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A instituição de diferenças de gênero em dois dicionários do final do séc. XVIII Kristina Balykova

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Academic year: 2021

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Kristina Balykova∗ O objetivo deste trabalho é confrontar dois textos, produzidos no final do século XVIII, que definem as noções de “homem” e “mulher”. Estes são verbetes do Diccionario da lingua portugueza de Antonio de Moraes e Silva (1789) e Dicionário da Academia Russa (1790). Tomando como objeto as entradas homem e sua correspondência em russo muzhtchina, por um lado, e mulher e zhénchina, por outro, verifico que os dicionários constroem sentidos diferentes para termos que, a princípio, parecem se traduzir mutuamente, parecem ter o mesmo referente material. Além disso, ao analisar as relações semânticas (e a comparação de sua ausência) estabelecidas dentro de cada dicionário entre os termos da mesma língua homem e mulher, muzhtchina e zhénchina, fica evidente que o conceito de “mulher” não se constitui como contraparte do conceito de “homem”, que estas duas noções recebem definições essencialmente diferentes.

Entendendo o dicionário como um discurso, quero estudar “as diferentes maneiras pelas quais o discurso cumpre uma função dentro de um sistema estratégico onde o poder está implicado e pelo qual o poder funciona.” (FOUCAULT apud CASTRO, 2009: 120). Desta maneira, não abordo os dicionários como fruto da erudição e da força criadora do(s) seu(s) autor(es) nem como uma contribuição importante para o conhecimento da época. Abordo-os como discursos criados por um regime de verdade que lhes impõe um “jogo negativo de recorte e de rarefação” (FOUCAULT, 2009: 52), e criadores, com e por este poder que os atravessa, das identidades que parecem apenas “descrever”. Atentar para este caráter generativo do poder contribui para entender a função normativa da qual estão revestidos os dicionários na sociedade ocidental.

Gostaria de pautar esta primeira reflexão no fato de um dicionário constituir uma codificação do léxico de dada língua. Desta maneira, a organização de um dicionário se dá também a partir das relações entre as unidades lexicais formadoras do sistema. De acordo com Saussure, os conceitos linguísticos são “diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema” (SAUSSURE, 1978: 162, tradução minha). Sendo assim, não deve-se tomar as definições

Cursa Letras Português-Russo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do GP/CNPq Campo de

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como enunciados completos e fechados, mas observar sua relação com as definições de outros termos do mesmo campo semântico, considerando o que e como é dito em umas e omitido em outras. É preciso traçar esta rede intrincada de perífrases, repetições e omissões, verificando como esta assim elabora os sentidos.

Conforme se verá mais adiante, não há uma simetria na maneira como as palavras homem e mulher, por um lado, e muzhtchina e zhénchina, por outro, se relacionam com outras unidades lexicais dos seus sistemas. Este fato em si requer que não tratemos os termos do português e os do russo como tendo significados iguais. Porém, o mais importante desta questão é observar como as relações lexicais ganham corpo, isto é, são construídas através dos verbetes. Assim, a organização dos vocábulos em um dicionário não se dá como algo externo ao seu conteúdo, mas contribui para a elaboração dos sentidos.

A palavra russa muzhtchina pode ser traduzida para o português como homem no sentido de “indivíduo do sexo masculino”, mas não no sentido de “ser humano”. Este último significado é vinculado, na língua russa, ao substantivo tchelovék, que também pode ser traduzido como pessoa. Podemos representar essas relações da seguinte maneira:

muzhtchina tchelovek1

Como é de esperar, no Dicionário da Academia Russa, os termos muzhtchina e tchelovék constituem duas entradas diferentes. No entanto, entre eles há uma relação importante. A principal acepção dada para tchelovék é “o mais supremo de todos os animais, dotado de capacidade de pensar e raciocinar”2, (SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI, 1794: 689) ao passo que muzhtchina é definido como “pessoa do sexo masculino”3 (SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI, 1793: 324), sendo que a palavra russa utilizada para “pessoa”,

1 Estas não são as únicas acepções de muzhtchina e tchelovek, mas as que interessam para a análise.

2 “ЧЕЛОВѣКЪ… Превозходнѣйшее изъ всѣхъ животныхъ, одаренное способностїю думать и разсуждать.” (tradução minha). 3 “Мужчина… Человѣкъ мужескаго пола.” (tradução minha). “indivíduo do sexo masculino” “ser humano” “pessoa”

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nesta frase, é exatamente tchelovék. Deste modo, muzhtchina é perifraseado por meio de tchelovék que, por sua vez, é definido através do seu lugar peculiar no mundo animal.

Na língua portuguesa, as relações entre os conceitos analisados são diferentes. Homem significa tanto “indivíduo do sexo masculino” quanto “ser humano”. No Diccionario da lingua portugueza de Antonio de Moraes e Silva, homem é definido como “individuo da especie humana, dotado de corpo organico, e alma racional immortal, capaz de aperfeiçoar as suas faculdades por estudo, e observação, ou ensino” (SILVA, 1789: Vol. I, 683). Aquilo que, em um primeiro momento, parece uma definição incompleta, tratando de homem enquanto só “ser humano” e não levando em conta o significado “indivíduo do sexo masculino”, deve ser entendido de outra maneira. A diferenciação dos dois significados, constante nos dicionários modernos, não se apresenta como importante no final do século XVIII. Não se quer dizer com isso que a palavra homem não fosse, naquela época, polissêmica, mas sim que esta polissemia, a distinção entre os sentidos “ser humano” e “indivíduo do sexo masculino” era irrelevante para fins de dicionarização. Desta maneira, homem enquanto “indivíduo do sexo masculino” é inseparável de homem enquanto “ser humano” e é definido através da dicotomia material x espiritual, corpo orgânico x alma racional.

A palavra mulher se traduz para o russo moderno como zhénchina no sentido de “indivíduo do sexo feminino” e zhená no sentido de “esposa”. O Dicionário da Academia Russa, além de fornecer estas acepções, apresenta os dois termos como sinônimos. Assim, zhénchina “se chama qualquer uma que é ou foi casada”4 (SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI, 1790: 1106), ao passo que zhená é “1) o mesmo que zhénchina, mas se usa no alto estilo...2) especialmente, do sexo feminino se chama assim cada uma em relação ao marido, com quem é casada: de outra maneira, esposa”5 (SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI, 1790: 1104). Vê-se que os termos em questão não são perifraseados através de tchelóvek, como acontece no caso de muzhtchina, ou qualquer outro nome, mas sim por meio dos pronomes indefinidos “qualquer” e “cada”. Além do mais, zhénchina é caracterizada tão

4 “Женщина... Называется всякая находящаяся или бывшая въ замужествѣ.” (tradução minha).

5 “ЖЕНА...1) Тоже что Женщина, но употребляется въ высокомъ слогѣ…2) Особенно изъ женскаго полу

называется такъ каждая по отношенїю къ мужу, за коимъ въ супружествѣ находится: иначе Супруга.” (tradução minha).

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somente por seu lugar jurídico-social de esposa, aparecendo uma marca biológica, o fato de pertencimento ao sexo feminino, apenas na segunda acepção de zhená.

Percebe-se que o Dicionário da Academia Russa não define zhénchina como versão feminina de muzhtchina, não coloca os dois no mesmo plano conceitual: enquanto este é um ser biológico e racional, aquela é uma função jurídico-social.

Já no Diccionario da lingua portugueza de Antonio de Moraes e Silva, mulher é definida como “femea da especie humana” (SILVA, 1789: Vol. II, 103). Primeiramente, esta definição sobressai pelo seu laconismo em comparação com a de homem. Segundo, os núcleos dos dois enunciados são diferentes: se o homem é indivíduo da espécie humana, a mulher é femea da mesma espécie. Notemos que a mulher não é definida através do termo individuo, nem o homem através do macho. Além disso, o assinalado laconismo do verbete mulher se deve ao fato de o núcleo femea possuir apenas um modificador, a saber, da especie humana. Diferentemente, homem não é somente individuo da especie humana, mas é qualificado como dotado de corpo e alma e capaz de aperfeiçoar as suas faculdades.

Note-se que a entrada mulher apresenta uma segunda acepção separada da principal pelo sinal de parágrafo (§). De acordo com esta acepção, mulher se define como “matrona, opposto a marido” (SILVA, 1789: Vol. II, 103), ou seja, recebe o significado de “esposa”. Por sua vez, o verbete matrona é explicado como “mulher mái de familias, e honesta” (SILVA, 1789: Vol. II, 65). Desta maneira, o Diccionario elabora dois sentidos para o vocábulo mulher: um estritamente biológico e outro que conjuga os aspectos jurídico, social e moral: enquanto contrapartida do marido, a mulher precisa ser mãe e honesta.

Podemos ver que tampouco neste dicionário a definição dos conceitos “homem” e “mulher” acontece de maneira análoga.

É interessante observar como ambos os dicionários, baseando-se em relações lexicais diferentes e utilizando ferramentas enunciativas distintas, elaboram definições semelhantes para muzhtchina, de um lado, e homem, por outro. De fato, tanto um termo quanto o outro recebem definições semelhantes, nas quais se afirma 1) o pertencimento do homem ao mundo natural e 2) sua diferença crucial em relação aos outros seres vivos, a saber, racionalidade. No entanto, entre eles há também uma diferença: a característica de pertencimento ao sexo

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masculino não é pronunciada no homem, mas está explicita no verbete muzhtchina, devido à necessidade de marcar a separação deste do verbete tchelovék.

Já mulher e zhénchina se equivalem enquanto um status jurídico-social. A diferença entre as definições destes termos está no fato de o Dicionário da Academia Russa não elaborar para zhénchina nenhum outro sentido a não ser o de “esposa”, ao passo que a principal acepção do verbete mulher é biológica e em certa medida se remete ao verbete homem.

Percebe-se que as definições dos termos aparentemente correspondentes nas duas línguas tanto compartilham semelhanças quanto apresentam diferenças. Algumas dessas diferenças podem ser explicadas pelas relações lexicais das quais os termos participam, mas outras não encontram uma motivação linguística. Assim, a ausência, no verbete zhénchina, de uma acepção que tome este nome enquanto designando o ser humano do sexo feminino não se justifica pelo uso da língua, que, ao contrário, prevê tal significado.

Por outro lado, dentro da mesma língua, a diferenciação entre os nomes referentes aos seres humanos não se dá apenas através da distinção do sexo biológico. No Dicionário da Academia Russa, esta característica sequer é utilizada na construção dos verbetes muzhtchina e zhénchina que acabam não apresentando nenhuma ligação entre si. Mesmo quando a distinção do sexo biológico está presente na diferenciação, ela não se expressa em termos equivalentes. Assim mulher, enquanto representante da espécie humana, é chamada de “femea”, mas homem, em uma construção análoga, nomeia-se “individuo”. Além disso, tanto zhénchina quanto mulher têm significado de “esposa”, ao passo que as definições de muzhtchina e homem não incluem referência ao estado conjugal.

Desta maneira, vemos como as definições elaboradas nos dicionários não podem ser tomadas como descrições objetivas, pois a sua produção, como a de qualquer discurso, é “ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (FOUCAULT, 2009: 8-9), e são estes que devemos analisar em sua historicidade para entender a construção de sentido nos verbetes. Com isso, observamos como no processo de definição certas características são omitidas e outras reiteradas, certas palavras são escolhidas em detrimento de outras. Estes procedimentos seletivos não são motivados pelas restrições lexicais, e sim por

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outros tipos de restrições que determinam o que pode e o que deve ser dito em um discurso para que este produza efeitos de verdade, para que cumpra a função de “um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder” (FOUCAULT apud CASTRO, 2009: 120).

Referências

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 1978. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo

padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Volumes I e II. Lisboa, 1789.

SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI (Dicionário da Academia Russa). Volume II. São Petersburgo, 1790.

SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI (Dicionário da Academia Russa). Volume IV. São Petersburgo, 1793.

SLOVAR AKADEMII ROSSIISKOI (Dicionário da Academia Russa). Volume VI. São Petersburgo, 1794.

Referências

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