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Um estudo introdutório da noção de redenção (Erlösung) na obra O nascimento da tragédia

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Um estudo introdutório da noção de redenção (Erlösung) na obra

O nascimento da tragédia

Rafael Vieira Menezes Carneiro1 Resumo:

Friedrich Nietzsche, em 1872, publica o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia. Sua principal intenção é excluir a carga moralizante da arte, demonstrada, principalmente, nas leituras renascentistas da Poética de Aristóteles. Nietzsche concebe a arte como a união de dois impulsos, o apolíneo, que simboliza o mundo onírico, e o dionisíaco, que representa a embriaguez. Para o filósofo, só na tragédia grega pode ser encontrada a união desses dois impulsos, proporcionando, assim, a redenção (Erlösung) do homem grego que culminará na

descarga (Entladung) de suas emoções – a katharsis nietzscheana. Deste modo, pretendemos

nesse trabalho explicitar as noções de apolíneo e dionisíaco, assim como explorar o termo

redenção (Erlösung) contrapondo-o a noção de katharsis aristotélica.

Palavras-chave: Redenção (Erlösung). Katharsis. Nietzsche. Aristóteles. Abstract:

Friedrich Nietzche, in 1872, publishes his first book, The Born of Tragedy. His main intention is exclud the load moralizing of art, shows, mainly, in the Renaissance readings of Aristotle's Poetics. Nietzsche conceives the art like the union of two impulses, the apollonian, that symbolizes the "dream" world, and the dionysian, that represents drunkenness. For the philosopher, only in Greek tragedy could be found the union of these two impulses, providing, thus, the redemption (Erlösung) of the greek man that will culminat in the discharge (Entladung) of their emotions – the nietzschean katharsis. Thus, we inted, in this work, explicit the Apollonian and Dionysian notions, as explore the redemption term (Erlösung), opposing the notion of Aristotelian katharsis.

Keywords: Redemption (Erlösung). Katharsis. Nietzsche. Aristotle.

* * *

Na Alemanha, nos fins dos séculos XVIII e XIX, vários filósofos e dramaturgos buscavam nos gregos novas maneiras de pensar a vida como um todo. Entre esses pensadores Friedrich Nietzsche possui um grande destaque.

Ao publicar, em 1872, o seu primeiro livro, O Nascimento da tragédia2, Nietzsche expõe uma nova concepção de arte, que gerou grandes debates entre os

1

Graduando em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Orientador: Prof. Dr. Alcides Héctor Rodriguez Benoit. Email: rafaelvieiramenezes@gmail.com.

2 NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia; tradução de Jacó Guinsburg – São Paulo: Cia da Letras,

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estudiosos desde a sua época. Sua principal intenção é excluir a carga moralizante da arte, demonstrada principalmente nas leituras da Poética3 de Aristóteles, a qual era considerada um manual de como se fazer arte.

Tendo esta discussão como base, pretendemos aqui explicitar como Nietzsche entende os símbolos de Apolo e Dionísio ao aplicá-los na sua definição de arte, e, por meio disso, a relação que tal concepção possui com a vida. Assim, mostraremos a relação de dependência entre a arte e a vida, e a função salvadora que aquela desempenha sobre esta. Essa característica é expressa pelo termo redenção (Erlösung), o qual tentaremos elucidar, de maneira introdutória.

Nietzsche representa, por meio das figuras dos deuses gregos Apolo e Dionísio, a sua concepção do nascimento da tragédia. É na união desses dois deuses, os quais se contrapõem e estão sempre em conflito, seja no que se refere às origens ou aos objetivos, que o filósofo encontra o pressuposto que embasa a sua teoria da arte. Eles representam os impulsos ou “poderes artísticos que, sem a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza” 4. Deste modo, a arte pode ser entendida como imitação da natureza.

A arte apolínea é caracterizada pelas artes plásticas, amparada nas formas, que representa o universo dos sonhos, no qual podem ser vistas as mais belas formas divinas. É nesse mundo onde há a produção de uma parcela da poesia, é no sonho que se pode encontrar a inspiração do poeta e de lá vem a interpretação do mundo que ele transpõe à vida por meio da poesia. Dessa maneira, o sonho se faz necessário para a própria produção artística.

Segundo o filósofo alemão, no mundo onírico tudo pode ser compreendido, nada existe por acaso, tudo possui uma utilidade e, na sua mais elevada existência, há a sensação da aparência, na qual o homem se exercita e da qual necessita para a própria vida. Essa satisfação pela aparência é provada pelo filósofo por meio do prazer

3 ARISTÓTELES, Poética. In: Coleção Os Pensadores; tradução de Eudoro de Souza – São Paulo: Abril

Cultural, 1973. Concordamos aqui com Ernani Chaves in Ética e Estética em Nietzsche: crítica da moral da compaixão como crítica aos efeitos catárticos da arte In: Revista Ethica, v. 11, n. 1 e 2, 2004. Essa concepção é evidente também nas preleções de Nietzsche intituladas Introdução à tragédia de Sófocles; apresentação à edição brasileira, tradução e notas de Ernani Chaves – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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provocado pelos sonhos, por exemplo: quando uma pessoa acorda de um sonho e volta a dormir com a intenção de reviver ou continuar a experiência daquele sonho5.

Para Nietzsche, “o nosso ser mais íntimo [...] colhe no sonho uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade” 6. Notamos, assim, que o homem possui uma suprema necessidade pela aparência, pela bela forma, pela ilusão, o que nos mostra, o vínculo entre a existência humana e a arte, visto a necessidade do sonho para a realização da poesia e também para a própria existência do homem. O reinado de Apolo está, portanto, na bela aparência do mundo da fantasia.

O filósofo, então, caracteriza Apolo como a imagem divina do principium individuationis (princípio de individuação), conceito schopenhauriano que expressa

[...] o estado da “situação humana”, a saber, a finitude, a incontornável solidão e o dilaceramento da natureza em indivíduos. Ocorre que pela própria especificidade humana – ser racional – torna-se possível ao homem ascender ao estado de consciência teórica desta situação, forjando para si uma crença inabalável na vida, não obstante a constatação da finitude e da solidão [...]7

De acordo com esta passagem, o principium individuationis é o estado de ilusão, no qual o homem acredita que pode compreender o mundo: a vida pode ser vivida plenamente mesmo em um mundo cheio de tormentos, pois não há alternativa senão crer na vida e vivê-la.

Por sua vez, “no outro lado da moeda”, nas trevas, em contraposição à luz – o sol apolíneo –, habita o dionisíaco, que é análogo, segundo Nietzsche, à embriaguez, na qual a razão não é mais suficiente. É nesse estado em que há a ruptura do principium individuationis, declarando o fim da fragmentação da natureza em indivíduos.

O estado dionisíaco, para Nietzsche, assemelha-se, assim, aos impulsos primaveris como as festas de São João e São Guido, originadas na Ásia Menor e nas sáceas orgiásticas8. São Guido foi homenageado, com o emprego de seu nome a essa festa, por ter expulsado o “demônio” de uma criança que tinha uma doença. 9

5 Ibidem, p. 36. Evidentemente, sonho aqui é entendido como uma contraposição à realidade. 6Ibidem, p. 26.

7 WEBER, J.F. A Teoria Nietzscheana da Tragédia. In: Revista Trans/Form/Ação, n. 30 v. 1, 2007, p.

211.

8

NIETZSCHE, F. NT, p. 27. Na Babilônia, as sáceas designavam “[...] uma festa, com duração de cinco

dias, marcada pela licença sexual, pela inversão dos papéis sexuais entre servos e senhores e pela coroação, como no Carnaval romano, de um escravo como rei, o qual era sacrificado no fim da celebração

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Vemos aqui, como expressão do dionisíaco, a patologia, o sofrimento, o êxtase a partir de uma moléstia. O dionisíaco, como uma moléstia que se apropria do corpo, é encarado como demônio, sendo, então, a própria entrega de si ao inesperado, ao involuntário, a própria negação do ser pensante e afirmação do ser instintivo.

O dionisíaco é a força que une os indivíduos, e estes se sentem como um, expressando, dessa forma, a própria virilidade da natureza. A natureza passa a se apresentar com toda a sua imensidão e, livre das amarras sociais, os afetos se modificam, fazendo com que as dores despertem prazer e o pavor desperte alegria.

Portando-se desse modo, o indivíduo, no estado dionisíaco, não possui obrigações perante a sociedade, mas sim licença para transparecer todos os seus desejos. Nesse momento não importa como ele se relaciona, pois os homens são apenas homens e não há qualquer tipo de barreira social, visto que todos são iguais:

[...] O carro de Dionísio está coberto de flores e grinaldas [...] Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações, que a arbitrariedade ou a ‘moda impundente’ estabeleceram entre os homens [...] 10

Portanto, notamos que o homem no estado dionisíaco, por meio do êxtase e do entusiasmo, libera-se de certos condicionamentos e interditos de ordem ética, política e social.

Percebemos, assim, que há uma relação para Nietzsche entre a arte e a religião, visto que ele simboliza nos deuses gregos os impulsos naturais responsáveis pela criação artística. Deste modo, é necessário entender a própria relação que os gregos têm com esses deuses. O filósofo mostra, então, que na religião grega não é encontrada um espírito de solidariedade ou um mundo de elevação moral, assim como inexiste a crença em outro mundo possível após a morte. Vemos, dessa maneira, a oposição existente entre o mundo cristão e o mundo grego.

[...]” (GUINSBURG, J. In: O Nascimento da tragédia; nota 24 – São Paulo: Companhia da Letras, 2007, p. 144).

9 “[...] Dança de São Guido tornou-se nome de uma doença nervosa, reumatismo articular nervoso,

caracterizada por convulsão muscular e movimentos desordenados e involuntários, que em geral acomete crianças entre os seis e os sete anos e entre os 11 e os 15 anos, especialmente as meninas, devido ao cansaço ou a fadiga [...]” (Chaves, E. In: Introdução à Tragédia de Sófocles; nota 22 - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 46-47).

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A vida para os gregos era vista como indigna de ser vivida, o que é mostrado na sabedoria popular expressa pelo sábio Sileno, que disse para o rei Midas que “o melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser”11, ao ser interrogado sobre o que seria preferível para o homem dentre as melhores coisas.

E, para tornar a vida possível de ser vivida, os gregos criaram os deuses olímpicos, que estão representados em Apolo – a beleza, a mesura –, o qual transfigura a vida e a torna suportável ao homem grego frente àquele mundo de sofrimento – o terror dionisíaco – mostrado por Sileno, um dos servidores de Dionísio.

Portanto, Nietzsche nos mostra que os gregos entendem a vida e, consequentemente, a arte constituídas de dois mundos: o mundo real, cheio de tormentos – o dionisíaco – e o criado, o da aparência – o apolíneo.

É na tragédia grega que Nietzsche encontra o esplendor da arte, pois nela estão presentes os dois impulsos artísticos da natureza – a saber, o apolíneo e o dionisíaco –, de modo que há o respeito mútuo de seus limites – respectivamente, da aparência e do terror. Assim, diferentemente de como acontecia no mundo asiático e oriental, onde o estado dionisíaco operava sozinho, na tragédia ele necessita do apolíneo, o responsável pela prudência e pela beleza. Desse modo, só nessa união, “nas orgias dionisíacas dos gregos [...] [se reconhece] o significado das festas de redenção universal e dos dias de transfiguração” 12.

Notamos, assim, que a tragédia possui um objetivo ao representar a vida: ela se apresenta como uma espécie de salvação do homem grego daquele mundo cheio de tormentos, como mostra o termo redenção (Erlösung), que parece, por sua vez, ter uma relação com o termo katharsis, descrito por Aristóteles no famoso capítulo VI de sua Poética, obra na qual ele define a tragédia:

[...] É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamento distribuídas pelas diversas partes [do drama], imitação [que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções” [...]13

11 Ibidem, 33. Grifo do autor. 12

Ibidem, 31. Grifo nosso. As tragédias gregas eram representadas em festas chamadas de Dionisíacas – festas em honra a Dionísio. Cf. BENVENHO, C. M. O Pensamento Trágico no Jovem Nietzsche; dissertação de mestrado – Toledo, PR: s.n., 2008, p. 16-19.

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Ao voltarmos para a Poética14, notamos que a katharsis é um dos pontos centrais do texto, sendo necesssário, para melhor elucidação do trecho, o conhecimento da construção argumentativa do estagirita15.

Aristóteles inicia a obra com a tese de que todos os gêneros de poesia são imitações, e essas diferem entre si pelo meio com que imitam, pelo objeto que imitam e pelo modo que imitam. O meio é caracterizado pelo ritmo, a palavra e a música; o objeto, pelas ações de caráter superior ou inferior praticadas por homens melhores, piores ou iguais a nós; e o modo de imitação pode ser o narrativo ou o dramático.

Adiante, no texto da Poética, Aristóteles descreve que as causas da imitação estão na característica peculiar do homem em relação aos outros animais: o homem é, por natureza, imitador; ele aprende e compraz a partir da imitação. Isso é demonstrado pelo fato do homem sentir prazer tanto das imitações de animais que o aterrorizam, quanto da imitação de algo, que, visto diretamente, causaria desconfortos, como cadáveres.

Pressupondo isto, o estagirita utilizará os conceitos já trabalhados - a saber, objeto, meio e modo - para definir a tragédia como a imitação de uma ação nobre, a qual (i) deve ser completa e de certa extensão – se refere ao objeto –, (ii) deve ser realizada em discurso ornamentado de modo diverso para cada uma de suas partes – se refere ao meio –, e (iii) deve ser, necessariamente, dramatizado – se refere ao modo –, suscitando, assim, o terror e a piedade, que terão como fim a purificação ou purgação (katharsis) dessas emoções no espectador.

Segundo Rey Puente, o termo katharsis no trecho supracitado é

[...] formado pelo tema verbal de καθαιρω mais o sufixo –ωσις, que indica normalmente uma ação abstrata. O resultado desse processo, por sua vez, é expresso pelo adjetivo καθαρος que significa limpo, puro, purgado ou depurado, e pode ser dito de uma coisa, de um indivíduo ou de um discurso [...]16

14 Seguimos aqui a leitura de Fernando Rey Puente in A Katharsis em Platão e Aristóteles In Rodrigo

Duarte. (Org.). Katharsis. Reflexos de um conceito estético. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002, p. 10-27.

15 Aristóteles nasceu na cidade de Estagira, na Macedônia. 16

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Desse modo, esse termo está sujeito a várias interpretações, devido à maneira que Aristóteles o utiliza na sua Poética para descrever o fim da arte, que são:

[...] 1) moralística ou didática que via na tragédia um modo de aperfeiçoamento moral; [...] 2) que buscava o amadurecimento emocional por meio da tragédia, ou seja, o fortalecimento do caráter; [...] 3) a que buscava a moderação por meio da tragédia, ou seja, seus defensores relacionavam a purificação com a busca da mediania, tal como esta aparece nas reflexões éticas de Aristóteles; 4) [...] a purgativa ou patológica, que acreditava que a tragédia deveria expurgar as emoções dos espectadores; [...] 5) a intelectiva que interpreta a tragédia como propiciadora de uma iluminação intelectual; [...] 6) a dramática ou estrutural que supunha o processo de purificação ocorrer no interior do drama e não no espectador [...]17.

Percebemos que, assim como katharsis, o termo redenção (Erlösung) faz referência ao remédio, a uma salvação, podendo, ambos, ser entendidos como termos correlatos.

Acreditamos que tal relação é proposital, pois na primeira obra de Nietzsche, O nascimento da tragédia, notamos que entre os pensadores criticados, Aristóteles é um deles, e que apesar de ser nomeado poucas vezes durante a obra, nos parece que um dos pontos centrais da mesma é o ataque ao estagirita. Isso é expresso explicitamente por Nietzsche em Ecce homo18, na seção dedicada ao Nascimento da tragédia:

[...] isto [o dionisíaco] entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor da compaixão, não para purificar-se [reinigen] de um perigoso afeto mediante uma descarga – assim o entendeu mal Aristóteles [...] 19

Assim notamos que a própria concepção de katharsis expressa por Nietzsche como descarga (Entladung), se contrapõe ao termo purificação (Reinigung).

A noção da katharsis entendida como purificação possui valor moralista, pois como o homem aprende por imitação, o drama ensinará que ele também está sujeito ao mesmo fim do personagem na tragédia, caso cometa o mesmo erro. O poeta estipula

17 Ibidem. 18

Nietzsche, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é; tradução, notas e posfácio de Paulo César Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. O vocábulo Reinigung é a substantivação do verbo

reinigen.

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então as regras morais, a conduta da cidade, ou seja, por meio da arte, ele educa o público.

Não aprofundaremos aqui na concepção nietzscheana de descarga (Entladung), nos deteremos nesse momento em uma análise do termo redenção (Erlösung) com intento de melhor compreender a amplitude da crítica à moral empreendida por Nietzsche.

O vocábulo Erlösung é formado pelo tema verbal de lösen, o prefixo er- e o sufixo -ung. O verbo Lösen, entre outros significados, indica resolver, dissolver, soltar. Quando substantivado pelo sufixo –ung dá a noção de solução, desenlace, desfecho. Deste modo, ao se ligar ao prefixo er- (que em composição com outras palavras tem o sentido de alcançar um novo estado), dá a ideia de alcançar a solução ou resolução, sendo entendido, deste modo, como redenção ou salvação.

Deste modo, a concepção de arte nietzscheana tem como intuito alcançar a salvação, resolver os problemas dessa vida cheia de tormentos, que é proporcionada pela união dos impulsos de Apolo e Dionísio, como diz Nietzsche:

“[...] precisaremos lembrar-nos da enorme força da tragédia a excitar, purificar e descarregar a vida do povo; cujo valor supremo pressentiremos apenas se, tal como entre os gregos, ela se nos apresentar como suma de todas as potências curativas profiláticas, como a mediadora imperante entre as qualidades mais fortes e as mais fatídicas do povo [...]”20

Não podemos esquecer-nos de notar que Nietzsche era filólogo e possuía uma estreita relação com as questões concernentes à linguagem, isso é notado em um dos seus primeiros cursos, como professor na Universidade da Basiléia, intitulado A origem da linguagem. Segundo Marton estas preleções constituirão as bases da crítica nietzscheana à linguagem, e consequentemente à noção de verdade21.

Considerando tal fato, ao ler o prefácio de Nietzsche, à segunda edição da obra O nascimento da tragédia, a sua Tentativa de Autocrítica, notamos que o termo redenção (Erlösung) é utilizado como uma crítica à moral cristã:

20 NIETZSCHE, F. NT, p. 122.

21 Cf. MARTON, S. Novas Liras para novas canções: Reflexões sobre a linguagem em Nietzsche In:

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[...] Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro [O

nascimento da tragédia] problemático, o meu instinto, como um

instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística,

anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das

palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca.22

Notamos nesse trecho como o filólogo expõe, em sua primeira obra, a crítica à moral, a qual é realizada com um ataque voraz ao cristianismo, por meio da imagem do deus Dionísio. Uma das formas dessa crítica é a utilização do termo redenção (Erlösung).

Tal vocábulo está presente na Bíblia alemã23, nos Salmos 130, em uma oração que pede a ajuda de Deus para que salve o povo de Israel de todos os seus pecados. Notamos mais uma vez que o termo evidencia a solução do povo, o acesso a um novo estado no qual não há mais desesperos, não há pecados, há a solução desses problemas:

1 Das profundezas clamo a ti, Iahweh: 2 Senhor, ouve o meu grito!

Que teus ouvidos estejam atentos ao meu pedido de graça! [...] 7aguarde Israel a Iahweh, pois com Iahweh está o amor,

e redenção [Erlösung] em abundância: 8 ele vai resgatar [erlösen] Israel

de suas iniqüidades todas.24

É importante lembrar que a redenção (Erlösung), de acordo com a concepção nietzscheana, é causada quando há o rompimento do principium indivituationis, ou seja, quando finda a fragmentação da natureza em indivíduos, no momento em que Dionísio tira o indivíduo do mundo apolíneo da ilusão. Fazendo uma analogia entre a Sagrada Escritura e o Nascimento da tragédia, podemos entender que nesta obra o indivíduo é salvo do mundo da ilusão apolínea por Dionísio, enquanto que naquela o responsável pela salvação do indivíduo do mundo do pecado é Deus. Notamos, portanto, que há uma

22

NIETZSCHE, F. NT, Prefácio da segunda edição, p. 18. Grifo nosso.

23 RITTER, J. Historiches Wörterbuch der Philosophie; Band 2: D – F; Gesamtherstellung: Schwabe &

Co. Basel, 1972, p. 717.

24

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revaloração da redenção (Erlösung) por Nietzsche, pois, se por um lado, a salvação cristã é a fuga do mundo de martírios ou pecados, por outro lado, a salvação dionisíaca leva o indivíduo ao terror do mundo.

Salientamos ainda que, segundo Gagnebin, o termo Erlösung remete

[...] ao radical grego lös (no grego antigo luein, que desata, livra ou desatar como faz o deus Dionísio, o lusos, que desata os laços de ordem sexual ou familiar), indica a dissolução, o desfecho, a resolução ou solução de um problema [...]25

Assim, tal termo também remete ao próprio Dionísio, só ele pode desatar os laços que prendem as pessoas ao mundo da ilusão e salvá-las. Portanto, acreditamos que a utilização do termo redenção (Erlösung) é uma clara crítica nietzscheana à moral representada pelo cristianismo e as leituras renascentistas da Poética.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus Editora, 2000.

ARISTÓTELES, Poética In Coleção Os Pensadores; tradução de Eudoro de Souza – São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BENVENHO, C. M. O Pensamento Trágico no Jovem Nietzsche; dissertação de mestrado – Toledo, PR: s.n., 2008.

BETTERIDGE, H. T. et. al. Cossell’s German & English Dicitionary; London: Cassel & Company Ltda, 1972.

CHAVES, E. Ética e Estética em Nietzsche: crítica da moral da compaixão como crítica aos efeitos catárticos da arte. In: Revista Ethica, v. 11, n. 1 e 2, 2004.

Die Lutherbibel In: http://www.bibel-online.net/buch/19.psalmen/130.html#130,1. Visitado em 15/05/2010;

DUARTE, R. (Org.), Katharsis. Reflexos de um conceito estético. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.

GAGNEBIN, J.M. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. In: Revista Estudos Avançados, n.13 v. 37, 1999.

MARTON, S. Novas Liras para novas canções: Reflexões sobre a linguagem em Nietzsche In: Revista IDE, n. 30 v. 44, 2007.

NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus. In: Sämtiliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Org.). Berlim: De Gruyter, 1980. 15v.

______. Ecce homo: wie man wird, was man ist. In: Sämtiliche Werke. Kritische

Studienausgabe (KSA). Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Org.). Berlim: De Gruyter, 1980. 15v.

25 GAGNEBIN, Jeanne-Marie, Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. In: Revista

(11)

______. Ecce homo: como alguém se torna o que é; tradução, notas e posfácio de Paulo César Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Introdução à Tragédia de Sófocles; apresentação à edição brasileira, tradução e notas de Ernani Chaves – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

______. O Nascimento da Tragédia; tradução, notas e posfácio de Jacó Guinsburg – São Paulo: Cia da Letras, 2007.

RITTER, J. Historiches Wörterbuch der Philosophie; Gesamtherstellung: Schwabe & Co. Basel, 1972.

WEBER, J. F. A Teoria Nietzscheana da Tragédia. In: Revista Trans/Form/Ação n. 30 v. 1, 2007.

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