• Nenhum resultado encontrado

Vozes sem sonoridade: tramas do silêncio em Anacrusa, de Ricardo Daunt

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Vozes sem sonoridade: tramas do silêncio em Anacrusa, de Ricardo Daunt"

Copied!
124
0
0

Texto

(1)

Sérgio Linard

Vozes sem sonoridade: tramas do silêncio em Anacrusa, de Ricardo Daunt

Natal/RN 2020

(2)

VOZES SEM SONORIDADE: TRAMAS DO SILÊNCIO EM ANACRUSA, DE RICARDO DAUNT

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Estudos da Linguagem. O presente trabalho foi desenvolvido sob orientação do Prof. Dr. Derivaldo dos Santos.

NATAL/RN 2020

(3)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Sérgio Linard.

Vozes sem sonoridade: tramas do silêncio em Anacrusa, de Ricardo Daunt / Linard, Sérgio. - Natal, 2020.

121f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Derivaldo dos Santos.

1. Silêncio - Dissertação. 2. Romance contemporâneo - Dissertação. 3. Anacrusa - Dissertação. 4. Daunt - Dissertação. I. Santos, Derivaldo dos. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.09

(4)

ATA DA 639a SESSÃO DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Aos trinta e um dias do mês de julho de 2020, às 10h, foi instalada a comissão examinadora responsável pela avaliação da Dissertação de Mestrado por videoconferência, intitulada: Vozes sem sonoridade: tramas do silêncio em Anacrusa, de Ricardo Daunt, apresentada pelo mestrando SÉRGIO LINARD NEIVA PIMENTA, ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, como parte dos requisitos para obtenção do título de MESTRE EM ESTUDOS DA LINGUAGEM, área de concentração Estudos em Literatura Comparada. A comissão examinadora foi presidida pelo professor orientador doutor Derivaldo dos Santos (UFRN) e contou com a participação dos professores doutores Francisco Fábio Vieira Marcolino (UFRN) e Pedro Fernandes de Oliveira Neto (UFERSA) na qualidade de examinadores. A sessão teve duração de 2 horas e a comissão emitiu o seguinte parecer:

O trabalho apresentado encontra-se bem estruturado e cumpre os requisitos necessários à escrita acadêmica, correspondendo ao que se espera de uma dissertação de mestrado e dando uma significativa contribuição à literatura produzida no século XXI.

O candidato foi considerado aprovado.

Prof. Dr. Derivaldo dos Santos Orientador e Presidente da Banca

Prof. Dr. Francisco Fábio Vieira Marcolino Examinador Interno

Prof. Dr. Pedro Fernandes de Oliveira Neto Examinador Externo à Instituição

(5)

A Samily Linard Neiva Pimenta,

aquela que todos os dias me mata, mas em todos os dias traz-me forças para, por ela, ressuscitar.

(6)

demonstrada para com todos.

Ao professor Dr. Marcelo Henrique Neves Pereira, pela amizade, pelos conselhos e por ter me mostrado a opção de chegar aqui.

À professora Dr. Carla Maria Cunha, por tanta coisa que me limitarei a dizer: por me mostrar que tudo tem sua vez e seu tempo.

À Ingrid Santana, por me fazer ser o que quer que eu seja.

À Vanessa Raíres, por estar comigo a todo o tempo, por me entender, por me incentivar e, especialmente, por compartilhar medos comigo.

À Giovanna Araújo, por acreditar mais em mim do que eu mesmo.

À Gabriella Kelmer, pela amizade sincera, pela correção cirúrgica, pelo carinho de seu olhar.

À Diana Menezes (Migles), por ser, fora de mim, uma força minha.

A Álvaro Ricardo Cruz da Silva Filho, por ser um amigo para as melhores paranoias e os mais sinceros sorrisos.

A Clayton Marinho, por me mostrar a grata surpresa de que na festa da carne também se acha afeto.

À Ysla Kallena, por ser uma das pessoas que me ensina amor por meio de um lindo e sábio silêncio.

Aos meus alunos (do presente e do passado) aqui nominalmente representados por Victor Mafaldo, Pedro Maia, Alexandre Jussier, Flávia Luana, Arthur e Manoela. Nomes marcantes que honram com louvor minha relação com estes que confiam, e confiaram, a mim a tentativa de ajudar a construir um mundo mais justo.

A Sérvulo Fernandes Pimenta Filho, por mostrar-me princípios de justiça, de amor, de lealdade e, sobretudo, de abnegação.

À Soraya Neiva Pimenta (mãe, seu nome atual não tem uma boa sonoridade, portanto usarei o que consta em meus documentos), por ser a mulher mais forte que conheço, por me levar, à noite, às suas aulas da escola e me fazer, desde criança, entender que aquele era o meu lugar. Por suportar meus dramas, meus traumas, a mim.

À Sâmea Linard Neiva Pimenta, por ser a mais amorosa de todos nós, por nunca esquecer que existimos, por ser a primeira a me dar coragem e a que nunca largou a minha mão.

À Ana Mel Linard, por ser o meu desafio de construir, para ela, um mundo menos injusto.

(7)

Aproximei meu rosto do silêncio e da treva Para buscar a luz dum dia limpo

(8)
(9)

construído no texto literário mediante a ausência da palavra, o cerceamento da voz de personagens, a ocultação de pensamentos e atitudes por parte do narrador, a utilização de expressões que remetam a esse campo semântico e, ainda, no texto contemporâneo, por meio de modificações tipográficas. Essas materializações possibilitam a análise desse signo que, de acordo com Barthes (2003), é reproduzido para não ser signo, mas rapidamente recuperado como tal. Diante dessas perspectivas, objetivamos, com este trabalho, apresentar como o signo do silêncio é constituído no romance Anacrusa (2004), de Ricardo Daunt. No que se refere à problemática do silêncio, a análise tem como principais bases teóricas as proposições de Barthes (2003), Holanda (1992), Orlandi (2002); quanto à especificidade da narrativa, tem- se como aporte teórico o pensamento de Adorno (2012), sobre o narrador contemporâneo, e Candido (2014a), sobre a personagem do romance. O estudo do texto em foco possibilitou- nos a percepção de que, em diversas fases do texto, as falas de personagens são oprimidas pelo poder enunciativo do narrador que conduz os acontecimentos em prol de uma construção hermética do romance, a fim de que se lancem dúvidas sobre os atos ilícitos por ele cometidos, uma vez que a superfície do texto se apresenta de maneira fragmentada e caótica. Tal fragmentação ganha ênfase mediante a utilização do signo do silêncio, que acaba por construir “vozes sem sonoridade”, vozes que são silenciadas por meio de movimentos opressores praticados por aquele que conduz a narrativa.

(10)

Silence is acknowledged as a sign embracing multiple meanings, being at times built on the literary work as the absence of speech, the curtailment of the characters' voices, the concealment of thoughts and attitudes by its narrator, the use of expressions alluding to this semantic field and, still, on the contemporary prose, through typographical alterations. These embodiments enable the analysis of this sign, that, according to Barthes (2003), is conveyed to not be a sign, but promptly recognized as such. In face of these perspectives, our work aims at presenting how the sign of silence is depicted on the novel Anacrusa (2004) by Ricardo Daunt. In relation to the problem of silence, the analysis has as its theoretical basis the propositions of Barthes (2003), Holanda (1992), Orlandi (2002) e Homem (2011); with regard to the specificity of the narrative, the theory is supported by the thoughts of Adorno (2012) on the contemporary narrator, as well as Candido (2014) on the novel's character. The study of the text at issue led to the perception that, throughout the text, the characters’ lines are oppressed by the enunciative power from its narrator, who orchestrates the events on behalf of a hermetical construction of his prose, thus casting a shadow on his illegal actions, once the textual surface presents in a piecemeal, chaotic way. Such fragmentation is highlighted via the use of the sign of silence, which ends up producing “soundless voices”, muted by the oppressive moves practiced by the narrative’s ultimate conductor.

(11)

2. Perspectivas do texto literário contemporâneo ... 15

2.1 A literatura brasileira contemporânea: breves considerações ... 15

2.1.2 O narrador em perspectiva: tendências da narração ... 28

2.2 Autor, fortuna crítica e obra ... 38

3. A literatura e o silêncio ... 45

3.1 A dialética do silêncio ... 45

3.2 Silêncios e interditos na voz narrativa ... 60

4. Tramas do silêncio em Anacrusa ... 67

4.1 Silêncio da opressão: as vozes sem sonoridade ... 67

4.1.1 Metalinguagem e a construção do silêncio em Anacrusa ... 75

4.2 Silêncio da natureza: o medo ... 89

4.3 Silêncio do homem: a estratégia de se calar ... 99

5. Considerações finais ... 112

(12)

1. Considerações iniciais

O espírito se move num movimento estranho em que angústia e êxtase se combinam. Georges Bataille

O início do século XXI trouxe à literatura mutações em sua construção e representação que fazem deste período um momento de grande importância para a compreensão de obras distintas, surgidas a partir do segundo milênio. Diante da realidade de expansão das produções e publicações literárias dos últimos anos, elegemos como objeto de nosso estudo Anacrusa (2004), romance de Ricardo Daunt, com o objetivo de analisar como o signo do silêncio é adotado enquanto elemento de construção identitária das personagens desse romance. Para isso, procederemos à investigação dos processos técnico-criativos de utilização do silêncio como meio expressivo do qual se constitui Anacrusa; interessa-nos também examinar como as diversas possibilidades da utilização do silêncio foram aplicadas na criação do narrador e das personagens e de suas representações identitárias: Antonio Vidal, Vidal, Antonio e Isabel, na identificação do contorno dos múltiplos sujeitos característicos ao ser humano. É importante destacar, ainda, que esses mesmos nomes se repetem na trilogia romanesca do autor: Manuário

de Vidal (1981), Anacrusa (2004) e O Romance de Isabel (2013). No primeiro, Antonio Vidal

segue com esse nome até o encerramento da narrativa. É apenas em Anacrusa (2004) que Antonio e Vidal surgem como duas personagens distintas.

Nossa pesquisa adota o silêncio como categoria analítica a fim de explorar o romance citado, com vistas a uma compreensão crítica da obra, investigando a articulação entre os meios expressivos criados pelo autor e a relação de sentido para a qual a sua ficção aponta, conforme o método dialético proposto por Candido (2014b).

O romance como gênero literário é uma recorrência viva na literatura contemporânea, tendo ganhado novas perspectivas e tendências diversas, conforme aponta Perrone-Moisés (2016, p. 122):

O romance foi muitas vezes declarado morto, mas o que vemos, na atualidade, é que ele sobreviveu a todas as transformações sociais e artísticas do século XX. O romance sobreviveu por ser um gênero plástico e onívoro, capaz de incluir outros gêneros, da narrativa de aventuras ao ensaio filosófico, do diário íntimo ao relato histórico, da representação realista do mundo em que vivemos à invenção fantástica de outros mundos, do testemunho político à reportagem jornalística, capaz enfim de absorver todo tipo de estilo, prosaico ou poético, e de continuar revelando aspectos da realidade que escapam à hiperinformação das mídias.

(13)

Essa capacidade de mutação intrínseca ao romance, citada por Perrone-Moisés, é, cada vez mais, materializada quando se tem sob perspectiva as publicações romanescas do período da literatura contemporânea brasileira. Tal período parece possuir distintas dificuldades quanto à sua delimitação temporal, levando-nos, inclusive, a recorrer a pergunta do filósofo Italiano, Agamben (2009), na busca por explanar O que é o contemporâneo? Delimitar o que seja contemporâneo não se apresenta como foco da pesquisa aqui aventada, contudo, apresentar uma filiação teórica coloca-se como um natural caminho para justificar o recorte temporal aqui sugerido. A partir das considerações intempestivas de Nietzsche, pode-se chegar a um entendimento de que o homem contemporâneo (e aqui, por extensão, a literatura contemporânea) não é aquele que simplesmente atende e enxerga as demandas de seu tempo, posto que, se assim o fosse, o contemporâneo seria simplesmente o homem do “aqui e agora”, sem um trabalho dialético acerca do que lhe antecede e do que pode estar por vir. Por termos essa filiação, concordamos com Agamben (2009, p. 59) ao concluir que

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não manter fixo o olhar sobre ela.

Desse modo, vê-se que a compreensão do que seja contemporâneo não pode ter como limite os fatos presentes, uma vez que esses fatos são, na verdade, resultados de processos históricos e respostas a anseios para o futuro. Do mesmo modo, a literatura contemporânea não deve ter sua limitação ao que se produz em momentos da atualidade, afinal, caso o fizéssemos, apagaríamos características socio-histórico-culturais dessa manifestação artística, o que não é interessante. Diante de tal realidade, seguimos, com pequenas adaptações, como delimitação temporal proposta por Guinzburg (2012, p. 199) acerca dos problemas enfrentados pelos textos produzidos nessa época. De acordo com o autor, os textos literários brasileiros publicados entre 19601 e o tempo presente compartilham, em sua grande maioria, a alcunha de serem desafiadores para a crítica literária, que está acostumada a lidar com os “valores canônicos e a periodização”. Sabe-se que os textos contemporâneos trouxeram ao romance formas e conteúdos que não seguem o tradicional modelo do romance balzaquiano,

1 Por entendermos que existem produções que são melhor observadas se compreendidas como

contemporâneas, aumentamos, durante nossa pesquisa, esse período temporal em cinco anos. Assim, consideramos que o contemporâneo na literatura brasileira abarca obras publicadas entre 1955 e o presente. Tomamos como base, para esta decisão, as mesmas características que Guinzburg destaca como comum aos textos do período de 1960 aos tempos atuais.

(14)

por exemplo. Obras que, em relação à forma, fazem com que o leitor necessite mudar a posição do livro, repetir gestos feitos na leitura de um jornal ou, em casos mais remotos, destacar páginas, são algumas das mutações dadas a esse gênero. Tem-se, também, agora em relação ao conteúdo, a maior possibilidade de que temas até então silenciados e/ou pouco explorados sejam trazidos à discussão por meio da obra ficcional. Incestos, sexualidade, desigualdades de gênero e racial e até mesmo o próprio fazer literário são matérias recorrentes nas letras da contemporaneidade brasileira e em diferentes literaturas2, o que não significa, porém, que tais temas não tenham sido objetos de diversas obras literárias de períodos históricos também diversos, sabe-se que a realidade não é essa. No entanto, a literatura produzida atualmente tem se encarregado, por motivos distintos, de lhes dar maior visibilidade. Dessa feita, o nosso estudo apresenta o vigor e a pujança que o gênero romance ainda detém, mesmo que alguns anunciem seu arrefecimento ou fim. Consideramos, portanto, que esse gênero sofreu atualizações à época em que se encontra e não uma total interrupção em sua produção.

Com as transformações das ficções contemporâneas e sua maior comercialização nos dias atuais, percebeu-se que esses romances, além de utilizarem a palavra como objeto, recorrem ao que Homem (2011) chamou de "não-palavra". Para a autora, o romance atual "acentua uma maneira de compor em que personagem, narrador e autor se interceptam continuamente e na qual o silêncio aparece [...] o pacto ficcional se altera, o jogo entre palavra e silêncio se revela" (HOMEM, 2011, p. 7). Essa perspectiva, que mostra o signo do silêncio como uma constante nas literaturas contemporâneas e como uma marca do rompimento com a ordem da palavra, guia nossa análise sobre Anacrusa.

Por se conceber que o objeto do estudo literário só se faz com a presença da literatura como elemento da memória cultural, este trabalho se ocupa da análise da referida obra, privilegiando seus aspectos construtivos, encontrando na teoria não um ponto central do estudo, mas uma ferramenta auxiliar da leitura crítico-interpretativa. Para tal execução, o pensamento de Candido (2014b, p. 13 – 14) é de grande pertinência, tendo em vista o estudo da obra em sua integridade, pois

só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela discussão de que a

2 Sobre questões de gênero e sexualidade, em literaturas produzidas fora do Brasil, destacamos A vida

escolar de Jesus (2018), de J.M. Coetzee e – obviamente – , o clássico Orlando (2018), de Virginia

Woolf; sobre a desigualdade de gênero, o romance o remorso de Baltazar Serapião (2018), de Válter Hugo Mãe; e sobre questões raciais, a trilogia Areias do imperador (2015 a 2018), de Mia Couto.

(15)

estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo.

Assim, o entendimento da dialética que envolve o processo de construção literária e que estabelece uma estreita relação entre literatura e sociedade é o norteador das análises a serem apresentadas, mais amplamente, no quarto capítulo desta dissertação. Nessas análises, buscamos atingir os objetivos anteriormente traçados e garantir que a leitura crítica da obra atinja sua integralidade, conforme defende Candido, de maneira que as orientações estéticas e conteudísticas sejam compreendidas como resultantes de uma relação retroalimentativa entre texto literário e sociedade. Para esse crítico, a obra artística é o resultado da confluência entre a iniciativa individual do artista e as condições sociais em que ele se encontra, o que postula a necessidade de se pensar a literatura como uma manifestação ambivalente da arte, pois guarda em si matéria de comunicação individuais e também coletivas. Não é à toa, por exemplo, que, ao falar sobre a literatura e a vida social, Candido (2014b, p. 40) observa: “a obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a sua posição”, levando à consideração de que a tríplice relação autor, obra e público é indispensável para o fazer literário e, dessa forma, para a compreensão dessa manifestação. É, então, por meio de um processo dialético que a sociedade contribui para a construção da literatura e é, ao mesmo tempo, é construída por ela, sendo o público o responsável pela ligação entre autor e obra.

Não obstante, essa visão de Candido acerca do objeto cultural literário corrobora, novamente, para o entendimento já apontado sobre a contemporaneidade na literatura, pois, ao entendermos que as obras da atualidade possuem associação com textos que as antecederam, por vezes negando-os, por outras confirmando-os, alcançamos o porquê da necessidade de que o recorte temporal abarque obras que, em tempos anteriores, apresentaram-se como “pontapés” iniciais para o texto que hoje chega em nossas mãos. Assim, a literatura segue sendo produzida por meio das confluências temporais diversas, reagindo a interações internas e externas a si. Reforça-se, dessa feita, a dialética que constitui o homem, o seu tempo e a sua arte.

Sobre o romance moderno3, conforme aponta Rosenfeld (1996, p. 83), tem-se uma “radicação extrema do monólogo interior”, gerando uma omissão do narrador que

3 Mantivemos o termo “moderno” considerando que foi o mesmo termo utilizado pelo autor

referenciado. No entanto, entendemos que essa palavra e as características traçadas para ela se aproximam do que chamamos “contemporâneo”. Sabemos que a utilização de contemporâneo para qualificar a atual literatura produzida tem função didatizante e que, na posteridade, certamente não se sustentará, posto que as tendências da forma literária de apreender o mundo podem sofrer distintas alterações percebidas por meio do distanciamento histórico. Assim, tomamos o termo de Rosenfeld

(16)

desencadeia toda uma nova estrutura frasal, para que se proporcione um considerável fluxo psíquico. Tais aspectos do romance moderno são, por sua vez, observados em Anacrusa e prescindem de uma análise para que se tracem elos entre a obra e sua ligação com a tradição literária ocidental.

O que se observa, por meio da leitura da obra, é uma marcante presença do signo do silêncio, capaz de gerar múltiplos entendimentos para o texto, justificando-se, assim, a escolha desse signo como categoria analítica. O contato com a obra demonstra que o silêncio é uma vertente da linguagem com potencial para verticalização de compreensões dessa literatura, relegando a esse signo uma demanda por leitura crítico-interpretativa daquilo que salta à superfície, mas se integra desde a base da construção de Anacrusa.

Para tratarmos e teorizarmos sobre o silêncio como categoria analítica, recorremos a Barthes (2003), com sua perspectiva de que o silêncio é um signo que carece de sentido para ser reconhecido. Para o mesmo autor, esse signo é visto, também, como uma forma de ocultação de pensamento das personagens. Consideramos, ainda, suas contribuições acerca da divisão do silêncio em tacere e silere; seguimos Holanda (1992), que enxerga o silêncio como reafirmação das condições sociais e como uma forma de denúncia da opressão do sistema linguístico imposto; e usamos Orlandi (2002), que focaliza o silêncio como uma forma de se fazer com que a linguagem verbal não ocupe o centro exclusivo da manifestação linguística, postulando a necessidade desse signo para a própria linguagem.

A fim de procedermos ao exame de Anacrusa, considerando as especificidades do romance contemporâneo, utilizamos a sistematização teórica de Rosenfeld (1996), que nos ajuda a compreender essa narrativa fora da perspectiva do “retrato” comumente empregada aos romances tradicionais. Usamos a abordagem desse autor com fins de entendermos como as ideias de suspensão das ordens do tempo e do espaço são materializadas em Anacrusa. Em semelhante aspecto, Adorno (2012) nos servirá como base para a investigação acerca da

(moderno) como contemporâneo por entendermos que esse crítico já aponta em seus estudos características constitutivas do texto literário observáveis no período que aqui delimitamos para a contemporaneidade. A ideia de encarar a tradição literária para ora afirmá-la, ora contrariá-la, o entendimento de que a linearidade temporal da narrativa não é requisito para o texto da modernidade, a apresentação de um texto que não se constrói por meio de retratos, a percepção de uma forte presença da metalinguagem e outras características elencadas por Rosenfeld para o texto moderno levam-nos a compreender a possibilidade de utilização de moderno, neste caso, como sinônimo de contemporâneo. Além disso, conforme se observa no decorrer do trabalho, as características do que este crítico chama de moderno são apontadas como tendências para o texto contemporâneo por Perrone-Moisés (2016).

(17)

constituição do narrador no romance contemporâneo4, de modo que possamos examinar o paradoxo que envolve esse integrante da narrativa e o mundo moderno e fragmentado do presente século.

Este trabalho encontra-se dividido em quatro capítulos seguintes, a saber: o primeiro aborda uma discussão sobre o texto literário da contemporaneidade, situando obras, autores e tendências por meio de uma breve visão panorâmica, com um enfoque na literatura brasileira, bem como no autor, na sua fortuna crítica e na obra aqui estudados; o segundo focaliza o silêncio como categoria analítica, estabelecendo relações com o texto literário – é neste capítulo em que se poderá observar, ainda, a exploração do caráter dialético em torno do silêncio e a defesa dele como um elemento indispensável para a construção do texto literário e para a atividade reflexiva do exercício da linguagem – ; o terceiro trata da análise crítico- interpretativa da obra, apresentando as relações do signo do silêncio com o material estético em estudo, para demonstrar as múltiplas construções desse signo em Anacrusa ; e o quarto permeia os temas abordados nesta dissertação, traçando considerações finais e sugestões de aprofundamento da pesquisa.

2. Perspectivas do texto literário contemporâneo

Enquanto faço o verso, tu decerto vives. Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue. Dirás que sangue é o não teres teu ouro E o poeta te diz: compra o teu tempo. Hilda Hilst

2.1 A literatura brasileira contemporânea: breves considerações

Analisar, criticar e até mesmo definir tendências literárias para textos produzidos em séculos anteriores ao nosso é um trabalho árduo. Aplicar esses mesmos verbos ao texto literário produzido durante o século atual é algo, se não mais árduo, de dificuldade similar. Tal dificuldade não se justifica por uma possível evolução qualitativa da literatura, mas sim pela laboriosa atividade de distanciamento necessária ao pesquisador do objeto de estudo.

Em seu livro Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés anuncia que as literaturas do presente século não seguem mais uma única tendência de

4 Sabemos que Adorno (1903 - 1969) publicou suas reflexões sobre o narrador contemporâneo em 1958,

o que nos faz compreender que este período por ele denominado contemporâneo se remete aos narradores de obras literárias daquele tempo. Contudo, percebemos que os apontamentos feitos por esse crítico nos servem como base reflexiva para o narrador das letras brasileiras do nosso recorte temporal. Ademais, mantivemos o mesmo termo por ele utilizado em fidelidade à fonte consultada.

(18)

mudança. De acordo com a autora, o que temos agora são “mutações” literárias. Essas mutações, por seu turno, exigem estudos de múltiplas vertentes, a fim de que se compreenda melhor as letras brasileiras do século XXI. Não é à toa, portanto, o fato de termos um avanço dos Estudos Culturais, dos estudos sociológicos e, ainda, de estudos que recorrem, cada vez mais, ao estruturalismo, mediante o grande teor metalinguístico das obras recentemente publicadas. Dessa feita, a definição de uma tendência única à literatura produzida em nossa época permanece com a mesma dificuldade dada à própria definição do que seja literatura, pois, “se em nenhuma época chegou-se a uma definição rigorosa de ‘literatura’, essa definição tornou-se ainda mais difícil na nossa, em virtude das profundas transformações culturais ocorridas nas últimas décadas” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 27). Tais modificações refletem-se, na literatura atualmente produzida, como alterações tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Inovações proporcionadas pela tecnologia, por exemplo, fazem com que o texto literário da atualidade não se limite mais à plataforma do livro impresso, adentrando ao mundo de experiências sensoriais, já exploradas mercadologicamente, com a intenção de se levar ao extremo a experiência leitora5. Tais extrapolações nada mais são do que a própria literatura

exercendo a sua função social de fazer sentir a vida, conforme defende Holanda (2004, p. 217, grifos do autor) ao afirmar que “imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de sentir a vida. Literatura: imaginar uma forma de vida outra. Por isso o discurso literário está incessantemente indo às bordas do improvável para exorcizar o impossível.” O pensamento, feito pelo autor à luz de reflexões sobre a necessidade social da literatura, revela que o atual caminho de mudanças percorrido pelo texto literário contemporâneo é apenas um caminho inevitável, uma vez que esses pontos extremos estão diretamente ligados à sua função social.

No entanto, à luz do pensamento de Candido (2014b), essa função social da literatura não é aqui encarada como uma forma de pura representação da realidade humana. Ao se refletir, por exemplo, sobre a função do autor em relação à obra, percebe-se que, ainda que haja no texto literário a marcada presença de experiências vividas pelo escritor, tem-se também marcas de respostas a anseios da sociedade em que ele se encontra. Portanto, as transformações observadas no panorama do texto literário contemporâneo são verdadeiras

5 Destacamos aqui uma distinção necessária. Experiência leitora é distinta de experiência estética. A

primeira pode ser planejada pelas ações de mercado, pelo autor, pela editora e por quaisquer envolvidos no processo de produção do texto literário, trata-se de uma experiência previsível. Experiência estética, por seu turno, corresponde à reação única e individual do leitor com o objeto literário e ultrapassa o poder de rastreio que o mercado tenta imprimir às matérias culturais. Na experiência estética o apreciador da obra de arte vive a própria dialética do contato com aquele material; há quem aproxime essa última experiência de relações metafísicas.

(19)

confluências entre os desejos individuais de artistas e os desejos coletivos de grupos sociais variados. É o sucesso dessa confluência que poderá, assim, garantir à obra um reconhecimento como bem de valor cultural, mesmo que muito após o seu período de veiculação original.

Observa-se, no entanto, que o pensamento desse crítico brasileiro não se ocupa de estabelecer uma delimitação temporal para os textos literários que ele analisa, tampouco daqueles que farão uso do mesmo método. Antonio Candido encara mais pormenorizadamente a literatura com sua função humanizadora e não como uma função de demarcação histórico-temporal, assim não postulando interpretações que estejam condicionadas à tradição canônica e/ou contemporânea; o que parece interessar a ele é a exposição da pertinência da literatura na vida humana, independentemente da época de produção. Por questões óbvias os corpore de análise crítica de Candido têm uma delimitação temporal, contudo, o método, que busca interpretar como forma e conteúdo confluem para que a literatura dê uma cota de humanidade ao próprio homem, não demonstra possuir tal delimitação. Desse modo, ainda que o teórico em questão não tenha, necessariamente, aplicado a sua metodologia a textos que aqui elencamos como contemporâneos, essa atividade não se faz impossível, posto que é o processo de leitura integral da literatura que interessa-nos e, por isso, o método integrativo é capaz de atender tal demanda.

As considerações acerca das alterações constantemente presenciadas na produção literária levam-nos à proposição de Auerbach (2015, p. 255) sobre o método adequado para a captação de transformações de um objeto. Para o crítico,

quem quiser descrever com exatidão e objetividade um objeto que se modifica constantemente e acompanhar exata e objetivamente as mudanças do mesmo (sic); deve descrever o objeto a partir do maior número possível de experiências, da forma como ele foi visto em cada caso, e pode desta forma ter a esperança de poder determinar o âmbito das possíveis modificações, obtendo, assim, finalmente, uma imagem do conjunto.

É relevante o destaque que o autor acima mencionado não se ocupa em seus estudos da análise da literatura contemporânea e sim de uma análise, sobre o pensamento da condição humana nos ensaios de Montaigne. Para traçar suas reflexões, Auerbach chama atenção ao fato de o autor de Ensaios usar a si mesmo como matéria para estipular as reflexões ali presentes e mostrar como a condição humana é sempre mutável. Desse modo, podemos compreender que, para a depreensão de um objeto de análise em constante mutação, faz-se necessária uma investigação que se ocupe da maior quantidade possível de matéria a ser observada. Aquilo que Auerbach propõe como método para pensar a condição humana de

(20)

acordo com Montaigne, por extensão, pode ser pensado para a literatura do presente tempo posto que, em concordância com Perrone-Moisés (2016), as obras da atualidade estão em um processo de mutação.

Dentre as várias vertentes da literatura brasileira contemporânea, ocupam espaço singular autores que, apesar das significativas e flagrantes inovações, trazem à expressão de suas obras uma articulação entre forma de expressão e forma de conteúdo. Assim, apresentamos o maior número possível (respeitada a proposta perspectivista para este capítulo) de autores e obras, destacando as principais inovações de seus textos, sempre considerando os aspectos dialéticos que envolvem a produção literária e sua função na sociedade.

Tratamos, neste capítulo, de algumas obras publicadas entre 1955 e 2018, na busca pela apresentação das mutações sofridas pelo texto, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Paralelos são traçados com constituintes da narrativa antecedentes a esse período, como narrador e personagens, e, em alguns casos, obras de outras localizações geográficas são abordadas para que se demonstre a universalidade dos temas aqui dispostos. Uma vez delimitado tal panorama, apresentamos o autor e a obra do romance objeto de nosso estudo, com vistas ao reconhecimento, em sua trajetória literária, das confirmações e das negações dadas às tendências da literatura contemporânea brasileira.

A compreensão de eventos ocorridos no tempo presente exige não só a observação do evento em seu tempo de manifestação, mas também um reconhecimento dos fatores históricos que tiveram como consequência o atual momento. Essa perspectiva não se aliena, portanto, da interpretação crítica de textos literários. Para que se tenha êxito no entendimento das alterações sofridas pelo romance na sociedade atual, precisa-se, primeiramente, entender como esse gênero se apresentava em períodos anteriores. Assim, diversos críticos e teóricos da literatura são pertinentes na busca pelo entendimento acerca do romance anterior ao período aqui destacado como contemporâneo. Desses vários autores, alguns se sobressaem pelo reconhecido trabalho em torno do romance, como Benjamin e Lukács, aquele com enfoque maior no narrador e este na constituição interna da narrativa. Ambos tecem contribuições indispensáveis para o pensamento e para a reflexão da literatura e, ainda que esse último tenha refutado seu próprio pensamento teórico, considerá-lo como arcabouço é importante naquilo que se mantém consistente mesmo após as críticas várias6.

6 Em prefácio a edições posteriores de seu livro A teoria do romance, o próprio Lukács revela

(21)

Ao defender a pertinência do romance em relação à epopeia, Lukács já postulava o caráter mutável daquele gênero, pois reconheceu a sua forma como resultante de diversos processos criativos que faziam com que o romance não apresentasse, como não apresenta até os dias atuais, uma forma fixa. Para Lukács (2015, p. 72),

o romance, em contraposição à existência em repouso na forma consumada dos demais gêneros, aparece como algo em devir, em processo. Por isso ele é a forma artisticamente mais ameaçada, e foi por muitos qualificada como semi-arte.

Ainda que essa visão de semi-arte não seja mais elencada ao romance como forma de expressão literária, é bastante pertinente a observação que Lukács faz em torno do caráter mutável dessa forma narrativa, pois o fato de que esse gênero seja destacado como não possuidor de um padrão fixo ajuda na compreensão das diversas maneiras com que ele tem se apresentado atualmente. A ideia do romance como “algo em devir7” lança luz exatamente sobre textos metalinguísticos

da contemporaneidade brasileira que repensam as características internas do gênero, fazendo com que o texto apresentado tenha aspectos de algo inacabado e/ou em processo de construção. No rastro do pensamento de Rosenfeld (1996), podemos ampliar essa perspectiva de inacabamento do romance moderno. O crítico defende que, em muitos casos, o público apresenta dificuldades em compreender a narrativa da modernidade, pois há uma negação das aparências instituídas, de maneira que aquilo que parece inconcluso é, na verdade, uma visão de desconstrução das ordens postas, como tempo e espaço, por exemplo. É sabido que existe uma diferença entre o tempo do relógio e o tempo da mente8, tal diferença, para Rosenfeld

(1996, p. 82), é assinalada nos romances da atualidade “não só tematicamente e sim na própria estrutura”, o que modifica a estética da apresentação de obras que se apliquem à exploração de enredos psicológicos.

perspectiva em voga, buscamos o que parece pertinente para reflexão inicial sobre o gênero romanesco.

7 Há, na Obra filosófica de Gilles Deleuze, uma interessante discussão sobre os objetos de arte como

algo em devir, especialmente com enfoque sobre o cinema e a imagem. Não suficiente, o homem também é sinalizado, por esse autor, como um ser em um processo de devir constante. A quem interessar o debate, a leitura é recomendada.

8 A tradição judaico-cristã, a partir da etimologia da palavra “tempo” costuma estabelecer uma distinção

entre o tempo de deus e o tempo do homem. De acordo com essa cultura, Cronus seria o tempo do relógio (do homem) para que as coisas acontecessem em plano físico; e Kairós seria o tempo da mente (de deus) para que as coisas acontecessem em plano metafísico. Parece encontrar raiz aí o dito popular de que o “o tempo do homem é diferente do tempo de deus” ou, ainda, “Deus faz as coisas ao Seu tempo”.

(22)

Esse tipo de enredo gera no leitor perspectivas diferentes das habituais, mas não distantes do mundo real, porque tal leitor não pode se furtar de viver seus próprios movimentos mentais de rompimento da ordem temporal. Sendo assim, a literatura contemporânea permanece percebendo o homem e suas idiossincrasias, no entanto, explorando recursos pouco comuns até então.

As características mutáveis do gênero em questão são as que possibilitaram a Clarice Lispector, por exemplo, a construção de um romance de organização peculiar. Trata-se de A

hora da estrela (2017). A última obra publicada por Lispector em vida conta a história de

Macabéa, nordestina que, como muitos, tentou a vida na região sudeste do país. Envolta por desejos reduzidos à ingestão de “cachorro quente e coca-cola”, a personagem vive uma pobre e pacata vida de uma moça que não conhece amores e adquire informações apenas pelo rádio relógio. É, então, nesse romance que a autora traz ao leitor um narrador que se comporta como as três figuras indispensáveis para uma narrativa, autor, narrador e personagem, características observáveis no excerto a seguir:

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre- arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. (LISPECTOR, 2017, p. 48)

Como se constata, o narrador do romance de Clarice se coloca na condição de escritor da história que estamos lendo, já anunciando as proposições daquilo que está sendo apresentado, informando o número de personagens que aparecerão na história e se pondo, também, como uma dessas personagens. Tem-se uma transformação do típico romance realista com um narrador em primeira ou terceira pessoa. No caso clariceano, o narrador, além de ser personagem, é o autor da história, indicando-se, em parágrafos anteriores, como testemunha ocular de tudo aquilo que será contado. Acerca dessa transformação observa-se o pensamento de Homem (2011, p. 157):

a peculiar criação de Clarice é que o trabalho metalinguístico imbrica-se com o que seria a “fábula pura” de tal forma que se visualizam construções entremeadas em uma grande teia, passando-se continuamente do eixo do enredo para o de formulações sobre a própria escrita. Metalinguagem e fábula apoiam-se mutuamente, criando uma obra particular, que contribui para o questionamento do próprio conceito e das instâncias de uma obra literária. Procedimento que aponta ainda para uma reflexão sobre o lugar do escritor no contemporâneo, distendido entre a busca da criação de um discurso de arte e o precipício de uma crescente mercantilização capitalista.

(23)

A construção singular do texto clariceano serviu como uma forma de realçar o fazer literário dessa autora, que teve, no romance em questão, um grande reconhecimento da crítica e do seu público leitor. A visão destacada por Lukács de que a não fixação de uma forma delimitada para o romance faz com que ele seja reconhecido como uma semi-arte – como o era nos tempos em que esse autor elaborou seus estudos9 –, não se perpetua até os dias atuais, pois foi exatamente essa característica que fez com que o romance se tornasse o gênero mais produzido por autores contemporâneos, como ressalta Perrone-Moisés (2016).

A metalinguagem presente em A hora da estrela é, portanto, fruto de uma das mutações que o texto romanesco tem sofrido com o passar dos anos, como também o resultado das diversas reflexões feitas sobre o fazer literário. Percebe-se, assim, que a normalização de que o romance é um gênero maleável já é de larga convicção entre os autores, que questionam, como observa Homem, o lugar do escritor em relação ao próprio gênero, trazendo tal maleabilidade para além dos limites da página.

Contudo, ainda acerca do estudo interno do romance, Lukács (2015, p. 83) discorre sobre a necessidade de início e fim da narrativa de uma maneira que não necessariamente se repete em textos publicados na atualidade. Para o teórico,

princípio e fim do mundo romanesco, determinados por início e fim do processo que preenche o conteúdo do romance tornam-se assim marcos impregnados de sentido de um caminho claramente mensurado. Por menos que o romance esteja efetivamente vinculado ao começo e ao fim naturais da vida, a nascimento e morte, ele indica no entanto, justamente por meio dos pontos onde se inicia e acaba, o único segmento essencial determinado pelo problema, abordando tudo o que lhe seja anterior ou posterior em mera perspectiva ou em pura referência ao problema; sua tendência, pois, é desdobrar o conjunto de sua totalidade épica no curso da vida que lhe é essencial.

O entendimento de Lukács de que o romance apresentará início e fim bem delimitados para que se tenha uma abordagem integral do problema estabelecido pela narrativa não se consolida em alguns textos publicados no cenário atual das letras brasileiras. Tornou-se cada

9 É importante situar o contexto de produção em que o crítico produziu essa obra. De acordo com

prefácio assinado por Lukács e presente na edição consultada de A teoria do romance durante nossa pesquisa, sabe-se que “Esse estudo [A teoria do romance] foi esboçado no verão de 1914 e redigido no inverno de 1914-15. Apareceu primeiro na Zeitschrift für Ästhetik und Allgemenine Kunstwissenschaft [Revista de estética e de história geral da arte] de Max Dessoir, no ano de 1916, e, em forma de livro, na editora de P. Cassirer (Berlim, 1920). (LUKÁCS, 2015, p. 7, grifos do autor). Ainda sobre esta obra, o próprio Lukács chega a afirmar: “A teoria do romance permaneceu uma tentativa que fracassou tanto no projeto quanto na execução, mas que em suas intenções aproximou-se mais da saída correta do que seus contemporâneos foram capazes de fazê-lo.” (LUKÁCS, 2015, p. 13, grifos do autor).

(24)

vez mais comum romances que expressam, por meio de sua forma e organização interna, a fragmentação da vida humana promovida pelos avanços da quarta revolução industrial.

A disjuntiva e fragmentada realidade humana da contemporaneidade pode ser materializada, por exemplo, nos contos “Circuito Fechado”, de Ricardo Ramos, e “Parque”, de Ricardo Daunt. Os dois textos em questão incorporam a vida cotidiana em que “o tempo é experienciado como um recurso escasso para a resolução dos problemas que surgem” (HABERMAS, 2000, p. 10). O primeiro conto evidencia, por meio de uma personagem, todas as características de uma humanidade que corre infinitamente em busca de objetivos que sempre se renovam: “me acorde cedo amanhã, viu?”. A personagem principal, ao sobrepor os acontecimentos de sua rotina, mostra como – na modernidade – o ponto de referência torna-se agora uma atualidade que consome a si própria.

O segundo conto recorre à descrição da rotina de um lugar comum à grande parte da sociedade contemporânea, para demonstrar como os membros dessa sociedade agem de forma indiferente aos acontecimentos ao seu redor, pois nem mesmo a morte é capaz de parar aqueles que correm atrás de seus objetivos. As pessoas desse cenário de imediatismo ignoram a figura de um idoso morto na grama, fazendo o narrador concluir ser aquela personagem uma “nova planta”, reificando em um alto nível o homem e sua existência, como se pode observar neste trecho:

Seringueiras com raízes aéreas: imóveis naves e sargaços: manto de folhas navegantes: círculo efêmero da vida. Mulher obesa com sufocante abrigo negro pisoteia a calçada ao redor do lago. Renque de salgueiros ressecados: fincados no chão eterno. Garça branca imóvel: escultura viva. Mulher passa e sorri para um homem que absorto escreve. Chicás despidos espreitam o solo. Corredores vigorosos retiram-se com suas plumas e marcas. Sol, tênue corda, se insinua pelas ramas do alecrim de trono fino. Banco do parque vazio testemunha velho estirado sobre a grama: nova planta. (DAUNT, 2005, p. 36)

Nesse conto, percebe-se uma ideia simplesmente biológica do ciclo da vida, em que aquele homem morre para, como uma nova planta, dar espaço a outras vidas. Observa-se, nesse excerto, que o nível de objetificação da vida humana é tão alto que a única testemunha da personagem morta é um simples banco de praça, sem vida e nem com vidas sobre si. A fragmentação da vida é tamanha que início e fim se cruzam de maneira rotineira, nas árvores, nos animais, nos objetos e, a cada dia mais, no “objeto” homem.

Como exemplo de textos que apresentam essa fragmentação a ponto de fazer com que início e fim não sejam tão nítidos como defendia Lukács, podemos mencionar Corpo Presente (2013), de J.P. Cuenca. Esse romance de estreia do autor introduz o leitor em um mundo cujas

(25)

personagens – inclusive o narrador – sofrem alterações constantes de raça, gênero, orientação sexual, condição financeira etc. Cada capítulo mais parece funcionar como pequenos contos inacabados dentro da obra como um todo, posto que alguns começam e encerram em si mesmo uma nova problemática, mas, ainda assim, deixam questionamentos sobre o que ainda pode surgir na narrativa. Desse modo, a obra em questão quebra a ideia de início e fim acima apresentada a partir do momento em que o leitor não consegue estabelecer uma linearidade, pois Carmem, a personagem principal, apresentada como uma mãe e outras vezes como uma prostituta, tem seu destino incerto. Não se sabe, em Corpo Presente10, de onde Carmen veio ou nem mesmo para onde ela vai. Sua identidade é confusa e suas características, ainda que sendo protagonista, são construídas de maneira rasa, vaga e indefinida, conforme se observa no trecho a seguir:

Um dos acontecimentos mais tristes que podem existir neste mundo é um bebê feio. Mas dessa vez não contrario Carmen, que logo fecha a carteira com a foto do filho e carrega seu corpo largo para baixo do lençol. Mas não se aquieta, metralha palavras a esmo, contando como havia parado ali, o emprego de balconista, “um saco e só trezentos reais, com isso não dá para viver, é ridículo esse governo, a gente tem que se virar mas eu não tenho do que reclamar, tenho uma porção de clientes cativos, eles me tratam bem, pra você ver, hoje já saí com cinco, mas vou ficar aqui contigo, você é legal comigo, gente boa [...] (CUENCA, 2013, p. 38).

Como se observa, Carmen é uma personagem que, apenas neste excerto, transita entre mãe, amante e balconista, o que corrobora para a formação de sua inconstância dentro da narrativa. Além disso, os capítulos desse romance são numerados em uma sequência de números primos, rompendo-se a ordem tradicional aplicada aos capítulos de narrativas. É sabido que os números primos são aqueles que possuem apenas dois divisores comuns, o um e ele mesmo. A opção pela organização dos capítulos nesta sequenciação demonstra um nível de independência de cada um deles em relação a si, mas, ao mesmo tempo, uma relação de complementariedade com o todo, afinal, com exceção do número dois, todos os números primos são ímpares, ressaltando a ideia de independência dos capítulos pois, sendo ímpares, não formam pares com os demais.

Ainda sobre o texto de Cuenca, é importante observar as alterações gráficas – bastante utilizadas nos textos contemporâneos – para diferenciar a fala do narrador (em terceira pessoa) e de Carmem. Aquele tem todas as suas falas grafadas em itálico para que ganhe

10Acerca de textos que possuem essa mesma característica de um início e fim incertos, sugerimos a

leitura de romances como: Manuário de Vidal (1981), de Ricardo Daunt; Eles eram muito cavalos (2001), de Luiz Ruffato; e O inventário das coisas ausentes (2015), de Carola Saavedra.

(26)

destaque entre as demais, uma vez que, nos raros momentos em que o narrador surge, suas falas são para revelar os pensamentos sexuais das personagens, pois, sem essas intromissões narrativas, o leitor não conheceria os pensamentos íntimos da protagonista.

As mutações em relação à forma do romance não foram, no entanto, as únicas que ocorreram no âmbito da literatura contemporânea. Alterações temáticas também podem ser vistas, como observa Perrone-Moisés (2016, p. 46):

como testemunha do individualismo contemporâneo, o eu e suas experiências, mesmo minúsculas, têm sido privilegiados; o ceticismo aumentou, chegando até o niilismo; a impossibilidade de um grande relato histórico, no qual situar as vivências contemporâneas, acarretou o desaparecimento da literatura de mensagem política explícita, limitando a obra de ficção à denúncia de um real insatisfatório ou mesmo catastrófico.

As ampliações de possibilidades de abordagens de temas que são mais voltados ao “eu”, como afirma Perrone-Moisés, proporcionaram à literatura contemporânea um espaço maior para autores e autoras que entenderam o seu fazer literário como uma necessidade de resposta a anseios próprios, relatos de vida e/ou de pessoas próximas a si. Tem-se, então, nesse novo contexto temático, o que algumas editoras decidem denominar autoficção11. Não nos detendo aqui quanto à pertinência ou até mesmo aplicabilidade desse termo às obras elencadas, podemos destacar, como ilustração para a maior exploração do “eu”, o romance O Irmão Alemão (2014), de Chico Buarque. O livro relata a história do irmão, Sérgio Ernst, que foi gerado durante o período em que o famoso historiador brasileiro Sérgio Buarque de Hollanda morou na Alemanha. A respeito disso, vejamos a seguinte passagem da obra: “escrito em alemão, cheio de maiúsculas, dele só posso entender o cabeçalho e a assinatura Anne com caligrafia inclinada para a direita. Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá” (BUARQUE, 2014,

p. 9). Uma obra que permeia os caminhos da ficção e do relato biográfico é o espaço em que o autor chama a atenção de seu leitor para detalhes e incertezas de sua vida. Documentos históricos são revelados como elementos constituintes de alguns capítulos do romance, e a visão do narrador em primeira pessoa aproxima mais ainda o texto da ideia de que o “eu” tem ganhado maior espaço dentro da literatura do período em estudo. No fragmento citado, disposto no capítulo de abertura do romance, o que se pode ver é justamente a contextualização que o narrador busca fazer para que o leitor compreenda de onde surge a

11 “Muito já se escreveu sobre autoficção. Os escritores e escritoras a tomam como possibilidade

narrativa. As editoras, como aposta comercial. A academia, ora como gênero, ora como moda, ora como constante literária.” (PRELORENTZOU, 2017, p. 219)

(27)

procura pelo Irmão Alemão que dá título à narrativa. As datas são baseadas na realidade, assim o período citado coincide com o período em que o pai do autor morou na Alemanha; a carta por ele mencionada aparece como uma fotocópia nas partes finais do livro, mostrando- se, dessa feita, a proximidade entre o eu autor e o eu ficcionalizado.

Não obstantes essas possibilidades, temas vistos como tabus e abordados em outros gêneros literários, como o poema, ganharam maior visibilidade e passaram a ser publicados em páginas de expressivos romances, reconhecidos por valores estéticos e sociais. Até o ano de 1997, falar da vida de pessoas pobres, moradoras de uma grande periferia dos centros urbanos brasileiros, era algo inesperado ou pouco comum12. Contudo, foi naquele ano que Paulo Lins publicou a narrativa Cidade de Deus. A obra foi bem recebida pela crítica especializada e deu abertura a uma sequência de novos textos, que passaram a entender a necessidade de expressão, por meio da literatura, da vida daqueles que são historicamente marginalizados. O livro de Paulo Lins, porém, traz pouco de inovação em relação à forma, pois apresenta um narrador em terceira pessoa, como nos romances tradicionais, diálogos em discurso direto e indireto, descrição de cenas e ambientes, respeito às ideias hegemônicas de tempo e espaço etc. Nesse romance, a mutação está, como dito anteriormente, no tema abordado. Exemplo disso é o episódio em que o narrador conta como ocorreu a entrada da personagem “Terê” no tráfico e, também, como se deu a morte de seu marido:

Terê estava em casa sozinha, as filhas tinham ido ao baile do clube. A velha fazia as trouxas de maconha que comprara em Curral das Éguas. Agora não tinha mais um matuto para levar a erva até sua casa, como fazia Ercílio, que além de abastecer sua mãe também lhe fornecia a droga. Terê começou a traficar seis meses depois de sua chegada ao conjunto. Antes, somente o marido traficava, porém este, sempre embriagado, gastava o dinheiro todo em farras que se repetiam dia a dia. Sempre perdendo dinheiro, maconha, volta e meia não tinha o seu produto para oferecer aos fregueses, obrigando seus filhos e esposa a passar necessidades. Foi morto porque, para mostrar-se valente, assaltava qualquer um, criando assim, em pouco tempo, diversos inimigos. Um dia assaltou um bicho-solto, que, logo depois do assalto, acertou seis balas de 38 em sua cabeça. (LINS, 1997, p. 43)

Observa-se que o condutor da narrativa, distanciado por sua perspectiva em terceira pessoa, relata com detalhes a preparação de venda de material ilícito e, ainda, a forma de sobrevivência encontrada por uma família em uma periferia do Rio de Janeiro. Tal realidade não é uma novidade no Brasil, mas sua abordagem como tema central em um romance foi

12 Destacamos a obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, que tem essa temática como

(28)

algo inovador. A utilização de termos como “bicho-solto” e a normalização do ato de traficar são constituintes desse tema que passa a ter destaque no cenário das letras do país.

A precursora abordagem dessa temática abriu caminho para que outras produções literárias surgissem com o mesmo foco. Das muitas publicações que falam sobre a periferia13, destaca-se a obra de Ferréz, Capão Pecado (2013). Um romance que apresenta, em relação à forma, nenhuma considerável mudança se comparada aos romances tradicionais, mas que, assim como Cidade de Deus, introduz o leitor em um cenário pouco comum para a literatura brasileira: a vida de pessoas marginalizadas – no caso de Capão Pecado, em periferias de São Paulo.

Se extrapolarmos o recorte até aqui feito para além das publicações romanescas, podemos citar alguns livros de contos que abordam especialmente as questões que envolvem minorias historicamente excluídas nos cenários sociais brasileiros14. Como exemplo, tem-se a recentemente publicada coletânea de contos de Geovani Martins, O sol na cabeça (2018), em que a vida nas periferias cariocas durante os primeiros anos do século XXI é explorada. Outro livro de contos que também aborda uma temática pouco usual na literatura nacional é o de Natália Borges Polesso, Amora (2016). Esse livro apresenta questões relacionadas à sexualidade lésbica nas diversas fases da vida das mulheres protagonistas dos contos. Tais transformações temáticas são resultantes de uma forma de se encarar a literatura não apenas como um produto da burguesia econômica, mas também como uma expansão no acesso às informações vividas nos últimos anos. Importa observar, no entanto, que tais temáticas sempre foram frequentes no universo literário (atente-se às questões debatidas por Baudelaire em As flores do mal), nos dias atuais o que se tem é uma maior recorrência a elas, porque a literatura persegue a necessidade dinâmica do mundo.

Se pensarmos em autores um pouco mais afastados – temporalmente – do início do século XXI, é incontornável o retorno às temáticas intimistas de Clarice Lispector e a consideração das visões do sertão de Guimarães Rosa, pois esses escritores são de grande importância à possibilidade de se observar na literatura brasileira o “eu” interno e o “eu”

13 Há uma expressiva obra da cena literária brasileira atual, Quarenta dias (2014), de Maria Valéria

Rezende, cuja leitura é indicada para aqueles que tenham interesse em aprofundar as perspectivas sobre a temática. Nesse romance a autora retrata a vida de pessoas em situação de rua nas periferias de Porto Alegre/RS.

14 Um importante contista brasileiro, Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), tem uma vasta obra literária

que, dentre outros temas, aborda as questões de gênero e sexualidade que envolvem a vida humana e suas complexidades. Recentemente a Companhia das Letras publicou uma edição de todos os seus contos (Caio Fernando Abreu - Contos Completos, 2018). A leitura é indicada tanto para os que desejam conhecer mais sobre o tema quanto para aqueles que decidem aprofundar conhecimentos acerca da literatura brasileira contemporânea.

(29)

membro de uma sociedade sócio-político-historicamente localizada. As produções literárias desses autores, ainda que próximas historicamente, apresentam distâncias estético-estilísticas capazes de gerar a visão de que sejam de períodos históricos e movimentos distintos. No entanto, ambos compartilham de um primoroso trabalho com a linguagem gerador de uma tendência que se prolifera até os textos produzidos nos dias atuais.

O único romance publicado por Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, conta a história de jagunçagem vivida por Riobaldo no sertão do Brasil, especialmente na região de Minas Gerais. Uma história baseada em encontros e desencontros da vida amorosa e nômade de jagunços entrega ao leitor uma experiência leitora entrelaçada por sonoridade e ritmo próprio, com neologismos e enredos locais e universais; trata-se de um romance aglutinador de conflitos comuns ao homem e à sua própria vida. Acerca desta obra, Candido (2017, p.

123) observa que há uma “operação de alta estética devido a certos procedimentos ligados ao foco narrativo, que por sua vez comanda uma expressividade máxima da linguagem utilizada. Trata-se, com efeito, de ver o mundo através dum ângulo de jagunço, resultando um mundo visto como mundo-de-jagunço.” Essa visão do “mundo-de-jagunço” perpassa todo o romance de Rosa e é embutida de minuciosos conhecimentos universais, mas que, mesmo sendo precisamente específica de uma região, trata das questões dialéticas que integram o ser humano. Essa construção pode ser melhor observada no trecho do próprio romance em questão. Vejamos:

Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escrabêia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. (ROSA, 2019, p. 47)

Em sua longa narrativa, Riobaldo constrói um mundo que tem como base a visão assumida pelos jagunços. A vida, nessa realidade, é exatamente resumida nisso que o narrador postula: “comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final” e é essa a vida que as personagens do grande sertão demonstram ter, umas abreviadas, outras prolongadas, porém, todas com o estilo de jagunço de se ver e viver neste mundo. O universo “jagunciano” criado por Rosa revela o homem que persegue o seu ideal tal qual é o ser humano, jagunço ou não. Assim, nesse romance, o “mundo é visto numa totalidade impressionante, na qual ser jagunço foi a condição para compreender os vários lados da vida” (CANDIDO, 2017, p. 123), logo, para além das construções inovadoras da linguagem de Grande Sertão, tem-se uma utilização de uma figura pouco comum como ponto de mimetização de um universo de proporções globais;

(30)

aquele que não detém o poder de produzir, de possuir riquezas e terras é o que apresenta a visão de mundo a ser seguida dentro da narrativa e fora dela também.

Retornando à obra clariceana, pode-se observar a construção de um mundo formulado a partir da visão do “eu” intimista. Em A paixão segundo G.H., por exemplo, a narrativa é organizada de maneira que as experiências individuais da personagem sirvam como uma “educação existencial” (BOSI, 2017, p. 453), pois reflexões sobre a vida sem aquilo que é supérfluo são traçadas de maneira a conduzir o leitor por entendimentos de uma vida natural e que se utiliza apenas do próprio ser para sê-lo. Não suficiente, essa educação existencial também se concretiza por meio de uma exploração de fluxos de consciência nos quais o “eu” do romance de Clarice questiona a vida, a verdade e outros hegemônicos constituintes da sociedade humana. Isso é percebido, por exemplo, quando G.H. se questiona: “Estaria eu vivendo, não a verdade, mas o mito da verdade? Toda vez em que vivi a verdade foi através de uma impressão de sonho inelutável: o sonho inelutável é a minha verdade. Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim.” (LISPECTOR, 2009, p. 99). Tais questionamentos são encaminhados de maneira que o leitor se sinta dentro do próprio fluxo de consciência, atividade esta que é facilitada pelo foco narrativo em primeira pessoa e, assim, o “eu” individual revela o mundo que tenta construir a partir de si mesmo.

Essas mudanças da literatura contemporânea brasileira não apenas proporcionam novos parâmetros para o entendimento da produção das letras nacionais como também exigem mudanças formais em constituintes naturais da narrativa romanesca. Dentre esses, podemos elencar ainda os narradores atuais. Para tanto, desenvolvemos na seção a seguir reflexões acerca desse elemento da narrativa contemporânea, partindo das contribuições de Bosi (2017), Guinzburg (2012), Welter (2015), Rosenfeld (1996), sobre o cenário nacional, Adorno (2012) sobre o cenário europeu. No entanto, para que se tenha uma visão mais ampla das transformações pelas quais a figura do narrador tem passado nos últimos tempos, inicialmente abordaremos as diversas proposições de Benjamin (1996) acerca do narrador que aqui chamaremos de tradicional.

2.1.2 O narrador em perspectiva: tendências da narração

Em seu conhecido ensaio “O narrador”, Benjamin (1996) defende a existência de dois grupos cujo conhecimento é indispensável para que seja possível a compreensão da figura do narrador tradicional, uma vez que, mesmo sendo esse um constituinte da narrativa amplamente debatido, pouco se tem definido sobre suas variações de acordo com cada

(31)

sociedade. O primeiro grupo é aquele que pode ser ilustrado pela profissão da personagem protagonista da obra Metamorfose, de Kafka (1997). Uma personagem que viaja muito, conhece muitos lugares e ganha a capacidade de reproduzir e criar narrativas. Portanto, nessa primeira visão, o narrador é aquele que tem vasta experiência andarilha e, por isso, experiências autênticas.

O segundo grupo é ilustrado pelo pai da personagem principal do livro Orgulho e

Preconceito, de Jane Austen (2011). Um homem aposentado, com as filhas em idade de casar

e que não perde uma oportunidade de ficar em casa. Como espelho do sedentarismo, essa personagem representa a figura do narrador que adquiriu todo o seu repertório narratológico nos livros, nas conversas e nas anedotas da própria rotina diária de um camponês, o que pode ser observado na descrição que o narrador faz dessa personagem: “Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho.” (AUSTEN, 2011, p. 11) e, em momentos seguintes (AUSTEN, 2011, p. 14) em que sua esposa lamenta a ausência do marido em uma festa com toda a família e amigos. Ao se perceber que o próprio narrador descreve essa personagem como uma pessoa que tem a reserva como característica, pode-se compreender Mr. Bennet como uma figura tipicamente adepta de uma vida pacata, sem muitas alterações e que adquire seus conhecimentos não pela experimentação da prática e sim pela sua observação.

Desse modo, a partir de conhecimentos acerca da vida de Leskov (1831 - 1895), bem como de suas atividades profissionais, Benjamin (1996, p. 200) chega à conclusão de que o narrador é um “homem que sabe dar conselhos ao ouvinte”. Essa atividade está, como se sabe, em decadência histórica, uma vez que a sabedoria que deve constituir os conselhos tem sido cada vez mais desvalorizada15, sintoma que proporcionaria à arte de narrar um número contado de dias. Assim, o texto de Benjamim conduz o leitor à conclusão de que o narrador é um ser dotado de larga experiência – seja ela adquirida na prática diária ou nas bibliotecas –, mas que tem sofrido com os amplos avanços da sociedade do imediatismo, correndo perigo de perder seus traços de sabedoria e rememoração. A figura do narrador é, então descrita como a de um mestre ou um sábio: “o narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo” (BENJAMIN, 1996, p. 221). Muitos narradores de romances tradicionais podem ser vistos e descritos como verdadeiros sábios, detentores de um vasto conhecimento de mundo, estando dispostos a compartilhar suas histórias. No entanto, nos tempos atuais, ainda que avanços

15 É indispensável ressaltar que a mencionada desvalorização da atividade conselheira está cada vez

maior nas sociedades atuais. Na história recente do Brasil, tem-se o exemplo do presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, que poucos meses após sua posse, extinguiu um grupo de conselheiros da presidência para fins sociais e econômicos, o popularmente chamado de “Conselhão”.

Referências

Documentos relacionados

Todas as outras estações registaram valores muito abaixo dos registados no Instituto Geofísico de Coimbra e de Paços de Ferreira e a totalidade dos registos

F REQUÊNCIAS PRÓPRIAS E MODOS DE VIBRAÇÃO ( MÉTODO ANALÍTICO ) ... O RIENTAÇÃO PELAS EQUAÇÕES DE PROPAGAÇÃO DE VIBRAÇÕES ... P REVISÃO DOS VALORES MÁXIMOS DE PPV ...

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo realizar testes de tração mecânica e de trilhamento elétrico nos dois polímeros mais utilizados na impressão

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

The challenges of aging societies and the need to create strong and effective bonds of solidarity between generations lead us to develop an intergenerational

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no