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PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UMA CASA DE CANDOMBLÉ

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Academic year: 2021

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ISSN 2176-1396

PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UMA CASA DE CANDOMBLÉ

Adelson Cezar Ataide Costa Junior - UEPA1 Maria Betânia B. Albuquerque - UEPA2 Grupo de Trabalho – Educação e Religião Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O presente artigo tem por objetivo investigar práticas educativas dentro do Templo da Religião Africana Ilê Asé Iyá Ogunté, em Ananindeua, Pará, por onde perpassam uma multiplicidade de saberes. O objeto de estudo será as práticas educativas conduzidas pela Iyalorixá da Casa, Iyá Ejité, também chamada comumente de Mãe Rita. Conta com uma revisão de produções no campo da educação em espaços religiosos realizadas em instituições de ensino superior brasileiras dos últimos dez anos, em nível de Dissertações e Teses, levando em conta seus enfoques de pesquisa e suas opções epistemológicas. Intenciona-se proceder tendo em vista a abordagem fenomenológica, buscando a subjetividade envolvida em tais práticas. Aponta-se o uso de técnicas ligadas à entrevista narrativa e episódica, além da observação para coleta de dados. Como base para o entendimento das escolhas epistemológicas que foram feitas para a realização dessa pesquisa, mobiliza-se aqui os conceitos de Educação a partir de Carlos Rodrigues Brandão (2002), de Pensamento Pós-abissal a partir de Boaventura de Sousa Santos (2010), de Cultura a partir de Clifford Geertz (1973), de Memória Coletiva a partir de Maurice Halbwachs (2004) e de Saberes Culturais a partir de Maria Betânia Barbosa Albuquerque (2015). Dentre as conclusões, apresenta-se o entendimento das práticas educativas em terreiros como ações com suas epistemologias próprias, bem como a valorização dos afro-religiosos como sujeitos pedagógicos. Há também a intenção de evidenciar a necessidade de se criar mecanismos de valorização e condições de execução dessas práticas, independente do ambiente em que ocorram e dos sujeitos envolvidos nos processos.

Palavras-chave: Educação. Saberes Culturais. Memória. Candomblé.

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Professor da Rede Estadual de Ensino do Estado do Pará. Atualmente, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará e Membro do Grupo de Pesquisa em História e Educação – GHEDA/UEPA. E-mail: belemataide@gmail.com

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Doutora em Educação pela PUCSP, com Pós-Doutoramento pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Pt. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Líder do Grupo de Pesquisa em História da Educação na Amazônia - GHEDA/UEPA. E-mail: mbetaniaalbuquerque@uol.com.br

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Introdução

O interesse pelo referido tema surgiu da observação do comportamento dos membros do Templo da Religião Africana Ilê Asè Iyá Ogunté3, casa de Candomblé4 localizada no Conjunto Julia Seffer, no município de Ananindeua, Estado do Pará. Em visitas a essa casa entre 2013 e 2014, participando das celebrações ao longo do calendário litúrgico enquanto acompanhávamos familiares, tivemos a oportunidade de presenciar tanto momentos de convivência com grande número de pessoas quanto situações bastante íntimas da casa, em que apenas os membros mais próximos se achavam presentes.

Em todas essas situações, em maior ou menor grau de acentuação em virtude do calendário litúrgico e finalidade dos rituais, despertou bastante atenção o fato de que a Iyalorixá5 (Mãe-de-Santo) da casa, a senhora Rita de Cássia Azevedo, chamada comumente de “Mãe Rita”, demonstrava sempre uma grande preocupação no que diz respeito à transmissão dos ensinamentos da religião, seja para os filhos da casa, seja para os visitantes regulares ou esporádicos. É sabido que os líderes religiosos têm essa obrigação entre seus afazeres cotidianos, mas a intensidade dessa conduta se apresentou como singular, causando inquietação e abrindo espaço para questionamentos.

Logo, ao se perguntar aos filhos da casa e a própria Mãe Rita, foi possível descobrir que a dita senhora tinha sido formada professora de Magistério desde os 23 anos de idade e que lecionou no Ensino Fundamental da 1ª a 4ª série6 por 25 anos de sua vida concomitantemente ao sacerdócio, sendo que sua formação religiosa é ainda anterior, iniciada aos 12 anos no culto afro-religioso onde permanece mesmo após o seu afastamento da profissão, nos dias de hoje.

Desse momento em diante, foi possível visualizar Mãe Rita inserida no que Boaventura Santos (2006) chama de “ecologia de saberes”, ou seja, envolvida em uma concomitância de experiências que lhe traz a convivência de práticas e saberes de origens distintas, mas que coexistem em uma mesma rede de vivências em que ela faz uso de elementos tanto modernos quanto tradicionais.

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Nome da divindade principal da casa, a Orixá feminina Yemonjah, que rege as águas salgadas. 4

Religião de matriz africana trazida em grande parte de sua estrutura para o Brasil durante o período de escravização de negros africanos. A casa em questão filia-se ao rito Ketu, que, segundo Gonçalves da Silva (2005), é originário das nações africanas nagô vindas da região africana do Sudão.

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Sacerdotisa de maior grau dentro da casa. Geralmente, a líder da casa de Candomblé. 6

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Como diria Geertz (1973), buscamos identificar essa “teia de significados” e passamos então a observar essa interação entre os saberes modernos e tradicionais nas práticas cotidianas da casa. Se admitirmos educação como toda relação onde há troca de saberes, podemos admitir Mãe Rita como uma educadora em uma casa de candomblé. Ao perceber que ali há processos educativos, leva-se em conta uma prática de educação em que se coloca também a experiência de vida.

Dada esta situação, enxerga-se Mãe Rita como uma mulher em que se apresenta o que HALL (2006) aponta como o sujeito pós-moderno, que é desprovido de uma identidade fixa, mas que seria constantemente formada e transformada. Ela não é em um momento professora e em outro momento sacerdotisa, havia uma mescla, um amálgama em que essas identidades e seus respectivos saberes aparecem imbricados e interagiam plenamente.

Dessa forma, o presente artigo propõe um olhar para essas práticas educativas, em que estão presentes uma multiplicidade de saberes, sendo um olhar que as enxergue tal como são, em suas especificidades, e não em comparação ou juízo de valor com o saber escolar, como usualmente é feito. Ou seja, propõe-se aqui um olhar ampliado, pós-abissal na perspectiva cunhada por Boaventura de Souza Santos. O objeto de estudo proposto tem como lócus o Templo da Religião Africana Ilê Asè Iyá Ogunté, casa de Candomblé localizado no Conjunto Julia Seffer, no município de Ananindeua, Estado do Pará. Os sujeitos são a Iyalorixá da casa, a senhora Rita de Cássia Azevedo (Mãe Rita) em suas práticas juntamente com os membros do Templo. Penso que esse trabalho tem grande relevância para a academia no sentido de que busca compreender processos educativos contribuindo para a ampliação da visão sobre educação existente nos seus mais variados processos e lugares.

Para tanto, o presente artigo contará com uma revisão de literatura da produção na área dos últimos 10 anos feita a partir de busca no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. Em seguida, tratará de conceitos como educação como cultura, pensamento pós-abissal, memória e saberes culturais. Em seguida, o artigo apresentará algumas questões pertinentes à abordagem teórico-metodológica escolhida para a pesquisa, em especial a técnica da entrevista narrativa. Por fim, o texto conclui-se com as principais assertivas acerca da importância de uma análise baseada em pensamento pós –abissal na educação.

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Produção acadêmica sobre práticas educativas em espaços afro-religiosos no Brasil

Em um levantamento feito no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, levando em consideração os dez últimos anos (2006 a 2014), percebe-se alguns dados importantes para situar a produção no campo das práticas educativas em espaços afro-religiosos.

As pesquisas no Brasil referentes às práticas educativas ligadas a espaços afro-religiosos estão concentradas em Programas de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado), contando apenas com dois casos de pesquisas em outras áreas (uma Tese na área de Música e uma Dissertação na área de Ciências Sociais). Usando descritores como “saberes”, “educação”, “terreiro” e “Candomblé”, foi possível perceber que a maior parte desses trabalhos encontra-se vinculada a Programas de Pós-Graduação situados em instituições da região Nordeste do país. Salta aos olhos a pouca produtividade de pesquisas nesse campo quando tomamos como marco territorial a Amazônia, com apenas uma produção nos últimos 10 anos (dissertação de Mestrado em Educação). Dessa forma, delineia-se uma primeira lacuna na qual o presente estudo pode dar contribuições: compreender os processos educativos ligados a espaços afro-religiosos na Amazônia, contribuindo assim para um campo da produção acadêmica ainda em construção.

Desse montante, foi possível identificar trabalhos que tentam tecer comparações entre as práticas educativas escolares e as ocorridas nos terreiros, perspectiva da qual nos distanciamos, por entender que acaba por reforçar o que Santos (2010) classificou como “pensamento abissal”, ou seja ações que “dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’.” (SANTOS, 2010, p.32), É o caso dos trabalhos de Quintana (2012) e Oliveira (2014), onde ambos os autores buscam perceber de que maneira os candomblecistas relacionam as práticas educativas que vivenciam na escola com as que experienciam nos terreiros, sendo que na análise de Quintana há uma preocupação em entender se há compatibilidade ou não entre o processo de escolarização com as “obrigações religiosas”, enquanto Oliveira interessou-se em investigar a visão de escola que têm os candomblecistas, tendo em vista as experiências educativas que vivenciam nos terreiros. Embora seja interessante perceber as práticas educativas analisadas nesses estudos, não há aproximação com estas abordagens na perspectiva em que elas apresentam o saber escolar como existente apenas fora dos terreiros.

No caso das produções acima, ainda que a ideia seja a de mostrar que existem outros saberes além dos escolares na vida dos sujeitos da pesquisa, acaba-se por medir esses outros

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saberes pela régua da ciência, medida essa que por muito tempo levou os conhecimentos e práticas vivenciados dentro das casas de candomblé a serem vistos como ilegítimos, incoerentes e, por isso, inexistentes, dado que o pensamento moderno ocidental promove clivagens, separações entre o que ele mesmo entende como certo, correto e coerente e o seu oposto. Segundo Santos (2010, p.32)

Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível.[...] tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro.

Assim, busca-se aqui um olhar para as práticas educativas em espaços afro-religiosos de modo a entendê-las a partir de suas próprias características, normas e condições de existência, não as colocando em regime de comparação com o saber escolar, que, se não é descartado das vivências dos sujeitos afro-religiosos, tem um caráter de articulação, não de valor superior perante os outros saberes.

Uma segunda tendência na produção sobre práticas educativas em espaços afro-religiosos é a opção metodológica de focar a pesquisa em uma prática específica dentro do cotidiano religioso. É o caso da produção de Almeida (2009) sobre o processo de ensino/aprendizagem dos Alabês7, Viana (2011) com a investigação da produção de subjetividade a partir da corporeidade em uma análise das posturas corporais dos praticantes do Candomblé durante os rituais, e o trabalho de Lima (2011), em que busca compreender de que forma emergem práticas educativas ambientais a partir das crenças religiosas em um estudo de caso de uma comunidade de candomblé. Ainda que com objetos específicos e distintos, é possível perceber que os autores concordam em pontos cruciais, como o papel primordial da tradição oral, da observação e da repetição nos processos educativos dentro dos terreiros de candomblé, opinião com a qual concordamos aqui.

Nesses trabalhos, pode-se já perceber uma preocupação com as especificidades dos saberes transmitidos nas práticas educativas vivenciadas dentro dos terreiros de candomblé, buscando entendê-los em suas próprias bases epistemológicas, e não mais utilizando a concepção ocidental da ciência moderna como parâmetro. Essa prática, a meu ver, coaduna-se com um projeto de sociedade onde possamos pensar em justiça global, inclusive no que diz respeito à cognição, uma vez que o controle sobre a forma de pensar de uma população pode determinar o controle sobre sua forma de agir. Se não há democracia de pensamento e visão

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de mundo, não é possível haver democracia política. Lutar pela justiça social global é, segundo Santos (2010), também lutar para que haja uma justiça cognitiva global, em que variados modos de pensar a realidade sejam contemplados com equidade.

Há ainda um outro grupo onde os trabalhos se pretendem mais abrangentes no que diz respeito a análise dos processos educativos. Temos a produção de Bergo (2011), que analisa as práticas educativas dentro de um terreiro de Umbanda8 com destaque para a importância da interação social em todas as atividades do templo como algo imprescindível ao reconhecimento de um sujeito como parte do grupo.

O estudo de Sales Júnior (2013) se debruça sobre o cotidiano do terreiro para investigar a observação por parte dos membros mais novos sobre o fazer dos mais velhos como um processo ativo e não meramente passivo. Esse tipo de aprendizado desenvolve a observação em um senso de familiaridade que precede o processo formal de iniciação religiosa, ou seja, antes mesmo de ser tido como membro do grupo, o sujeito já desenvolve a prática da observação, opinião com a qual concordamos.

Há também os estudos de Belo (2012), que ganha destaque por fazer uma investigação em um recorte temporal mais antigo (1888 a 1912), motivo pelo qual se utiliza da análise de notícias de jornais, processos-crime e diários pessoais para buscar entender o papel dos terreiros como espaços de resistência e manutenção da cultura afro-brasileira em Alagoas.

Domingos (2011) se debruça sobre a construção e resistência da identidade afro-brasileira em Juazeiro do Norte a partir das lideranças religiosas da região em seu papel de compromisso em perpetuar os ensinamentos religiosos. Essa abordagem chama a atenção por elencar como sujeitos os líderes religiosos, dado que a tendência dos outros estudos é a de privilegiar as práticas dos membros da religião em geral.

Por fim, destacamos três trabalhos considerando sua afinidade com esta pesquisa. Trata-se do estudo de Conceição (2006) baseado na investigação das bases estruturantes da pedagogia presente nos terreiros de Candomblé, tendo em vista que as formas de ensinar e aprender em questão são únicas, diferentes da pedagogia escolar, mas não necessariamente excludentes entre si.

O de Leite (2006), em que o autor busca fugir da racionalidade científica ao entender o processo educativo fora do sistema educacional brasileiro tendo em vista as experiências educativas nos terreiros que se pautam na transmissão de credos, valores e heranças culturais

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Segundo Silva (2005), é uma religião que também pertence ao grupo dos afro-religiosos, mas que agrega elementos do Catolicismo, da Pajelança indígena e do Espiritismo Kardecista.

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aprendidas gradativamente, de acordo com o grau de inserção na religião, o que ajuda a entender quais os caminhos que levam a formar as lideranças das casas de candomblé.

Por fim, o trabalho de Mota Neto (2008) sobre as práticas educativas no cotidiano dos terreiros de Tambor de Mina, o único dos trabalhos que tem seu lócus de pesquisa dentro da Amazônia, preocupando-se em investigar como se dá o processo de construção e transmissão de saberes da prática religiosa e ritual, ensinamentos morais, saberes ancestrais dos encantados, narrativas míticas, fundamentos religiosos e variadas fórmulas, receitas, gramáticas e códigos que tem origem nas tradições históricas dessa religião.

Nessas últimas produções, fica mais clara uma disposição de se ter um olhar mais abrangente sobre as práticas educativas existentes nos espaços afro-religiosos que, assim como seus sujeitos, não são contemplados com a concepção moderna aceite de educação.

São aquilo que Arroyo (2012) chama de “Outros sujeitos”, que, por não se adequarem ao modelo educacional imposto pelo paradigma dominante (a ciência moderna), sentem necessidade de criar mecanismos que os contemplem não só enquanto sujeitos de direitos, mas de pensamento e ação. Esses outros sujeitos passam a pensar e construir “outras Pedagogias”.

A ideia levantada aqui é a de compreender como os espaços de cultos afro-religiosos configuram-se como locais onde os sujeitos que lá convivem produzem sua educação, construindo seus saberes, valores, conhecimentos e cultura próprios. Quais são esses saberes que são apreendidos nesse espaço religioso, e que epistemologia funda esses mesmos saberes?

Conceituações ancoradoras da pesquisa

Para enxergar essas práticas educativas a partir de um olhar não-homogeneizante, acredita-se ser importante ter em vista alguns conceitos que ajudam a delinear esse caminho rumo a uma análise mais abrangente e menos preconceituosa e sectária dos processos educativos em espaços de cultos afro-brasileiros.

Um conceito importante é o de educação, aqui pautado a partir da visão de Carlos Rodrigues Brandão (2002), que aponta um caminho interessante quando apresenta a educação como cultura, ou seja, como “Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado [...] (op.cit, p.22). Nessa perspectiva, somos levados a entender que os processos educativos são culturais e que, como tal, estão sujeitos às mudanças, interferências e incorporações dos sujeitos sociais que o praticam ao mesmo tempo em que são afetados por ele.

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As formas de educar, as informações repassadas e os papéis sociais dos sujeitos envolvidos nos processos educativos nos espaços afro-religiosos são determinados pelas práticas culturais da sociedade em que estão inseridos. Assim, segundo Brandão (2002, p.26),

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais (...).

Essa e outras contribuições sobre uma educação em caráter plural estão ancoradas em um movimento maior, o do pensamento pós-abissal, uma ação de vários teóricos e pensadores contemporâneos que, oriundos de variados ramos do conhecimento humano, tentam criar mecanismos e olhares analíticos que privilegiem uma ampla variedade de posicionamentos epistemológicos, sendo a ciência moderna apenas um deles, não o único nem o mais privilegiado.

Esse movimento busca, em linhas gerais, concretizar uma ação política que se oponha ao pensamento abissal levado à cabo pela ciência moderna nos últimos cinco séculos. Esse pensamento abissal seria responsável pela supervalorização dos saberes científicos e pela consequente desvalorização e redução ao plano da inexistência de outros conhecimentos que não sejam os pautados nessa forma epistemológica de ver o mundo.

Até mesmo o que se classifica como o Outro, segundo Santos (2010), é determinado por esse conhecimento abissal, tanto o Outro como conhecimento (na perspectiva de que não se encaixa no padrão moderno aceite de conhecimento científico) quanto o Outro como sujeito de direitos (a pessoa humana que teria ou não direito a ter acesso a garantias legais de proteção e existência).

Ao propormos que os terreiros de candomblé são espaços onde se produzem conhecimentos, valores e práticas educativas reais e válidas, estamos nos opondo a essa vertente abissal. Ou seja, estamos propondo uma análise que se inscreve em uma linha de pensamento pós-abissal, que, longe de ser delimitadora e excludente, pressupõe que seja valorizada uma gama de saberes e valores que vão muito além do que a ciência moderna é capaz de comportar em sua epistemologia excludente.

Esse movimento pós abissal, segundo Santos (2010), seria baseado no princípio da igualdade (não há conhecimentos melhores do que os outros) e no princípio do reconhecimento da diferença (nenhum conhecimento é o padrão, já que todos possuem suas próprias epistemologias).

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A forma de se enxergar essas práticas educativas dará o tom das pesquisas que dela resultarem. O que proponho aqui é que se enxergue, ao exemplo do que é possível ver nas práticas desenvolvidas por Mãe Rita, não muros, mas sim pontes que interligam os saberes envolvidos nessas práticas. Por isso, traz-se aqui a noção de ecologia de saberes traçada por Boaventura Santos (2006), que se opõe ao que ele chama de “monocultura da ciência moderna”, ou seja, a prioridade a um único tipo de conhecimento. Para o autor:

É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia.[...] A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento” (SANTOS, 2006,p.53, grifo nosso).

Cultura também aparece como um ponto forte na pesquisa atrelado à educação,

portanto um processo complexo, imbrincado, múltiplo que, segundo essa perspectiva, pode ser analisado à luz do que nos propõe Clifford Geertz. Nesse ideal de cultura como algo múltiplo, Clifford Geertz (1973) a define como “uma ‘teia de significados’ tecida pelo próprio homem e onde ele se acha amarrado” (op.cit., p.15). Assim, o pesquisador deverá levar em consideração ao analisar os fenômenos educativos todo um conjunto de relações sociais no qual os sujeitos estão inseridos. Assim, uma análise que privilegie apenas um aspecto da vida social deste sujeito estará, forçosamente, sendo superficial ou mesmo enganosa, o que nos remete à importância de se levar em conta os aspectos culturais a partir não só dos chamados documentos oficiais, mas de todo elemento que traga consigo informações sobre as relações socioeducativas em questão, tais como os registros sonoros, visuais e os relatos de experiências.

Se entendermos educação como uma construção social, a veremos como eminentemente coletiva. Desse modo, os saberes que são gestados e perpetuados em uma sociedade são, em última análise, frutos da memória que os indivíduos têm acerca das interações sociais que vivenciaram ao longo da vida entre as pessoas com as quais conviveu e aprendeu. É a força do que Maurice Halbwachs chama de “Memória Coletiva”, ou seja, a ideia de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. Assim, o indivíduo não se constrói sozinho, já que a origem de várias ideias, reflexões, sentimentos e paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Assim, segundo Halbwachs (2004, p. 55),

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A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere- se, portanto, a ‘um ponto de vista sobre a memória coletiva’. Olhar este, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios.

Trilhando esse caminho em direção ao entendimento de que há uma enorme variedade de saberes no mundo, e que estes estão ligados à cultura que os gestou, chegamos à noção de

saberes culturais. Elenca-se aqui a compreensão apresentada por Maria Betânia Albuquerque

(2015), em que caracteriza essa terminologia em contraponto a palavra conhecimento:

Necessário, portanto, admitir, que há certa redundância em falar de saberes

culturais, pois o saber não é uma entidade metafísica que paira acima da cultura,

dos homens e da história. Assim, a expressão saberes culturais, a despeito da redundância que pode encerrar - posto que todo saber é cultural - é utilizada como contraponto a uma perspectiva exclusivamente cognitiva, científica, erudita, formal ou escolar que a palavra conhecimento pode sugerir (ALBUQUERQUE, 2015, p.3, grifo da autora).

Logo, nos colocamos nesse posicionamento que pensa saberes culturais a partir da noção de que tudo o que é produzido pelo ser humano é fruto de suas experiências, e estas são transmitidas entre as pessoas que integram uma determinada comunidade.

Tanto a natureza epistemológica quanto as formas de transmissão desses saberes nas casas de Candomblé são peculiares a esses espaços. Portanto, um estudo que pressuponha entender as peculiaridades epistemológicas desses saberes e as práticas educativas pelas quais são transmitidos pode optar por abordagens que permitam contemplar essas questões onde a subjetividade está presente em grande escala, inclusive no que diz respeito às metodologias que permitam enxergar essas características.

Abordagem teórico-metodológica e procedimentos de pesquisa

Para desenvolver um estudo que se relacione aos pressupostos citados nos tópicos acima, aponta-se como base metodológica a fenomenologia.

Como nos aponta Masini, (1991, p. 61) “este enfoque de pesquisa caracteriza-se pela ênfase ao ‘mundo da vida cotidiana’, pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto pela familiaridade (pelos usos, hábitos e linguagem do senso comum.” Portanto, adequa-se a esta pesquisa visto que ela se propõe a analisar práticas educativas que são comuns, cotidianas a um grupo específico, os membros do Ilê Asé Iyá Ogunté a partir das ações direcionadas por Mãe Rita.

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O método fenomenológico não se limita a uma descrição passiva. É simultaneamente tarefa de interpretação (tarefa da Hermenêutica) que consiste em pôr a descoberto os sentidos menos aparentes, os que o fenômeno tem de mais fundamental. [...]

A Pesquisa Fenomenológica, portanto, parte da compreensão de nosso viver – não de definições ou conceitos – da compreensão que orienta a atenção para aquilo que se vai investigar. Ao percebermos novas características do fenômeno, ou ao encontrarmos no outro interpretações, ou compreensões diferentes, surge para nós uma nova interpretação que levará a outra compreensão (MASINI, 1991, p.63).

Corroborando com essa escolha metodológica, usamos como ferramenta de pesquisa a entrevista narrativa, que segundo Jovchelovitvh & Bauer (2002, p.93), é um método de geração de dados que “visa reconstruir acontecimentos sociais a partir da perspectiva dos informantes, tão diretamente quanto possível”.

Inclusive, esta técnica adequa-se a perspectiva de uma pesquisa de História de Vida, com entrevistas com temática abrangente com a Iyalorixá Mãe Rita em um primeiro momento e, a partir das informações levantadas, novas entrevistas com ela própria e com outros possíveis sujeitos-chave dentro do terreiro já tendo em vista entrevistas com temáticas mais direcionadas, ligadas à Narrativa Episódica, atreladas à constante observação. § LONGO

Sobre a entrevista narrativa em relação as entrevistas semi-estruturadas, nos informa Flick (2010, p.164):

Aqui, o ponto de partida metodológico para a propagação do uso das narrativas é um ceticismo básico quanto até que ponto possa ser possível a obtenção de experiências subjetivas no esquema de perguntas e respostas das entrevistas tradicionais, mesmo que este seja controlado de uma forma flexível.

Assim, a partir dos dados coletados por meio dessas narrativas, este artigo aponta a possibilidade de se mapear quais os saberes que fazem parte da trajetória de vida de Mãe Rita, e a partir daí analisar as práticas educativas conduzidas: o que ensina, como ensina e para quem ensina.

Considerações finais

O que se delineia nesse artigo é um olhar: busca-se mostrar que é possível fazer um estudo acadêmico tendo em vista valores e pressupostos que não compartimentalizem o conhecimento humano entre “o que é adequado e o que não é” ou o que é científico ou não.

Entendemos que as ações humanas (em especial os processos educativos) são múltiplas, oriundas das múltiplas epistemologias que lhes dão origem, não havendo

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necessidade de juízos de valor entre elas, pois assim como as comunidades humanas, os saberes que lhes são comuns são também diversos, nem melhores nem piores entre si.

O esforço em compreender que não existe um único padrão educacional nem uma única prática educativa possível conduzirá, a meu ver, a uma série de mudanças na forma de os seres humanos se relacionarem entre si, já que quando alguém se torna capaz de reconhecer o diverso como uma possibilidade concreta, abrem-se caminhos para que se reconheça o outro como um equivalente, não um igual em essência, mas também não um diferente em existência.

Apenas o entendimento de que o diferente existe não basta: é necessário que se vá além disso, indo criar a compreensão de que esse diferente precisa dos meios necessários para existir. Em termos educativos, a escola não pode mais ser vista nos dias de hoje como o único espaço em que se dá a prática educativa. Até porque não existe apenas uma. Elas são muitas.

Há que se reconhecer esses Outros Sujeitos como Sujeitos Pedagógicos, pois se reconhece que estes sujeitos “são sujeitos de outras experiências sociais e de outras concepções, epistemologias e de outras práticas de emancipação”. (ARROYO, 2012,p, 28).

Quanto antes tomarmos consciência de que elas existem, são concretas e possíveis de ser executadas, abriremos mais rapidamente o caminho para que se criem mecanismos de valorização e condições de execução dessas práticas, independente do ambiente em que ocorram.

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Referências

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