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FIGURA Studi sull Immagine nella Tradizione Classica Nº

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Academic year: 2021

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FIGURA

Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica

Nº 3 • 2015

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FIGURA

Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica

Nº 3 • 2015

ISSN 2317-4625 www.figura.art.br Editors Cássio Fernandes Patricia Meneses Alexandre Ragazzi Editorial Board Evelyne Azevedo Maria Berbara Fernanda Marinho Luiz Marques Tamara Quírico

International Advisory Board

Jens Baumgarten José Emilio Burucúa Liana de Girolami Cheney Gerardo de Simone Maurizio Ghelardi

Claudia Valladão de Mattos

In copertina: Giovanni Francesco Romanelli, Putti che pescano, 1637, Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro.

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CONTENTS

DOSSIER “COLEÇÃO EVA KLABIN”

Apresentação ... 03

Marcio Doctors

O ideal da beleza apolínea: Considerações sobre

a noção de cópia na arte romana ... 07

Evelyne Azevedo

O Descanso na Fuga para o Egito de Adriaen Isenbrandt da

Fundação Eva Klabin: Notas sobre sua atribuição e iconografia ... 23

Maria Berbara

Gianfrancesco Romanelli, a idade de ouro Barberini e

a pintura barroca em Roma no Seiscentos ... 39

Elisa Byington

A iconografia mariana no Cinquecento italiano e flamengo e

o debate em torno do Maneirismo ... 53

Fernanda Marinho

Devoção por imagens: Pinturas e culto privado na

Itália entre os séculos XIII e XV ... 79

Tamara Quírico

O Marte de Giambologna: Sobre o colecionismo de

modelos preparatórios e estatuetas de bronze ... 107

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ARTICLES

Bernardino Poccetti’s ceiling of the loggia in

Palazzo Marzichi-Lenzi: An iconological study ... 135

Liana De Girolami Cheney

Titien, poète de l’entre-deux mondes:

Pour une nouvelle approche de la Vénus du Pardo ... 177

Emmanuel Ussel

The anthology of Mannerism and

the rhetoric category of Eugenio Battisti’s L’Antirinascimento ... 201

Fernanda Marinho

À la recherche des Donatello perdus, de Florence à Berlin ... 227

Neville Rowley

Les quatre représentations de La mort d’Ophélie

d’Eugène Delacroix ... 255

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v

DOSSIER

FUNDAÇÃO EVA

KLABIN

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APRESENTAÇÃO

Marcio Doctors

Fundação Eva Klabin – FEK

A Casa-museu Eva Klabin tem por missão preservar, conservar e divulgar a residência e a coleção de Eva Klabin, destacando as características específicas de uma casa-museu de colecionador. A visão é torná-la referência das múltiplas relações possíveis entre arte e vida (por ser originalmente casa) e entre os diferentes tempos, estilos, culturas e saberes abrangidos por seu acervo (por ser um museu). Seu compromisso curatorial é manter os olhos voltados para a tradição da arte do passado e atentos para as constantes transformações da arte do presente, estimulando novas dinâmicas que rompam com o tempo engessado que uma casa-museu pode desencadear por suas características específicas, e estabelecendo relações entre o legado a ser preservado e os interesses das novas gerações, que são os verdadeiros herdeiros desse legado. A partir dessa visão, foi coordenado com o Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), através da professora Maria Berbara, um curso denominado A Tradição clássica na Fundação Eva Klabin, o qual teve como proposta e objetivo trazer o conhecimento da academia para dentro do museu, tendo como ponto de partida obras da coleção que serviriam como deflagradoras das conferências apresentadas. Cada um dos professores escolheu obras que pudessem ilustrar e / ou exemplificar os períodos da história da arte e os recortes temáticos ou estilísticos abordados nas suas apresentações. Dessa maneira procuramos, através das palestras, enriquecer as informações sobre o acervo a partir das óticas dos estudiosos, acrescentando outras camadas de leitura possíveis para a coleção, atualizando-a com o pensamento produzido na universidade.

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O curso teve duração de sete meses, com palestras uma vez por mês, e os professores desenvolveram leituras originais, buscando relacionar o foco de suas pesquisas a exemplares da coleção.

Evelyne Azevedo tratou da escultura e do espaço na Antiguidade, no Egito, Grécia e Roma. Em dois módulos, desenvolveu “diferentes aspectos que envolvem a criação tridimensional da escultura, [...] tanto o próprio espaço da peça, quanto o lugar do observador”, revelando questões pouco usais para os leigos nas análises da escultura antiga e abrindo toda uma outra percepção de como esses elementos eram pensados e vivenciados na Antiguidade clássica. Obras de referência da coleção: Estátua de oficial, Egito, Médio Império ao II período intermediário, c. 2040-1550 a. C. e Estatueta de Vênus com diadema, Apolo arqueiro e Hércules com pele de leão, Grécia/Roma, século I a.C. ao V d.C.

Fernanda Marinho apresentou palestra sobre o clássico e anticlássico na iconografia mariana “através dos divergentes contextos artísticos de Flandres e da Itália do século XVI”, e “as repercussões da crise político-religiosa do Renascimento e suas decorrências formais anticlássicas”. O clássico e o anticlássico constituem uma pulsão que atravessa toda a história da arte, criando uma dinâmica de rupturas que alimenta a arte como processo constante de mudança e reinvenção. Obras de referência da coleção: Andrea del Sarto, Nossa Senhora com o Menino e São João, Itália, século XVI e Mabuse, Madona com Menino, Países Baixos, c. 1520. Elisa Byington abordou em sua apresentação o nascimento do barroco, destacando-o como “um momento em que a imaginação se aliou às técnicas do ilusionismo espacial para encenar o espetáculo da natureza em movimento”. Trouxe uma contribuição importante para o acervo da casa-museu ao mostrar os outros cartões de tapeçaria de Romanelli da série Meninos pescando, obra ícone da fundação. Obras de referência da coleção: Giovanni Francesco Romanelli, Meninos pescando, Roma, Itália, c. 1639 e José Ribera, São Jerônimo Penitente, Nápoles, Itália, 1620-1630.

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Maria Berbara analisou “as principais características da corrente pictórica denominada, pela crítica, “tradição primitivista flamenga”. Foi uma contribuição fundamental para a coleção Eva Klabin, já que havia um déficit de informação grande a respeito das duas obras analisadas pela professora e que são fundamentais para entendermos as características estilísticas e o contexto histórico desse momento tão rico que foi a Renascença do norte europeu. Obras de referência da coleção: Jan Provost, Madona, Menino e dois anjos, Flandres, 1510-1520 e Adriaen Isenbrant, Madona com Menino e paisagem, Flandres, c. 1530.

Tamara Quírico apresentou na sua palestra o uso da pintura como devoção doméstica de imagens religiosas na passagem entre a Idade Média e o início da Renascença. Além das análises estilísticas e formais desses pequenos painéis religiosos, foi analisada uma característica pouco conhecida de pinturas que cumpriam função religiosa privada na Itália entre os séculos XIV e XV, revelando a origem dessa tradição, que se mantém viva até os dias de hoje, de imagens religiosas de devoção doméstica. Obra de referência da coleção: Sano di Pietro, Madona com Menino, Itália, século XV.

Alexandre Ragazzi finalizou o curso falando sobre o “grande interesse por estatuetas de bronze que surgiu entre os mais intelectualizados habitantes de Florença” dos séculos XV e XVI a partir de uma obra importante da coleção, a estatueta de Guerreiro de Giambologna. Desenvolveu sua apresentação demonstrando como esse gosto foi desenvolvido ao longo dos séculos seguintes, quando passaram a ser colecionados modelos preparatórios para esculturas de grande porte. Obra de referência da coleção: Giambologna, Guerreiro (Marte), Itália, 1565-1570.

A casa-museu Eva Klabin sentiu-se honrada de poder acolher um curso sobre a tradição clássica que se utilizou de exemplares da sua coleção como referência, e é imensamente grata pela generosidade com que os palestrantes dividiram seus conhecimentos com o público interessado e a maneira como suas leituras da história da arte enriqueceram o acervo. Gostaria de agradecer à professora Maria Berbara por ter aceito o convite

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para estruturar esse curso e a todos os palestrantes pela excelência de suas contribuições.

Tenho a convicção de que a parceria entre museu e universidade é a maneira mais positiva de fazer os museus retornarem a uma de suas funções primordiais que é a de ser um centro de estudo e pesquisa da história da arte a partir de suas coleções. Quanto mais conteúdo for produzido, mais próximo estaremos da realidade do museu como ferramenta de vivência pedagógica da maior importância para o universo da educação e mais próximos estaremos da ideia de que uma coleção é uma obra em processo, passível de desdobrar-se em múltiplas camadas de leitura, revitalizando sempre seu sentido, ideias e percepções de acordo com sua época, como um grande dicionário vivo e pulsante do passado no presente.

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O IDEAL DA BELEZA APOLÍNEA:

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE

CÓPIA NA ARTE ROMANA

Evelyne Azevedo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

“... por este lugar passa toda a história do mundo”1. Quando Goethe escreveu estas palavras, em Roma, no dia três de dezembro de 1786, ele estava inspirado pelas concepções artísticas de Winckelmann e pela ideia de que os romanos haviam copiado o que havia de melhor entre os gregos. Ao falarmos sobre a arte romana, a primeira noção que deve ser abordada é a de que, durante muito tempo, ela foi considerada pelos estudiosos como uma mera continuidade da arte grega, quando não um reflexo decadente da segunda2. O que Goethe ignorava, no entanto, é que a imensa maioria daquilo que ele via, tinha sido apropriado pelos romanos na Antiguidade. Além das famosas “cópias romanas” de “originais gregos”, eles levaram para o território italiano objetos, materiais e mão-de-obra de todos os lugares dominados por eles.

No entanto, estabelecer que a arte romana centrava-se apenas na ideia de copiar tudo aquilo que não pudesse ser apoderado por eles, implica em estender àquela a noção moderna de invenção artística e autenticidade3. Desta forma, acreditava-se que a cópia servisse para dar conta da ausência de originais e que quanto maior o seu número, maior o sucesso do seu modelo. Como, por exemplo, o amplamente citado caso do Discóbulo – de cujo tipo são conhecidas quatro esculturas; ou ainda do

1

GOETHE, J. Viagem à Itália. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001, p. 182.

2

De acordo com Ward-Perkins, foi apenas no início do século XX, com os estudiosos da Escola de Viena seguidos pelos italianos, que essa noção começou a mudar e se começou a falar em uma “romanidade”. WARD-PERKINS, J. D. “Greek and Roman Art: contrast and continuity.” In: Ata do XI Congresso de Arqueologia Clássica. Londres: 1978, p. 105.

3

ANGUISSOLA, A. Difficillima Imitatio. Immagine e lessico dele copie tra Grecia e Roma. Roma: L’Erma di Brestchneider, 2012, p. 15.

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Diadoumenos, cujo número de peças conhecidas indicaria seu sucesso de público4.

A Cabeça de Apolo [Fig. 1] pertencente à coleção greco-romana da Fundação Eva Klabin consiste em um bom exemplo para levantarmos algumas destas questões. Seria ela um original grego ou uma cópia romana? Qual a sua procedência? Existem outras esculturas que representem este mesmo modelo? Segundo Luciano Migliaccio, no Catálogo da Fundação:

A escultura grega da segunda metade do século V a. C. representa um momento fundamental na história da arte ocidental, constituindo durante séculos modelo de perfeição pelo seu equilíbrio entre um sistema de proporções baseado em sofisticados conhecimentos geométricos e matemáticos e verossimilhança na representação da natureza. A Grécia saindo vitoriosa sobre os persas exaltou os próprios ideais de liberdade, força e heroísmo individual na figura do jovem herói e do atleta e condensou o supremo ideal de perfeição e beleza além do humano na imagem de Apolo, deus do sol, da música, símbolo da luz da razão, que guia o pensamento e a razão humanas à compreensão do mundo. O fragmento da Fundação Eva Klabin é identificado como sendo o rosto de uma estátua dessa divindade. O estado de conservação da obra permite apenas perceber uma sombra dessa síntese única entre o elemento ideal, abstrato, no volume sólido e na proporção da cabeça que devia governar as proporções do todo, e o naturalismo da execução, que traduz a maciez e a sensualidade da pele juvenil, quase feminina, através do controle da passagem da luz nas superfícies. As esculturas gregas executadas em mármore eram freqüentemente pintadas e destinadas a ornamentar a arquitetura dos templos: o fragmento Klabin possui um encaixe na parte superior do crânio que

4

Noção essa que aparece ainda na obra de Zanker, A arte romana, publicada originalmente em alemão em 2007, entre as páginas 40-41 da edição italiana de 2012.

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faz pensar que pudesse servir de apoio para uma cornija ou um entablamento. No entanto, os globos oculares são vazados para permitir a colocação de olhos de vidro, como era praticado no caso das esculturas em bronze. Esse detalhe e o material utilizado, que não parece mármore pentélico ou de Paros, faz pensar que possa tratar-se de uma cópia realizada na Magna Grécia, já na época romana, a partir de um original grego da época áurea da escultura5

.

Seria ela então fragmento de uma escultura utilizada na decoração de um templo, datada do período áureo da arte grega? Ou tratar-se-ia de uma peça realizada em solo italiano, na região da Magna Grécia, produzida para os mercados das colônias gregas do sul da Itália? Ou ainda, uma cópia romana, realizada na Grécia? Ou então uma cópia romana realizada em solo italiano por artistas gregos? Outro topos frequente no estudo da arte antiga é a definição cronológica dos diferentes períodos. Comumente, estabelece-se que a Arte Grega é definida pela sucessão de seus períodos artísticos, sendo eles o Arcaico, o Clássico e o Helenístico cujo fim se dá com a dominação romana. Já a arte romana abarcaria toda a produção artística desenvolvida dentro de seu limis até a divisão do Império Romano em Ocidente e Oriente.

Devemos a Johann Joachim Winckelmann esta divisão. Considerado o pai da História da Arte e da Arqueologia, ele lançou as bases do Neoclassicismo, influenciando escritores como Goethe e artistas como Canova. Foi ele também quem primeiro articulou a diferença entre arte grega, greco-romana e romana. Para ele, no entanto, a arte grega do V e IV séculos a.C. deveria ser considerada o ápice da produção artística antiga criando assim uma noção evolucionista, cuja decadência se expressava na arte romana. Justamente por isso, ele considerou o Apolo Belvedere o ideal da arte grega. A obra representa o deus Apolo disparando uma flecha. Não se sabe, no entanto, se o momento

5

MIGLIACCIO, L. A Coleção Eva Klabin. Apresentação de Israel Klabin, prefácio de Max Justo Guedes e texto introdutório de Marcio Doctors. Petrópolis: Kapa Editorial, 2007.

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representado é aquele que antecede o disparo, ou o retorno à posição de repouso. A escultura é considerada uma cópia romana do século II d.C. de um original brônzeo de Leocares de cerca de 330 a.C. O Laocoonte, por outro lado, foi considerado pelo arqueólogo alemão o mais precioso monumento da arte grega. A obra é vista tanto como um original grego dos anos 40 a 20 a.C. – de acordo com Salvatore Settis, como, na opinião de Bernard Andreae, uma cópia romana do século I d.C., datada possivelmente da época de Tibério, segundo um original brônzeo pergameno dos anos 140 a.C.

Sua datação problemática nos remete à cabeça de Ulisses pertencente ao Museo Archeologico Nazionale di Sperlonga e Villa di Tiberio. A obra fazia parte do grupo escultórico encontrado na Gruta de Tibério na mesma cidade, que representava a passagem na qual Ulisses e seus companheiros, após embebedar o gigante Polifemo, cegam-no a fim de fugir da caverna. O grupo, muito danificado, foi encontrado em 1957, junto com partes de outros quatro grupos escultóricos, entre eles o de Cila, do qual fazia parte o fragmento com a inscrição em grego: Atenodoro, filho de Agesandro e Agesandro, filho de Paionio e Polidoro, filho de Polidoro [escultores] ródios fizeram6. Os mesmos artistas que, segundo Plínio, o Velho, esculpiram o Laocoonte. A semelhança entre os rostos de Ulisses e Laocoonte e a mesma possível autoria faz com que se acredite que os artistas ródios tenham migrado para a capital do Império, após o saque à ilha de Rodes comandado pelo general romano Cássio em 42 a.C, cujas possibilidades de trabalho seriam muito maiores7, exemplo este do trânsito de artistas no Mediterrâneo.

Ao lado do Apolo, o Laocoonte representa um dos maiores ícones da Tradição Clássica, tendo ambos sido fundamentais para o entendimento da arte tanto grega quanto romana. As diferentes hipóteses de atribuição

6

BURANELLI, F.; LIVERANI, P.; NESSELRATH, A. Laocoonte: alle origini dei Musei Vaticani. Roma: L’Erma di Brestchneider, 2006, p. 119.

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estão ligadas ao fato de que a literatura artística outorgava, até muito recentemente, apenas à retratística o direito de ser verdadeiramente considerada como arte romana. A veracidade e o consequente realismo com que eram representados os retratos de Imperadores, de nobres ou ainda aqueles de desconhecidos, eram marcados pelas rugas e linhas de expressão, formato da boca, do nariz e das orelhas, penteados e barbas que rendiam ao retratado um ar solene, mas sobretudo, davam-lhe individualidade. Considerava-se, portanto, que apenas os retratos estavam imbuídos de originalidade enquanto todo o restante da produção não passava de uma forma de conhecer a arte grega perdida. Contudo, as ditas cópias romanas tinham significado específico e estavam associadas a contextos também específicos, que ultrapassam a noção de mera cópia8. O conceito de cópia, inclusive, deve ser visto sob diferentes aspectos, pois engloba tanto a noção de réplica9, a qual se associava o verbo imitare, quanto a de cópia com engenho10. A réplica não se iguala tecnicamente ao seu original, ela copia fielmente seu modelo mas não se equipara a ele, sendo, portanto, uma cópia exata. Copiar estava associado a aemulare, à ideia de igualar em excelência e técnica e por extensão, qualificar a cópia exata do original11. À emulação pertence a noção do engenho, do acréscimo, mas sobretudo do diálogo com a auctoritas grega.

Outros dois famosos exemplos de cópias são as esculturas do Gálata moribundo e do Gálata suicida, a primeira pertencente aos Musei Capitolini e a segunda ao Museo Nazionale Romano Palazzo Altemps. As peças

8

É preciso ressaltar ainda que, além da produção artística, a produção literária era vista também como cópia da grega, o que não acontecia. Por exemplo, a poesia lírica antiga, na Grécia, era recitada ao som da lira e abordava diversos assuntos, enquanto que, em Roma, a poesia lírica enfatizava os sentimentos pessoais do poeta e nem sempre era acompanhada da lira.

9

À noção de réplica pertencem ainda os conceitos de matriz e exemplar. O primeiro sendo aquele de quem o outro será derivado e portanto, igual, uma vez que estes conceitos envolvem ainda a questão técnica de reprodutibilidade.

10

A ideia de cópia com engenho aparece em Vasari, para definir a imitação de modelos antigos aos quais o artista acrescentava algo da sua experiência: o engenho.

11

ANGUISSOLA, A. Difficillima Imitatio. Immagine e lessico dele copie tra Grecia e Roma. Roma: L’Erma di Brestchneider, 2012, p. 71.

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foram encontradas durante as escavações para a construção da Villa Ludovisi no Seiscentos na área em que se encontravam os Horti Sallustiani, vila que pertenceu primeiro a Júlio César e depois a Salústio, de quem herdou o nome. As duas esculturas, somadas ainda a uma terceira que representaria uma mulher ferida amamentando uma criança, pertenceriam a um único grupo brônzeo encomendado pelo rei Átalo I de Pérgamo para decorar o Santuário de Athena Nikephoros em memória de seu triunfo sobre os gauleses. As cópias romanas foram encomendadas por Júlio César para serem colocadas no jardim da sua vila no Quirinal para celebrar sua conquista da Gália12.

Por outro lado, um famoso exemplo de emulação é o grupo escultórico representando Orestes e Electra, pertencente ao Museo Archeologico Nazionale di Napoli. Nele Orestes é representado segundo o modelo do atleta de Estefano (hoje na Villa Albani, em Roma), aluno de Pasíteles, ativo em Roma no século I a.C., cuja escultura combina traços do estilo severo com as proporções lisípeas, combinando assim diferentes obras do “classicismo romano”13.

A Cabeça de Apolo da Fundação Eva Klabin poderia tratar-se então de um original grego clássico, uma cópia magno-grega ou ainda uma cópia romana de um original grego do V ou IV séculos a.C. Se considerada um original grego, restaríamos com a pergunta de por que realizar uma escultura em outro mármore que não o de Paros. Típico da Grécia continental, as esculturas gregas, assim como a Arquitetura, empregavam o mármore pentélico, a despeito do uso da policromia. Por outro lado, a obra poderia ser uma peça produzida na região da Magna Grécia ou etrusca. A civilização etrusca foi fortemente influenciada pelos gregos, mantendo grande contato com as colônias do sul da Itália. No entanto, o mármore era um material escasso e, sobretudo, o mármore branco não era

12

SOPRINTENDENZA ARCHEOLOGICA DI ROMA. Museo Nazionale Romano Palazzo Altemps. Roma: Electa, 1997, p. 44.

13

ANGUISSOLA, A. Difficillima Imitatio. Immagine e lessico dele copie tra Grecia e Roma. Roma: L’Erma di Brestchneider, 2012, pp. 20-21.

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encontrado facilmente, de maneira que eram comuns as esculturas acrolíticas, cujas extremidades e, portanto, a sua carnatura, eram de mármore branco e o corpo em outro material, como outros tipos de rocha ou madeira. Mas ainda precisaríamos perguntar por que realizar uma escultura em mármore, ou, muito possivelmente, em calcário, com olhos incrustrados, técnica, por outro lado, comum à produção brônzea. A fim de conferir um aspecto natural à escultura, os olhos eram, muitas vezes, incrustrados com vidro colorido e rochas14, o que reforça uma procedência itálica para a nossa escultura, que poderia ser inspirada em uma obra em bronze como o Apollo Kitharoedus [Fig. 2].

Devemos, no entanto, considerar a tipologia de representação de Apolo. O deus é representado com o cabelo arrumado em grandes ondas divididas ao meio e presas na parte de trás por uma faixa que perpassa toda a cabeça, fazendo ainda com que o cabelo longo fosse arrumado da nuca em direção ao colo. O rosto oval tem lábios, nariz e sobrancelhas bem delineadas que lhe conferem uma expressão severa. A obra se assemelha, portanto, a um tipo escultórico conhecido como Apolo de Kassel [Fig. 3], cujo nome refere-se ao exemplar mais bem conservado até os dias de hoje, que se encontra na cidade de Kassel na Alemanha. A escultura, encontrada em 1721, na Villa do Imperador Domiciano, representa o deus com as mesmas características faciais da peça da FEK, com a diferença de que o cabelo está arrumado em cachos. Os ombros são largos e a musculatura bem definida. Todo o corpo está levemente voltado para a esquerda, na direção da perna estendida, em resposta ao movimento incipiente da perna direita, pois o calcanhar não deixa de tocar o solo. Trata-se, portanto, de uma composição anterior à solução do contraposto, desenvolvido por Policleto. Pausânias menciona duas esculturas de Apolo que se encaixam nesta descrição: o Apolo Parnopios de Fídias e o Apolo Alexikakos de Kalamis. Contudo, grande parte dos especialistas tende a atribuir as diversas cópias romanas existentes a um original perdido de Fídias, uma vez que o grande número de reproduções – são conhecidas

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mais de vinte peças, entre elas a escultura do deus do Museu do Louvre, na França, e as Cabeças de Apolo pertencentes ao Museo Barracco, em Roma, e ao Museo Archeologico Nazionale di Napoli, ambos na Itália – deveria estar associado a um original famoso.

Partamos da possibilidade de que se trate então de uma cópia romana. O ethos da emulação grega deve ser visto como o conjunto de práticas culturais e comportamentos romanos que se apoiam sobre a técnica da repetição para produzir um efeito determinado. A repetição não é apenas uma ferramenta da imitação, mas é parte essencial da expressão da emulação de um modelo ou exemplum. A kopienkritik é uma forma de ressignificação do exemplum e sua revalidação em uma nova imagem e contexto. Repetir pode significar tanto replicar como também citar e esta última envolve tanto a comparação quanto a competição consciente com modelos anteriores com o objetivo de superá-los. A imitação destes modelos anteriores assume, portanto, dois caracteres: o de imitatio e aemulatio como forma de comunicação visual, conectando a escultura com o conjunto do repertório visual de imagens daquele contexto cultural. Nas palavras de Hölscher,

Primeiro, devemos começar do fato de que ambas as formas de recepção, na verdade, existem. Em seguida, temos de reconhecer que a referência consciente ao "período clássico", no sentido mais restrito, é um fenômeno muito diferente do uso abrangente de diferentes estilos dentro do repertório da arte grega. No primeiro caso, nos é oferecida uma atitude intelectual consistente, um esforço para a escala e a ordem, um programa - em suma - que evoca valores "atemporais", estabelece normas, elimina as atitudes contraditórias e faz exigências pedagógicas. No segundo caso, encontramos uma resposta para o passado, que registra e refere-se ecleticamente a uma variedade de tradições

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históricas, uma resposta direcionada a um ideal educativo mais difuso15.

Qual era o significado, portanto, de criar imagens idênticas? Em que medida o protótipo, ou seja, o original, era reconhecido, acumulado e investido de valor estético e ideológico? De acordo com Hölscher, ainda, a arte romana servia não apenas para rememorar uma realidade histórica, mas para exemplificar ideias intelectuais. O termo exemplum transmite bem a combinação de atribuição de significado, esteriotipação, abstração e resistência à mudança que caracterizam esse fenômeno16.

Os comitentes romanos consideravam a arte grega um patrimônio e, por isso, buscaram, nos diferentes períodos, aspectos que atendessem às necessidades funcionais de um determinado momento, que respondesse a questões espaciais e arquitetônicas. Muitas vezes, as cópias não funcionavam efetivamente como cópias de um tipo escultórico específico, o qual servia mais como repertório visual do que como modelo, como no caso da escultura de Orestes e Electra, citado anteriormente. A criatividade não excluía o uso extensivo de fórmulas correntes, familiares ao autor e seu público17. O patrimônio iconográfico e estilístico grego era empregado frequentemente como ponto de partida para criar imagens adaptadas ao seu novo contexto, cuja paternidade não era necessariamente reconhecida18. Estes valores idealizados eram expressos por meio da relação entre tema e forma, de maneira que os deuses deveriam ser

15

“First, we must start from the fact that both these forms of reception actually exist. Next, we need to acknowledge that the conscious reference to the ‘Classical period’ in the narrower sense is a very different phenomenon from the all-embracing usage of different styles within the repertoire of Greek Art. In the first case, we are offered a consistent intellectual attitude, a striving for scale and order, a programme – in short – that evokes ‘timeless’ values, establishes norms, eliminates conflicting attitudes and makes pedagogic demands. In the second case, we find a response to the past that registers and refers eclectically to a variety of historical traditions, a response directed of a rather more diffuse educational ideal.” HÖLSCHER, T. The language of images in Roman Art. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 10.

16

HÖLSCHER, T. op. cit., p. 89.

17

ANGUISSOLA, op. cit., p. 114.

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imbuídos de características como a maiestas (grandeza), pondus (dignidade, solenidade), eximia et veritas pulchritudo (atratividade) expressas por meio das formas de Fídias. Os heróis e as figuras humanas deveriam ter decor supra verum (elegância acima da verdade) e veritas pulchritudo (beleza verdadeira) representados por Policleto, Lisipo e Praxíteles. Os animais deveriam ser representados com veritas por meio das formas de Lisipo ou Míron19.

Havia, por outro lado também, o efetivo interesse pelas opera nobilia e a reprodução de grandes obras de artistas famosos, como Zêuxis, Praxíteles e Fídias. As cópias fiéis garantiam a circulação das formas, produzindo um fluxo de esquemas, iconografias e detalhes necessários para o jogo combinatório20. Criou-se assim a codificação de um repertório de fórmulas, que eram utilizadas para criar composições variadas, tanto do ponto de vista figurativo, quanto do uso de fórmulas “às vezes para toda a composição, às vezes para figuras e grupos individuais, às vezes para detalhes ainda menores”21. O uso de modelos, no sentido de exempla, é conhecido na literatura22. Na Villa Adriana, residência oficial do Imperador Adriano (117 – 138 d.C.), por exemplo, foi encontrado um exemplum em mármore para um estádio na região entre o Pretório e as Grandes Termas, onde funcionava um último canteiro de obras para os marmoreiros que cortavam ali as pedras em processamento23.

As obras copiadas tinham seu valor originário esvaziado, muitas vezes difícil de receber e distante do comitente e por isso, ele era recuperado mediante a transformação conceitual da figura, em um processo de emaranhamento na construção da imagem. Tratava-se de inventar um

19

HÖLSCHER, op. cit., p.120.

20

ANGUISSOLA, op. cit., p. 175.

21

“sometimes for the whole composition, sometimes for single figures and groups, sometimes for yet smaller details.” HÖLSCHER, op. cit., p.16.

22

Vide ANGUISSOLA, op. cit., pp. 120-125.

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novo sistema capaz de transmitir claramente o significado dos elementos que compunham a estátua, tornando-a parte da comunicação visual de uma narrativa. A colocação das esculturas no espaço obedecia, portanto, a uma narrativa construída de acordo com a função de cada ambiente, concebendo assim uma forma mentis de maneira a criar uma linguagem artística. As escolhas se davam baseadas nos temas e as esculturas passavam a constituir um grupo, não de forma a que cada uma tivesse um significado complementar a outra, mas pensadas de forma a ter uma correspondência recíproca, constituindo um elemento do espaço narrativo. As esculturas eram eleitas de acordo com a noção de proprietas, pela qual se identificava a pertinência do conjunto escultórico aos locais que ocupavam. Além disso, a posição em que elas eram colocadas era de grande importância, pois em alguns casos, por exemplo, a colocação de frente para espelhos d’água, buscava a duplicação do efeito escultórico, reforçando a construção retórica do conjunto.

Pensar a arte romana implica pensarmos também o local para o qual as esculturas estavam destinadas. Se a sua localização está diretamente atrelada ao seu efeito narrativo, outro dado importante que deve ser considerado é a sua colocação no espaço. Segundo Migliaccio, a cabeça de Apolo da FEK possui um encaixe que sugeriria a sua utilização como elemento arquitetônico, uma vez que a parte superior do crânio é plana, com um entalhe quadrado ao centro. Segundo ele, portanto, a cabeça faria parte de uma escultura destinada a uma composição arquitetônica. Esta hipótese, no entanto, não encontra, até o momento, outro paralelo na iconografia do deus, o que poderia significar que o encaixe não serviria a um elemento arquitetônico, mas sim, que a cabeça tivesse sido esculpida em partes separadas.

Seria possível, desta forma, sugerir que a cabeça fizesse parte de um Apolo Lykeios [Fig. 4], modelo no qual o deus repousa o braço sobre a cabeça, justificando assim a execução da peça em duas partes, a fim de ajustar o braço ao ombro. A utilização de diferentes modelos para compor uma única escultura baseava-se em paradigmas visuais de conteúdo e

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assunto, e não em considerações de estilo ou gosto24. A arte romana possuía uma grande variedade de iconografias e estilos, que eram usados de forma a criar um efeito narrativo no espectador, que a reconheceria e a completaria a partir de informações fornecidas e juízos sobre indivíduos e circunstâncias atuais.

Figura 1 Cabeça de Apolo Fundação Eva Klabin

24

(23)

Figura 2 Apolo citaredo

(24)

Figura 3 Apolo Kassel Museu de Kassel

(25)

Figura 4 Apolo lício Museu do Louvre

(26)
(27)

O DESCANSO NA FUGA PARA O EGITO DE ADRIAEN

ISENBRANDT DA FUNDAÇÃO EVA KLABIN:

NOTAS SOBRE SUA ATRIBUIÇÃO E ICONOGRAFIA

Maria Berbara

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

O pintor flamengo Adriaen Isenbrandt (1480-80 ca. - 1551) pintou diversas versões da Fuga ao Egito, uma das quais se encontra atualmente conservada na Fundação Eva Klabin. Há poucos registros documentais que possam esclarecer a biografia de Isenbrandt (também grafado Isenbrant, Ysebaert, Ysenbrandt ou Hysebrant). Não são conhecidos o local e data exatos de seu nascimento, mas sabe-se que, a partir de 1510, vivia em Bruges, então um dos maiores centros comerciais e artísticos da Europa. É nessa cidade que Isenbrandt estabelece seu ateliê, o qual se especializa, provavelmente, na produção de pinturas religiosas de pequeno porte destinadas à devoção privada.

De acordo com fontes contemporâneas, Isenbrandt foi, em seu tempo, um pintor de grande renome e bem-estabelecido1. Sanderus, em seu Flandria illustrata, afirma que era discípulo de Gerard David2; a semelhança formal entre diversas obras atribuídas aos dois artistas, de fato, atesta, se não necessariamente a existência de um vínculo do tipo mestre-discípulo, a forte influência de David sobre a produção artística de Isenbrandt.

A partir de 1516, segundo os registros cíveis, o pintor ocupou diversas posições na guilda de pintores de Bruges. Faleceu em julho de 1551, e, em

1

VAN PASSEL, V., Entrada Isenbrandt em The Dictionary of Art editado por Jane Turner (Nova York: Macmillan, 1996, vol. 16, pp. 69-71). As fontes relativas a Isenbrandt foram reunidas por James Weale em Le Beffroi, vol. 2, pp. 320 e seg. (apud FRIEDLÄNDER, M., Early Netherlandisch Painting (traducão inglesa do original alemão publicado em Berlim (vols. I-XI) e Leiden (XII-XIV) entre 1924 e 1937). Leiden: Sijthoff, 1974, vol. XI, p. 53, nota 1).

2

SANDERUS, A., Flandria illustrata. Haia: 1732, vol. 2, p. 154 (apud Van Passel, p. 69, e Friedländer, p. 53).

(28)

sua certidão de óbito, consta como meester – título outorgado somente aos mais destacados pintores3.

Isenbrandt pertence à corrente que, ao longo de século XX, ficou conhecida como "pintura primitiva flamenga". O termo faz referência ao trabalho pictórico de artistas ativos nos Países Baixos - sobretudo em seus grandes centros urbanos, isto é, Bruges, Gante, Bruxelas e Tournai - no século XV e primeira metade do século XVI. O termo "primitivo", nesse âmbito, não alude a uma falta de sofisticação ou rudimentariedade, mas à ideia - fortemente elaborada, entre outros, por Erwin Panofsky - de que artistas como Van Eyck ou Campin estiveram na origem de uma nova forma de expressão artística.

No início do século XX, de fato, começa a formular-se a tese da existência de um renascimento nórdico não subserviente ou derivativo, mas autônomo e concorrente do italiano. Um dos pontos de partida desta discussão parece ter sido a megaexposição realizada em Bruges, em 1902, sobre os assim chamados primitivos flamengos. A exposição gerou inúmeras resenhas – entre as quais as de Max Friedländer, Hugo von Tschudi, Roger Fry e Adolfo Venturi – e catapultou definitivamente a arte flamenga dos séculos XV e XVI a uma posição de centralidade nos estudos de história da arte globais4.

Em meados do século XX, quando o Isenbrandt da FEK (Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro) é adquirido, a assim chamada arte primitiva flamenga encontrava-se firmemente estabelecida como um dos pontos altos do Renascimento europeu. A tela representa o momento em que a virgem, São José e o menino fogem para o Egito depois de saber, por intermédio da mensagem de um anjo aparecido em sonho a José, que Herodes pretendia assassinar Jesus. De acordo com Mateus (2:16), Herodes, percebendo que havia sido enganado, ficou tão furioso que

3

Friedländer, op. cit., p. 53.

4

Cf. HAYUM, A., “The 1902 exhibition, Les Primitifs flamands: scholarly fallout and art historical reflections”. Journal of Art Historiography, v. 11, 2014, pp. 1-20.

(29)

ordenou a morte de todos os meninos com menos de dois anos que vivessem em Belém e nas proximidades.

O episódio da fuga para o Egito é representado inúmeras vezes na iconografia. Tradicionalmente, a virgem aparece, com o filho ao colo, montando um burro conduzido ou acompanhado por São José. Quase sempre, esse momento forma parte de um ciclo pictórico figurando a vida de Cristo e/ou da Virgem – como, por exemplo, no caso da Capela Scrovegni, em Pádua.

Nos Países Baixos do século XV, porém, surge uma forma alternativa, não-bíblica, de referir-se ao episódio: a representação da sagrada família descansando durante a fuga.Nessas imagens, a virgem costuma aparecer em primeiro plano, amamentando o menino ou tendo-o em seu colo, em um cenário rural, enquanto ao fundo são figurados outros momentos da narrativa5. Nos séculos XVI e XVII, esta variante pastoral da história populariza-se também na Península Itálica.

O célebre pintor flamengo Gerard David pinta diversas vezes essa versão da fuga para o Egito – ou, mais apropriadamente talvez, do descanso durante a fuga para o Egito. A tela atualmente conservada no Metropolitan Museum de Nova York [Fig. 1], por exemplo, exibe, ao fundo esquerdo, a vista de uma cidade flamenga contemporânea ao pintor, e, ao direito, a conhecida cena da virgem com o menino montando um burro acompanhada por São José caminhante. Ao lado da virgem vê-se um ramo de macieira. Sua presença, assim como a de outras frutas, como a romã ou cerejas, alude, em imagens da virgem com o menino, ao futuro sacrifício de Cristo, mas também, provavelmente, à passagem do Evangelho de Pseudo-Mateus (20) segundo a qual, no terceiro dia da viagem, a Virgem descansou sob uma palmeira, e o menino miraculosamente fez com que a árvore se curvasse para oferecer-lhe seus frutos.

5

Esses outros momentos derivam de fontes apócrifas, como, por exemplo, o Evangelho de Pseudo-Mateus e a Legenda Áurea.

(30)

Figura 1

Gerard David

Descanso na Fuga para o Egito, ca. 1512-1515 Óleo sobre madeira, 50,8x43,2 cm.

Nova York: Metropolitan Museum

Uma versão muito semelhante a essa, igualmente atribuída a David e conservada no Museu do Prado [Fig. 2], substitui, curiosamente, o ramo de

(31)

maçãs por um cesto de frutas, e uma terceira versão, pertencente à Washington Gallery [Fig. 3], inclui o cesto – deslocando-o, porém, para o chão – e insere, nas mãos do menino, um ramo de uvas. As uvas constituem um símbolo ainda mais direto do sacrifício de Cristo e sua renovação eucarística. Na tela estadunidense, ademais, David pinta José, em segundo plano, aparentemente colhendo nozes – uma provável variante do milagre da palmeira referido pelo Pseudo-Mateus6.

Figura 2 Figura 3

Gerard David Gerard David

Descanso na Fuga para o Egito, ca. 1515 Descanso na Fuga para o Egito, ca. 1510 Óleo sobre madeira, 60 x 39 cm. Óleo sobre madeira, 42 x 42 cm. Madri, Museu do Prado Washington: National Gallery

O Museum voor Schone Kunsten, de Antuérpia [Fig. 4], possui uma versão da fuga para o Egito atribuída a Isenbrandt muito próxima às de David – sobretudo a do Museu do Prado7. Como dito anteriormente, Isenbrandt é

6

Cf. HAND, J.O., e WOLFF, M., Early Netherlandish Painting. The Collections of the National Gallery (catálogo). Washington: National Gallery of Art, 1986, pp. 63-68.

7

(32)

com frequência associado a David; além de Sanderus, de fato, outras fontes – entre as quais Dionysius Hardwijn – mencionam-no como discípulo do mestre8. Por ocasião da supracitada exposição de 1902, em Bruges, o historiador da arte Georges Hulin de Loo identificou Isenbrandt com o assim chamado Mestre das Sete Dores da Virgem, atribuindo-lhe diversas obras até então consideradas de David e Jan Mostaert9. Em seu monumental Die altniederländische Malerei, Max Friedländer, na trilha de Hulin de Loo, atribuiu um vasto corpus de pinturas a Isenbrandt, destacando, contudo, a dificuldade em diferenciar obras da mão do mestre daquelas realizadas em seu ateliê10.

Figura 4

Isenbrandt?

Descanso na Fuga para o Egito Óleo sobre madeira, 81 x 99 cm. Antuérpia, Museum voor Schone Kunsten

8

Para a citação latina de Hardwijn (Harduinus), contida na de Sanderus, cf. Friedländer, op. cit., p. 53.

9

DE LOO, H., Bruges 1902: Exposition de tableaux flamands des XIVe, XVe et XVIe siècles, catalogue critique. Gante: 1902, pp. lxiii-lxvii, nrs. 177-85.

10

(33)

Há controvérsia, entre os estudiosos, relativamente à atribuição de quaisquer obras a Isenbrandt. Nenhuma pintura é documentalmente vinculada a ele de modo firme; sua datação, igualmente, é incerta e pode ser apenas inferida. O fato de que algumas dessas obras façam referência tão evidente a outras, de grandes mestres, não é, em absoluto, extraordinário; nos Países Baixos, como em outras partes da Europa, o conceito de emulação, longe de desmerecer o artista, atestava sua erudição e a solidez de sua formação11. Além do empréstimo bastante evidente do grupo central, figurando a virgem e o menino, Isenbrandt revela a influência de outros célebres mestres flamengos - notadamente, na criação da paisagem, de Joachim Patinir, que pertencia à geração anterior.

Isenbrandt, como quer que seja, tem sido identificado individualmente pela crítica – sobretudo a partir da exposição brugense de 1902 – e diversas obras têm sido atribuídas a ele ou a seu ateliê. Entre estas contam-se, ao menos, cinco representações da fuga ao Egito: trata-se, além da supracitada pintura conservada no Prado, de obras pertencentes à Alte Pinakothek de Munique [Fig. 5]; Museum voor Schone Kunsten de Gante [Fig. 6] Kunsthistorisches Museum de Viena e National Gallery da Irlanda, em Dublim.

As obras dividem-se, do ponto de vista da representação da virgem, em dois tipos: ora figuram-na tendo ao colo o menino com gesto bendizente (Munique), ora amamentando-o (Gante, Antuérpia). A sua estrutura formal, muito semelhante, representa o grupo em forma piramidal, ao centro da composição, tendo ao fundo uma paisagem alla fiamminga.

11

É famosíssima a passagem de Cennino Cennini, em seu Libro dell'Arte (publicado pela primeira vez em 1400), na qual o pintor encoraja jovens artistas a copiar os grandes mestres uma e outra vez, até conseguir replicar fielmente suas criações (cf. KLEINER, F., Gardener's Art Throught the Ages: The Western Perspective, vol. 2, 13a edição. Boston: Wadsworth, 2010 (primeira edição: 2005), p. 431).

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Figura 5 Figura 6

Adriaen Isenbrandt Adriaen Isenbrandt

Descanso na Fuga para o Egito, 1520-1530 ca. Descanso na Fuga para o Egito, s/d Óleo sobre madeira, 49,5 x 34 cm Óleo sobre madeira, 38,1 x 28,5 cm. Munique, Alte Pinakothek Gante, Museum voor Schone Kunsten

Os dois modelos remontam a tradições distintas, bizantinas na origem, da representação da virgem com o menino: de um lado a assim chamada virgo lactans (isso é, amamentando), e, de outro, a madona hodegetria ("aquela que aponta o caminho"). Nesse último tipo de imagens, a virgem, quase sempre sentada ou em meia-figura, segura o menino em seu colo, apoiando-o com a mão; este, com frequência, realiza um gesto de bendição, enquanto a mãe fita o observador e aponta em direção ao filho. Com a ocidentalização deste tipo, durante o Renascimento, o formato e gestos tradicionais da madona hodegetria flexibilizam-se: surgem variações no recorte da composição, nos gestos e mesmo no contexto

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narrativo. Guido da Siena, por exemplo, insere uma típica madona hodegetria em uma representação da fuga para o Egito [Fig. 7]12.

Figura 7

Guido da Siena

Descanso na Fuga para o Egito Têmpera sobre madeira, 13,4 x 46 cm. Altenburg: Lindenau-Museum

A Fuga ao Egito atualmente conservada na Fundação Eva Klabin [Fig. 8],

atribuída a Isenbrandt, encontra-se perfeitamente inserida na

representação deste tema nos Países Baixos entre os séculos XV e XVI. No óleo da FEK a virgem aparece, sentada, tendo ao colo o filho, que realiza um gesto de bendição. Com a mão direita ela segura um cacho de

12

Originalmente concebida para o altar da catedral de Siena, a obra se encontra presentemente no Lindenau-Museum de Altenburg.

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uvas - símbolo da paixão de Cristo e alusivo à Eucaristia13. Aos seus pés, à esquerda, vê-se o cesto de frutas, o qual aparecera igualmente, por exemplo, nos supracitados óleos de David. Ao fundo, à nossa direita, vislumbra-se a virgem, que, com o menino, monta um burro conduzido por São José. A dupla narrativa, como dito anteriormente, não era infrequente; sobretudo em composições deste tipo, a inserção de outras cenas relativas ao episódio da fuga para o Egito – fosse o grupo da virgem montando o burro ou episódios apócrifos, como, por exemplo, a colheita milagrosa dos frutos – apareceria quase sempre.

Figura 8

Adriaen Isenbrandt

Descanso na Fuga para o Egito, 1530 ca. Óleo sobre madeira. 106 x 75 cm. Rio de Janeiro, Fundação Eva Klabin

13

Em diversas outras representações da virgem com o menino, de Isenbrandt, aparece o motivo do cacho de uvas; cf., por exemplo, Friedländer, op. cit., figs. 183 (Virgem com o Menino da National Gallery da Irlanda, em Dublim); 183a (Nova York, coleção R. Lehman); 183b (Moscou, Museu Nacional Pushkin).

(37)

O manto da virgem faz jus à alta qualidade do colorido de Isenbrandt. Mesmo Friedländer, para quem os méritos do mestre mal transcendiam os de um hábil imitador, concede-lhe a palma na execução original das cores. O artista, de resto, caracteriza-se por uma paleta particularmente cálida, com abundância de tons vermelhos e marrons. Como era comum em obras de muitos de seus conterrâneos, a paisagem ao fundo aparece povoada por edifícios contemporâneos a ele. Embora a composição geral do óleo, como dito anteriormente, revele indubitavelmente a influência de David, Isenbrandt distancia-se deste último ao representar a virgem ligeiramente di sotto in sù, elevando a linha do horizonte e, consequentemente, aumentando e aprofundando o espaço destinado à paisagem e seus acidentes – montanhas, rochas, estradas, etc. O quadro da FEK, nesse sentido, aproxima-se aos óleos de Munique e Gante.

Do ponto de vista da iconografia, um elemento chama particularmente a atenção: o pequeno macaco que aparece em segundo plano, à direita da Virgem. Embora o animal pudesse parecer apropriado em uma representação do Egito - ou do caminho para o Egito – tudo na pintura parece querer figurar os Países Baixos dos séculos XV/XVI, prescindindo completamente de quaisquer intentos reconstitutivos de uma arqueologia antiga ou paisagem exótica. O que poderia, portanto, explicar a presença do macaco na imagem de Isenbrandt? Trata-se de um exemplo isolado? Teria algum significado simbólico?

Durante a primeira época moderna, animais, com frequência, podiam oferecer um sistema de convenções válido para a descrição de qualidades ou defeitos humanos; podiam, similarmente, simbolizar vícios ou virtudes14. Dificilmente, porém, eles se conectavam a um só símbolo, mesmo em uma coordenada histórica comum. Embora o macaco fosse um animal

14

Para a zoologia e suas interseções com teologia, política, filologia e ciência durante a primeira época moderna cf. ENENKEL, K. E., e SMITH, P. J., Zoology in Early Modern Culture. Intersections of Science, Theology, Philology, and Political and Religious Education. Leiden: Brill, 2014.

(38)

conhecido, na Europa, desde a Antiguidade15, o fortalecimento de rotas comerciais entre portos europeus, asiáticos, africanos e, a partir do século XVI, americanos que se observa na primeira época moderna propiciou uma presença ainda maior do animal na Europa. Nas grandes cidades, macacos de diversas espécies passam a ser vendidos nos portos e adquiridos, como animais de estimação, por membros de aristocracias locais16. Sua potência simbólica é particularmente abrangente17; entre manifestações demoníacas ou vinculadas a pecados e vícios, alusões ao poder imitativo da arte (ars simia natura), ou símbolos de ostentação e riqueza, a enciclopédia de símbolos animais de S. e L. Dittrich lista não menos que dez possíveis interpretações simbólicas do macaco detectáveis na primeira época moderna18. Essa variedade interpretativa vinculava-se certamente, como mencionado anteriormente, ao fato de macacos terem se tornado animais muito frequentes na esfera doméstica naquele período; além disso, porém, sua semelhança a seres humanos, assim como sua ontologia incerta, permitiam interpretá-lo fosse como a regeneração ou degeneração da humanidade19.

15

Há somente uma espécie de primata que se pode encontrar em liberdade na Europa: o assim chamado “macaco-de-gibraltar” (Macaca sylvanus), que, como o próprio nome diz, vive no extremo sul da Península Ibérica.

16

Entrada Affe em DITTRICH, S. e L., Lexikon der Tiersymbole. Tiere als Sinnbilder in der Malerei des 14. – 17. Jahrhunderts. Petersberg: Michael Imhof, 2004, p. 23.

17

JANSON, H.W., Apes & Ape Lore in the Middle Ages and Renaissance. Londres: The Warburg Institute, 1952, p. 13, pp. 287-300. O macaco não apenas era frequente no ambiente doméstico europeu da primeira época moderna, como, também, na maioria das vezes podia locomover-se livremente, sem estar preso a grilhões ou coleiras. Já antes da chegada de europeus ao Novo Mundo era possível encontrar macacos em ambientes domésticos – Petrarca, por exemplo, em seu De Remediis I.61: 180, queixa-se dos macacos, os quais considera animais horríveis e bagunceiros – mas as grandes navegações e o fortalecimento de rotas comerciais entre portos europeus e não-europeus durante a primeira época moderna incrementa notavelmente e o seu comércio. Janson analisa diversos aspectos do simbolismo quase sempre desfavorável do macaco. O animal, com frequência, simboliza o pecado e a pecamenosidade. Devido a sua semelhança com o homem, ainda, podia ser considerado uma degeneração.

18

Dittrich, op. cit., pp. 22-37.

19

KNOWLES, J., "'Can ye not tell a man from a marmoset?': Apes and others on the early modern stage". In FUDGE, E., Renaissance Beasts: Of Animals, Humans, and other wonderful Creatures. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 2004, p. 139.

(39)

O macaco, significativamente, surge em outras imagens representando a Virgem, Cristo ou santos. Em uma pintura realizada em Bruges por Hans Memling em 1485 -90 ca. – isso é, entre duas e três décadas antes da Fuga ao Egito de Isenbrandt – São Jerônimo aparece em primeiro plano, ajoelhado diante de um crucifixo e em ato de penitência [Fig. 9]. Ao seu lado, um pouco atrás, vê-se o leão, atributo do santo, e, ao fundo, um cenário rochoso e uma caverna – morada do eremita. Sobre as rochas, camuflado e sorrateiro, discerne-se, não sem certa dificuldade, a silhueta de um macaco20.

Figura 9

Hans Memling

São Jerônimo, 1485-90

Óleo sobre madeira, 87,8 x 59,2 cm. Basileia: Öffentliche Kunstsammlung

20

O macaco aparece em outras representações de São Jerônimo penitente, como, por exemplo, na pintura de Jacopo Bellini no Museo di Castelvecchio, Verona; Marco Zoppo na Walters Art Gallery de Baltimore (na qual é figurado três vezes) e Giovanni Mansueti em Bergamo, Accademia Carrara. Para a simbologia animal em representações de São Jerônimo cf. FRIEDMANN, H., A Bestiary for Saint Jerome. Animal Symbolism in European Religious Art. Washington: Smithsonian Institution Press, 1980. Para representações do macaco cf. especialmente pp. 270-71.

(40)

O mesmo artista pintou, nesses anos, um tríptico representando, ao centro, o descanso durante a fuga ao Egito [Fig. 10]. Como em outras imagens figurando o tema, a virgem aparece – nesse caso, de pé – em primeiro plano, enquanto, ao fundo, São José colhe os frutos da palmeira. Sobre a montanha rochosa que surge à esquerda, de modo semelhante ao São Jerônimo, vislumbram-se dois macacos – um sentado, o outro escalando a rocha – ainda melhor camuflados do que no óleo representando o santo eremita.

Figura 10

Hans Memling

Descanso na Fuga para o Egito, São João Batista e Maria Madalena, 1475-80 Óleo sobre tela, 47 x 26 cm (painel central)

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Figuras 9 e 10, detalhes

Em Memling, o cavalo aparece com um claro significado pejorativo em sua Alegoria com dois Cavalos e um Macaco, no Museu Boijmans van Beuningen (Roterdã). A pintura, muito provavelmente, tinha como pendant a Jovem com Cravo no Metropolitan Museum de Nova York, constituindo ambas um díptico de temática nupcial [Fig. 11]. Segundo Panofsky21, tanto o macaco - personificando, segundo ele, o temperamento sanguíneo - quanto o cavalo branco em que está montado representam a esfera mais básica e primitiva da natureza humana – por oposição ao cavalo alazão, que ergue o olhar fiel para a jovem noiva segurando o cravo – símbolo da fidelidade e compromisso nupcial.

Do ponto de vista formal e iconográfico, portanto, o Isenbrandt da FEK está em consonância com outras obras realizadas no mesmo período nos Países Baixos. O macaco, apesar de menos frequente, comparece diversas vezes na iconografia contemporânea, vinculando-se, em telas de temática religiosa, a significados negativos – o mal, o diabo, a luxúria, etc. A tela em exame, seguramente, foi realizada, como outras tantas de Isenbrandt e/ou seu ateliê, tendo em vista a devoção privada. O tipo da virgem, o cacho de uvas, a composição geral da tela, entre outros elementos formais e iconográficos, correspondem à tradição de representação do descanso durante a fuga ao Egito, a qual era comum na

21

PANOFSKY, E., Early Netherlandish Painting. Its Origins and Character. Cambridge: Harvard University Press, 1953, pp. 506-507, n.7.

(42)

Bruges contemporânea ao mestre. Assim como em outras obras pertencentes a essa tradição, Isenbrandt transforma o episódio em uma delicada e serena pastoral pontuada pelo expressivo cruzamento de gestos e símbolos vinculados à divindade e sacrifício de Cristo – as uvas, a benedictio – e pela inserção sotto voce do macaco, elegante alusão ao mal que o desafia.

Figura 11

Hans Memling

Díptico com alegoria do amor, 1485-90 ca. Óleo sobre madeira, 43 x 18 cm (por painel)

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GIANFRANCESCO ROMANELLI, A IDADE DE OURO

BARBERINI E A PINTURA BARROCA EM ROMA NO

SEISCENTOS

Elisa Byington

Figura 1

Giovanni Francesco Romanelli

Putti che pescano / Meninos que pescam, 1637

Encáustica sobre cartão colado sobre madeira, 159 x 310 cm. Rio de Janeiro, coleção da Fundação Eva Klabin

O propósito do nosso texto é situar historicamente e contextualizar, no âmbito do mecenato artístico que o originou, o belo cartão preparatório em encáustica com Giochi di putti – “Jogos de putos”, seria em português castiço. Na língua inglesa são chamados de Putti’s games ou Games of putti. Nós os chamaremos de “Jogos Infantis”. Putti são figuras infantis, geniozinhos que se originam no repertório da arte clássica grega ou romana, encontrados na arte Renascentista e Barroca tanto com o papel de espíritos angélicos quanto de arqueiros do amor profano, dotados ou não de asas.

(44)

O cartão dos Meninos que pescam [Fig. 1] que pertence à coleção da Fundação Eva Klabin, situada no Rio de Janeiro. é parte de uma série de sete, destinados a análogo número de tapeçarias com “Jogos Infantis”

realizadas para o cardeal Francesco Barberini, Cardeal Nipote do papa Urbano VIII, em Roma, 1637. É obra bem documentada, apesar de não contar com estudos específicos e da apresentação lacunosa do catálogo da Fundação. Os cartões foram inspirados no conjunto de 20 tapeçarias desenhadas por Rafael e seu atelier, sob encomenda do papa Leão X Medici mais de um século antes, para decoração da faixa inferior das paredes da Sala de Constantino na ocasião dos banquetes, amenizando com estas imagens leves e jocosas a gravidade da temática tratada nos afrescos de tema histórico na parte superior das paredes1. O projeto tinha sido concebido como celebração alegórica da “Idade de Ouro sob os Medici” e encomendado ao atelier de Peter van Aelst em Bruxelas2.

A família Medici havia gerado três papas e, além disso, os Medici eram os grão-duques da Toscana, referências importantes para a imagem e legitimidade social dos Barberini, família de origem florentina sem muitos lustros. Foram inspiração constante para a atuação cultural dos Barberini. Do ponto de vista artístico, Rafael era referência absoluta, o modelo de classicismo mais desejado, eleito como o mais perfeito pelas doutrinas estéticas daquele momento.

1

A Sala de Constantino, decorada com a batalha com a Batalha da Ponte Milvia (852x376cm), é a última das célebre quatro Stanze realizadas por Raphael de Urbino e seu atelier, entre 1508-1524, no Palazzo Apostolico Vaticano. Raphael morre precocemente em 1520 e a decoração deste ambiente é terminada por seus assistentes.

2

Vasari atribui a paternidade dos cartões das tapeçarias a Giovanni da Udine, hipótese corroborada pelos frisos de sua autoria na Villa Madama em Roma, muito semelhantes. Mas há os desenhos de Tommaso Vincidor e uma carta deste ao papa Leão X de Bruxelas, datada 20/07/1521, referindo sobre a conclusão das tapeçarias. A. Gnann argumenta que a paternidade das invenções seria do próprio Raphael. Cf. Roma e lo stile classico di Raffaello (1515-1527), catálogo de exposição em Mântua e Viena (Org. K. Oberhuber e A. Gnann). Milão: Elekta, 1999, p. 238-239. (Há na coleção da Biblioteca Nacional uma xilogravura do Mestre do dado baseada nos desenhos de Tommaso Vincidor para uma das tapeçarias de Raphael perdidas. Cf. BYINGTON, Elisa. Giorgio Vasari, invenção do artista moderno, catálogo da exposição. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2011, fig.76, p. 115.

(45)

Infelizmente, a série de tapeçarias do século XVI não sobreviveu. Provavelmente pela quantidade de metal precioso empregado, que fez com que muitas fossem queimadas para extraí-los. Mas delas foram feitas muitas cópias. Até mesmo pela Arazzeria Barberini, instituída pelo papa em Roma, em 1627, onde trabalhavam tecelões vindos de Flandres, origem de uma cópia datada possivelmente de 16353.

O cartão realizado em encáustica por Gianfrancesco Romanelli possui ainda hoje cores frescas e vivas. É obra muito bela e sedutora na graça dos movimentos, na variedade de posição das figuras, dos corpos bem torneados, na harmonia das cores claras – o azul claro, o rosado das vestes e da pele dos meninos, o amarelo dourado predominante na paisagem que ambienta a cena. A beleza dos rostos e dos cabelos cacheados são características diretamente devedoras do mestre Pietro da Cortona, o maior pintor do barroco italiano, grande estudioso de Rafael, o “Bernini da pintura”, de quem Gianfrancesco Romanelli, autor do cartão, era “discípulo e êmulo” – como definiu Giovan Battista Passeri, biógrafo de ambos os artistas e teórico da época4.

As poses variadas dos meninos, entretidos com as armadilhas para os peixes, seguem uma linha ondulada segundo o movimento natural e harmonioso das figuras, postas em planos sutilmente distintos no espaço do quadro. No primeiro plano, temos a margem na qual estaria situado o espectador da cena, diante das águas, no ponto em que o riacho faz a curva. A paisagem natural – terra, rochas e árvores de folhagem variada – é muito bem descrita, gênero pictórico que tem grande revival no gosto do século XVII em Roma. A fieira com os peixes no canto direito mostra o resultado da pesca no mesmo ponto de onde parte o grito de dor do menino menor que tem seu dedo mordido por um caranguejo. A imagem

3

A tapeçaria do Metropolitan Museum, Nova York, Two putti trying to stop a monkey, pertence a uma série de 8 tecidas na Arazzeria Barberini, reproduzindo parte das 20 encomendadas pelo papa Leão X a Rafael de Urbino em 1520.

4

PASSERI, Giovan Battista, Vite de’pittori, scultori ed architteti che anno lavorato in Roma, morti dal 1641 al 1673, ed. Gregorio Settari. Roma, 1772.

(46)

bucólica, densa de significado alegórico, adverte sobre as insídias que se escondem sob a aparente calma e os prazeres da vida, mensagem moralizante presente em outros quadros da época, como, por exemplo, Ragazzo morso dal ramarro de Caravaggio, entre outros deste mesmo ambiente cultural.

Figura 2

Meninos que pescam, 1637 Tapeçaria em lã, seda, ouro e prata Museu do Palácio Veneza, Roma

O “cartão” de autoria de Gianfrancesco Romanelli (Viterbo 1612- Roma 1662) é obra preparatória para a tapeçaria que aqui vemos [Fig. 2], realizada em lã, seda, ouro e prata pela Arazzeria Barberini, em Roma, manufatureira destinada à tecelagem de obras preciosas para o papa Urbano VIII Barberini e sua corte, instituída por este em 1627. A iniciativa de fundar a Manufatura é possivelmente inspirada por um outro Medici,

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Cosimo I Medici, primeiro grão-duque de Toscana que, por volta de 1540, havia instituído uma tecelagem nos mesmo moldes em Florença, empregando mestres flamengos.

Em 1637 Romanelli realizou sete cartões para a série de tapeçarias com os “Jogos Infantis”, além de cinco frisos, que retomavam o modelo das tapeçarias de Rafael, simplificando a temática e apenas reproduzindo o esquema compositivo. Nos desenhos rafaelescos, cupidos alados jogam com grandes guirlandas de frutas e flores, diferentemente da série seiscentista onde os jogos infantis são ambientados em belas paisagens, de acordo com o renovado prestígio que o gênero gozava em relação à época do modelo quinhentista. Os outros cartões em encáustica, análogos ao presente, encontram-se na Villa Lante em Bagnaia, célebre residência renascentista nos arredores de Viterbo, terra de Romanelli, na região do Lácio.

Da série de sete tapeçarias, apenas cinco se conservaram e desde 1933 estão na coleção do Museu Nacional do Palácio Veneza, em Roma. Eram parte da coleção de três mil obras reunidas pelo diplomata americano George Washington Wurts e doadas pela viúva Henriette Tower5. Observem a posição invertida da cena na tapeçaria em relação ao cartão que lhe serve de modelo. À exemplo das gravuras, para as quais acontece o mesmo, a posição da cena resulta invertida em relação à matriz.

O tema da série nos remete à Idade de Ouro da Civilização, Era da Inocência primordial, recurso metafórico muito apreciado para mitificar pontificados e reinos. Celebrava o momento em os homens viviam em harmonia com seus semelhantes e com os animais, alimentando-se simplesmente do que lhes era oferecido pela natureza, não só os peixes, mas também o mel das abelhas ao qual alude a colmeia pendurada em um galho de oliveira no canto esquerdo, o qual, por sua vez, é envolvido por

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Por motivos de espaço, a série completa das tapeçarias atualmente não está exposta no Palácio Veneza. Apenas Meninos que jogam petanque e Meninos que brincam com a coruja estão expostos no corredor de comunicação entre o Museu e as Salas Monumentais – segundo fui informada pela diretora do Museu, Dra. Andreina Draghi.

Referências

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