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O que estará em disputa nas ruas a partir da Greve Geral de hoje?

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Academic year: 2021

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O que estará em disputa nas

ruas a partir da Greve Geral

de hoje?

Valério Arcary

Ahora, ya de viejo, vuelvo a los primeros amores: me encanta Lenin por su empirismo. Porque en el fondo ese empirismo es, en relación al proceso histórico, lo más dialéctico que hay(…) Me adelanto a decir, entonces, una comprobación metodológica: un sano empirismo, un sano hálito empírico es lo más dialéctico que hay. Porque, de hecho, este sano empirismo de Lenin es: “Dejemos que los hechos se produzcan, [que] las revoluciones [se produzcan], y después hacemos las teorías”. Y no como creo que es más o menos el enfoque de Trotsky: “Hacemos teorías de cómo va a ser una revolución para todo el siglo”. (…)¿Qué quiere decir “sano empirismo”? ¿Qué hubiera dicho Lenin? Lenin hubiera dicho: “Soy medio empírico. ¿Por qué no vemos [qué pasa]?; después vemos, ajustamos [la teoría] a la realidad; Y la realidad inmediata para [elaborar] política inmediata; la realidad más general para [elaborar] teoría más general. Por eso en el problema teórico siempre es un poco tardío. Lenin es uno de los últimos en escribir sobre el imperialismo, pero después redondea [el tema] [1]

Nahuel Moreno

Ao contrário do que pensam aqueles que ainda oferecem o seu apoio crítico ao PT e seu governo, o que está em disputa no Brasil, depois das Jornadas de Junho, não é o destino do governo Dilma, mas o destino das mobilizações que nasceram do mal estar social. O governo Dilma, dez anos depois da eleição

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de Lula em 2002, não oferece razão alguma para qualquer dúvida. Não tem preocupação maior, senão recuperar o mais rápido possível a estabilidade das instituições. O que mais teme o governo é a amplitude da greve geral de 11 de julho. O que está em disputa é qual será a dimensão da entrada da classe trabalhadora em cena. E quais serão as repercussões da greve geral na consciência de milhões de jovens que foram às ruas.

Alguns intelectuais de esquerda, chocados pela presença de algo próximo a dois milhões nas ruas, em revolta popular de massa radicalizada, ou seja, muito mais do que protestos, se interrogam, perplexos, por quê? O que foi, talvez, mais pertubador nas Jornadas de Junho, para aqueles que apóiam o governo de coalizão liderado pelo PT, foi o repúdio indiferenciado a todos os governos, não distinguindo Haddad ou Dilma, de Alckmin do PSDB, ou Sérgio Cabral do PMDB, entre outros. Pela primeira vez, governos dirigidos pelo PT foram ridicularizados, denunciados, escrachados nas ruas em manifestações de massas, numa esscala diferente de todas as que desfilaram nos últimos dez anos. A insolência, a irreverência e a fúria da juventude deixou a intelectualidade próxima ao governo assombrada.

O sentimento antipartidário que irrompeu nas ruas nas Jornadas de Junho é um fenômeno complexo, portanto, como tudo que existe, contraditório. Atingiu, impiedosamente, o PT. E, ainda que com menos intensidade, até os partidos que se posicionam como oposição de esquerda aos governos do PT. Muitos na esquerda se perguntaram se as massas juvenis não estariam sendo manipuladas pela direita para desestabilizar o governo Dilma, e preparar a volta do PSDB e seus aliados ao poder. A propaganda petista do “nunca antes na história deste país”, depois de dez anos de repetição, fez estragos na consciência crítica da militância de esquerda, especialmente, entre os ativistas do movimento da classe trabalhadora organizada.

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análise tem o desafio de compreender uma dinâmica. De onde vem? Para onde vai? Uma análise sólida não tem compromisso senão com a compreensão da realidade. Análises não podem ser instrumentais. Precisam ser o mais rigorosas possíveis. Que aqueles que saíram às ruas não são reacionários é evidente. Acontece que o mais complexo modelo teórico sempre será imperfeito e insuficiente para abarcar as muitas e imprevisíveis combinações históricas concretas. A teoria da revolução está sempre em processo de atualização. O marxismo tinha previsto, por exemplo, que o proletariado seria o sujeito social da revolução anticapitalista. Em consequência tinha prognosticado que os países industrializados de forma pioneira seriam o cenário das primeiras revoluções socialistas vitoriosas. Entretanto, um dos paradoxos históricos mais pertubadores foi que os trabalhadores só tenham conquistado o poder num país central até hoje, e ainda assim de forma efêmera, na França, durante os dias da Comuna de Paris em 1871, no que poderíamos dizer que foi uma “contra-mão” da época histórica, porque o capitalismo ainda estava longe de ter esgotado suas possibilidades de desenvolvimento na escala internacional. E a maioria das revoluções anticapitalistas vitoriosas tiveram como sujeitos sociais outras classes. Somente na Rússia Czarista a classe trabalhadora foi o sujeito da derrota do capital. Foi nestas circunstâncias que a teoria da revolução foi reelaborada por Lenin e Trotsky.

É da natureza da discussão teórica a produção de conceitos e idéias como instrumentos de interpretação da realidade, o que supõe a necessidade das comparações e as generalizações. Não se pode realizar trabalho teórico sem o esforço de caracterizações e conceituações.

Na análise da realidade, no entanto, é preciso muito cuidado para não deixarmos nossas preferências teóricas nos cegarem. A teoria deve estar sempre em processo de verificação. O auto-engano é uma armadilha poderosa. Assim como o narcisimo é uma doença infantil intelectual, o auto-engano é uma doença

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infantil do narcisismo. Que bom quando pensamos ver confirmadas nossas hipóteses!

A construção de conhecimento sério, todavia, exige profunda humildade. Em outras palavras, combater a superficialidade, as generalizações rápidas, portanto, enxergar a situação concreta. Isso significa uma atitude crítica em relação às nossas hipóteses, a disposição de corrigi-las, a percepção de que a realidade é sempre mais surpreendente que os prognósticos que foram feitos, que o conhecimento é uma construção coletiva, que a polêmica ajuda o esclarecimento, que a luta de idéias deve ser feita com respeito pelas hipóteses e argumentos contrários, e muito mais. Exige, portanto, teoria e método.

Ainda que tenha se manifestado de forma explosiva nas ruas nas Jornadas de Junho, há que recordar que irrupções de antipartidarismo já tinham vindo à tona várias vezes nos últimos anos, e não pode ser considerado uma surpresa. O repúdio aos partidos, que são desprezados como os instrumentos dos profissionais da política, não é novo. Tem uma dimensão positiva? Como tudo é relativo, é bom lembrar que a ausência de direção é muito melhor que a presença de uma direção burocrática. E superior, incomparavelmente mais avançado, que a liderança de uma direção burguesa.

O domínio dos monopólios sobre o regime democrático está na raiz da corrupção. E a corrupção pessoal dos políticos profissionais está na raiz do ódio da juventude. Esse processo de experiência, ainda que incompleto, porque identifica mais o corrompido do que o corruptor, é progressivo. A luta contra a corrupção, uma forma degenerada de controle político inerente ao capitalismo, é uma luta progresssiva.

Mas o antipartidarismo tem, também, uma dimensão regresssiva: a desconfiança de qualquer instrumento de luta política pelo poder. A conclusão de que “os partidos são todos iguais” é ligeira e ingênua. Para compreendermos o apartidarismo, e o

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relativo apoliticismo, primeiro há que perceber que têm uma dimensão internacional. São uma expressão da repulsa ao regime eleitoral corrupto.

Mas a ideia de que o “meu partido é o Brasil” e, portanto, que os partidos seriam, não somente desnecessários, mas um obstáculo, é uma ideia de apelo simples, porém, muito perigosa. O meu partido é o Brasil é uma forma de nacionalismo apolítico, mas não é a antesala do fascismo, embora fascistas tenham se aproveitado, conjunturalmente, do atraso na consciência que este grito de guerra traduz.

Por trás deste atraso, desta confusão, encontramos três ilusões. Primeiro, a ilusão de que uma liderança individual incorruptível seria superior a lideranças coletivas. Não surpreende, mas é muito grave, que a saída política mais popular entre aqueles que foram às ruas em São Paulo, no dia 17 de junho, tenham sido Joaquim Barbosa e Marina Silva. Ninguém, nem uma só pessoa, pode salvar o Brasil. A busca de lideranças individuais salvadoras é uma fantasia apolítica. O que nos remete ao pensamento mágico e à ilusão da liderança individual incorruptível, indivíduos com capacidades, supostamente, fantásticas, a la Janio Quadros, ou Fernando Collor. A luta de partidos, ou seja, instrumentos coletivos de representação de interesses de classe, é incontornável nas sociedades urbanas contemporâneas. Não deve existir mais lugar para caudilhos. Vargas é o passsado do Brasil capitalista ainda em transição para a industrialização. À sua maneira, o lulismo, o caudilhismo carismático, foi uma das consequências da degeneração do PT. Trocar um caudilho por outro seria dramático, caminhar para trás.

Segundo a ilusão de que existe uma solução técnica ideal para administrar a sociedade, ou seja, a fantasia positivista da “ordem e progresso”. Como se não existissem soluções técnicas as mais variadas, que respondem a diferentes interesses de classe.

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Terceiro, e pior ainda, invertendo as relações entre causas e efeitos, a perigosa ilusão de que o problema seria a corrupção dos partidos sobre o Estado, e não a corrupção do capitalismo sobre os partidos.

O que está em disputa, portanto, é a consciência de milhões que irão lutar hoje, neste histórico dia 11 de Julho. A CUT e o PT farão o que puderem para conter, desviar e bloquear o caminho das mobilizações no dia seguinte. A tarefa da hora é abrir o caminho.

[1] MORENO, Nahuel. Critica a las tesis de la revolución

permanente de Trotsky Buenos Aires, Ediciones Crux, 1992.

Colección Ineditos de Nahuel Moreno. p.68.

Sob o signo do Corvo: a

Comissão Nacional da Verdade

e o bordão “nunca mais”

Renato Lemos

(Palestra feita na Fundação Getúlio Vargas, em 26 de junho de 2013, durante debate sobre o primeiro ano da Comissão Nacional da Verdade, com a participação do professor James Green, da Brown University)

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Esta comunicação tem como objetivo aproveitar o primeiro aniversário da Comissão Nacional da Verdade para discutir aspectos subjacentes aos objetivos apresentados na lei que a criou.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. O seu objetivo geral é “apurar graves violações de direitos humanos” ocorridas entre 18 de setembro de 1946 – data da promulgação da Constituição democrática que simboliza o fim do regime ditatorial conhecido como Estado Novo – e 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição democrática que simboliza o fim do regime ditatorial pós-64.

A lei especifica em artigo outros objetivos:

Art. 3o São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: ………

VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional.

Do trabalho da CNV, certamente, resultará um importante acervo de subsídios para o aprofundamento da compreensão do sentido histórico do regime ditatorial e o equacionamento de questões atuais a ele relacionadas. Algumas das suas iniciativas poderão produzir resultados especialmente proveitosos, como a investigação sobre as condições da morte do presidente João Goulart, que leva à chamada Operação Condor.

Entretanto, alguns pontos ligados à sua gênese institucional suscitam discussões. Merecem destaque|:

1 O período de abrangência do projeto de lei: ao estender as investigações a um tempo tão longo, descaracteriza a natureza política e histórica dos eventos registrados a partir de 1964.

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O período engloba distintos regimes políticos, nos quais as violências visadas tiveram sentidos igualmente diferentes.

2. A negação (parágrafo 4°, do artigo 4°) de poderes jurisdicional ou persecutório, que impede à Comissão que vá além da apuração de autoria de graves violações de direitos humanos. Embora, uma vez tornados públicos, os resultados das investigações possam subsidiar processos judiciais, perde-se a oportunidade de fazê-lo a partir de uma estrutura política que poderia enfrentar as inevitáveis resistências que surgiriam. 3. A questão do sigilo (parágrafo 2°, do artigo 4º) sobre “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade”, que “não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. Aceita e fortalece um limite que costuma ser funcional como proteção dos acusados.

4. A possibilidade de estabelecer sigilo para determinadas atividades da CNV (artigo 5°), “nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”;

5. A forma e os critérios de seleção e designação dos membros da Comissão (artigo 2º), decorrentes da natureza da CNV como órgão de Estado, o que exclui a representação política mais ampla.

6. Por fim, a natureza da CNV como órgão de Estado, que estabelece uma limitação estrutural – política, financeira, administrativa – às suas atividades.

Pretendo, aqui, contudo, ressaltar e discutir outro ponto. A CNV tem como central o objetivo desejado do “nunca mais”. É uma marca da revolta contra a violência sofrida por muitos sob as ditaduras. Embora traduzindo perspectivas mais longevas, ela surgiu, entre nós, na Argentina. “Nunca Más” é o nome do

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r e l a t ó r i o e m i t i d o p e l a C o m i s s ã o N a c i o n a l s o b r e o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), conhecido, também, como Relatório Sabato, devido ao seu presidente, o escritor Ernesto Sabato. No Brasil, está presente em vários nomes. O movimento “Tortura nunca mais”. O projeto “Brasil: nunca mais”. O lema do projeto “Memórias Reveladas”: “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça”. Expressões que se generalizaram por movimentos, projetos, sítios eletrônicos, blogs etc. Aqui e em outros países, a expressão se tornou um bordão.

A recorrência desse bordão me trouxe à mente o poema O corvo, do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Publicado em 1845, é, provavelmente, um dos poemas mais traduzidos da literatura mundial. Para o português, há várias versões, inclusive por escritores do naipe de Machado de Assis e Fernando Pessoa.

Um homem está vivendo o luto pela morte da mulher amada – Lenore – quando vê adentrar o seu quarto um corvo, que pousa sobre uma estátua de Atena. De imediato, diverte-se com aquela presença e pergunta ao pássaro qual o seu nome, ouvindo como resposta: “Nunca mais”. Impressionado com a figura lúgubre e misteriosa, constrói a fantasia de que ela poderia lhe estar trazendo notícias de Lenore e pergunta ao corvo se algum dia voltará a encontrá-la. A resposta é, novamente: “Nunca mais”. Aos poucos, associa à figura do pássaro a determinação do caráter irreversível da amada perdida, isto é, do passado. A última estrofe diz, no original:

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;

And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming.

And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor;

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And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

Shall be lifted … nevermore!

E, na tradução de Fernando Pessoa:

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda, No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais, E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais, Libertar-se-á… nunca mais![1]

O que me chama a atenção é a força do bordão nevermore / nunca mais, que perpassa todo o poema e se apresenta explicitamente nas suas quatro últimas estrofes.[2] Um crítico português observa:

O conteúdo emotivo das palavras never more (além do mais com valor foneticamente lúgubre) não é, neste aspecto mais forte do que o Português nunca mais, que também foneticamente é um termo impressivo de sentimento fatídico e funesto (…) As sílabas arrastadas de nunca mais dão a percepção de um dobre de finados, tal como o never more de Poe.[3]

A expressão “nunca mais” apresenta, ainda, conteúdo trágico. Remete ao curso do tempo, percebido como destino. É curioso que Pöe tenha posto no bico de um pássaro as palavras relativas ao tempo. Louis Althusser chama a atenção para um traço que define a singularidade da espécie humana: “Só os homens introduzem uma dimensão temporal: os animais não têm noção alguma de passado ou futuro, fecham-se em suas sensações”. [4]

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Poe pratica o que se costuma chamar de “licença poética” e pela fala do corvo lança ao leitor uma expressão que pode ser pensada, pelo menos, em dois sentidos. Num plano, amoroso, remete ao desespero em face do caráter irreversível da perda. Sabe-se que Lenore não ressurgirá. Extrapolando-se o poema, noutro plano, político, a expressão indica a pretensão de que o tempo se cristalize no passado, não retorne. Porque não se quer que a violência da ditadura ressurja.

A expressão “nunca mais” traz subjacente, portanto, a marca da subjetividade, característica do indivíduo. A sua adoção como lema de atitudes que se pretendem políticas é coerente com a abordagem hegemônica no trato das questões relacionadas aos “crimes” cometidos pelo Estado durante o regime ditatorial pós-64.

Trata-se da operação que reduz a violência ao seu sentido estrito de agressão físico-psicológica individual, como violação de um “direito humano”. Em torno dessa ideia, organiza-se internacionalmente um campo jurídico-político que exerce poderosa influência no equacionamento de conflitos de natureza variada. Entretanto, as iniciativas do campo dos “direitos humanos” são muito menos prolíficas quando têm como objeto entidades coletivas, em especial as classes subalternas, ou estruturas essenciais da sociedade. Não costumam ter muito futuro, entre nós, iniciativas – de governo, juristas, clérigos etc.– do tipo “Arrocho salarial nunca mais”. Ou: “Para que se conheça a expropriação dos camponeses. Para que não aconteça nunca mais”. Ou, ainda: “Imperialismo nunca mais”.

A CNV tem um grupo de trabalho sobre camponeses e indígenas. Após um ano de funcionamento, em seu site só se informa sobre a resolução que o criou e seus membros.[5] É verdade que, muito recentemente, a comissão divulgou ter encontrado importante documentação sobre a expropriação territorial de indígenas e, também que criou um grupo de trabalho sobre a repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical, que

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inclui sindicalistas. Pretende-se fazer o “mapeamento das organizações sindicais da época que sofreram alguma forma de intervenção; as mudanças legais em desfavor dos trabalhadores e os prejuízos decorrentes”. É um avanço, mas é significativo que apenas à altura do primeiro ano de funcionamento da comissão tenha sido criado esse grupo, que só fez até agora duas reuniões oficiais.

Já as vítimas individuais da ditadura, em sua esmagadora maioria originárias dos setores médios da sociedade, têm a seu favor governos, a elite bem-pensante, a mídia em geral etc. Não porque fossem de classe média quando dos atos de violência, mas, porque, hoje, em geral, não mantêm ligações orgânicas com quaisquer elementos políticos que apontem o sentido social da ditadura e suas conexões com o regime político atual. Talvez porque se contentem com uma catarse individual, muitas vezes acompanhada de compensação financeira.

Os mais preocupados com o aspecto politico que atualiza a questão se associam à tese de que só a democracia pode garantir que tais violências não se repitam. “Nunca mais”? O que os autorizaria a pensar dessa maneira? A democracia que está abrindo a possibilidade da catarse e da compensação financeira, do exame detalhado das violências políticas, é a mesma que pratica, hoje, violências não menos políticas contra os pobres em geral, contra estudantes, indígenas, militantes rurais etc. E já que o mote é “não se esqueça”, não se deve esquecer que foi sob a democracia de 1946 que se criaram as condições para o golpe de 64 e o cortejo de violências que o seguiu. Isso aconteceu porque a democracia foi ingênua? Foi ignorante – não se conhecia? Quem pode garantir que o conhecimento dos crimes e dos criminosos impedirá a sua repetição?

A violência política, é sabido, vem de muito longe. Mas, há circunstâncias históricas que a matizam. Considere-se a obra de portugueses, ingleses, franceses, holandeses et caterva

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contra os povos nativos da América, Ásia e África. Ou a obra dos conquistadores estadunidenses contra os indígenas ou a dos seus descendentes imperialistas contra povos em todo o mundo. É matéria histórica por demais conhecida e combatida e, ainda assim, se repete através dos tempos, recusa o banimento no território do “nunca mais”.

“Nunca mais” é uma bandeira de natureza retórica. Seu efeito é forte, é preciso reconhecer. Enquanto instrumento de mobilização política, cumpre o papel de arregimentar emoções em torno de objetivos que pouca gente, em sã consciência, negaria: o fim da tortura, por exemplo. Mas, enquanto divisa pedagógica é limitada. “Nunca mais” é uma impossibilidade lógica. Persegue o impossível e desarma para a contingência do possível.

Apontar as vítimas da violência, seus patrocinadores e executores é um inegável avanço no tratamento histórico e político da ditadura. É conveniente lembrar que, até não muito mais do que um ano, contavam-se nos dedos de uma mão aqueles que, publicamente, consideravam prioritário conhecer e denunciar a participação de representantes do empresariado nos esquemas da violência ditatorial. Hoje, a CNV e comissões da verdade estaduais – órgãos estatais – se dispõem a convocar empresários para depor sobre isso.

Entretanto, ainda prevalece a proposta restritiva de condená-los moral e juridicamente por terem cometido crimes de violação de direitos humanos. Crimes cuja punição exemplar hoje poderá, pretende-se, garantir que se repitam nunca mais. Ora, o acervo de conhecimentos na área criminal indica que até mesmo a pena máxima – a de morte – é incapaz de inibir definitivamente a prática criminosa. Falta desvendar a especificidade político-ideológica dessas práticas que se quer jurisdicizar. Lembre-se que a própria noção de “crime político” se origina de elaboração estatal defensiva, voltada para a manutenção da ordem capitalista. O “crime de lesa

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majestade”, típico das formações estatais pré-capitalistas, sofreu, com o amadurecimento do capitalismo, uma transmudação de sentido para a defesa do Estado. É o caso de perguntar: por que, quando os próprios diplomas legais que chamamos de “leis de segurança nacional” se apresentam, desde 1935, como conjuntos tecnicamente tipificadores de crimes conta o Estado, “dessociologizar” – valha o neologismo – a violência estatal, despojando-a de conexões com projetos de natureza classista? É preciso ir além da constatação de que militares e empresários tecnocráticos e frios, eventualmente portadores de taras individuais, agiram como criminosos em face da lei humanitária. Eles agiram, antes de tudo, em função de uma visão de mundo histórica e ideologicamente determinada. Agiram para promover a defesa e a modernização da ordem capitalista, de acordo com valores e métodos disponíveis na época. Visão de mundo, ordem social, métodos de dominação que teimam em manter sua essência em face de ataques de tipo jurídico. Que, cotidianamente, infelicitam milhões de indivíduos componentes das classes sociais subalternas. Para estes, em sua linguagem, a verdade que a CNV busca desvelar “é mais embaixo”, e a violência foi “sempre mais”.

Dificilmente se garantirá o fim da violência política por meio de pesquisas, leis e publicidade. Não há habeas corpus preventivo que proteja os oprimidos em geral da violência inerente à luta de classes. As indicações mais objetivas, no Brasil como no resto do mundo, apontam para a necessidade de estarmos preparados para a violência estrutural, com seu lúgubre ritual cotidiano e espasmos terroristas a cada crise percebida como grave ameaça à propriedade capitalista e à ordem classista.

Estaríamos no mais perfeito dos mundos se, com os dados que as comissões de verdade deverão reunir, conseguíssemos inverter os sentidos de “nunca mais”. O amoroso pelo político. Aquilo que não retorna – o tempo da vida – se reverteria. Lenore poderia ressurgir, e o corvo precisaria mudar de bordão. Já

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aquilo que, ainda que sob outras formas, sempre pode retornar – o tempo da política – se cristalizaria como passado morto. E quase todos dormiriam tranquilizados pela certeza de que a ditadura estava sepultada e não ressurgiria, nunca mais.

[1] O corvo e suas traduções. Org. Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 71 e 115.

[2] O próprio autor explicou ter usado deliberadamente o bordão como meio para impressionar o leitor. POE, Edgar. A filosofia da composição. In: O corvo e suas traduções. Op.

cit, p. 53-54.

[3] TÂNGER, Manuel. Mallarmé e Fernando Pessoa perante o Corvo

de Edgar Allan Poë (esboço de literatura comparada). Rio de

Janeiro: Casa das Beiras do Rio de Janeiro, 1968, p. 27.

[4] Política e história. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 6.

[5] Acesso em 11/06/2013; 23:08 h.

Milhares

na

Maré:

Solidariedade às famílias das

vítimas e à comunidade

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Uma chuva miúda ainda caía q u a n d o o ô n i b u s s e aproximava da passarela 9 da Av. Brasil, o local marcado para o ato. Era como se a natureza também quisesse fazer-se solidária à dezena d e a s s a s s i n a d o s e m u m a incursão da Polícia Militar, do governador Sergio Cabral, na Maré.

Um policial aborda o piloto do ônibus e ordena: “não pode parar, só depois do mercado”. Aproveito e desço.

Encontro companheiras e companheiros. Aí já estão professoras, professores, camaradas do PSTU, da CSP-Conlutas, do Movimento Mulheres em Luta, do Quilombo Raça e Classe, estudantes.

A chuva pára. Aqui e ali já se ouvem algumas palavras de ordem. Denúncias do Cabral, da truculência da polícia, do apoio da Globo à ditadura, chamados à greve geral em 11 de julho. Em pouco tempo o ato encorpa, somos milhares.

Começam as primeiras falas. E aí faltou sensibilidade para dar corpo à ideia de que a luta tem que expandir para além das fronteiras da comunidade, transformar-se em luta geral dos trabalhadores e do povo.

Digo isso porque não garantiram a fala da CSP-Conlutas. A ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre); o MML (Movimento Mulheres em Luta) e outras organizações também não puderam falar. Todas estavam inscritas, mas não receberam autorização para subir no carro de som. Conseguimos garantir apenas a fala do SEPE-RJ. Mesmo assim os milhares de lutadores que vieram trazer sua solidariedade não arredaram pé do local.

A pista lateral da Brasil, sentido zona oeste, é interditada. Faixas são penduradas na passarela. Pirulitos com os nomes das

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vítimas vão sendo erguidos, ao menos uma das vítimas tinha 16 anos. Penso, podia ser meu aluno.

Espantosamente alguém no carro de som diz: “quatro dos mortos

eram inocentes”. Como é? Fazemos um ato para admitir que a

polícia do Cabral pode atirar e matar se a pessoa for suspeita de ser do “movimento”, do tráfico? Fazemos um ato para admitir que alguns eram culpados, mesmo sem um processo formal com direito à defesa? Se quatro eram inocentes não havia problema dos demais serem fuzilados?

Sempre é bom lembrar nesse país não existe pena de morte. Sempre é bom lembrar que a esse Estado capitalista que mata devemos negar sempre a pena de morte. Devemos negar sempre a redução da maioridade penal. Afinal, sem esses instrumentos foram 25 mortes em 30 dias. Entre as vítimas havia muito em comum, a maioria negros, pobres, moradores da comunidade.

É fato: uma verdadeira indústria da morte está consumindo os filhos e filhas da classe trabalhadora. São os filhos e filhas da nossa classe que estão vertendo sangue, enquanto uns poucos enriquecem com o tráfico de drogas, irmão gêmeo do tráfico de armas e munições.

São anos e anos dessa política de guerra às drogas. No Rio de Janeiro essa política deu um salto com a nomeação de Beltrame e com as UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora). Ora, se é pacificadora é porque haveria uma guerra. Em uma guerra matam-se os inimigos. Ataca-matam-se militarmente matam-seu território.

O resultado prático das UPP’s é que muda a forma como o tráfico de drogas e armas é feito. Para os moradores ficam a militarização da comunidade, os toques de recolher, e ter de aturar todo dia a brutalidade do Estado, de seu aparato repressivo, a PM.

Chega. É preciso inverter essa lógica que de fato criminaliza a pobreza. Os que enriquecem, aqueles que juntam montanhas de dinheiro com o tráfico de drogas, de armas e munição não estão

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nas comunidades. É preciso investigar o caminho desse dinheiro sujo com o sangue dos nossos mortos e meter na cadeia os que organizam essa lucrativa indústria da morte. É necessário meter na cadeia os banqueiros que financiam este negócio terrível. Os bens que eles tenham construído explorando essa indústria da morte devem ser confiscados. Uma boa fórmula é utilizar essa riqueza em clínicas para recuperação de dependentes e campanhas de esclarecimento quanto ao uso das drogas.

Porém estas medidas devem vir acompanhadas da legalização do comércio e a descriminalização do uso de drogas. A criminalização facilita a corrupção no aparelho estatal, em especial no aparelho policial. A criminalização interessa para os que lucram verdadeiramente com essa indústria.

Descriminalizar o uso, legalizar o comércio e estabelecer o monopólio estatal é atacar de frente os interesses dos banqueiros e dos industriais do tráfico de drogas, de armas e munições.

Tais medidas, em um primeiro momento, podem aumentar o consumo. Elas devem vir acompanhadas da criação de clínicas de recuperação e de campanhas pesadas de esclarecimento sobre o uso e a dependência química, de forma a alcançar resultados parecidos comas campanhas contra o tabagismo.

Como nos gigantescos atos dos últimos dias, cartazes de cartolina feitos à mão foram erguidos. Em um deles se lia:

“Quem policia a polícia?” Desde o carro de som agitaram: “Estado que mata nunca mais”.

Só é possível policiar a polícia se tivermos uma polícia para defender os trabalhadores e o povo, e não para atacá-los. O Estado que mata é o Estado capitalista, onde a polícia existe para defender os interesses dos ricos e poderosos, os interesses da burguesia.

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Militar. Os delegados, os chefes da policia devem ser eleitos. Os policiais devem ter direito de sindicalizar-se, o direito a fazer greves. Devem ter o inalienável direito de não cumprir ordens que signifiquem atacar os trabalhadores e o povo.

Que tipo de Estado vivemos?

“Estado que mata nunca mais”? Só é possível concretizar esta consigna se pensarmos em termos de: Estado CAPITALISTA que mata nunca mais!

Enquanto vivermos sob um Estado dos ricos e poderosos, em um Estado burguês, um Estado capitalista, os trabalhadores, o povo pobre vai ser morto, vai ser atacado pelo Estado.

É assim em nossas comunidades. É assim com o povo indígena. Foi assim no Pinheirinho. Nos atacam quando lutamos contra o aumento das passagens, quando lutamos pela reeestatização do Maracanã, quando fazemos greves.

Precisamos começar a pensar em termos de destruir esse Estado dos ricos e poderosos. Em termos de destruir este Estado burguês e construir outro Estado, um Estado de outra classe social, um Estado dos trabalhadores, um Estado operário.

Os primeiros momentos dessa reflexão, que esse Estado não é nosso, é dos ricos e poderosos, e esse Estado nos ataca e nos mata já começam a aparecer.

Os últimos atos gigantescos Brasil afora tiveram muitos e muitos pontos positivos, também no que se refere à consciência política: o combate aos governos e a experiência com o aparato repressivo. Começa a avançar também a experiência que os partidos não são todos iguais.

As traições do PT, com os governos desse partido se colocando a serviço dos ricos e poderosos, privatizando hospitais, privatizando o petróleo, liberando os transgênicos; as alianças que o PT faz – o vice-presidente da República é do

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PMDB, mesmo partido do governador Sergio Cabral, governo do qual o PT faz parte, assim como faz parte da prefeitura de Eduardo Paes etc. Estas experiências geraram uma desilusão que levou muitos a pensarem que os partidos são iguais.

Que essa desilusão com o PT tenha se transformado em desprezo é compreensível, mas a ideia de que todos os partidos são iguais precisa ser enfrentada, trata-se de uma ideia perigosamente errada, e foi usada pelos neonazistas e fascistas.

Entre os que gritavam “sem partido” nos atos, estavam também lutadores honestos, que querem realmente construir um mundo mais justo e igualitário. Muitos desses gritavam expressando seu desprezo pelos partidos tradicionais, entre eles o PT. Mas ao colocar um sinal de igual entre todos os partidos, ou seja, igualando PSDB, DEM, PMDB, PT, e outros, com os partidos da esquerda que se reivindicam socialistas, tiveram, na prática, a mesma palavra de ordem que os fascistas; fizeram, na prática, uma frente única com os neonazistas.

Em vários dos atos país afora, muitos dos que gritavam “sem partido” o faziam enrolados em bandeiras verde-amarelas, gritando coisas como: “minha única bandeira é a bandeira do Brasil”. Entre eles estavam os neonazistas. É pouco provável que esse nacionalismo antipartidário se proponha a lutar pelo fim dos leilões do petróleo, ou pela anulação da Reforma da Previdência comprada com a grana do mensalão. Trata-se de uma consciência reacionária que também se expressou nas manifestações.

No terreno prático esta ideia (sem partido) se materializou na intenção de bandos neonazistas junto com policiais infiltrados de tentarem expulsar fisicamente partidos de esquerda, sindicatos, entidades estudantis, dos atos. Tentaram tomar bandeiras, agrediram e chegaram a ferir gravemente pessoas.

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Porém as sementes qualitativas dos atos da Copa das Manifestações começam a brotar. Aproximando-se o que seria o fim do ato, desde o carro de som começou a se ouvir os primeiros acordes do hino nacional. Uma coluna composta basicamente por jovens, por centenas de jovens, alguns com tambores, que há tempos mostrava seu ânimo, solidariedade e disposição de luta, atravessa a manifestação gritando e cantando em uma só voz, em meio ao hino nacional: “Chega de

ironia, esse Estado mata pobre todo dia!”

Qual estado mata pobre todo dia? O Estado capitalista. Essa é uma das razões que precisamos de outro tipo de Estado, precisamos de um Estado onde os trabalhadores e o povo são quem manda.

Esses primeiros brotos precisam ser cultivados. O calor e a luz das lutas vão fazê-los desabrochar. Certamente tentarão sufocá-los com tiros, bombas, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, mas é possível que isso os torne mais fortes. Tentarão curvá-los, desviá-los com boatos de golpes, com discursos pela unidade, escondendo a unidade com o inimigo, mas é possível que isso os torne mais conscientes.

A entrada em cena dos setores organizados da classe trabalhadora, nesse momento a greve geral de 11 de julho, pode ser um bom adubo para ajudar nesse desenvolvimento. E aí, é possível que o futuro nos dê flores e frutos.

Entrevista de Aldo Sauda ao

G1 sobre a revolução egípcia

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em curso

“Chamar o que está acontecendo [no Egito] de golpe é extremamente simplista”, analisa o brasileiro Aldo Cordeiro Sauda, internacionalista que morou no país em 2011, quando o ex-ditador Hosni Mubarak foi derrubado, e vive atualmente em Beirute, no Líbano. Para ele, a derrubada do então presidente Mohamed Morsi do poder pelo exército nesta semana deve ser analisada no contexto da revolução que tirou Mubarak.

“O que há é um processo revolucionário em curso em que a massa vai para a rua – em números falam que pode ser a maior movimentação popular da história Moderna – sem instrumentos de poder, sem controle. A massa vai a rua, faz a denúncia, mas ela não tem organismos civis para a tomada do poder ou para ela mesma derrubar o presidente.”

Veja a entrevista completa:

G1 – Como você avalia a atual conjuntura e golpe de Estado no Egito?

Aldo Sauda – Chamar o que está acontecendo de golpe é

extremamente simplista. Primeiro do ponto de vista legal. Quando você diz que há um golpe, você parte do pressuposto de que houve uma ruptura na ordem constitucional egípcia. Acontece que, em novembro de 2012 já houve uma ruptura da ordem constitucional feita pelo próprio Morsi, na qual ele acumulou para si todos os poderes tanto legislativos quanto judiciários. […] A partir de novembro de 2012, o Morsi, em termos de poderes institucionais e controle popular que havia sob seu mandato, era mais ditatorial que o [ex-ditador Hosni] Mubarak.

[…] A grande ruptura constitucional que houve no Egito foi em novembro de 2012. Portanto, toda legitimidade do regime a partir de então ficou em cheque. Mas, mais do que isso, me preocupa que todos chamem o processo de fevereiro de 2011 de

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Revolução e esse de agora de golpe. Acho que essa resposta é até um pouco ideológica. O que existe é um processo longo, contraditório, mas com uma revolução em curso. O exército entrou no jogo para segurar o movimento. Você tinha 17 milhões de pessoas nas ruas, violência e aí o exército derruba o Morsi. Não estou dizendo que o exército é uma maravilha. Mas o que houve [agora] é muito similar ao que houve em 2011. Com a diferença de que agora estava muito maior. Me lembro que uma das últimas manifestações de 2011 tinha cerca de 6 milhões nas ruas. Agora tem o dobro.

É tão similar ao que aconteceu em 2011, que me parece errado classificar o que aconteceu em 2011 como ‘ah, que maravilha, primavera árabe, liberdade, democracia’ e o que aconteceu agora apenas como golpe, uma medida autoritária. Isso não quer dizer que não haja como parte do processo um golpe de Estado. Assim como houve em 2011 também um golpe de Estado. Mas, quando você fala em golpe, você carrega uma conotação r e p r e s s i v a e r e a c i o n á r i a . O q u e h á é u m p r o c e s s o revolucionário em curso em que a massa vai para a rua – em números falam que pode ser a maior movimentação popular da história Moderna – sem instrumentos de poder, sem controle. A massa vai à rua, faz a denúncia, mas ela não tem organismos civis para a tomada do poder ou para ela mesma derrubar o presidente. Então outros organismos o fazem, um dos grupos, usando a legitimidade do povo, toma o poder e derruba o poder anterior.

G1. Por que não foi um impeachment, então?

Aldo Sauda – O Morsi estava acima de todas as instituições

jurídicas e legislativas. Além disso, existe um vácuo institucional no país. Morsi dissolveu a Assembleia Constitucional e puxou os poderes para si em novembro de 2012. Quer dizer, ele deu um golpe em 2012. Isso [que acontece agora] é mais um contragolpe do que qualquer outra coisa. Quando você olha todo o processo constitucional egípcio é uma bagunça, existe dificuldade de se dizer que Constituição se

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aplica no Egito hoje, há diversas interpretações. Na verdade [isso] se explica porque a legitimidade do processo em meio a uma revolução de massas não vem de um debate legalista, ela vem das ruas. Revoluções são assim.

Hoje no Egito, mais do que nunca, o povo está erguendo fotos dos militares, os mesmos que estavam no poder e oprimindo o povo antes. Agora, porque quando os egípcios fazem isso é um absurdo e quando no Brasil, nas manifestações, estava cheio de skinhead e neonazista batendo em pessoas dos movimentos sociais é normal? Isso não erradica do movimento seu caráter progressista. O fato de que você vai ter comportamentos reacionários e comportamentos autoritários, uma série de contradições dentro do movimento, não significa que não seja uma revolução. A massa é contraditória.

G1. O que vai acontecer com a Irmandade Muçulmana agora?

Aldo Sauda – Essa é a pergunta do milhão. Não sei, mas acho

que vai fracionar a Irmandade. Foi um governo muito desastroso. Acho que a Irmandade vai passar por uma crise muito grande, e politicamente a tendência é ela se desintegrar. Não sei se alguns setores mais radicalizados vão partir para a clandestinidade e fazer atos terroristas, pois não seria a primeira vez que isso acontece. Até agora no Egito, desde o começo da Revolução, o regime de [Hosni] Mubarak não foi derrubado. A Irmandade nunca foi radicalmente contra o regime. Eles tinham uma relação muito complexa com os militares. O regime não caiu quando Mubarak caiu, quando Morsi foi eleito o regime não caiu, houve uma mudança nas cartas, mas não caiu. E agora também não. Está balançando, mas não caiu. Morsi não foi uma ruptura com esse regime. É muito complicado e confuso.

Há uma crise econômica e social, então quem está no governo vai rodar. É um país de famintos, miseráveis, é o país que mais importa grãos no mundo e não houve ruptura da política econômica de Mubarak. E também não há uma situação mundial que permita uma grande recuperação econômica do Egito.

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A tendência, eu acho, é o processo continuar indo nesse caminho. Ou sai um movimento que consiga tomar o poder das massas – que não seja os militares nem a Irmandade – ou entra alguém e esmaga o movimento – o que levaria um enorme derramamento de sangue. Se isso não acontecer esse ciclo continua. Derruba o governo, entra um novo governo, fica um pouquinho e o povo fica cansado e vai para a rua de novo.

[…] O povo vai para a rua, mas não sabe para onde ir. É uma grande crise de direção. As pessoas sabem o que não querem, mas não estão dispostas a terem uma organização.

G1. E o [prêmio Nobel da Paz] Mohamed ElBaradei?

Aldo – ElBaradei apostou em construir uma frente nacional de

oposição, chamada Frente de Salvação Nacional, mas a única coisa que unifica essa frente é que ela é oposição. Além disso, existem poucos elementos que a mantém unida. Ela se formou recentemente em oposição ao Morsi e não tem um programa claro.

G1. Ele não pode ser um nome de união?

Aldo Sauda – Acho ElBaraei fraco. Como político, com posições

fracas. Ele não é um sujeito de massas. E, além de tudo, ele não tem nenhuma organização política capaz de sustentá-lo. Quem tem é um sujeito que está próximo a ele que se chama Hamdeen Sabahi, que não sei como vai se movimentar agora.

G1. Você acredita na possibilidade de uma guerra civil?

Aldo Sauda – Acho que volta para a pergunta sobre o que vai

acontecer com a Irmandade. Não descartaria um cenário do qual você tivesse carros-bomba explodindo, coisas assim. Acho que não dá para descartar nada agora. Agora, guerra civil tipo Síria, não. Acho muito difícil.

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Nas Jornadas de Junho a

juventude votou com os pés

Valério Arcary

Os camponeses estão votando com os pés.

Vladimir Ilitch Ulianov, alias, Lenin, quando informado que os camponeses estavam desertando em massa do Exército Czarista na Primeira Guerra Mundial.

Na Alemanha Oriental, (os) cidadãos decidiram (de forma) desorganizada, espontânea, embora decisivamente facilitada pela decisão da Hungria de abrir suas fronteiras – de votar com seus pés e seus carros contra o regime, migrando para a Alemanha Ocidental. Em dois meses, 130 mil alemães orientais tinham feito isso (…), antes da queda do Muro de Berlim. (…) Foi uma demonstração didática da máxima de Lenin de que a votação com os pés dos cidadãos podia ser mais eficaz do que a votação em eleições.[1]

Eric Hobsbawm

Um dos traços fundamentais da nova situação aberta neste “inverno do nosso descontentamento” brasileiro, para lembrar o fascinante romance de John Steinbeck sobre a situação nos Estados Unidos nos anos de depressão após a crise de 1929, é

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que a mobilização das massas está em relativo descompasso com a consciência. A ação é mais avançada que a consciência. Muito mais avançada, na verdade.

As massas juvenis nas ruas sabem muito melhor o que não querem do que aquilo que querem. Todas as experiências históricas confirmam que a primeira onda de uma revolta começa na forma do Não! Basta! Chega! Mas esse momento é só o começo. São as mobilizações populares que abrem a possibildade de mudar as sociedades. A evolução da consciência dependerá da luta política. Por isso as responsabilidades da esquerda aumentam. Na semi-insurreição na Argentina em 2001, a forma da revolta popularizou o Que se vayan todos (ou Fora Todos) para expressar a indignação, repúdio e desprezo por todos os partidos eleitorais do regime que se alternavam no poder, mas mantinham a mesma política. O que ajuda a entender o descompasso entre o ódio às formas que assume a dominação, seja o regime político uma ditadura, como no norte da África e Médio Oriente a partir de 2011, ou democracias eleitorais, como na Grécia, Espanha ou Portugal em 2012, é que a raiva amadurece mais rápido que o apoio a uma alternativa política anticapitalista.

O Brasil acompanha, finalmente, uma tendência internacional dos últimos anos pós explosão da crise econômica de 2008. Entramos atrasados. A história explica este padrão: a rebelião popular não é nunca prematura. As massas que entram em luta não são impacientes. Ao contrário, são muito pacientes. Suportam por anos, às vezes, por décadas, condições de vida atrozes, com a raiva crescendo nos dentes, na esperança de que a vida possa mudar pelo seu esforço individual.

É somente quando todas as outras possibilidades se esgotaram, incluindo a ilusão nas promessas dos governantes, que grandes mobilizações, na escala de centenas de milhares, são possíveis. Entre a crise e a percepção da crise há sempre um intervalo de tempo necessário para que amplos setores de

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massas despertem para a terrível descoberta de que sem luta coletiva a vida não vai mudar. Esta descoberta para as massas é assim mesmo, é algo terrível. Porque sabem que vão ter de medir forças e, com razão, têm medo. Na luta, milhões estão aprendendo a perder o medo, e não há nada mais extraordinário que isso.

Só quando o mal estar acumulado, subterrânemente, nas “placas tectônicas” da vida social atinge um grau muito elevado de concentração, o chão começa a se mover. Os dirigentes do PT publicaram, há poucos meses atrás, uma cartilha sobre os dez anos de governo se vangloriando de que o Brasil mudou. E n g a n a m - s e a s i m e s m o s s e a i n d a a c r e d i t a m e m s e u s publicitários. O mais importante nos últimos dez anos de reformismo quase sem reformas é que o Brasil não mudou significativamente. O que beneficiou o PT e os governos até junho foi que a consciência média resignada dos trabalhadoras era de que “isso era o melhor que era possível”. Em outras palavras, as baixíssimas expectativas do povo. O que se explica, também, pela autoridade do lulismo sobre a geração mais madura do proletariado.

Junho foi só o começo

Uma análise das razões desta explosão em Junho, e não antes nem depois, deve considerar muitos fatores. O aumento das tarifas de ônibus foi só a centelha, uma faísca que acendeu a fogueira. Tudo se precipitou a partir da brutal repressão do dia 13 de junho em São Paulo. Não obstante, só podemos c o m p r e e n d e r a d i m e n s ã o d o s p r o t e s t o s n o B r a s i l s e considerarmos: (1) o impacto da crise econômica internacional que condenou o país à estagnação nos últimos dois anos; (2) o congelamento de uma mobilidade social que foi no passado recente muito pequena, rígida, ou seja, empregos precários e salários baixos para uma geração mais escolarizada; (3) o fim da percepção de alívio econômico-social que beneficiou todos os governos reeleitos, fossem liderados pelo PT ou pela

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oposição de direita; (4) o impacto mundial de processos revolucionários que incendeiam a subjetividade de uma juventude frustrada, socialmente, com a terrível decadência dos serviços públicos e irada, politicamente, com a corrupção generalizada dos partidos nos governos; (5) o esgotamento da experiência da geração mais jovem com o governo liderado pelo PT; (6) a boçalidade provocativa da repressão policial que inflamou a fúria de amplos setores de massas, em especial, no contexto de uma campanha demagógica ufanista durante a Copa. Isto posto, o que aconteceu em junho não foi fogo de palha, que arde intensamente, mas se apaga rápido. Foi só o começo. Junho já mudou a situação brasileira. Nada será como antes. Não há retorno para a estabilidade institucional que vingou desde o Plano Real, a estabilização da moeda e a relação social de forças que deixou os trabalhadores na defensiva. Muitos milhares descobriram que era preciso lutar. Foram muitos milhões que aprenderam que era possível vencer.

Força e limites da primeira onda

Nossas Jornadas de Junho foram marcadas tanto pela explosividade da disposição de luta, quanto pela diversidade de reivindicações e pela acefalia. O que tem causado perplexidade e preocupação legítimas. Deslumbrar-se com a força das marchas, e desconhecer suas limitações seria um erro. Enxergar com ceticismo a dimensão destas três semanas de lutas, ou seja, perceber somente suas inconsistências, também. As ações desta primeira onda de revolta estão muito à frente da consciência. Mas, o mais importante, é que estamos diante de uma explosão contagiante de protesto popular. Foi por isso que esperamos, pelo menos, nas últimas duas décadas.

Em diferentes graus, e sob outras formas, este desenvolvimento desigual da disposição para a ação, e o grau de consciência médio entre os que lutam foi um traço comum no início de todos os grandes processos de mobilizações de massas dos últimos cem

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anos. Foi assim nos meses iniciais da revolução de fevereiro na Rússia de 1917, na Alemanha em novembro de 1918, nas semanas do Maio de 68 francês, ou depois do 25 de Abril em Portugal.

Diante de acontecimentos desta grandeza estamos sempre diante do duplo perigo – simétrico – do fascínio ou da descrença. A idealização do que deveria ser um processo revolucionário não é incomum, mas é pensamento mágico, portanto, desejo. Se for confirmada uma importante adesão à greve geral convocada pelas Centrais Sindicais para o dia 11 de julho, já poderemos falar da entrada em cena do proletariado. O que confirmaria uma mudança qualitativa da situação: uma nova relação de forças entre as classes no país, muito mais desfavorável à dominação burguesa, muito mais favorável para a transformação que as ruas estão exigindo.

A transição para uma situação pré-revolucionária .

Estamos vivendo a primeira onda de um processo revolucionário? Tudo o que aconteceu até agora sugere que estamos em uma situação transitória para uma etapa pré-revolucionária.

Revoluções são processos que ou avançam ou recuam, e atravessam uma variedade de conjunturas. As insurreições são, frequentemente, confundidas com revoluções, mas são somente o momento culminante de um processo, o momento decisivo. A maioria das situações revolucionárias foram derrotadas antes que tivesse chegado a hora em que a luta pelo poder era possível com razoáveis chances de vitória.

A relação social de forças pode ou não evoluir favoravelmente para os trabalhadores. É bom, também, lembrar, que uma situação pré-revolucionária não é o mesmo que uma situação revolucionária. A análise deve ser, portanto, prudente, porque a forma popular do levante da juventude ainda não permite avaliar o estado de espírito, o ânimo, ou seja, a disposição de luta do conjunto dos trabalhadores. A geração proletária

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com mais de trinta e cinco anos, que é a maioria, ainda não entrou em cena.

Mas estão presentes, uns mais maduros, outros menos, vários dos outros fatores de uma situação pré-revolucionária: (a) uma impressionante divisão e confusão na classe dominante: não se entendem sobre muita coisa, a não ser que é preciso que a política volte a ser um assunto para os seus profissionais, em outras palavras, estabilidade política. Em Brasília os últimos dez dias foram um frenesi. Cada partido tem uma opinião diferente, não se constroem consensos, e o governo propôs constituinte para recuar no dia seguinte. A direção de cada um dos partidos burgueses tem, publicamente, as mais diferentes posições. Não sabem se devem ou não apoiar uma repressão ainda mais dura. Não têm a menor ideia do que fazer se a juventude não sair das ruas, e se interrogam sobre o que pode acontecer se vingar a proposta de greve geral de 11 de julho; (b) as classes médias, que são o colchão de estabilidade do regime, se deslocaram nos grandes centros urbanos, as doze cidades com pelo menos um milhão de habitantes para o apoio à juventude; (c) as grande marchas não deixaram de sair às ruas, mesmo depois de vários ataques repressivos violentíssimos, e avança uma generalização do sentimento de profundo mal estar.

Não parece provável que a aprovação do plebiscito para uma reforma política que decidirá, por exemplo, se o voto será ou não distrital, se os suplentes de senadores devem continuar existindo ou não, ou se as coligações partidárias devem ou não ser verticalizadas, seja suficiente para acalmar as ruas. Esta não é a agenda das luta.

Na escola da luta os jovens aprenderam a votar com os pés. Descobriram que é preciso lutar e que é possível vencer. A hora é de avançar! Greve Geral 11 de Julho!

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[1] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. p 443-4.

O dia seguinte: redes sociais

e a crise de direção

Aldo Cordeiro Sauda e Marcia Camargos

Os analistas perplexos que buscam, sem êxito, decifrar o enigma da suposta Primavera nacional podem respirar aliviados. Da insurgente Turquia, uma luz atravessa o Atlântico para explicar o fenômeno. Segundo seu primeiro-ministro, Tayyip Erdogan, uma conspiração fantasmagórica das redes sociais visa derrubar, de uma só penada, os governos do Brasil e da Turquia. Denúncia que, diga-se de passagem, peca pelo caráter delirante e falta de originalidade. A maioria dos ditadores árabes afetados pela “primavera” invocaram o fantasma sinistro do golpismo digital para entender os levantes que ocorreram no quintal de casa. Tantos eles quanto Erdogan espertamente fecham os olhos para a rica história de revoluções e levantes populares ocorridas muito antes do advento da internet e dos celulares, que marcaram toda a região desde a revolução dos Jovens Turcos de 1908.

J á e m s o l o v e r d e a m a r e l o , a i d e i a d e q u e a s a t u a i s mobilizações têm por objetivo derrubar o Partido dos Trabalhadores vem ganhando força nas fileiras pro-governamentais. Elas seriam um aggiornamento da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” dos dias correntes. Abririam

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caminho para a tomada do poder pelo exército, sob direção do empresariado, que varreria qualquer vestígio sindicalista. Porque justo os empresários, que tanto lucraram nos últimos anos, pretenderiam depor Dilma, ninguém sabe responder. Mas terminam aí as comparações com a Turquia, onde, de acordo com Erdogan, trava-se um conluio de ateus e comunistas, turma obviamente antagônica aos golpistas tupiniquins. Apenas os unem a crença de que os donos do Facebook e Twitter tecem uma armadilha para conquistar o mundo.

Para o bem da verdade, vale dizer que a noção de uma comunidade virtual onipotente extrapola o círculo dos defensores do status quo. Ela exerce igual fascínio entre os adversários da ordem. O tema “Revolução das Redes Sociais” figura tanto no imaginário da Avenida Paulista quanto entre os intelectuais que vêm tentando interpretar os protestos. Da Turquia ao Brasil, o teórico poder do facebook tem encantado a todos. Porém, nos lugares onde as insurgências populares conseguiram avançar ao ponto de derrotar regimes autoritários, a magia da rede parece ter se desvanecido. Hoje, em plena praça Tahrir, o assunto causa desconforto. Os principais nomes reunidos em torno da internet no primeiro momento do levante, tornaram-se, na melhor das hipóteses, figuras secundárias do quadro político. Ahmad Mayers, líder do movimento 6 de Abril, que em 2011 desempenhou papel fundamental no processo que levou à renúncia de Hosni Mubarak, chegou a ser chamado de o “novo Che Guevara” por grande parte da imprensa internacional. Hoje, ilustrando o curto alcance das organizações baseadas no espontaneismo digital, ele dirige um grupo fragmentado e com pouca importância no contexto egípcio.

Isso não significa que os ideais igualitários do Passe Livre estejam condenados a um inevitável ostracismo. Contudo, os sinais vindos do Oriente Médio são desalentadores. Quase todos os levantes dirigidos por atores políticos que negavam a necessidade de articulações com recortes programáticos foram substituídos por fraternidades políticas reacionárias. A força

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dos “irmãos”, baseada na disciplina e objetivos claros, se sobrepôs às direções jovens do mundo árabe. As vitórias da Irmandade Muçulmana no Egito e no Marrocos, e da corrente islâmica light na Tunísia explica-se antes por suas formas organizativas do que pela sua ideologia. Enquanto a juventude secular discutia sobre horizontalidade, os militantes islâmicos cimentavam suas hierarquias solidamente estruturadas nas massas.

Para agravar o panorama, somam-se aos limites da articulação digital suas evidentes fronteiras de classe e de geração. Quando a Irmandade Muçulmana passou a arregimentar os camponeses do delta do Nilo para manifestações no Cairo, os ativistas digitais sequer sabiam como lidar com aquele povo que inflava as ruas da cidade. Mais tarde, em fevereiro de 2012, frente à necessidade de recrutar o operariado urbano como última barreira à aliança entre militares e radicais islâmicos, os protagonistas da primavera jogaram todas suas fichas para construir, via facebook, uma greve geral. A medida redundou em fracasso absoluto, sem a adesão de uma única fábrica.

É inegável que o Movimento 6 de Abril foi capaz de mover milhões, demolir ditaduras e reinventar os instrumentos de mobilização, utilizando as redes sociais com maestria. O mesmo se aplica ao Passe Livre. A política nacional não será a mesma após suas ousadias. Mas o que fazer no “day after”com a energia das ruas segue com a mesma centralidade nos dois lados do oceano. Bem mais poderoso que qualquer internet, é o descontentamento socioeconomico que provocou as revoltas em ambos os países. De fato, um fantasma ronda não apenas a Europa, como também a África, a Ásia e as Américas. O diagnóstico de Marx, revisitado, é que deveria tirar o sono de Erdogan.

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Violência

policial

e

vandalismo como uma questão

de classe

Euclides Agrela

A manifestação do dia 27 de junho em Fortaleza, quando do jogo Espanha e Itália no estádio C a s t e l ã o , c o n t o u c o m a participação de cerca de 20 mil pessoas. Saindo do Campus do Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (UECE), a passeata percorreu a Avenida Dedé Brasil até chegar cerca de 2 km do estádio, quando foi impedida de prosseguir por uma barreira policial formada pela tropa de choque da PM, do governador Cid Gomes (PSB) e pela Força Nacional de Segurança, da presidente Dilma Rousseff (PT).

Na concentração, às 10h, era visível a composição social do ato: jovens pobres e negros da periferia de Fortaleza, movimentos sociais como os do sem-teto e sem terra, trabalhadores da construção civil, rodoviários, costureiras, professores da rede pública estadual e municipal.

A participação do movimento sindical e popular foi um destaque desde a convocatória até a organização da passeata. Viam-se inúmeras faixas e bandeiras da Conlutas, da Anel, do MTST, do MCP, do MAB e do MST. Militantes do PSOL, do PSTU, do PCB, do POR e até do PCdoB se fizeram presentes sem que sofressem quaisquer hostilidades.

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Uma das reivindicações que mais ecoou pela Avenida Dedé Brasil, além da redução imediata da passagem de ônibus para R$ 2,00, foi a defesa das comunidades do entorno do Castelão que vem sofrendo com os despejos para a garantia das obras da Copa.

A passeata transcorreu na mais absoluta tranquilidade até o momento que encontrou a barreira policial. Em vários momentos ouvia-se o coro de: “que coincidência, sem polícia não tem violência”. Mas, nas proximidades do Castelão, quando já passava do meio dia, a repressão policial tornou-se apenas uma questão de tempo.

Violência policial é a causa das depredações

P a r a q u e m , d u r a n t e o m ê s d e j u n h o , p a r t i c i p o u d a s manifestações de massas em todo o país e enfrentou governos truculentos como o de Cid Gomes (PSB), no Ceará, aprendeu desde cedo que, mesmo não havendo nenhuma provocação por parte dos manifestantes, a ordem tem sido dispersar violentamente a multidão depois de pouco mais de uma hora do encontro da passeata com a barreira policial, seja “apenas” com gás lacrimogêneo ou, na maioria absoluta dos casos, com o uso deste acompanhado de balas de borracha.

A violência da tropa de choque do governador Cid Gomes (PSB) foi brutal. Bombas de gás lacrimogêneo foram atiradas indiscriminadamente às dezenas através de morteiros não somente na vanguarda da manifestação, mas na sua retaguarda. O Juiz aposentado Sílvio Mota, que apoiava a manifestação, foi surpreendido por bombas de gás quando se encontrava próximo ao bloqueio policial. Inúmeras bombas atingiram condomínios residenciais e casas próximas ao conflito, que foram utilizadas desesperadamente por alguns manifestantes com último refúgio, intoxicando inclusive crianças.

A reação dos manifestantes diante de tamanha violência não poderia ser diferente: pneus foram queimados na via, um carro

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da TV Jangadeiro e um ônibus foram depredados, outro carro da TV Diário foi incendiado. Algumas lojas próximas ao conflito foram saqueadas. O saldo: 97 presos e, pelo menos, sete feridos. Até a manhã de sábado, todos haviam sido soltos com a intervenção de advogados ligados aos movimentos sociais.

Os grandes meios de comunicação de TV, rádio, jornal e internet bradaram mais uma vez contra uma suposta minoria de vândalos como os responsáveis pelas depredações e a reação violenta da polícia. É inegável que há uma minoria de manifestantes mais exaltados dispostos ao quebra-quebra e a enfrentar a polícia. No entanto é ridículo supor, diante de mobilizações de massas com dezenas ou centenas de milhares de pessoas, que isto não aconteceria.

Quando milhares se põem espontaneamente em movimento nas ruas, com reivindicações difusas, sem uma direção reconhecida que possa lhe dar uma maior organização e disciplina, sempre haverá um setor, ainda que minoritário, com uma fúria incontrolável disposto a enfrentar a polícia custe o que custar e quebrar tudo que estiver pela frente. Mas, quem são os supostos vândalos?

Vandalismo por uma questão de classe

No momento em que o próprio batalhão de choque já se preparava para reprimir a manifestação, por volta das 13h, populares das comunidades da Serrinha se incorporaram à multidão em frente à barreira policial. Eram na sua maioria jovens pobres, negros ou pardos, muitos apenas de chinelas, de bermuda e sem camisa. Esses jovens quando se entreolharam, se reconheceram e perceberam que representavam um contingente de cerca de cem pessoas, alguns deles seguramente com passagem pela polícia, se juntaram aos gritos: “uh, uh, é o bonde da Serrinha”. Enganam-se os bem intencionados membros do Ministério Público ao ventilarem que isto pode ter sido uma ação orquestrada pelos chefes do tráfico da região, quando estes necessitam de

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um ambiente de paz com a polícia para a tranquilidade de seus negócios. Tratou-se de uma ação espontânea, quase instintiva, surgida no calor dos acontecimentos.

Ao contrário do que pensaram inclusive alguns manifestantes que vaiaram sua “palavra de ordem”, “o bonde da Serrinha” não partiu para cima dos manifestantes para lhes agredir ou roubar, mas dirigiu-se para frente do bloqueio e começou a jogar paus e pedras na polícia. Era o pretexto que o batalhão de choque e a Força Nacional de Segurança esperavam para dar início à repressão.

Antes de recriminar esses jovens sem emprego, com baixíssima escolaridade, nascidos e criados em casebres em meio ao esgoto a céu aberto, que possuem o “dono da boca” como única referência prática de ascensão social, é preciso entender o porquê de sua aparente violência gratuita contra a polícia. A rigor, não se trata de violência gratuita, mas de uma explosão de fúria, uma reação brutalizada, a única que lhes é possível para chamar a atenção contra as (des) humanas e miseráveis condições de vida a que estão submetidos desde a infância.

Dia após dia, noite após noite, jovens entre 15 e 25 anos, como os do “bonde da Serrinha” e de centenas de outras comunidades pobres das periferias das grandes cidades brasileiras são as maiores vítimas do tráfico de drogas e da violência policial. Muitos tiveram irmãos ou amigos assassinados devido a dívidas com o trafico ou porque foram identificados pela polícia como criminosos simplesmente por serem negros, pobres, desempregados e morarem na favela. Como dizia um cartaz na manifestação: “na periferia as balas são de verdade”.

Para esses jovens do “bonde da Serrinha”, a manifestação do dia 27, transformou-se numa oportunidade ímpar para dar vazão ao seu ódio contra a sociedade capitalista, o Estado burguês e seu aparato repressor que, não satisfeitos em lhes jogar na mais absoluta miséria, invade e destrói seus casebres, despeja

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comunidades inteiras para atender os interesses da especulação imobiliária, realiza revistas humilhantes utilizando-se do expediente da tortura, quando não mata ou executa friamente. A violência policial sofrida durante anos nos becos e “quebradas” da periferia de Fortaleza recebeu uma resposta furiosa destes jovens marginalizados quando viram que era possível, como parte de um movimento de massas, vingar humilhações, torturas e mortes nem que fosse apenas para arranhar os escudos do batalhão de choque com algumas pedradas.

Chico Science já nos ensinava: “Em cada morro uma história diferente / Que a polícia mata gente inocente / E quem era inocente hoje já virou bandido / Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido / Banditismo por pura maldade / Banditismo por necessidade / Banditismo por uma questão de classe!”.

Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa

Este “vandalismo por uma questão de classe” é algo de natureza absolutamente distinta da violência dos grupos neonazistas que se infiltraram em diversas manifestações, particularmente no Rio e em São Paulo, para atacar os partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados. Eles não foram às manifestações apenas gritar palavras de ordem contra os partidos, coisa perfeitamente aceitável e compreensível vinda de estudantes e trabalhadores indignados com a corrupção dos partidos burgueses e decepcionados com os rumos dos governos do PT. Estes grupos neonazistas infiltraram-se nas passeatas com um único e mesmo objetivo: agredir fisicamente, tomar as bandeiras e intimidar os militantes dos partidos de esquerda, dos sindicatos e movimentos sociais. Contra ataques físicos não há qualquer discussão possível. Por isso, é preciso expulsar fisicamente estes grupos das manifestações.

Ao contrário dos neonazistas, os alvos de “grupos” de jovens como o “bonde da Serrinha” não foram os partidos de esquerda,

Referências

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