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O IMPACTO NA RECEPÇÃO DO INSÓLITO EM JULIO CORTÁZAR

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Academic year: 2021

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O IMPACTO NA RECEPÇÃO DO INSÓLITO EM JULIO CORTÁZAR

Cíntia Rodrigues de Souza (Bolsista PIBIC-FA/G-CLCA-UENP/CJ) Natália Nunes Borda (G-CLCA-UENP/CJ) Nerynei Meira Carneiro Bellini (Orientadora-CLCA-UENP/CJ) Grupo de Pesquisa Leitura e Ensino (Leituras do Insólito) Introdução

Este trabalho visa analisar o conto Continuidade dos Parques, de Julio Cortázar, para demonstrar os possíveis significados subjacentes ao enredo principal. Pretende, ainda, revelar os efeitos desencadeados no leitor, indo ao encontro da assertiva de Cortázar de que o conto deve “nocautear” o receptor, conforme apontamentos em Alguns aspectos do conto, de seu livro Valise de cronópio (1974). O receptor, desse modo, será impactado com a leitura e assumirá um papel dinâmico e criador diante do narrado. Neste artigo serão retomados pressupostos de relevantes escritores e estudiosos: Cortázar, Piglia, Todorov, Bessière, Carpentier, Ceserani, Chiampi e Roas.

A duplicidade de narrativas: a explícita e a implícita

O conto Continuidade dos Parques, de Julio Cortázar é uma narrativa breve que traz a singela e instigante história de um triângulo amoroso. Contudo, subjacente ao enredo, há significados múltiplos que conduzem o leitor à reflexão desde que se aprofunde na leitura. Segundo Ricardo Piglia, a narrativa curta costuma trazer em seu bojo composicional duas histórias em planos distintos.

Primeira tese: Um conto sempre conta duas histórias. A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície. (PIGLIA, 2004, p. 89-90)

Tal definição coaduna com a multiplicidade semântica de narrativas fantásticas. Por isso, em se tratando de obras cujo insólito é componente estrutural, nota-se que a duplicidade de histórias atinge um patamar mais amplo e igualmente complexo. Nesse

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sentido, Remo Ceserani afirma que a narrativa fantástica conta uma história com a intenção de narrar outras.

A hesitação instilada por esse tipo de conto nos leitores não seria mais tanto entre uma explicação natural e uma sobrenatural dos eventos contados, mas entre uma história superficial (que fala de acontecimentos inexplicáveis de espíritos etc.) e uma outra história, mais profunda e significativa, que por todo o tempo foi indiretamente contada. A presença de elementos de paródia e discussão metanarrativa sobre os modos e sobre os códigos da narração parece uma indicação e uma sugestão da ambiguidade de toda a operação estratégica: a literatura fantástica finge contar uma história para poder contar outra. (CESERANI, 2006, p.102)

Ceserani quer dizer que pode haver outros significados por trás da história principal, elaborada com base em elementos reais e sobrenaturais e que o leitor deverá exercitar-se a fim de chegar a esses outros sentidos subjacentes às entrelinhas da história narrada.

Definições do fantástico e do maravilhoso ficcional

Conforme Tzvetan Todorov, citado por David Roas em seu livro Teorías de lo Fantástico (2001), “lo fantástico es la vacilación experimentada por un ser que no conoce más que las leyes naturales, frente a un acontecimiento en la aparencia sobrenatural.” (p.48)

Todorov quer dizer que uma história para ser considerada insólita não pode trazer elementos que levem o personagem e o leitor a explicarem o fato sobrenatural racionalmente. Deve, portanto, haver uma hesitação que se constrói internamente na obra, por meio da incerteza do narrador, das personagens que, ao ultrapassar os limites do texto, atinge ao leitor consciente, obviamente, de que o narrado constitui ficção, porém, este aceita e compartilha “o jogo do imaginário.”

Para a estudiosa francesa Irène Bessière o fantástico é tético ou, seja, situa a realidade daquilo que representa e, assim, distingue-se do maravilhoso, que é não tético, isto é, não situa a realidade do que representa. Em outras palavras, Bessière quer dizer que a narrativa fantástica sugere a similitude do ficcional com o real, já, no caso do maravilhoso, não há equivalência entre a fantasia e a realidade.

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O miniconto Continuidade dos Parques, de Julio Cortázar, divide-se em duas partes, sendo a primeira o relato sobre um fazendeiro que acaba de chegar de viagem e, com tranquilidade, acomoda-se em sua poltrona preferida em frente à janela onde avistava o parque dos carvalhos, retomando, assim, a leitura do romance que havia começado dias antes. A segunda parte traz a história de um casal que planeja o assassinato de um homem de negócios.

Caso os enredos sejam lidos separadamente, não há indícios de que o conto seja insólito, pois, o leitor ficcional pensa e acredita que será apenas testemunha do último encontro dos amantes. O fantástico se dá com a junção de ambas as histórias, a do leitor do conto e a do romance que lê. O leitor acomodado torna-se protagonista da história, pois, o romance que ele lê é a história de um casal que pretende dar fim à vida de um homem (o próprio leitor), exatamente quando este se encontra no final da leitura do romance.

A ligação das duas histórias ocorre na descrição do gabinete ou salão onde há uma janela e uma poltrona de veludo verde na qual o homem lê um romance. Este mesmo ambiente é descrito no início e no final do conto.

A outra junção ocorre na sugestão de imbricação do parque dos carvalhos que aparece na primeira história (o fazendeiro que lê um romance) e na segunda (os amantes se encontrando na cabana). Por isso, o sugestivo título: Continuidade dos Parques.

Neste conto, o leitor permanece envolvido na leitura, uma vez que, conforme narrado, resolveu todos os negócios urgentes e se alojou em seu escritório particular em uma confortável poltrona de veludo. Neste momento, o fazendeiro supõe que será um leitor passivo sem sofrer maiores consequências a não ser testemunhar, à distância, a traição dos amantes. Contudo, gradativamente, vai se envolvendo e penetrando na história de modo que esta mudará completamente sua atitude de leitor e, por fim, sua vida.

No conto, há alusão ao processo criativo e à recepção da narrativa (trama, desenho dos personagens, capítulos, nomes e imagens dos protagonistas, ilusão romanesca, linha a linha, palavra a palavra, até as imagens adquirem cor e movimento), conforme se percebe na citação abaixo.

Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir, ao mesmo tempo, que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva

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dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento. (CORTÁZAR, 1971, p. 121)

Há, portanto, um envolvimento gradativo e definitivo, mudando o papel do leitor, de um passivo observador, por meio da leitura, para um leitor que se torna protagonista do romance que lê. É justamente, nesse fato, que reside o sobrenatural indispensável à literatura fantástica.

Segundo Todorov, a narrativa para se configurar como fantástica deve manter a dúvida entre o fato sobrenatural ser justificado com um acontecimento viável no mundo aparente ou ser totalmente improvável na realidade empírica. Já, Chiampi, estudando a literatura do insólito hispano-americana, afirma que, nela se define o realismo maravilhoso, ou seja, a produção literária na qual o suprarreal não é explicado literariamente, contudo, sugere-se a sua viabilidade no cotidiano do ser humano.

Em relação ao conto de Cortázar, podemos pensar que o sentido mais relevante, dentre tantos outros significados, é a questão do leitor “entrar na história que lê”. Do ponto de vista da realidade concreta, não há possibilidade de alguém que efetua uma leitura adentrar o texto. Portanto, podemos inferir que Continuidade dos Parques não se identificaria enquanto uma narrativa realista maravilhosa, mas sim, fantástica.

Isto porque, parece-nos que o escritor argentino, nesse conto, transforma a metáfora do “leitor entrar na história” em uma realidade ficcional, ou seja, o leitor torna-se personagem do livro que lê. Nessa narrativa não há nenhuma explicação racional para este evento extraordinário, como por exemplo, sonho, devaneio, insanidade, etc., tampouco, há uma explicação fantasiosa do tipo: um conto de fadas, no qual é possível que situações sobrenaturais aconteçam e que seres possuam poderes mágicos. Como é perceptível no seguinte fragmento:

Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance. (CORTÁZAR, 1971, p. 121)

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A despeito de tal configuração, pode-se pensar também que há certo realismo maravilhoso, nessa produção cortaziana, pois, na vida secular, quando um leitor realmente se interessa por uma obra dedicando-lhe tempo e atenção, há um envolvimento tamanho que o leitor é absorvido pela história. Por isso, muitas vezes, o indivíduo que lê desprende-se dos afazeres de seu cotidiano e se aloja em um ambiente restrito para usufruir plenamente de uma leitura interessante e instigante que prende sua atenção, conforme representado no conto de Cortázar.

Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à fazenda; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo deinteressar-senho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranquilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. (CORTÁZAR, 1971, p. 121)

Ao analisarmos o trecho acima, é possível perceber que o protagonista já tinha certo conhecimento do enredo, pois, ele havia iniciado a leitura dias antes. Resolvidos os problemas, voltou a ler no trem, quando seguia para a casa. Lá, buscou um espaço tranquilo onde pudesse ficar à vontade e confortavelmente sentado para terminar o romance, prendendo-se à história de modo integral.

Considerações finais

Diante do exposto, conclui-se que Julio Cortázar, nesta produção literária, pretendeu levar o leitor a se questionar sobre seu papel na recepção de um texto literário. Além disso, sugeriu que o receptor, por meio da literatura, seja capaz de vislumbrar outras realidades e possibilidades de vida, ainda que, no âmbito do imaginário. Descarta-se, portanto, uma leitura explicativa e linear e propõe-se a leitura profunda de realidades imbricadas no mundo circundante e em outros espaços visionários. Intentou-se, portanto, neste artigo, descortinar aspectos do insólito narrativo, assim como os diversos sentidos implícitos e os possíveis impactos suscitados no leitor.

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CESERANI, Remo. O Fantástico. Tradução de Nilton Cesar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.

CORTÁZAR, Julio. Continuidad de los Parques. In: Final del Juego. Madrid: Ediciones Alfaguara, 1987.

_________. Continuidade dos Parques. In: _____. Final de Jogo. Tradução de Remy Filho. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971. p. 121.

_________. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. PIGLIA, Ricardo. “Novas teses sobre o conto”. In: Formas breves. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 89-94.

ROAS, David. Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2011.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2ª ed. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Para citar este artigo:

SOUZA, Cíntia Rodrigues de; BORBA, Natália Nunes. O impacto na recepção do insólito em Júlio Cortázar. In: X SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2013. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2013. ISSN – 18089216. p. 420 – 425.

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