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O tempo na metafísica de Vladimir Jankélévitch

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

O tempo na metafísica de Vladimir Jankélévitch

Vasco Baptista Marques

Orientadores: Prof. Doutor Manuel José do Carmo Ferreira Prof. Doutor Carlos João Tavares Nunes Correia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Filosofia, na especialidade de Filosofia Contemporânea

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

O tempo na metafísica de Vladimir Jankélévitch Vasco Baptista Marques

Orientadores: Prof. Doutor Manuel José do Carmo Ferreira Prof. Doutor Carlos João Tavares Nunes Correia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Filosofia, na especialidade de Filosofia Contemporânea

Júri:

Presidente: Doutor José Viriato Soromenho Marques, Professor Catedrático e Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Vogais:

 Doutor Luís António Ferreira Correia Umbelino, Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;

 Doutor José Maria da Costa Macedo, Assistente Convidado Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, como Especialista de Reconhecido Mérito;

 Doutor Nuno Vieira da Rosa e Ferro, Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

 Doutor Manuel José do Carmo Ferreira, Professor Catedrático Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientador;

 Doutora Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

 Doutor Pedro Manuel dos Santos Alves, Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Fundação para a Ciência e a Tecnologia SFRH / BD / 16659 / 2004

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Para a Filipa, por quase tudo e quase nada.

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Resumo

Nos últimos meses da sua vida, Vladimir Jankélévitch (1903-1985) iniciou a redacção de um estudo sobre o tempo, cujo desenvolvimento foi abortado pelo acontecimento da sua morte. Esta anedota biográfica permite a construção da hipótese que tomaremos como mote da nossa investigação: a de que Jankélévitch teria detectado, in extremis, a presença de uma falha na sua obra, que, afirmando embora o tempo como o problema capital da filosofia, nunca chegou a fazer dele o centro de um estudo monográfico. Para reconstituirmos a imagem de uma filosofia do tempo que, fiel ao seu objecto, se disseminou ela mesma no tempo (e em escritos sobre temas tão diversos como a música ou o remorso), trataremos de auscultar o seu núcleo metafísico. Fá-lo-emos, não para retalhar o pensamento de Jankélévitch (onde as diferentes disciplinas se interpenetram), mas apenas para introduzir no seu labirinto um fio de Ariadne. Isto é: uma linha de orientação metodológica que, por um lado, impeça a investigação de se dispersar pela multiplicidade de problemas que o autor convoca, e que, por outro, a force a debruçar-se sobre as três grandes etapas da vida do tempo. Falamos aqui 1) do debruçar-seu princípio a partir do nada; 2) do seu desenvolvimento histórico e; 3) da sua extinção no nada. Nesse processo, define-se uma metafísica que tem por horizonte a pergunta pelo sentido do tempo, pelo nexo de uma história que vai do nada ao nada passando pelo ser, sem, ao que parece, deixar atrás de si um vestígio subsistente da sua passagem. A resposta que Jankélévitch oferece a esta pergunta limitar-se-á a recuperar explicitamente no fim aquilo que já estava implicitamente no princípio da sua filosofia: a ideia paradoxal de uma eternidade intra-temporal.

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Abstract

In the last months of his life, Vladimir Jankélévitch (1903-1985) started writing a study on time whose development was cut short by his death. This biographical anecdote authorizes the hypothesis that guides our research: Jankélévitch might have detected, in

extremis, the presence of a flaw in his work, namely, that even though he defined time as

the capital problem of philosophy, he never produced a monograph on the subject. In order to reconstruct the shape of a philosophy of time that, being true to its object, disseminated itself in time (and in writings on such different topics as music or remorse), we will probe into its metaphysical core. Our aim in so doing is not to divide the author’s thought (in which different disciplines are inextricably intertwined) into separate pieces, but simply to propose an Ariadne’s thread to guide us in its labyrinth. In other words, we will put forward a methodological guideline that prevents the research from getting lost in the multitude of problems summoned by the author, while forcing it to look to the three major stages of time’s own life: 1) its beginning from nothing; 2) its historical development and; 3) its extinction into nothing. From the analysis of this process, arises a metaphysics whose horizon is the question of the meaning of time, of the nexus of a history that goes from nothing to nothing passing through being, apparently without leaving behind any trace of its passage. The answer given by Jankélévitch to this question explicitly resumes in the end something that was already present in the beginning of his philosophy: the paradoxical idea of an intra-temporal eternity.

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Índice sinóptico

Abreviaturas... 15

Introdução ... 19

PRIMEIRA PARTE ENTRE BERGSON E SCHELLING Capítulo I: Um filósofo sob a influência? ... 29

Capítulo II: Do lado de Bergson ... 39

Capítulo III: Do lado de Schelling ... 69

SEGUNDA PARTE DA ORIGEM Capítulo I: A negação ... 113

Capítulo II: A posição ... 147

Capítulo III: O instante e a intuição ... 181

TERCEIRA PARTE DO TEMPO Capítulo I: O dualismo do ser e do acto ... 211

Capítulo II: O saber do tempo ... 219

Capítulo III: Através da substância ... 235

Capítulo IV: Uma cron-onto-logia ... 269

Capítulo V: O Irreversível. E da morte ... 303

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Conclusão ... 355

Apêndice ... 373

Bibliografia ... 377

I. Obras de Jankélévitch ... 377

II. Estudos sobre Jankélévitch ... 399

Índices ... 431

Índice onomástico ... 433

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Agradecimentos

Como todas (suponho), esta tese foi escrita numa solidão habitada pelas vozes de alguns, que lhe ofereceram o que de melhor ela possa ter.

Desde logo, a do meu orientador – o Professor Doutor Manuel José do Carmo Ferreira –, a quem devo bastante mais do que a exemplar orientação desta tese (que às suas sugestões foi amiúde colher a inspiração que lhe faltava): devo, sobretudo, um exemplo ímpar de seriedade intelectual e de dedicação ao trabalho filosófico. Isso e a amizade com que, reiteradamente, tratou de serenar as minhas muitas inseguranças.

À do meu co-orientador – o Professor Doutor Carlos João Correia – devo um atentíssimo trabalho de leitura e revisão destas páginas, assim como uma disponibilidade sem falhas para escutar (e ajudar a resolver) as inúmeras dúvidas que tive ao longo da sua redacção. À da Professora Doutora Adriana Veríssimo Serrão e à do Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, tenho a agradecer o apoio que, sob as mais diversas formas, me foram dando desde o momento em que decidi abraçar este projecto.

À da Professora Doutora Enrica Lisciani-Petrini, digo que não esqueço a generosidade com que (a suas próprias expensas) me fez chegar os diversos artigos que escreveu sobre Jankélévitch.

Não posso deixar de referir, também, os amigos que fui fazendo na Faculdade de Letras, e que – ora comentando os meus textos, ora aturando as minhas neuroses – contribuíram grandemente para a existência desta tese. Entre eles, estão o Bruno Peixe Dias, a Carla Simões, a Cristina Nascimento, a Elisabete Sousa, a Filipa Seabra, o Gonçalo Zagalo, o José André, o José Luis Pérez, a Lavínia Pereira, a Lisete Rodrigues, o Nuno Castanheira, o Nuno Melim, a Sara Totta, a Selma Totta e a Sofia Alexandre.

Uma palavra, ainda, para a minha família – os meus pais; a minha irmã, o Daniel e o Xavier; a minha avó Estela e o meu avô Manuel; o meu tio Pedro; a minha tia Regina; o João e a Rosária; o Jóni e a Joana; a Carminho, o João Maria e a Madalena; o David e a Manuela – que, durante os últimos anos, conseguiram fingir, com assinalável sucesso, que percebiam perfeitamente o que andava eu a fazer com a minha vida.

À Filipa nem sequer agradeço: o seu contributo para a conclusão deste processo foi de tal ordem que, dela, só apofaticamente posso falar.

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Abreviaturas

AES L’aventure, l’ennui, le sérieux

Alt L’alternative

AVM 1 L’austérité et le mythe de la pureté morale

AVM 2 L’austérité et la vie morale (2ª edição)

Berg 1 Bergson (1ª edição)

Berg 2 Henri Bergson (2ª edição)

CPM Cours de philosophie morale

Deb 1 Debussy et le mystère (1ª edição)

Deb 2 La vie et la mort dans la musique de Debussy (2ª edição)

Deb 3 Debussy et le mystère de l’instant (3ª edição)

ER L’esprit de résistance

Fau 1 Gabriel Fauré et ses mélodies (1ª edição)

Fau 2 Gabriel Fauré (2ª edição)

Fau 3 Fauré et l’inéxprimable (3ª edição)

Imp L’imprescriptible

IN L’irréversible et la nostalgie

Ir 1 L’ironie (1ª edição)

Ir 2 L’ironie (2ª edição)

Ir 3 L’ironie (3ª edição)

JNSQ 1 Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien (1ª edição)

JNSQ 2.1 Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien (2ª edição, 1º volume)

JNSQ 2.2 Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien (2ª edição, 2º volume)

JNSQ 2.3 Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien (2ª edição, 3º volume)

Lis Liszt et la rhapsodie

MC 1 La mauvaise conscience (1ª edição)

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MC 3 La mauvaise conscience (3ª edição)

Mal Le mal

Men Du mensonge (1ª edição)

Men 2 Du mensonge (2ª edição)

MH La musique et les heures

MI La musique et l’ineffable

Mor La mort

Noc 1 Le nocturne (1ª edição)

Noc 2 Le nocturne (2ª edição)

Par Le pardon

Par? Pardonner?

PDP Premières et dernières pages

Pen. Mor Penser la mort?

Phil. Mor Philosophie morale

PI Le pur et l’impur

PL La présence lointaine

Plot Plotin

PM Le paradoxe de la morale

PP Philosophie première

PVJ Présence de Vladimir Jankélévitch

QPI Quelque part dans l’inachevé

Rav 1 Maurice Ravel (1ª edição)

Rav 2 Ravel (2ª edição)

Rav 3 Ravel (3ª edição)

Rhap La rhapsodie

Schel L’odyssée de la conscience dans la dernière philosophie de Schelling

Sim Georg Simmel, philosophe de la vie

Sour Sources

TV 1 Traité des vertus (1ª edição)

TV 2.1 Traité des vertus (2ª edição, 1º volume)

TV 2.2 Traité des vertus (2ª edição, 2º volume)

TV 2.3 Traité des vertus (2ª edição, 3º volume)

TVM Le temps et la vie morale

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Time passes. That is all. Make sense who may

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INTRODUÇÃO

Durante os últimos meses da sua vida, Vladimir Jankélévitch (1903-1985) iniciou os trabalhos de redacção de um estudo sobre o tempo, cujo desenvolvimento haveria de ser definitivamente interrompido pelo acontecimento da sua morte. As nove linhas manuscritas que então deixou esboçadas – e que foram publicadas a título póstumo pela mão de Guy Suarès1 – atraiçoam a sua vontade de repor os alicerces da filosofia do tempo

que, desde a década de 20, foi gradualmente elaborando. De facto, nesse brevíssimo texto, descobrimos apenas uma reafirmação do conjunto de teses (a do devir como contraditório do ser, a da natureza insubstancial e metalógica do devir…) que, ao longo dos anos, o autor sustentou a respeito do tempo. A anedota biográfica permite, pois, a construção de uma hipótese hermenêutica que tomaremos como mote da nossa investigação. Designadamente: a de que Jankélévitch se teria apercebido – in extremis – da existência de uma incompletude ou insuficiência estrutural no seio da sua própria obra, que, tendo embora postulado o tempo como o problema capital de toda a filosofia, nunca fez dele o objecto de um estudo monográfico2.

Com efeito, à imagem e semelhança de uma carta rasgada em mil pedaços arrastados pelo vento, a filosofia do tempo de Jankélévitch encontra-se disseminada através dos escritos que, entre 1924 e 1983, o autor dedicou às questões éticas do remorso ou do perdão, à análise dos trabalhos de Bergson, Debussy, Fauré ou Schelling, às questões metafísicas da criação e da morte… Sobre ela podemos portanto dizer, mutatis

mutandis, o mesmo que, na sua juventude, Jankélévitch nos disse sobre a ideia de vida

de Guyau: que «aquilo que [a] torna muito dificilmente apreensível é [o facto de] que ele

1 Cf. SUARÈS, Guy, Vladimir Jankélévitch. Qui suis-je?, Paris, La Manufacture, 1986, p. 129 (agora também em:

PDP, p. 225).

2 Acerca da centralidade do problema do tempo, cf., por exemplo, VL, Carta a Louis Beauduc de 5 de Janeiro

de 1960, p. 344 e Mor, p. 46: «[…] le temps […] est l’objet philosophique par excellence». Alegar-se-á talvez (e não sem aparente razão) que, identificando lapidarmente o tempo com a irreversibilidade, Jankélévitch teria vertido o estudo cuja ausência aqui sancionamos nas páginas de IN. Porém, e tal como mais à frente teremos a oportunidade de verificar, o âmbito da filosofia jankelevitchiana do tempo transcende, em muito, o das meditações que o autor articulou a propósito do seu carácter irreversível.

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nunca lhe consagrou uma obra sistemática, e que, por conseguinte, é preciso procurar os seus traços principais espalhados um pouco por todos os seus livros»3.

Neste contexto, necessário se torna perguntar: como poderemos nós sequer começar a emprestar organização e unidade a uma filosofia do tempo que, fazendo jus ao seu objecto, se desdobra ela mesma no tempo? Eis uma pergunta à qual o próprio Jankélévitch se encarregou de dar resposta, na introdução à segunda edição do seu

Bergson:

«Só há uma maneira de ler um filósofo que evolui e muda no tempo: é seguir a ordem cronológica das suas obras, e começar pelo começo»4.

E, um pouco mais adiante, o nosso autor acrescenta:

«Uma melodia tocada ao contrário […] não seria mais do que uma inominável cacofonia. […] Como seria alguma vez compreendida uma filosofia viva, que se desenvolve irreversivelmente na dimensão do devir, se se começa pelo fim, ou pelo meio? A ordem temporal não é um acidente da sonata, mas a sua essência ela mesma. A ordem temporal e a sucessão dos momentos não são, no bergsonismo, detalhes protocolares: eles são o bergsonismo ele mesmo […]»5.

3 PDP («Deux philosophes de la vie: Bergson, Guyau», 1924), pp. 15-16: «Ce qui rend l’idée de vie chez

Guyau très malaisément saisissable, c’est qu’il ne lui a jamais consacré un ouvrage systématique et qu’il en faut par conséquent chercher les traits principaux épars un peu dans tous ses livres».

4 Berg 2, p. 2: «Il n’y a qu’une manière de lire un philosophe qui évolue et change dans le temps: c’est de

suivre l’ordre chronologique de ses ouvrages, et de commencer par le commencement».

5 Berg 2, pp. 3-4: «Une mélodie jouée à l’envers […] ne serait qu’une innommable cacophonie. […] Comment

une philosophie vivante, et qui se développe irréversiblement dans la dimension du devenir, serait-elle jamais comprise si l’on commence par la fin, ou par le milieu? L’ordre temporel n’est pas un accident de la sonate, mais son essence elle-même. L’ordre temporel et la succession des moments ne sont pas, dans le bergsonisme, des détails protocolaires: ils sont le bergsonisme lui-même […]». Não esconderemos que, fazendo eco de uma máxima pronunciada em 1969 por Lucien Jerphagnon, há, ainda hoje, quem defenda que o que mais vincadamente caracteriza a evolução interna do pensamento de Jankélévitch é, pelo contrário, o facto de ele não ter evoluído, de ele se ter mantido grosso modo inalterado desde a sua formação. Cf. JERPHAGNON, Lucien, Entrevoir et vouloir: Vladimir Jankélévitch, Chatou, Les Éditions de la Transparence, 2008, pp. 15-16 (este ensaio é a versão revista e aumentada de Vladimir Jankélévitch. Ou de l’effectivité, Paris, Seghers, 1969). Cf., igualmente, PHILONENKO, Alexis, Jankélévitch. Un système de l’éthique concrète, Paris, Éditions du Sandre, 2011, pp. 22 e 254. Lidamos com uma meia-verdade que, como veremos, só pode ser referida com propriedade às questões com as quais o nosso autor se debateu (que, em bom rigor, são quase sempre as mesmas: a do tempo, a da acção, a do amor…), mas não já às diferenciadas respostas que no decurso das décadas lhes deu.

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Mas, detalhar o movimento genealógico pelo qual uma dada filosofia veio a constituir-se não implica, nem que tenhamos de a reduzir a um catálogo (limitando-nos a dar nota da ordem sucessiva dos seus problemas), nem, tão-pouco, que tenhamos de a reduzir a uma síntese (limitando-nos a dar nota da ordem sucessiva dos seus estádios). Quer num caso, quer no outro, ficaria por perceber o que mais importa, nomeadamente: o vínculo de unidade que religa entre si os diversos motivos e períodos de um processo especulativo, vivificando-os por dentro e presidindo à sua articulação. Esse vínculo, sublinhámo-lo, é o tempo6, um tempo ao qual o título da nossa tese está, contudo,

justapondo um complemento circunstancial de lugar – «na metafísica» – por via do qual ele se vê tematicamente circunscrito.

Digamo-lo desde já: a nossa «decisão pela metafísica» não quer, de forma alguma, sugerir a existência de uma precedência genética ou de uma primazia problemática do metafísico sobre o ético (ou sobre o estético) no pensamento de Jankélévitch. E, não só não quer sugeri-lo, como – mesmo que o quisesse – dificilmente poderia fazê-lo. Porquê? Porque, tal como a seu tempo bem compreendeu Jerphagnon, a filosofia de Jankélévitch não configura um sistema que, à maneira das coisas materiais, se teria edificado partes

extra partes, pela progressiva adjunção de fracções ou disciplinas autónomas (primeiro

uma metafísica, depois uma ética, e por fim uma estética)7. Ela configura, isso sim, uma

vida, uma totalidade orgânica que nasce já completa (embora prenhe de promessas a cumprir), onde os diferentes temas e matérias comunicam, interferem e se interpenetram a todo o instante. É este regime de implicação recíproca ou de mútua imbricação dos problemas que, já em 1931, o jovem Jankélévitch julgou detectar no bergsonismo:

«Como um organismo vivo implica características pertencentes a todos os outros, a totalidade dos problemas está presente em cada uma das tarefas que a reflexão separa […]. Em cada problema reencontraremos, assim, todos os problemas, mas segundo uma perspectiva particular, do mesmo

6 Cf. LISCIANI-PETRINI, Enrica, Memoria e poesia. Bergson Jankélévitch Heidegger, Napoli, Edizioni

Scientifiche Italiane, 1983, p. 68: «[…] per Jankélévitch […] il tempo costituisce la questione privilegiata […]. Tutte le sue opere e lo sviluppo del suo pensiero ne sono attraversati come da un sottile filo conduttore. E, reciprocamente, il movimento ‘in progress’ del suo pensiero, caratterizzato dal continuo rigenerarsi in nuovi ‘getti’ tematici, implicitamente lo rivela». A este mesmo respeito, veja-se ROSSET, Clément, «Le sérieux de la vie», in L’arc, 75 (Aix-en-Provence, 1979), p. 74.

7 Cf. JERPHAGNON, Lucien, Op. cit., loc. cit. Para a crítica de Jankélévitch à ideia de sistema, cf. VL, Carta a

Beauduc de 20 de Agosto de 1924, pp. 96-98, Berg 1, pp. 35-36 e 90, Schel, pp. 3 e 319, Alt, pp. 76 e 80 e segs. e Berg 2, pp. 2 e 256. Mas, cfr. Berg 1, p. 155 e TV 1, p. 136.

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modo que cada Enéada de Plotino ou cada tratado de Leibniz reexpõem o sistema total, sob pontos de vista variados»8.

Não se estranhe portanto que, na tese de doutoramento que o nosso autor devotou ao estudo da filosofia de Schelling (L’odyssée de la conscience dans la dernière

philosophie de Schelling, de 1933), encontremos expostos os fundamentos da teoria do

tempo que, em 1974, viria a ser elaborada nas páginas de L’irréversible et la nostalgie. E não se estranhe, também, que seja impossível compreender plenamente a estética musical que se condensa em La musique et l’ineffable (1961), sem ter em conta os rudimentos da metafísica da criação que, sete anos antes, se plasmou em Philosophie

première (1954).

Em vez de nos terem ajudado a responder-lhe, os comentários precedentes limitaram-se a tornar ainda mais premente a nossa questão. Reformulemo-la: como justificar o exercício de segmentação que, através do título da nossa tese, nos propomos operar sobre o corpo de uma filosofia onde, manifestamente, tudo está em tudo? Seria difícil dar razão do que não temos a intenção de fazer. Na verdade, longe de pretender fragmentar e seccionar o pensamento de Jankélévitch (impondo-lhe uma compartimentação temática que lhe seria estranha), a investigação que se segue pretende, apenas e só, introduzir no seu labirinto um fio de Ariadne. Que o mesmo é dizer: uma linha de orientação metodológica que, por um lado, impeça a análise de se dispersar casuisticamente pela multiplicidade de problemas que o nosso autor convoca, e que, por outro, a convide a debruçar-se com particular atenção sobre os três grandes momentos da vida do tempo (que são também os três grandes momentos do tempo da vida). Falamos aqui 1) do princípio do tempo a partir do nada (descrito no âmbito da metafísica da criação de Philosophie première); 2) do desenvolvimento histórico do tempo (descrito no âmbito da cron-onto-logia9 de Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien) e; 3) da extinção do tempo no nada

(descrita no âmbito da metafísica da morte de La mort).

Ao exame destes três momentos, dedicaremos as partes II e III da nossa tese, às quais antepomos um estudo preliminar sobre a génese da ideia de tempo sustentada por

8 Berg 1, p. 36: «Comme un organisme vivant implique des caractères appartenant à tous les autres, ainsi la

totalité des problèmes est présente en chacune des tâches que la réflexion sépare […]. En chaque problème nous rencontrerons ainsi tous les problèmes, mais selon une perspective particulière, de même que chaque Ennéade de Plotin ou chaque traité de Leibniz réexposent, à des points de vue variés, le système total».

9 Cunhamos a expressão compósita «cron-onto-logia» (da qual por vezes nos socorreremos daqui em diante),

para indicar que, na filosofia do tempo de Jankélévitch, o tempo tem precedência sobre o ser, que dele depende para ser de facto.

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Jankélévitch (parte I). Tratar-se-á, então, de mostrar como essa ideia começou por definir-se em diálogo com as contrastantes filosofias do tempo de Bergson e Schelling. Da leitura que o autor delas está fazendo, nascerá o desejo que determina todas as posteriores aventuras da sua metafísica: o de conciliar o apelo de uma doutrina que concebe já a eternidade como uma imagem imóvel do tempo (a de Bergson), com o apelo de uma doutrina que concebe ainda o tempo como uma imagem móvel da eternidade (a de Schelling).

É a partir desta célula primitiva que, ao longo dos anos, se desdobrará uma metafísica que tem por horizonte uma pergunta pelo sentido do tempo, pelo nexo de uma história que vai do nada ao nada passando pelo ser, sem – ao que tudo indica – deixar atrás de si um vestígio subsistente da sua passagem. A resposta que Jankélévitch oferece a esta pergunta (enunciada em La mort e em L’irréversible et la nostalgie) mais não fará – vê-lo-emos – do que recuperar explicitamente no fim aquilo que já estava implicitamente no princípio: a ideia paradoxal de algo como uma eternidade intra-temporal.

Nesse movimento de recuperação, procuraremos sobretudo confrontar a metafísica de Jankélévitch, não com a tradição crítica (ainda muito incipiente) que na sua senda se forjou10, não com as grandes escolas filosóficas do seu tempo (das quais sempre

fez questão de se distanciar, e pelas quais sempre se sentiu incompreendido)11, mas,

10 Desde 1969 até à data, foram publicadas apenas quarenta monografias sobre a filosofia de Jankélévitch

(dezassete em francês, dezassete em italiano, duas em inglês, duas em neerlandês, uma em alemão e uma em castelhano), num cenário que testemunha bem do esquecimento ao qual ela tem vindo a ser votada. De entre essas monografias, as mais densas e fundamentadas – e, por isso mesmo, as mais relevantes – são, quanto a nós, as de Jerphagnon e Tonon (Tra istante e intervallo. Le oscillazioni di Jankélévitch, Napoli-Salerno, Orthotes Editrice, 2014). Registe-se en passant que, ainda que muitos tenham sido os comentadores que alertaram para a posição central que o problema do tempo ocupa no pensamento do nosso autor, poucos foram, pelo contrário, aqueles que optaram por fazer dele o centro dos seus trabalhos. Cfr., todavia, TONON, Alessandra, Op. cit. & KLEIN, Pierre Michel, Métachronologie. Pour suite de Vladimir Jankélévitch, Paris, Cerf, 2014. Quanto ao volume de 740 páginas que Philonenko dedicou à escalpelização da filosofia de Jankélévitch (no decurso do qual o comentador abundantemente se autocita), esse, encontra-se assombrado por várias incorrecções de natureza historiográfica: como as de achar que a primeira edição do Traité teria precedido a de Le mal (p. 44); que L’aventure seria uma obra póstuma que teria sido «retocada» pela sua suposta editora, Françoise Schwab (pp. 151 e 155); que o corpus de La mort teria sofrido alterações desde a sua primeira edição (p. 530)… Para além disso, temos dificuldade em reconhecer o retrato de Jankélévitch que Philonenko nos propõe (dispensando-se, para o efeito, de procurar apoio nos textos), mais precisamente: o de que ele teria sido o cultor de uma filosofia de sistema (pp. 17 e 34) «puramente racionalista» (p. 21), que, entre outras coisas, teria identificado o instante com a idealidade (p. 411). Digamos, por fim, que é difícil ignorar a forma como, amiúde, o comentador tenta fazer passar citações de Jankélévitch como frases da sua própria lavra (pp. 379, 458, 656…).

11 Cf., por exemplo, VL, Carta a Beauduc de 17 de Agosto de 1954, p. 331 («De plus en plus je fuis mes

collègues, qui ne m’intéressent pas plus que je ne les intéresse. L’époque et moi, nous ne nous intéressons pas. Je travaille pour le XXIe siècle. Je ne le verrai pas, mais Sophie [Sophie Jankélévitch, a filha do autor] le verra»), e Carta a Beauduc de 2 de Janeiro de 1958, pp. 339-340 («Je vois de moins en moins mes collègues philosophes des facultés et des lycées. Je me sens de plus en plus loin d’eux […]. Maintenant il n’y a plus de place en France que pour les troupeaux: marxistes, catholiques, existentialistes. Et je ne suis d’aucune paroisse»). Cf., igualmente, as Cartas a Beauduc de 3 de Janeiro de 1962, de 2 de Janeiro de 1967, de 2 de Janeiro de 1975 e de 7 de Março de 1975, pp. 347-348, 357 e 374-377. Estamos, por conseguinte, em pleno

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antes, com as correntes de pensamento que ela mais abraça ou contesta, respectivamente: a teologia negativa e o substancialismo. Estamos em presença de duas correntes que, infelizmente, não são interpeladas pelo nosso autor com o mesmo grau de rigor. Pois se, quanto à teologia negativa, Jankélévitch nomeia expressamente os seus interlocutores (Plotino, em primeira linha), quanto ao substancialismo, ele quase nunca o faz, preferindo abordar de modo genérico uma tradição que engloba em si teorias tão distintas como a ontologia de Aristóteles ou a egologia de Fichte. Daí que, à boa maneira jankelevitchiana, tenhamos consagrado todo um capítulo da nossa investigação (III.III) à explicitação de algumas das formas históricas que o conceito de substância foi revestindo. Na ausência dessa deriva, o debate que Jankélévitch estabeleceu com o modo de pensar que governou (e continua a governar…) o desenvolvimento da metafísica ocidental seria, se não incompreensível, pelo menos bastante mais difícil de compreender.

Não poderíamos terminar esta introdução sem referir, mesmo que sumariamente, os problemas de ordem metodológica com os quais, ainda hoje, se deparam todos aqueles que desejam lançar um olhar de tipo genealógico sobre a filosofia de Jankélévitch. O principal entrave à concretização de um semelhante projecto reside, quanto a nós, no processo de recomposição ao qual o autor submeteu uma boa parte da sua produção filosófica e musicológica. Efectivamente, muitos foram os escritos que Jankélévitch fez republicar (por duas ou até três vezes) com alterações ao corpo dos textos originais, que deste modo se vêem transformados em palimpsestos, isto é: em textos sobre os quais foi impresso um novo texto. Nalguns casos, essas alterações são meramente epidérmicas (veja-se, por exemplo, as diferenças entre a segunda e a terceira versões de L’ironie); noutros, elas afectam a estrutura formal, o escopo analítico e o sentido último das obras reconfiguradas (veja-se, por exemplo, as diferenças entre a primeira e a segunda versões de Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien)12. Para agravar ainda

desacordo com a afirmação que, em 1952 (e numa célebre revista italiana), G. Ballanti produziu a respeito da putativa actualidade da filosofia de Jankélévitch: «Jankélévitch è così profondamente figlio dei nostri tempi, il suo pensiero è tanto caratteristicamente esistenzialista, che le nostre riflessioni su di lui devono necessariamente ampliarsi in riflessioni su tutta la filosofia del giorno d’oggi […]» (BALLANTI, G., «Un filosofo dei nostri tempi: Wladimir Jankélévitch», Rivista di filosofia neo-scolastica, 44 (Milano, 1952), p. 134).

12 Foi Henri Gouhier quem, logo em 1932, pela primeira vez surpreendeu a metodologia de composição

revisionista perfilhada por Jankélévitch. Cf. GOUHIER, Henri, «Vladimir Jankélévitch: Bergson», in VL, p. 413: «En 1928, M. Vladimir Jankélévitch avait publié dans la Revue de métaphysique et de morale un article fort remarquable, ‘Prolégomènes au bergsonisme’ […]. Cet article est devenu un livre. La première ligne est identique; la même citation de Goethe achève la dernière; entre elles, il n’y a plus cinquante pages mais trois cents. Ces chiffres ont d’ailleurs une éloquence fâcheuse; ils risquent d’évoquer un accroissement par juxtaposition, alors qu’il s’agit d’un développement organique. Le texte du volume est aussi dense que celui

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mais a situação, ocasiões há em que Jankélévitch não hesita em transplantar – sem qualquer aviso – capítulos inteiros de uma obra para o corpo de uma outra. É assim que o capítulo I de Du mensonge (1942) se descobre, sete anos mais tarde, enxertado e reformulado no capítulo VII da primeira edição do Traité des vertus (1949); é assim, também, que o capítulo II da mesma obra se deixa reconceber e integrar na primeira edição de Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien (1957) que, cerca de duas décadas depois, haveria de ser amplamente retocada.

Ora, enquanto se aguarda – sine die – pela edição crítica das obras de Jankélévitch (esperando que, com ela, nos seja dado um quadro compreensivo e sistemático dos graus de parentesco que entre elas se estabelecem), o que se pode fazer? A solução obtida deverá ser capaz de compatibilizar entre si duas exigências aparentemente incompatíveis. A saber: a de não perder de vista a evolução interna do pensamento de Jankélévitch, ignorando simplesmente a forma como ele se vai retrabalhando a si mesmo; a de não saturar a investigação com notas dentro de notas que, cuidando de determinar a cada passo as variações existentes entre as diversas versões de um mesmo escrito, acabariam fatalmente por entravar a legibilidade do nosso texto. De modo a cumprirmos estes dois requisitos, trataremos 1) de distinguir entre as múltiplas edições das obras de Jankélévitch (salientando, sempre que tal se justifique, as diferenças que entre elas se verificam)13; 2) de chamar a atenção para os casos em que uma obra se

apropria de maneira implícita do conteúdo de outra (recorrendo, por sistema, àquelas em que dada ideia foi originalmente exposta); 3) de mencionar, em nota, a data de publicação ou redacção dos textos incluídos nas colectâneas de artigos e nas obras póstumas que, desde o final dos anos 80, têm vindo a ser editadas pela mão de Françoise Schwab. Somente desta forma, estamos em crer, será possível seguir o processo de maturação orgânica da filosofia de Jankélévitch, sem nos enredarmos nos complexos fios com que ela se cose.

Posto isto, comecemos – como prescrito – pelo começo, ou seja: pelo estudo dos anos de juventude de Jankélévitch, passados na companhia de duas filosofias do tempo (as de Bergson e Schelling), nas quais o autor parece apenas ter encontrado aquilo que, confusamente, havia já descoberto.

de l’étude primitive, rien ne paraît plus bergsonien que l’épanouissement de cette esquisse». Cf., ainda, PHILONENKO, Alexis, Op. cit., p. 57.

13 Dispensar-nos-emos, no entanto, de especificar as situações em que um artigo serviu de base a uma obra

publicada na sua esteira, uma vez que a sua relação é, invariavelmente, a que se tece entre um estudo preparatório e o seu aprofundamento. A informação em causa será, ainda assim, vertida na bibliografia.

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PRIMEIRA PARTE

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CAPÍTULO I

UM FILÓSOFO SOB A INFLUÊNCIA?

«Tu ne me chercherais pas si tu ne m’avais

trouvé»

Pascal

No decurso do quinto capítulo da sua Phänomenologie des Geistes, numa subdivisão dedicada em parte à observação da consciência de si na sua relação com a realidade efectiva externa – ou melhor: à observação das leis psicológicas que regem as relações da individualidade com o mundo social –, Hegel oferece aos seus leitores uma esclarecedora palavra sobre a influência que o contexto histórico pode exercer no desenvolvimento da consciência1. Diz-se então, em substância, que a influência dos

elementos dados do mundo (a cultura, a política, a religião, etc.) sobre a individualidade concreta exprime, não tanto uma determinação da consciência pelo seu contexto, mas sobretudo uma determinação da consciência no seu contexto. Os elementos dados do mundo configuram, é certo, a essência indeterminada da individualidade em geral, ou seja: a série de factores externos que condicionam o processo de determinação da consciência; mas, eles nada nos dizem, pelo contrário, sobre a essência da individualidade determinada e singular, ou seja: sobre a diferença específica das consciências que se determinam num mesmo contexto histórico. De facto, na definição psicológica ou sociológica da individualidade concreta como um produto do estado do mundo, a individualidade é posta como uma conclusão lógica, que se deduz

1 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Werke, Frankfurt am Main, Suhrkamp, vol. 3, 1986, Phänomenologie

des Geistes, pp. 230-232 (Phénomènologie de l’esprit, trad. Jean Hyppolite, Paris, Aubier-Montaigne, 1939-1941, tomo I).

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mecanicamente das premissas conformadas pela sua tela de fundo (= mundo). Aqui, nada mais havendo para além de uma objectividade que segrega a partir de si o todo da subjectividade, nada mais subsiste de uma possível relação entre a individualidade e o mundo, nem, tão-pouco, de algo a que pudéssemos ainda dar o nome de «individualidade» (a menos que por isso se entenda, agora, a posição de um reflexo imediato do mundo).

Crónica da paixão de uma consciência que, como Eco, reproduz o seu mundo, por um mundo que, como Narciso, se desmultiplica em imagens de si mesmo2, a

explicação da individualidade pelo seu contexto limita-se a atribuir ao efeito a explicar todos os predicados da sua suposta causa, assimilando em vez de justificar. A individualidade é verdadeiramente o seu mundo. Mas, é-o – como bem mostra Hegel – apenas na medida em que esse mundo é já um mundo seu, uma complexa tapeçaria de determinações, que a constituem tanto como ela as constitui. Efectivamente, seja qual for o modo de relação adoptado pela individualidade perante o mundo (conformidade, oposição, indiferença, etc.), esse mundo ao qual ela se refere é já, em qualquer caso, um mundo que está presente para si, isto é: um mundo que é sempre encontrado por aquele que nele se encontra, num quadro em que nenhum dos dois termos tem precedência sobre o outro. Afirmar que o mundo exerce a sua influência sobre a individualidade significa assim, para Hegel, hipostasiar arbitrariamente uma das polaridades unilaterais da relação que se tece entre a consciência e o seu contexto, colocando à parte aquilo que só se dá em comum. Pois, esse mundo que deveria determinar a individualidade (por forma a fazer dela a individualidade concreta que ela é) representa já o resultado da simultânea codeterminação da individualidade por si e de si pela individualidade, em suma: um mundo pelo qual a individualidade é responsável. Trata-se aqui de uma relação dialéctica, que merece, não o nome de «influência» (pelo qual se expressa a mútua exterioridade dos autónomos), mas o nome de «unidade» (pelo qual se expressa a imbricação recíproca dos conjuntos). É o que sugere Hegel, nas suas lições sobre a história da filosofia:

«Diz-se habitualmente que as relações políticas, a religião, etc., seriam de considerar porque tiveram grande influência sobre a filosofia do tempo e

2 Cf. HEGEL, G.W.F., Op. cit., pp. 231-232: «Wir hätten eine gedoppelte Galerie von Bildern, deren eine der

Widerschein der andern wäre; die eine die Galerie der völligen Bestimmtheit und Umgrezung äußerer Umstände, die andere dieselbe übersetzt in die Weise; wie sie in dem bewußten Wesen sind; jene die Kugelfläche, dieses der Mittelpunkt, welcher sie in sich vorstellt».

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porque esta igualmente exerceu influência sobre aquelas. Quando, porém, alguém se contenta com semelhantes categorias – como «grande influência» –, está a colocar os dois [lados] numa conexão exterior, e a partir do ponto de vista de que ambos são, para si, autónomos. Temos, no entanto, de considerar aqui esta relação segundo uma outra categoria, não segundo a influência, o efeito, de um sobre o outro. A categoria essencial é a unidade de todas estas configurações diversas, a de que só há um espírito, que se manifesta e pronuncia em momentos diversos»3.

Sabêmo-lo: as histórias da filosofia parecem encontrar uma estranha forma de comprazimento na ideia de que a génese de um pensamento se explicaria pelas propriedades do seu ambiente reflexivo. Forja-se, desta maneira, um nexo de causalidade entre diferentes autores e diferentes escolas, imagina-se uma genealogia linear que seja capaz de absorver a novidade no já-dado, e declara-se – em jeito de conclusão – que uma filosofia pode e deve ser tematizada em função das «influências» que «sofre», entenda-se: em função do modo como seria passivamente condicionada pelas tradições especulativas que frequenta.

Mitologia didáctica, esta identificação do fundamento de uma filosofia com a série de influências que alegadamente a afectam não dá conta, desde logo, do movimento biunívoco pelo qual um pensamento se constitui a si mesmo em diálogo com uma cultura já constituída que, ao iluminá-lo, é reactivamente iluminada por ele. Na realidade, a forma como uma filosofia se deixa moldar por uma cultura traduz, não a determinação acidental de uma consciência inqualificada, que procuraria no domínio da objectividade aquilo que ela ainda não é, mas a determinação essencial de uma consciência qualificada, que surpreende num universo dado de problemas aquilo que ela própria já é4.

3 HEGEL, G.W.F., Werke, Frankfurt am Main, Suhrkamp, vol. 18, 1986, Vorlesungen über die Geschichte der

Philosophie, p. 70 (Introdução às lições sobre história da filosofia, trad. José Barata-Moura, Porto, Porto Editora, 1995): «Man sagt gewöhnlich, daß die politischen Verhältnisse, die Religion usf. zu betrachten seien, weil sie großen Einfluß auf die Philosophie der Zeit gehabt haben und diese ebenso einen Einfluß auf jene ausübe. Wenn man sich aber mit solchen Kategorien wie «großer Einfluß» begnügt, so stellt man beides in einen äußerlichen Zusammenhang und geht von dem Gesichtspunkte aus, daß beide für sich selbständig sind. Hier müssen wir dies Verhältnis jedoch nach einer anderen Kategorie betrachten, nicht nach dem Einfluß, der Wirkung aufeinander. Die wesentliche Kategorie ist die Einheit aller dieser verschiedenen Gestaltungen, daß ein Geist nur ist, der sich in verschiedenen Momenten manifestiert und ausprägt».

4 Cf. HEGEL, G.W.F., Phänomenologie des Geistes, p. 231: «Was auf die Individualität Einfluß und welchen

Einfluß es haben soll – was eigentlich glichbedeutend ist –, hängt darum nur von der Individualität selbst ab; dadurch ist diese Individualität diese bestimmte geworden, heißt nichts anderes als: sie ist dies schon gewesen».

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Eis o que prova à saciedade o complexo jogo de espelhos que está na origem da filosofia de Jankélévitch. No seu início, aquilo que descobrimos é, não a contaminação unilateral de um pensamento por um regime de influências, mas o contágio recíproco que se estabelece entre uma individualidade concreta e o seu mundo de referências, o esquema dinâmico, plástico e movente que faz com que o sujeito se projecte sobre um objecto que o modifica por seu turno. Descobrimos, para resumir, toda a distância que separa a influência mecânica daquilo que é pensado sobre aquele que pensa da imanência

espiritual daquele que pensa àquilo que é pensado.

Sejamos claros: uma filosofia nascente pronuncia-se sempre na voz activa, e começa precisamente por revelar a sua originalidade na escolha das correntes com as quais arrisca confrontar-se. Autor avesso a regras, Jankélévitch não pode, neste caso, fugir delas: como qualquer outro, o seu pensamento exige, não que procuremos apurar quem lhe deixou em herança as questões que ele está fazendo suas, mas que mostremos como chamou ele a si, no princípio do seu percurso, aquelas questões que eram já as suas. «A espécie de filosofia que se escolhe depende […] da espécie de homem que se é; um sistema filosófico não é, com efeito, um instrumento morto que se poderia adoptar ou rejeitar a seu belo prazer; ele é animado pela alma do homem que o possui»5.

Poderemos nós evidenciar o bem fundado desta proposição fichteana, através da sua acareação com o pensamento do jovem Jankélévitch? Vejamos.

À imagem e semelhança da vasta maioria dos seus autores de eleição – Simmel, Bergson, Chestov… –, Jankélévitch recusa submeter a sua filosofia ao colete de forças do sistema. Sugerimo-lo antes, repetimo-lo agora: aquilo que aqui descortinamos é, não o plano arquitectónico de um edifício a construir peça a peça (leia-se, uma progressão na ordem dos problemas), mas o fluxo musical de um tema que é constantemente reexposto (leia-se, uma recapitulação dos mesmos problemas que, ao serem recapitulados, suscitam novas soluções)6. Desta filosofia podemos pois dizer, com propriedade, aquilo

que ela própria diz da filosofia de Schelling, designadamente: que ela não é «[…] um séquito de tratados que, colocados lado a lado, comporiam um sistema cada vez mais

5 FICHTE, Johann Gottlieb, Gesamtausgabe, Stuttgart-Bad Cannstatt, Friedrich Frommann, vol. 4, 1970,

Versuch einer neuen Darstellung der Wissenschaftslehre, p. 195 (Oeuvres choisies de philosophie première. Doctrine de la science, 1794-1797, trad. Alexis Philonenko, Paris, Vrin, 1980): «Was für eine Philosophie man wähle, hängt sonach davon ab, was man für ein Mensch ist: denn ein philosophisches System ist nicht ein todter Hausrath, den man ablegen oder annehmen könnte, wie es uns beliebte, sondern es ist beseelt durch die Seele das Menschen, der es hat».

6 Rhap, p. 238: «[…] le génie de ces métamorphoses [Liszt] n’est pas un architecte qui construit pierre par

pierre un édifice, pas davantage un auteur qui administre son œuvre ou exploite ses précieuses idées, mais un rhapsode qui invente et réinvente sans cesse en chantant et pense toujours ‘quasi improvisato’ […]».

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acabado […]», que «[…] ela desabrocha antes como um leque, a partir de uma intuição inicial que, de cada vez, figura por inteiro sob uma perspectiva nova»7. Numa palavra:

que ela representa um universo monádico, onde cada fragmento individual exprime a partir de si a totalidade simples do pensar.

Na verdade, como as Enéadas de Plotino (nas quais o jovem Jankélévitch decifra «[…] a implicação recíproca e dinâmica dos diversos momentos da doutrina […]»), a filosofia do nosso autor pode ser pensada em função da «unidade interna de inspiração» que encadeia entre si as diferentes etapas da sua especulação8. O que significa isto?

Significa que a génese da sua filosofia pré-contém em potência o destino do seu filosofar; que as suas obras de juventude antecipam já as questões que as suas obras de maturidade haverão de convocar; que quem olhar de perto para as primeiras assistirá, por certo, ao prenúncio das últimas. De facto, como o élan vital de Bergson encerra em si, sob a forma de germe, todas as promessas do processo evolutivo, o pensamento de Jankélévitch promete-se a si mesmo desde o início, ou melhor: desde o conjunto de estudos que, nos anos 20 e 30, votou à dialéctica de Plotino, à filosofia da história de Schelling, ao relativismo de Simmel…

Autor «sempre contemporâneo de si» que, de acordo com uma feliz expressão de Lucien Jerphagnon, parece ter tido ao mesmo tempo «todas as idades da sua vida»9,

Jankélévitch entrevê confusamente nos seus primeiros escritos uma oportunidade para, em diálogo com outros, lançar as bases da sua filosofia vindoura. Neles, para além de cunhar uma linguagem própria, inimitável, e de circunscrever o escopo da sua reflexão, Jankélévitch aprofunda mais do que comenta e encontra-se mais do que se procura, num movimento de verdadeira encarnação hermenêutica, que o leva a deixar-se cativar por aquilo que lhe interessa e que o convida a inflectir o sentido dos problemas que trabalha na direcção que mais lhe convém10.

7 Schel, p. 351: «La philosophie de Schelling n’est donc pas une suite de traités qui, placés bout à bout,

composeraient un système de plus en plus achevé: elle s’épanouit bien plutôt comme un éventail à partir d’une intuition initiale qui chaque fois figure tout entière sous une perspective nouvelle».

8 Plot (1924), p. 22: «Il n’est guère de doctrines, en effet, dont les divers éléments soient plus solidaires; la

philosophie de Plotin est un peu comme son monde des idées intelligibles: tout y est transparent à tout, et l’idée simple de l’ensemble, immanente à chaque partie, s’y reflète en quelque sorte comme dans un miroir. Cette unité interne d’inspiration, cette implication réciproque et dynamique des divers moments de la doctrine interdisent d’en exposer un aspect quelconque sans rappeler, au moins sommairement, les problèmes et les préoccupations qu’il implique». Cf. AES, p. 196.

9 Cf. JERPHAGNON, Lucien, «Préface», in Plot (1924), p. 7: «[…] toujours il serait contemporain de soi, sans

décalage, comme s’il avait eu d’un coup tous les âges de sa vie».

10 Cf. LISCIANI-PETRINI, Enrica, Op. cit., p. 67: «[…] sarebbe inutile e sbagliato cercare in essi [isto é, nos

autores que putativamente teriam influenciado a filosofia de Jankélévitch] dei ‘padri’ del pensiero jankélévitchiano, perché il filosofo si richiama ad essi, spesso parlando attraverso le loro stesse parole, solo per esprimere il suo pensiero».

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Mas, não estaremos a projectar na filosofia de Jankélévitch aquilo que nela desejamos localizar? Que o mesmo é perguntar: existirá alguma prova documental que seja capaz de corroborar a nossa tese? Citemos, para dissipar as dúvidas, a) um excerto da Carta a Louis Beauduc de 20 de Setembro de 1924 (onde Jankélévitch descreve, na primeira pessoa, a dinâmica de autoprojecção que governa os seus textos de juventude) e; b) um excerto do artigo dedicado, em 1925, à análise da filosofia de Simmel (onde Jankélévitch descreve, na terceira pessoa, as grandes linhas de força do seu próprio método de leitura e comentário):

a) «Estive à espera, para responder à tua carta, de terminar o trabalho de que o André Mazon me tinha encarregado […]. Intitulei-o ‘Les thèmes mystiques dans la pensée russe contemporaine’ […]. Fui, em suma, um bocado sonso com o Mazon: ele pedia-me sobretudo um estudo preciso e documentado […], e eu (tu conheces-me), eu aproveitei essa ocasião para ‘encarnar’ de alguma forma, em obras e em personalidades bem escolhidas, certas reflexões que tínhamos desenvolvido juntos há uns tempos, se bem te lembras»11.

b) «Quando [Simmel] estuda Kant, Goethe, Schopenhauer, Nietzsche ou Rembrandt, ele preocupa-se menos em ser ‘fiel’, exacto e verdadeiro, do que em mostrar-nos como o seu pensamento pessoal e vivo reage em contacto com um pensamento alheio, e que interesse geral e

objectivo essa reacção individual pode oferecer. Cada monografia

particular é, em suma, um pretexto e como que uma ocasião de que ele se aproveita para tornar perceptível a génese da sua própria

Weltanschauung em presença da Weltanschauung que é suposto expor.

11 VL, Carta a Beauduc de 20 de Setembro de 1924, p. 102: «J’avais attendu, pour répondre à ta carte postale,

d’en terminer avec le travail dont André Mazon m’avait chargé […]. Je l’ai intitulé ‘Les thèmes mystiques dans la pensée russe contemporaine’ […]. J’ai en somme été un peu sournois avec Mazon, car il me demandait surtout une étude précise et documentaire […] et moi (tu me connais) j’ai saisi cette occasion pour ‘incarner’ en quelque sorte dans des œuvres et dans des personnalités bien choisies certaines réflexions que nous avions développées ensemble il y a quelques temps, s’il t’en souvient». Autor de uma vasta obra sobre as línguas, as literaturas e o folclore eslavos, André Mazon encomendou ao jovem Jankélévitch, em 1924, o artigo ao qual a presente carta se refere – artigo esse que, um ano mais tarde, viria a ser integrado num volume de homenagem ao professor Paul Boyer, o primeiro regente da cadeira de língua russa na École des langues orientales de Paris. Cf. JANKÉLÉVITCH, Vladimir, «Les thèmes mystiques dans la pensée russe contemporaine», in MAZON, André & MEILLET, Antoine (eds.), Mélanges publiés en l’honneur de M. Paul Boyer, Paris, H. Champion, 1925, pp. 333-361 (agora em: PDP, pp. 101-130).

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É esta indiferença a respeito da verdade objectiva (ainda que Simmel tivesse igual aversão pelo impressionismo puro) que dá aos ensaios históricos de Simmel o seu carácter sem dúvida muito penetrante, mas sempre um pouco abstracto e a priori»12.

Como estranhar então que, no decurso das suas teses de licenciatura e doutoramento, Jankélévitch se tenha debatido com os temas da música, do amor e do tempo, ou seja: com os temas nucleares da sua estética, da sua ética e da sua metafísica futuras13? Em rigor, mais do que estudos panorâmicos ou dissertações académicas, os

escritos de juventude de Jankélévitch são – como bem adivinhou Bergson14 – o presságio

de uma filosofia em nome próprio, os laboratórios de experiências intelectuais onde uma subjectividade se descobre a si mesma em confronto com uma objectividade que a reflecte, numa relação de identificação circular em que a consciência e o seu mundo são conjuntamente postos numa indivisível unidade de sentido. Mas, que unidade de sentido concreta congrega aqui o sujeito e o objecto, a filosofia de Jankélévitch e a cultura filosófica através da qual ela se move, e da qual ela se apropria? Ou por outra: que vínculo teórico religa entre si os diferentes interesses do jovem Jankélévitch (porque quem afirma a unidade de um pensamento e dos seus interesses, afirma a fortiori a unidade desses interesses)?

Digamo-lo desde já: entre Plotino e Bergson, Schelling e Simmel, há dois óbvios denominadores comuns, mais precisamente: 1) a denúncia das insuficiências da razão discursiva () e, em articulação; 2) a intuição de um princípio metalógico que, sustenta-se, o pensamento por conceitos não pode apreender. Com efeito, e como comprovam alguns dos debates por correspondência travados entre Jankélévitch e

12 Sim, p. 256: «Lorsqu’il étudie Kant, Goethe, Schopenhauer, Nietzsche ou Rembrandt, il se préoccupe moins

d’être ‘fidèle’, exact et vrai, que de nous montrer comment sa pensée personnelle et vivante réagit au contact d’une pensée étrangère, et quel intérêt général et objectif cette réaction individuelle peut offrir; chaque monographie particulière est en somme un prétexte et comme une occasion dont il se saisit de rendre perceptible la genèse de sa propre Weltanschauung en présence de la Weltanschauung qu’il est censé exposer. C’est cette indifférence à l’égard de la vérité objective (bien que Simmel eût l’impressionnisme pur en égale aversion) qui donne aux essais historiques de Simmel leur caractère sans doute très pénétrant, mais toujours un peu abstrait et a priori». Para uma análise da acção exercida por Simmel sobre a filosofia de Jankélévitch, cf. TONON, Alessandra, Op. cit., pp. 21-29.

13 Cf. Plot (1924), pp. 27-50 (sobre a música e o amor na dialéctica inferior de Plotino) e Schel, pp. 9-79 e

191-195 (sobre o tempo na última filosofia de Schelling).

14 Cf. BERGSON, Henri, Carta a Jankélévitch de 12 de Maio de 1924, in PDP, p. 63 («Ou je me trompe

beaucoup, ou ce premier travail [«Deux philosophes de la vie: Bergson, Guyau»] présage des œuvres qui seront une importante contribution à la pensée philosophique») e Carta a Jankélévitch de 6 de Agosto de 1930, in Berg 1, p. v («[…] souvent mon point d’arrivée a été pour vous le point de départ de spéculations personnelles, originales»).

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Beauduc na década de 2015, aquilo que permite ao nosso autor reconduzir a

multiplicidade dos seus interesses à unidade é, prima facie, a ideia de que a razão não pode derivar a partir de si (ou absorver em si) a totalidade do real, de que há aí uma instância supra-racional que a reflexão lógica ignora ou perverte. Que lhe chamemos «Uno», como os místicos de Alexandria, «Absoluto», como os românticos alemães, ou «Vida», como os vitalistas franceses, eis o que menos importa – pois, para além dos diferentes nomes de baptismo e das diferentes tradições especulativas que lhes dão guarida, permanece sempre a referência a algo que excede os limites da razão. Podemos assim dizer, ampliando o âmbito de aplicação de uma frase produzida por Jankélévitch em 1925, que «o ideal comum a todos estes pensadores é, em suma, […] a resolução das brutais descontinuidades do racionalismo», a «[…] contracção de todas as antíteses transcendentes do tecnicismo numa síntese diáfana e verdadeiramente espiritual»16.

Seduzido desde cedo pelo apelo nocturno do impensável – num movimento de atracção pelo abismo que haveria de motivar as prudentes advertências de um espírito clássico como o de Brunschvicg17 –, o jovem Jankélévitch não poderia não fazer coro com

as correntes anti-intelectualistas que, à época, reagiam ainda contra o imperialismo da razão:

«[…] uma verdadeira vaga de misticismo rebenta hoje sobre a Alemanha. As provações particularmente terríveis que esse país atravessa desde há vários anos parecem, de resto, propícias ao desabrochamento de uma filosofia irracionalista que, desiludida pela civilização material e abstracta da nossa época, embotada pelas conquistas da inteligência científica, pede a uma intuição imediata o meio de reencontrar a vida profunda com a qual o nosso Ocidente parece ter perdido contacto. Eis por que um pensador como Keyserling, seguindo as vias já indicadas por

15 Veja-se, por exemplo, VL, Carta a Beauduc de 4 de Setembro de 1923, pp. 58-68.

16 PDP («Les thèmes mystiques dans la pensée russe contemporaine», 1925), p. 125: «L’idéal commun à tous

ces penseurs, c’est en somme […] la résolution des brutales discontinuités du rationalisme […], et [la] contraction de toutes les antithèses transcendantes du technicisme en une synthèse diaphane et vraiment spirituelle». A este mesmo respeito, cf. VL, Cartas a Beauduc de 27 de Julho de 1923, de 4 de Agosto de 1924 e de 23 de Dezembro de 1927, pp. 48, 90 e 145-152.

17 Cf. BRUNSCHVICG, Léon, Cartas a Jankélévitch de 30 de Dezembro de 1940 e de 16 de Junho de 1942, in

Phil. Mor, pp. 27-28. Na sua Carta a Beauduc de 9 de Fevereiro de 1944 (escrita na sequência da notícia da morte de Brunschvicg), Jankélévitch viria a reconhecer, com tristeza, a pertinência dos avisos feitos pelo seu velho professor de filosofia e orientador de doutoramento. Acerca das relações que se foram tecendo entre Jankélévitch e Brunschvicg, cf. VL, Carta a Beauduc de 9 de Fevereiro de 1944, pp. 299-300 e Sour («Léon Brunschvicg», 1969), pp. 133-141.

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Schopenhauer e Deussen, se dirige à ‘Weisheit’ dos Orientais, dos Hindus e dos Chineses, a única capaz, na sua opinião, de regenerar a nossa monstruosa civilização ‘faustiana’, e de atenuar, por um ideal de vida concreto, essa hipertrofia da inteligência analítica que, segundo a expressão de Spengler, provocou o ‘declínio do Ocidente’»18.

«’Como adoro ver essa soberba razão humilhada e suplicante!’», escreve Jankélévitch numa carta datada de 1923, citando um célebre fragmento de Pascal19.

Arroubo juvenil que a passagem dos anos amenizou (muito por culpa da hecatombe histórica que, por volta de 1940, suscitou a ruptura do autor com a cultura alemã)20, a

adesão de Jankélévitch às tendências anti-intelectualistas de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX não deixou, no entanto, de preparar o terreno para o desenvolvimento da sua metafísica futura. Nomeadamente: colocando-o em contacto com a intuição ainda indeterminada de um para lá da razão em geral que, na década de 50, Jankélévitch haveria de especificar – primeiro, sob a forma desse absoluto supra-racional que

Philosophie première está encarregando de criar o ser; depois, sob a forma desse tempo

metalógico que Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien está encarregando de continuar a criação do ser. Mas, porque o pensamento de Jankélévitch constitui um universo monádico onde todos os problemas se co-implicam, devemos agora tentar mostrar como estes dois avatares da sua metafísica (o que nos fala do começo da história e o que nos fala da sua progressão) se encontram já prefigurados, até certo ponto, no silencioso confronto que, no princípio dos anos 30, o autor promoveu entre as filosofias do tempo de Bergson e Schelling.

18 Sim, p. 385: «[…] une véritable vague de mysticisme déferle aujourd’hui sur l’Allemagne. Les épreuves

particulièrement terribles que ce pays traverse depuis plusieurs années semblent du reste propices à l’épanouissement d’une philosophie irrationaliste qui, déçue par la civilisation matérielle et abstraite de notre époque, blasée sur les conquêtes de l’intelligence scientifique, demande à une intuition immédiate le moyen de retrouver la vie profonde dont notre Occident semble avoir perdu le contact. Voilà pourquoi un penseur comme Keyserling, suivant les voies déjà indiquées par Schopenhauer et Deussen, s’adresse à la ‘Weisheit’ des Orientaux, des Hindous et des Chinois, seule capable à son gré de régénérer notre monstrueuse civilisation ‘faustienne’, et d’atténuer par un idéal de vie concrète cette hypertrophie de l’intelligence analytique qui a provoqué, suivant l’expression de Spengler, le ‘déclin de l’Occident’».

19 VL, Carta a Beauduc de 19 de Setembro de 1923, p. 77: «’Que j’aime à voir cette superbe raison humiliée

et suppliante!’». Cfr. PASCAL, Blaise, Œuvres complètes, Paris, Éditions du Seuil, 1963, Pensées (ed. Lafuma), fr. 52.

20 Cf. BERLOWITZ, Béatrice, «Vladimir Jankélévitch et l’Allemagne», Le messager européen, 5 (Paris, 1991),

pp. 255-273 & DAVID, Alain, «En finir avec l’Allemagne», in ROUVIÈRE, Jean-Marc & SCHWAB, Françoise (eds.), Vladimir Jankélévitch. L’empreinte du passeur. Colloque de Cerisy-la-Salle, Paris, Le Manuscrit, 2007, pp. 279-296.

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CAPÍTULO II

DO LADO DE BERGSON

«La méditation du temps est la tache

préliminaire à toute métaphysique»

Bachelard

O tempo e a eternidade • O tempo e a inteligência • O tempo e o espaço • O tempo quantitativo e o tempo qualitativo • Bergson e a ideia de eternidade dos gregos • Bergson e a ideia de tempo de Guyau • A irreversibilidade do tempo • O intervalo e o instante

Quando, em 1916, se publicou em França uma tradução da obra Henri Bergson’s

filosofi, de Harald Höffding – na qual o autor dinamarquês instituia a gnoseologia

intuicionista como epicentro do bergsonismo –, Bergson tomou a liberdade de endereçar uma extensa carta de protesto ao comentador, reagindo então contra a cristalização da sua filosofia num sistema (o intuicionismo) e contra a tentativa de fazer derivar a sua unidade de sentido a partir de outra instância que não a experiência da duração (durée)1.

1 Cf. HÖFFDING, Harald, Henri Bergson’s filosofi (karakteristik og kritik), Kjöbenhavn, Gyldendal, 1914 (La

philosophie de Bergson: exposé et critique, trad. Jacques de Coussange, Paris, Alcan, 1916); BERGSON, Henri, Écrits et paroles, Paris, PUF, 1959, vol. 3, pp. 455-458; Berg 1, pp. 2-3. Bergson prefere o termo «duração» ao termo «tempo», não apenas para exprimir melhor a natureza transitiva de um devir que se projecta sempre na direcção do futuro, mas também para melhor exprimir a natureza subsistente de um devir que se sedimenta sempre enquanto passado. Cf. Berg 1, pp. 57-58, IN, p. 189 e QPI, pp. 98-99. Em relação à leitura que Jankélévitch está fazendo da filosofia de Bergson, cf. BOELLA, Laura, Vita morale. Virtù, dovere e amore in Vladimir Jankélévitch, Milano, Raffaello Cortina, 2014, pp. 29-46, MONTMOLLIN, Isabelle de, La philosophie de Vladimir Jankélévitch. Sources, sens, enjeux, Paris, PUF, 2000, pp. 66-75 e 287-293, GOUHIER, Henri, Art. cit., pp. 413-416, BARTHÉLÉMY-MADAULE, Madeleine, «Autour du Bergson de M. V. Jankélévitch», Revue de métaphysique et de morale, 65 (Paris, 1960), pp. 511-524 & CAEYMAEX, Florence, «Négativité et finitude de l’élan vital. La lecture de Bergson par Jankélévitch», in FAGOT-LARGEAULT, Anne & WORMS, Frédéric (eds.), Annales bergsoniennes. IV, L’évolution créatrice (1907-2007). Épistémologie et métaphysique, Paris, Presses Universitaires de France, 2008, pp. 629-640.

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Fiel ao espírito assistemático e atento ao movimento interno da filosofia de Bergson – que parece ter seguido de perto, até à data da sua morte, a evolução dos diversos trabalhos que o seu discípulo lhe dedicou –, Jankélévitch tratará, no decurso de Bergson (1931), de posicionar a experiência da duração como o élan vital de toda a meditação bergsoniana, e de deduzir da intuição do tempo o conjunto de problemas nos quais a mesma se desdobra2. Assim, não deixando embora de tentar articular a sua leitura da

filosofia de Bergson em função dos grandes núcleos temáticos e antíteses elementares que a caracterizam, Jankélévitch procurará, a cada momento, reconduzir a totalidade do bergsonismo à imagem «infinitamente simples» que delimita o seu horizonte e escande o seu ritmo, mostrando como ele depende da intuição originária de uma duração que, consoante o seu variável grau de tensão, se vai fazendo consciência, vida e liberdade3.

Com efeito, submetendo-se a si mesma a uma evolução criadora, a filosofia de Bergson parte da concepção estritamente psicológica da duração que se defende no Essai (onde ela é definida como uma propriedade exclusiva da consciência) para, através de uma variação de ponto de vista que começa já a esboçar-se em Matière et mémoire, desembocar na concepção bio-histórica da duração que se defende em L’évolution créatrice (onde ela é definida como uma propriedade da consciência e da matéria)4. Na distância que medeia

entre uma e outra – isto é, entre uma duração que só pode saber de si na consciência e uma duração que também pode saber de si na matéria –, joga-se todo o sentido de uma metafísica do tempo que, a despeito da oscilação do seu contexto de aplicação, ousa romper em definitivo com um dos postulados fundamentais da tradição filosófica, a saber: a afirmação do primado da eternidade sobre o tempo. De facto, invertendo o sentido de uma célebre sentença proferida por Platão no Timeu (e mais tarde retomada por Plotino no sétimo tratado da sua terceira Enéada), Bergson equacionará a eternidade como uma imagem imóvel do tempo, numa tentativa de lacerar a «superstição do

2 Cf. GOUHIER, Henri, Art. cit., pp. 414-415: «Une autre mérite du livre [Bergson] est dans son plan. M.

Jankélévitch s’est bien gardé de commencer son exposé par une théorie bergsonienne de la connaissance. Ce qui est premier ici, c’est l’expérience de la durée, et c’est elle qui ´détermine le style véritable et intérieur` de cette métaphysique». Que Bergson tenha acompanhado, desde a primeira hora, a produção filosófica de Jankélévitch, é o que facilmente se poderá depreender da leitura da correspondência mantida entre ambos. Cf. BERGSON, Henri, Cartas a Jankélévitch de 12 de Maio de 1924, de 10 de Fevereiro de 1928, de 27 de Maio de 1929, de 28 de Janeiro de 1931, de 3 de Março de 1938 e de 10 de Setembro de 1939, in PDP, pp. 63, 172, 77-78, 173-176 e 97-98 e Magazine littéraire, 333 (Paris, 1995), p. 37.

3 Cf. BERGSON, Henri, Oeuvres, Paris, PUF, 1959, La pensée et le mouvant, 119, p. 1347 (acerca do

«infinitamente simples»); Matière et mémoire, 226-235, pp. 337-344 e L’énergie spirituelle, 11-12 e 16-17, pp. 823 e 827 (acerca das tensões da duração).

4 Cf. BERGSON, Henri, Oeuvres, Essai sur les données immédiates de la conscience, 80-87, 157-164 e 170-171, pp.

72-78, 137-143 e 147-149; Matière et mémoire, 232-233, p. 342; L’évolution créatrice, 8-11, pp. 500-504; Berg 1, pp. 162-164 e 183-184 e Berg 2, pp. 187, 250, 255 e 278-279.

Referências

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