AMAZÔNIA: SENSIBILIDADE POÉTICA,
RESPONSABILIDADE ÉTICA
Deodato Ferreira da Costa deofc@click21.com.br
Realização Apoio
de Ciências do Ambiente e
INTRODUÇÃO
Esse texto quer indicar tão somente a possibilidade de uma reflexão ético-filosófica sobre a Amazônia a partir da questão ecológica e ambiental, tendo como ponto de partida o princípio da alteridade. Daí a razão de ser um simples ensaio.
Filosofia e Amazônia, guardadas as devidas proporções de tempo, não são temáticas novas, mas, guardam, cada uma a seu modo, um quê de novidade que perturba e inquieta. Se a filosofia nos impele a pensarmos e repensarmos o sentido e o significado da vida, do homem, do mundo, a Amazônia nos impele à apercepção do sentido da diversidade da realidade da vida, do homem, do mundo. Este outro sentido, que desestrutura todo sentido único de ser, é o que chamamos aqui de alteridade, de outro. Na reflexão que agora ousamos fazer, a alteridade é o outro do ser que é um eu, mas também outro que um mero não-eu, que uma mera coisa ou objeto. Não é a reflexão ou a racionalidade filosófica que desencanta a Amazônia, é esta que encanta e desafia a filosofia. Encantamento instigante: a reflexão desperta para a outra vida, para o outro da vida. Não é a filosofia que descobre a Amazônia, esta é que se manifesta à filosofia. É a realidade amazônica, enquanto alteridade, que questiona a consciência filosófica.
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O PRINCÍPIO ALTERIDADE
O princípio da alteridade, ao qual nos referimos acima, não é algo novo na história da tradição filosófica ocidental. No entanto, a abordagem da qual partimos é recente e, no mínimo, distinta em relação a toda tematização anterior. Alteridade, vem do latim, alter, alteritas, significa outro, diverso: aquele ou aquilo que se manifesta de forma outra, distinta, diversa do que comumente se manifesta. A alteridade lembra que a identidade não começa na unidade e na igualdade de si mesma, mas na referência e na explicitação de toda diversidade, de todo outro.
Assim, sem muito esforço e sem muitas complicações terminológicas, é possível compreender que na origem do ser (todo e qualquer ser: humano, não-humano vivo e não-vivo), encontramos a diversidade, a alteridade como relação constituinte desse ser e não o que se convencionou chamar, na venerável tradição filosófica ocidental, de identidade, unidade: esta só pode ser determinada mediante um processo relacional que permite a compreensão, em termos lógicos, do que é próprio e específico de cada ser.
Essa questão da alteridade é também conhecida como o “problema do outro”. Dois autores são importantes para a compreensão dessa noção de alteridade, de outro: o judeu lituano-francês Emmanuel Lévinas e, o argentino Enrique Dussel. Ambos nos propõem uma ética da alteridade.
Emmanuel Lévinas (1906-1995) tem como ponto de partida de sua reflexão filosófica os horrores do holocausto sofrido pelos judeus na segunda Guerra Mundial – ele mesmo vítima de tais horrores. A partir dessa experiência, chama a atenção para o problema da guerra e da violência que aniquilam, na prática, o valor e o respeito à dignidade humana; da diversidade das culturas e da singularidade da experiência de cada ser humano, pois cada cultura é distinta e cada ser humano é único. Lévinas nos proporciona uma reflexão profunda sobre o ser humano e, nos ensina que é na relação humana, à qual ele chama de face-a-face, que a ética se constitui não como um mero ramo da filosofia, mas como a filosofia primeira.
Enrique Dussel (1934) tem como ponto de partida de sua reflexão filosófica a realidade de pobreza e opressão na América Latina. Para Dussel, desde 1492 – dado o “encontro” de dois mundos: o do homem branco europeu com o do homem autóctone – os povos ameríndios sofrem o peso da exploração e da opressão. A dominação que se lhes impôs, os agride em todos os campos do desenvolvimento da vida humana: econômico, político, cultural, religioso, artístico etc. A experiência desse “encontro”, cujo efeito dominador se manifesta na pobreza, na violência, na destruição ecológico-ambiental, tanto hoje quanto antes, desperta para um longo e profundo perguntar-se sobre a vida, sobre o direito à vida, à sua reprodução e desenvolvimento. É a partir da própria vida humana como conteúdo do pensar reflexivo que o autor argentino nos propõe uma genuína reflexão filosófica ético-crítica.
UM LOGOS POÉTICO PRÓPRIO
O referencial teórico a partir do qual empreendemos este ensaio e através do qual o desenvolvemos nos permite começar esse itinerário desde um logos poético originário da região amazônica. Partimos da própria alteridade amazônica: partimos da palavra, da voz, do canto de um homem amazônico que pensa sua realidade e a traduz em versos de inquietação e angústia, mas também de alegria e esperança: Thiago de Mello. Seu logos é um discurso poético, simbólico, carregado do sentido da vida na Amazônia. Esta aparece ao poeta como uma verdadeira pátria de águas e florestas. Um lugar onde a vida ainda não se dissociou dos encantos e mistérios da natureza no cotidiano da existência humana. Mas o logos do poeta adverte: essa vida pode estar chegando ao fim.
A REALIDADE PODE E DEVE SER QUESTIONADA
A palavra/canto do poeta, seu logos, nos inspira a lançarmos um olhar crítico sobre a realidade amazônica: sobre a diversidade étnica e cultural, sobre a biodiversidade que nele se encontra, sobre seu ecossistema, sobre as riquezas que esta região ostenta: seus recursos hídricos, seus recursos minerais, suas terras, sua fauna, sua flora, sua biomassa. Ante Amazônia, a diversidade da realidade que ela encerra, não poderíamos deixar de exercitar o filosofar – atitude ímpar e da maior relevância para Kant – como atividade reflexiva passível de suscitar indagações, questionamentos, inquietações que nos permitam uma compreensão conceitual distinta capaz de nos proporcionar novos olhares, novos enfoques, que nos conduzam a uma racionalidade crítica, que respeite o outro e a alteridade de sua vida.
Neste sentido, queremos partir do logos que se expressa como dizer, segundo Lévinas, e não como mero dito, “mal dito”, petrificado, emudecido. Imbuídos desta noção e, de acordo com o logos do poeta e em desacordo com “um determinado” logos científico, objetivado e ocidentalizado, queremos, motivados pela suspeita do dito, com o qual estamos em desacordo, nos inquietar com a realidade Amazônica, questionar o sentido que tem nos dado o “logos oficial”, que estabelece o que é o ser em sua identidade de uno, fora do qual nada há.
Portanto, mesmo contra a vontade de alguns e a indiferença de muitos outros, não podemos deixar perguntar: Que é a Amazônia? Há um sentido que possamos dizer amazônico? Podemos falar de um ser amazônico? É possível filosofar a respeito da Amazônia? A realidade amazônica em sua diversidade étnico-cultural e em sua biodiversidade ecológica pode ser objeto de uma reflexão ético-filosófica rigorosa? A Amazônia em sua complexidade ambiental de ecossistemas, de etnias, de saberes e culturas tradicionais, de modos de vida diversos se constitui em conteúdo/sujeito de uma reflexão epistemológica? São questões filosóficas, sem dúvida, que não podem ser dissociadas da realidade e da
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REALIDADE AMAZÔNICA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Refletir sobre a Amazônia no tempo presente tornou-se quase um imperativo. A Amazônia já não pode mais ser entendida como um mero espaço histórico-geográfico plasmado pelo imaginário e pelas representações fictícias que desde há muito fazem dela uma espécie de paraíso intocável, de santuário místico, de pomar ou celeiro pronto para suprir a escassez de alguns elementos indispensáveis à vida no planeta. Mas também não é uma mera invenção arquitetada através de projetos econômicos e políticos de colonização territorial, gestados numa política de soberania nacional ou em investidas de internacionalização da região. A Amazônia, senão com essa denominação, remonta a uma anterioridade histórica que finca raízes antes mesmo dos primórdios da dialética da alteridade explicitada no “encontro” de dois mundos: o do homem branco europeu e o do homem autóctone, a partir de 1492.
Desde esse ponto de vista, a Amazônia tem uma longa, rica e instigante história de vida: de luta e resistência em nome e a favor da vida; de preservação, reprodução e desenvolvimento da vida em meio ao genocídio, à destruição e degradação tanto de seus povos quanto de sua natureza até o tempo presente. A Amazônia é real. Não é uma mera abstração. Ela encerra uma realidade substantiva, capaz de ser pensada e teorizada em sua complexidade ambiental. O mundo amazônico não é homogêneo, unitário, é um mundo que, desde há muito, contém muitos mundos. A diversidade é seu modo de ser. Categoricamente, a Amazônia é a expressão formal das diversas Amazônias que configuram seu conteúdo material.
Pensar a vida na Amazônia em termos filosófico-racionais, levando em consideração sua diversidade humana e sua biodiversidade ecológica, exige uma reviravolta prático-teórica, verdadeiramente crítica, em diversos campos e regiões do saber (tais como o epistemológico, ético, político, jurídico, social, econômico, estético, religioso), capaz de promover a sustentabilidade da vida, sem subterfúgios ou interesses mesquinhos mercadológicos, tanto em proveito particular, quanto em proveito da humanidade e do próprio planeta.
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