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bom tom em nossa sociedade, porém, mesmo que se tente esconder intencionalmente o preconceito, ele se manifesta de forma irrefletida e velada.

Em relação à xenofobia, outra fala do participante Heitor revela seu incômodo em ser tratado de forma diferente dos brasileiros por ser estrangeiro e as implicações que isso tem em sua vida de imigrante que só está buscando no país sua sobrevivência:

M: e o que que tu não gosta da cultura do Brasil?

H: si, é claro não gosta é só, a gente quando a gente cumprimenta outra eu não gostam por que todo mundo é igual, se eu passar mesmo não conhece, é igual, por que tem muitas pessoas, tem pessoa que não respeita tem preconceito também, ficar mal quando conversar com pessoa e não responde, quando procurar serviço, mesmo tendo pessoa, fala tem serviço, pero pa brasileiro e não tem para estrangeiro, tem pessoal que fala assim.

M: e ainda fala?

H: sim por que quando a gente é estrangeiro, sair de outro lugar, a gente vem procurar uma vida melhor, porque precisa comer ah se eu não consigo pagar aluguel eu fazer o que? Não tem outro jeito, por que não tem ninguém pra me ajudar (Participante Heitor)

Bocayuva (2013), sob a perspectiva de Sandro Mezzadra, afirma que a fronteira se articula como um lugar de fabricação do inimigo. O autor explica que o bloco dominante no plano nacional se apoia na criação de polaridades que se projetam na montagem da imagem do “outro”, como o discurso sobre o criminoso, o fanático, o terrorista, o bárbaro, o desqualificado. Nesse cenário, “a espetacularização dos eventos e dos fenômenos de Psicologia de massas completam o peso das tecnologias de assujeitamento, crueldade e de produção das síndromes individuais e coletivas de pânico” (BOCAYUVA, 2013, p. 49). Não é difícil enxergarmos que o outro, o diferente, o estrangeiro, tende a ser visto como aquele que devemos ter ressalvas e devemos até mesmo temer, já que é o retrato daquilo que não conhecemos, portanto, não nos é comum. Nas falas dos participantes Heitor e Nicolas, podemos verificar situações em que lhes é negado trabalho (ainda que houvesse disponibilidades de vagas), pelo fato de serem estrangeiros.

Sawaia (2011), no livro Artimanhas da Exclusão, escreve sobre a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno e sem valor numa sociedade. Esta dor que não emana de dentro do sujeito, que não é particular, e sim de um grupo, é constituída nas relações sociais e denomina-se de sofrimento ético-político. O sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas.

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Aparece na maneira como o sujeito é tratado e trata o outro na intersubjetividade e cuja dinâmica, qualidade e conteúdo são determinados na organização social, retratando a vivência cotidiana das questões sociais dominantes de cada época histórica (SAWAIA, 2011). Nas narrativas dos interlocutores é possível perceber a dor que existe em ser tratado com hostilidade, indiferença e violência. As falas de Nicolas sobre a República Dominicana demonstram o sofrimento de uma população inteira que sofre violências cotidianas devido a sua cor e origem. O participante Heitor, ao utilizar a palavra “Humilhación”, também chama a atenção para o sofrimento ético-político daquele que é visto como subalterno e sem valor.

Portanto, o sofrimento causado pela xenofobia e pelo racismo é construído nas relações sociais, no contato com o “outro”, numa sociedade marcada por relações de poder de um dado momento histórico. Fato que se comprova na primeira fala do participante Heitor quando diz que em seu país não sentia preconceito, pois era tudo normal, eram da mesma cultura. Skliar (2003, p. 92) diante da pergunta de quem é a exclusão? afirma que poderíamos responder que:

[...] não é do sujeito, não está no sujeito, circula na cultura, ou melhor, em um fragmento pontual dela como um significado que não é natural e que foi naturalizado. É um mecanismo de poder centralizador que consiste em proibir pertencimentos e atributos aos outros.

3.6. Processos de aculturação

Diferente dos participantes anteriores, Jacques que está empregado há aproximadamente dois anos na mesma empresa, apresenta outra perspectiva quanto às dificuldades de ser imigrante no Brasil, apontando a continuidade dos estudos como maior dificuldade. Em sua narrativa, a questão do preconceito aparece de forma diferente dos compatriotas, possivelmente devido a sua maior integração na sociedade brasileira. Em seu relato, Jacques aponta o pouco domínio do português como um dos motivos pelos quais outros haitianos podem ter dificuldades em se relacionar com brasileiros:

M: como que tu acha que os brasileiros tratam os haitianos, na tua opinião?

J: olha, cada um tem uma própria maneira, viu? Tem gente, tem haitiano que falou pra mim aqui no Brasil tem... racismo, tem…. brasileiro que não quer falar com haitiano bla bla bla eu nunca acho isso, todo lugar eu passei todo mundo me gosta quer conversar comigo

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25 J: sim!

M: no teu trabalho, na escola… J: meu deus sim

M: então tu acha que te tratam bem?

J: sim sim, pra mim, por que tem gente que é haitiano também que não sabe falar português, eu posso dizer um problema, quando haitiano fala creolo, ele não entende, ele da problema pra brasileiro, entendeu? Mas quando fala português, ele entende, não tem problema. (Participante Jacques)

Relacionando as falas de Jacques ao processo de aculturação do qual fala Berry (2001), pode-se afirmar que Jacques apresenta-se na estratégia de integração na sociedade brasileira: já tem domínio do idioma, possui um trabalho estável, grupos de amigos brasileiros e se apropria dos espaços na região em que mora. Berry (2001, tradução minha) distingue quatro estratégias de aculturação do imigrante ao adentrar em uma nova cultura, conforme segue: 1) assimilação: quando o imigrante não deseja manter sua origem cultural e busca diariamente interação com outras culturas 2) separação: quando o imigrante valoriza a manutenção de sua cultura de origem e evita a interação com outras culturas 3) integração: ocorre quando há interesse em manter as duas, tanto a cultura de origem quanto no engajamento diário com grupos culturais diferentes e 4) marginalização: quando há pouco interesse ou possibilidade de manter a cultura de origem (muitas vezes por perda cultural forçada) e pouco interesse ou possibilidade em se relacionar com membros de outra cultura (por vezes, por questão de exclusão ou discriminação).

Todavia, nem sempre o imigrante pode escolher que estratégia irá adotar, aponta Berry (2001), uma vez que isso depende da sociedade que o acolhe e que pode restringir suas escolhas. No caso da marginalização, como apontado acima, muitas vezes o imigrante não tem possibilidade de manifestar sua cultura de origem e a falta de interesse ou possibilidade de estar em contato com membros da sociedade de acolhida está relacionado com o posicionamento dessa sociedade de segregação ou exclusão. Os participantes Heitor e Nicolas ainda não dominam tão bem o idioma, apesar de já estarem há mais de 3 anos no Brasil e pelo pouco contato com brasileiros limitam a prática da língua nas aulas de português que frequentam na faculdade. Sem trabalho formal e com poucas amizades com nativos, podem ficar marginalizados na sociedade devido à exclusão e discriminação.

Não faltam exemplos na mídia de ações de xenofobia, racismo e hostilidade nos países que acolhem imigrantes, incluindo o Brasil. As medidas de austeridade em relação às

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Políticas Migratórias adotadas em tempos de crise pelos governantes apresentam-se como mais um fator a ser considerado nessa relação. Portanto, entende-se aqui o processo de aculturação como um processo dialético (não apenas individual) entre os sujeitos imigrantes e sujeitos nativos que envolve um cenário permeado por questões de natureza cultural, política e econômica.

3.7. Haiti além da pobreza

Os três participantes trouxeram em suas narrativas uma apresentação do Haiti para além da imagem de pobreza e miséria que o país é retratado. Cada um de sua forma, me apresentou um Haiti que não chega até nós pela mídia. Talvez uma tentativa de mostrar que o Haiti é muito mais do que o terremoto e a pobreza, que também há belezas naturais, história e cultura. Dois participantes mencionam o mesmo local turístico: "Labadee" e o participante Heitor traz aspectos históricos de valorização de sua cultura.

O participante Nicolas me pergunta, de forma inesperada, no meio da entrevista por que eu não vou visitar o Haiti. Questiono, então, o que tem para fazer de turismo no país. Ele fala: “tem moita coisa bonita, muito americano vai para lá, tem muitos lugares que

ninguém sabe no Haiti bonito e que não é só pobre o país”.

Nicolas me mostra com orgulho fotos no celular de praias, de um local chamado Labadee. Mostra ainda fotos de um forte, também um local turístico. Após a entrevista Nicolas me manda mensagem com fotos de comidas típicas do Haiti e um vídeo turístico de Labadee, dizendo que é para eu assistir, pois é o do local que ele havia falado para eu ir visitar. (Trecho do Diário de Campo)

O participante Jacques também menciona Labadee e destaca que o Haiti não é só pobreza, possui também lugares bonitos que as pessoas desconhecem:

M: E tu acha que hoje, o Haiti tem lugares que da pra ir pra passear? Lugares que recebe turistas?

J: tem, tem, tem…. Labadee, tem bastante, por que assim ó, pra nós todo dia eu imaginei isso, quando você botar na internet, por exemplo se você botar Ha-i-ti, tu vai vê as coisas pobre e miserável, mas, mas a gente que vivi lá que sabe algum lugar, quando bota pro exemplo Labadee tu vê um lugar perfeito, nem imagina se for no Haiti (...) tem um cara, tem três empresa por ai, aqui numa casa de um amigo comecei a conversar com ele, ele falou pra mim, fui lá no Haiti, e eu: “- aonde?”, ele falou: “- La-ba-dee!” (risos) (Participante Jacques)

Referências

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