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RELIGIAO GREGA NA EPOCA CLASSICA EARCAICA

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WALTER BURKERT

RELIGIAO GREGA

NA EPOCA CLASSICA

EARCAICA

SERVIC,:O DE EDUCAC,:AO Tradufao de

M

.

].

Simoes Loureiro

(2)

0 anragonismo enrre o olfmpico e o cr6nico

e

uma polariJade cm que um nao pode exisrir sem o outro e s6 adquirc o seu sentido plcno atraves do outro. Superior e inferior, ceu e terra, constituem o universo.

Em Corinto, encontram-se lado a lado estatuas de «Zeus», de «Zeus Ct6nios» e de «Zeus o supremo», Hfpsistos135Do mesmo modo que niio ha alvorada que niio tenha sido precedida por uma noire, assim os rituais ctonicos e olfmpicos tambem se encontram sempre ligados uns aos outros. A contagem sacral do tempo comer;a com a tarde, e como o dia se segue a noire, assim tambem os sacriffcios olfmpicos se seguem aos sacriffcios ctonicos preliminares. Muitos santuarios possuem um local para sacriffcios ctonicos adicionado ao altar e ao templo, o qual e depois identificado no mito como sepultura de um heroi. Assim, o santuario de Pelops faz tanto parte de Olimpia como o altar de Zeus. Erecteu e Arena partilham a «casa» na Acropole de Arena. Em Delfos, Pirro desperta do seu tumulo para presenciar o sacriffcio em honra de Apolo. Epopeu esta sepu!tado ao !ado do altar em honra de Arena, em Sidon, e no santuario de Delos encontravam-se os tumulos das «virgens hiperboreas» 136. A imagem notavel do Apolo de Amiclas encontra-se sobre um pedestal em forma de altar que se dizia ser a sepultura de Jacinto. Antes do sacriffcio em honra de Apolo sao feitas oferendas a este ultimo atraves de uma porta de bronze 137. Em correspondencia com este fenomeno, no mito, os deuses tern frequentemente um duplo, que e mortal e se torna tao semelhante ao deus que pode ser confundido com ele, so que este duplo esta marcado pela morte e e morto pelo proprio deus. Assim, Jacinto aparece ao !ado de Apolo, Ifigenia, de Artemis, Erecteu, de Posfdon, Iodama, de Arena. No culto, Ifigfoia, e venerada na qualidade de «Artemis» 138, Erecteu converte-se em Posfdon Erecteu, Iodama «vive» enquanto altar de Arena, onde arde o fogo eterno139. 0 mito separou em duas imagens o que no ritual sacrificial se enconrrava em tensao. '3' Paus., 2, 2, 8. 136 HN, pp. 111-9; p. 176 e seg., pp. 134-9; p. 211; - t I, 4, nota 25. Cf. Eirrem, RE, VIII, p. 1127. m Paus., 3, 19, 3.

"" Hes., Fr, 23a 26; cf. tambem (Burkert), RhM, 118, 1975, p. 19 sobre Aquiles-Apolo.

139

Paus., 9, 34, 1; Sim6nides, FGrHist, 8 F 1.

394

0 mundo homerico-grego dos deuses deve o seu esplendor ao seu ,_11,1;111ciamcnto da mortc. Para os gregos cultos o cristianismo parecia

~< 1 uma religiao de sepulturas 140. 0 modelo das figuras olimpicas, «.\t'rl'S eternos», podia fornecer uma medida e um sentido de orien-1.1t,:t0. Na realidade do culto os polos opostos encontravam-se de ta! rllodo contidos um no outro que era exclufda qualquer platitude. Porem, estes deuses niio podem representar a riqueza e variedade de 1 oda a realidade. A religiiio niio se esgota, por isso, no culro dos deuses, .1hrange tambem as relar;oes com os mortos e os herois. E se os misterios quc se apoiavam em tradir;oes oprimidas, ou niio gregas, vinham com a \ll<t especular;ao universalista ao encontro das esperanr;as individuais e procuravam superar a fria solidiio do homem perante a morte, isto pcrmaneceu, durante muito tempo, mais um complemento do que propriamente um rival que pudesse estilhar;ar o sistema criado pela 1maginar;iio grega.

4. Os her6is

0 facto de entre os homens e os deuses existir ainda uma terceira dasse especial de herois, que siio denominados tambem

«Semi-deu-ses» 141 , e uma particularidade da mitologia e da religiiio gregas para a qua! quase niio existem paralelos. A etimologia da palavra heros e

obscura142

• A palavra aparece na lingua grega em duas utilizar;oes. Na epopeia antiga ela designa pura e simplesmente OS herois, cuja fama e

cantada pelo poeta. A palavra tern o seu lugar bem determinado no

sistema de formulas. Praticamente, codas as figuras homericas siio «herois», sobretudo os aqueus no seu conjunto. Na utilizar;ao lingufs-tica posterior, o «heroi» e um falecido que exerce a partir do seu

'40 Lib, Or. 62, 10.

141 Rohde, I, pp. 146-99; Pfister, 1909/12; P. Foucart, Le mite des hiros chez

/es grecs, (Memoires de I' Academie des Inscriptions, 42), 1918; Farnell, 1921; Eitrem, RE, VIII, pp. 1111-45; M. Delcourt, Legendes et mites de hiros en Grece, 1942; Nock, pp. 575-602 =«The cult of Heroes», HThR, 37, 1944, pp. 141-74; GGR, pp. 184-91; A. Brelich, Gli eroi greci, 1958. Cf. tambem H. Hubert, «Le culte des heros er ses conditions sociales», RHR, 70, 1914, pp. 1-20; 71, 1915, pp. 195-247.

142 Frisk, I, p. 644 e seg.; Chanrraine, p. 417. Sobre «Hera» no senrido de

«maruridade» (sexual): W. Potscher, RhM, 104, 1961, pp. 302-55; 108, 1965, pp. 317-20. Em micenico, ti-ri-se-ro-e e entendido como «heroi rrfplice», Trishiros, cf. Gerard-Rousseau, pp. 222-4, B. Hemberg, Eranos, 52, 1954, pp. 172-90.

(3)

tumulo um poder para bem ou para mal e que exige uma venera<;iio adequada.

0 aspecto cultual exterior pode ser captado claramente a partir dos vestfgios arqueol6gicos: o culto dos herois significa que um tumulo individual, que se passa a chamar heroon, e destacado das sepulturas ordinarias atraves de delimita<;iio, sacriffcios e dadivas votivas, oca-sionalmente tambem atraves de uma constru<;iio tumular especial. As constru<;oes sumptuosas com este objectivo surgem primeiro nas

regioes perifericas, no «Monumento das Nereides» de Xantos na

Lfcia, ou no «Mausoleu» de Halicarnasso na Caria. Esta pratica so se torna habitual a partir da epoca helenfstica143. Os tumulos dos herojs,

salientados pelo culto, siio testemunhados desde 0 ultimo quarrel do

seculo VIII144: existiu um culto de Agamemnon em Micenas e tambem

em Esparta, um culro do Menelau e de Helena em Esparta, dos «Sete contra Tebas» em Eleusis. Obviamente, devem ter sido redescobertos tumulos amigos por essa altura, os quais foram atribufdos a «herois» epicos famosos. Os tumulos dos «Sete» siio na realidade tumulos hela-dicos, e 0 tumulo de Amfion, perto de Tebas, e 0 tumulo de um prfn-cipe do heladico antigo145• Os tumulos das «virgens hiperboreas», em

Delos, siio restos de tumulos micenicos146

• Perto de Menidi, na Arica,

ha um tumulo micenico de cupula que foi contemplado com sacriffcios e dadivas votivas desde 0 perfodo geomerrico ate

a

epoca classica, entre as quais se destacam, por um lado, pequenos escudos de terracota e, por outro, caldeiroes para agua de banho. 0 nome deste hiros e-nos desco-nhecido. (Similarmente, em Corinto, um tumulo do perfodo proro-geometrico, descoberto antes de 600, foi objecto de honras heroicas desde entiio ate ao seculo II a. C.)147 •

143

Diod. Sic., 13, 35, 2, no anode 412, fala de «honras her6icas» num

«templo» (neos) em honra do legislador Diodes de Siracusa.

144

]. M. Cook in: Geras Antoniou Keramopoullou, Atenas, 1953, pp. 112-8; BSA, 48, 1953, pp. 30-68; R. Hampe, Gymnasium, 63, 1956, p. 19 e seg.; Snod-grass, p. 193 e segs. A men~ao do «13.0

Gamelion», em Deinias, FGrHist, 306 F 2 indica a data do sacriffcio funebre (enagfsmata) em honra de Agamemnon, em Mice-nas/Argos: U. v. Wilamowitz-Moellendorff, Aischylos Orestie: Das Opfer am Grabe, 1896, p. 204. Sobre o «tumulo de Clitemnestra»: MMR, p. 604 e seg.

14

' Os «sete»: Paus., 1, 39, 2; Plue., Thes., 29; cf. Eur., «Hie.» («Suplican-res»); Mylonas, p. 62 e seg. e Praktika, 1953, pp. 81-7. - «Amphion»: Th. Spyropoulos, AAA, 5, 1972, pp. 16-22. 146 --t I, 4, nota 25. 147 P. Wolcecs,jdl, 14, 1899, pp. 103-35; MMR, pp. 600-3; (Hesperia, 44, 1973, pp. 4 e seg.). 396

A tese defendida vigorosamente por Nilsson, de que o culto dos herois e uma continua<;iio directa do culto micenico dos monos, niio foi sustentada pelos achados arqueologicos148

: niio ha testemunhos de um culto contfnuo da sepultura na epoca micenica e muito menos durante OS seculos obscuros. Alem disso, a partir do seculo VIII, a venera<;iio dos herois tern de ser relacionada directamente com a influencia da poesia epica, que alcan<;ou entiio o seu ponto mais elevado. Na epopeia grega

foi fixado um mundo autonomo que e descrito deliberadamente como

um passado mais belo, mais grandioso: os herois eram mais poderosos do que o «Sao os mortais agora»149

. Simultaneamente isto tornou-se um

mundo espiritual comum a todos os gregos. A realidade era interpre-cada nesta base. As famflias e as cidades tinham orgulho em poderem associar as suas tradi<;oes aos herois da epopeia. Assim, os habitantes de Corcira, que identificavam a sua terra com a dos feaces, veneravam o rei Alcfnoo da Odisseia. Em Tarento, faziam-se sacriffcios em honra dos Acridas, dos Tfdidas, Eacidas e dos Laertfadas en bloc. Em Creta eram venerados Idomeneu e Meriones150

. A designa<;iio de «Semi-deuses»

surge ja na Iliada151

A ideia e desenvolvida por Hesfodo no mito das

idades do mundo, no qual os «herois chamados semi-deuses» consti-tuem uma gera<;iio propria, melhor que a anterior e muito superior

a

actual, a «estirpe de ferro». De acordo com os temas principais da grande poesia epica, eles pereceram durante as batalhas de Troia e de Tebas152

. A concep<;iio dos Catdlogos hesiodicos e semelhante: quando OS

homens e os deuses ainda viviam juntas, surgiu do seu convfvio a longa serie dos filhos dos deuses, nos quais tern agora origem as arvores genealogicas dos povos e das famflias. 0 fim do convfvio entre deuses e mortais foi provocado pela guerra de Troia'53

0 aparecimento do culto dos herois, sob influencia da poesia epica, tern o seu sentido e a sua fun<;iio no desenvolvimento da polis

'4" ~ I, 3.3, notas 77 e 82 em confronto com MMR, pp. 584-615, GGR,

pp. 378-83.

149 II., 5, 304; 12, 383; 449; 20, 287; 1, 272.

"" Thuc., 3, 70; (Arise.), Mirab. 840a6; Diod. Sic., 5, 79; em geral: Farnell,

pp 280-342.

111 If., l2, 23; Hes., Erga L60; Fr. 204, 100. Sohre o problema da medida

t·m quc o culro do her6i era conheciclo ja do poera cla lliada: Pfister, pp. 541-4; Th.

I l,1d11stcliou Price, Historia, 22, 1973, pp. 129-44.

'" Iles., flr~a 156 7 .~. 111 lies., Fr. I; 201\, 95 119

(4)

,...-grega. 0 destaque dado a certas sepulturas ocorre a par e passo com a supressao do culto tradicional dos monos. As despesas extravagantes, testemunhadas ainda pelos vasos dos finais do perfodo geometrico, diminuem e sao depois limitadas pela lei 154. 0 lugar dos jogos funebres para OS nobres e ocupado pelos agones institucionalizados dos santuarios, «em honra» de um heroi nomeado para a ocasiao. Deste modo, a importancia da famf!ia individual decresce a favor de iniciativas que dizem respeito a todos os que se encontram presentes no local. Na realidade, 0 culto dos herois nao e propriamente um culto dos

antepassados. Trata-se de uma presen\a efectiva e nao de um la\o de «Sangue» entre gera\6es, ainda que, naturalmente, os antepassados tambem recebam honras de herois. Uma vez que cerca de 700 o exer-cito da polis, a falange da polis, se torna determinante, substituindo a cavalaria nobre, o culto dos «herois do pafs», comuns a todos, torna-se expressao da solidariedade do grupo.

A par do desenvolvimento do culto dos herois, tern lugar uma reestrutura\ao espiritual, de novo sob a influencia de «Homero», que se exprime justamente na separa\ao radical entre o domfnio dos deuses e o dos monos, do olfmpico e do ctonico 155. Quern morre nao pode ser um deus. Quern e venerado enquanto se encontra na sepultura tern de ter sido um mortal, de preferencia um homem daquela epoca «gran-diosa» do passado. Os deuses sao elevados, como grupo exclusivo, a um Olimpo ideal. Os que restam caem na categoria de «semi-deuses».

A controversia que tern lugar no estudo cientffico da religiao, sobre se os herois eram considerados «deuses enfraquecidos», «faded gods» 156 ou monos reais, embora venerados cu!tualmente, tern de ser decidida com uma formula do genero «tanto uma coisa como a outra». Se a concep\iio ea forma do cu!to so.foram fixadas relativamente tarde, perto de finais do seculo VIII, entre as for\aS em contenda do culto dos monos de origem nobre, das aspira\6es da polis e da epopeia «homerica»,

"1 ~IV, 1, nota 48. "1 ~IV, 3.

116

Usener, pp. 252-73, p. 255: «que todos os her6is, cuja historicidade nao e demonscravel ou e somenre provavel, eram originariamenre deuses»; Pfister, pp. 377-97, diz algo semelhanre; Harrison, (2), pp. 260-363, ve nos her6is «Dai-mones» pre-olfmpicos. Contra: Foucarr (~ nota 1), pp. 1- l 5; Farnell, pp. 280-5; cf. Rohde, I, 157, 170, («culto dos anrepassados»); GGI?, p. 185 e seg.

398

1sto nao exclui a recep\iio de tradi\6es muito antigas neste contexto

ll()VO. Por detras de alguns herois epicos· encontram-se figuras

niti-damente mfticas. A venera\iio de Aquiles como «Soberano do Mar Negro» nao pode ser deduzida da lliada, mas apenas da sua rela\iiO com

,1 <leusa do mar, Tetis157. A identifica\iio de «Alexandra», que tern o

seu culto em Amiclas 158, com a Cassandra epica de Troia e quase de

< erteza secundaria. Em Esparta, Helena era claramente uma deusa 159.

Sabemos atraves das escava\6es que algumas sepulturas supostamente pertencentes a herois nao eram sepulturas genufnas, e nao continham ncnhum cadaver.

E

o caso do Pelopion em Olfmpia160, da «Sepultura» de Pirro, em Delfos 161 , do monumento de Erecteu na Acropole ate-niense. Aqui, trata-se de antigos locais de culto ctonico. A exclusi-vidade dos olfmpicos nao permitiu que fossem atribufdos a um deus. No culto local, podem ser mencionados ainda «Zeus Trofonio» 162, ate mesmo «Zeus Agamemnon» 163. No mito homerizado, Trofonio e um .1rquitecto astuto, mas inteiramente mortal. Nas regras da lingua

«homerica», OS herois e OS deuses Sao dois grupos separados, mesmo partilhando perante os homens a natureza de serem «OS mais fortes».

A parede que OS separa e impermeavel: nenhum deus e heroi e nenhum heroi e deus. So Dioniso e Hercules 164 foram capazes de violar este princfpio.

«Deuses e herois» constituem conjuntamente a esfera sacral. As

«ordena\6es» de Dracon ja ordenam claramente a sua venera\iio 165 .

117 ~ III, 3.1, nota 30.

'18 Paus., 3, 19, 6; Bulletin epigraphique, 1968 n." 264; R. Stiglitz,

«Alexan-dra von Amyklai», Oejh, 40, 1959, pp. 72-83.

119 Bethe, RE, VII, pp. 2824-6; M. L. West, Immortal Helen, 1975.

tr•1 Os achados de Pel6pion e a questiio da sua datac;ao permanecem, por

C'llquanto, conrroversos, H. V. Herrmann, AM, 77, 1962, pp. 18-26 e Herrmann, (2), pp. 53-7, mas refutado por Mallwitz, pp. 134-7.

161 HN, p. 136.

,

r,,

JG, VII, p. 3077; p. 3098; o mi to: Telegonia (Homeri opera V, ed. Allen), 109, l l; Callim., Fr. 294; Charax, FGrHist, 103 F 5. ~II, 8, nota 56; IV, 3, nota I~

II>\ Athenag., Legat. l; Schol. Lycophr. 1369. Em 6ropo, Amfiaraos e

consi-derndo deus: Paus., 1, 34, 2. Academe e denominado «deus»: Eupolis, Fr. 32, CAF, I, p. 265.

1/.1 No hi no cultual das mulheres de Elis, 0 «her6i Dioniso» e invocado para VII'»: Plut., Quaest. Graec. 299ab PMG, p. 871, ~ V, I, nota 77. Sobre 1 lc•n ides -> IV, 5.1. Theoi heroes na inscric;ao be6cia, IG, VII, 45, p. 3, sao os 1110110\.

'"' Porph., Oe Alm., ti, 22.

(5)

Fazem-se juramentos em nome dos «deuses e herois» 166, sao-lhes diri-gidas preces. A primeira liba<;ao no simposio e consagrada aos deuses, a

segunda aos herois167

. Apos a vitoria de Salamina, Temfstocles podia

dizer: «Nao fomos nos que conseguimos isto, foram OS deuses e OS

herois» 168 •

0 culto dos herois, tal como 0 culto dos mortos, e classificado

como polo oposto, «Cto9ico», da venera<;ao dos deuses, e inclui sacri-ffcios de animais, dadivas de comida, liba<;6es. Nao raramente tern

lugar igualmente a prepara<;ao de um «banho», e o choro e as

lamen-ta<;6es foram testemunhados multiplas vezes 169 Os acontecimentos

mais importances sao naturalmente os banquetes cultuais dos vivos no

domfnio, e em honra, dos herois170

• Correspondentemente, o heroi e

representado com frequencia como estando ociosamente reclinado durance a refei<;ao171

, e no calendario de Tetrapolis a cada heroi e

atribufda uma herofna172

. Em regra o heroi recebe os seus enagfsmata

uma vez por ano, num dia estabelecido pelo calendario.

A diferen<;a essencial em rela<;ao ao culto dos deuses consiste no facto de um heroi estar ligado a um local: ele actua na vizinhan<;a do

seu tumulo pela «SUa» famflia, pelo seu grupo ou pela sua cidade.

A distancia espacial apaga a rela<;ao com os herois. Em contrapartida,

durance a nova funda<;ao de Messena, em 370, os velhos herois foram de

novo «evocados» 173

• Se se verifica que o mesmo heroi e venerado em

lugares diferentes, que sao mostradas sepulturas diferentes, pode surgir uma disputa sobre quern tern mais devo<;ao, a qual e resolvida de modo

elegance pela adop<;ao de homonimos174

• Considera-se, porem, que o

melhor e a pessoa nao Se preocupar com OS vizinhos e dar aten<;ao ao que

1~

Thuc. 2, 74,2;4,87, 2; 5, 30;S/G, p. 360;p. 527;p. 581.

167

Kircher, p. 17 e seg., pp. 34-7; ---7 II, 2, noca 38.

168 Hdc., 8, 109, 3.

169

GGR, p. 187. - As «honras her6icas» dedicadas a Dfon, em Siracusa, ainda durance a vida nao tern paralelo: Diod., 16, 20, 6, cf. Reverdin, 159, 5.

170

0 seu significado foi reconhecido por Nock (---7 noca 1). 171

Nas cerracocas vocivas poe-se o problema se sao os veneradores ou os her6is que sao represencados; cf. H. Herdejurgen, Die Tarentinischen Terrakotten des

6. bis 4.Jhs. v. Chr. i111 AntikemnuJeu111 Basel, 1971. 172

IG, II/III'. p. 1358 = LSCG, p. 20. - 0 her6i Asmibaco torna-se pai de um rei espartano, Hdc., 6, 69, MH, 22, 1965, pp. 166-77.

173 Paus., 4, 27, 6. 174

Pfister, pp. 218-38.

400

lhe pertence: 0 culto dos herois e um centro de identidade local de:: grupo.

Alem disso, a hoste dos herois, de novo ao concrario dos deuscs, nunca e fixada definitivamente. Nao ha grandes deuses que possam vir ainda a nascer, mas do exercito dos mortos podem sempre destacar-st

novos herois quando uma famflia, um grupo ou uma cidade, coma •l respectiva decisao de venera<;ao culrnal. No perfodo helenfstico a

«heroiza<;ao» (apherofzein) de um falecido corna-se quase numa rotinam

Nos tempos amigos isso era uma excep<;ao. Nas cidades novas, nas

rolonias, o fundador torna-se a maior parte das vezes «Heros Ktfsties», c

rnuitas vezes e sepultado no mercado176

• Deste modo, a terra nova

.tc.lquire imediatamente um centro, se nao dos tempos ancescrais, pelo menos de um infcio afortunado e vinculativo. Quando, no anode 510, cm Arenas, Clfstenes despeda<;ou as antigas associa<;6es tribais e criou ;trtificialmente 10 novas «tribos» oufylaf, cada/y/e tinha deter o nome de um heroi, e no mercado foram institucionalizados 10 heroa177• Tal nao

foi uma medida meramente administrativa: o deus de Delfos foi

solicitado para seleccionar aqueles cuja venera<;ao seria «melhor e mais

f"ecunda». Esta san<;ao era necessaria tambem quando a sepultura de um hcroi era deslocada. Assim, Esparta recorreu ao oraculo durance a sua disputa com Tegeia, em meados do seculo VI, e foi aconselhada a 1 ransferir os restos mortais de Orestes para a cidade -supostamente, foi exumado um ataude de 7 covados178

, sem duvida um cestemunho de

1 tmpos amigos «grandiosos» - e depois da conquista de Siros, Cfmon de Arenas procurou o tumulo de Teseu na ilha e encontrou-o: «Um

.1taude com um cadaver enorme, a ponta de uma lan<;a de bronze e uma

t•spada»179 • No ano 475, os restos mortais foram solenemente cranspor

-m Por ex., Thera, IG, XII, 3, p. 864; Acenas: IG, II/III'. p. 1326 SIG, 1101 = LSCG, 49, 46, 176/5 a. C.; Rohde, II, pp. 358-62; Farnell, p. 366 e scg.; p

IW, VIII, p. 1137 e seg.

176 Bacos de Cirene: Pind., Pyth., 5, 95; Brasidas, em Amffpolis: Thuc., 5, I I, I Ide., 6, 38; Rohde, I, p. 175 e seg.; Pfister, p. 445 e seg.; Farnell, pp. ti I 3 8; ll. Marcin, Recherches sur l'agora grecque, 1951, pp. 194-200. Cf. Berard, Erltr1t1 Ill: l.'llt!roo11 a la porte de 1'011est, 1970.

177 R. E. Wycherley, The Athenian Agora Ill, 1957, pp. 85-90; Parkt·· Wormcll, II, n." 80; U. Kron, Die zehn attischen Phylenheroen, 1976 (AM, 91, [ I 'i).

17" I Ide., I, 68.

11 '1 Arist., Fr. 611, I; Plue., Thes., 36; Cim., 8; llencr, IW, sup!., XIII, I• l 2l·l

(6)

tados para Arenas e depositados no Teseion, perro da agord, em honra de Arena e de Cfmon.

Por detras e a par desras medidas organizadas oficialmeme, encontram-se sempre manifesta\6es esponraneas de her6is que diferen-tes indivfduos creem ter vivenciado. 0 culto e a resposta ao facto de 0

her6i rer demonstrado o seu poder. Um her6i pode «aparecer perante» uma pessoa em carne e osso180

, uma ocorrencia aterradora e perigosa

-aqui, a simples cren\a em famasmas desemboca no culto dos her6is. Uma cobra, criatura aterrorizante, pode ser encarada como manifesta-\ao de um her6i 181• Frequenremenre o poder dos her6is s6 e pressenrido

indirectamente: quando a terra nao da fruto, epidemias atacam OS homens e o gado, nascem crian\as pouco saudaveis, reinam o conflito e a disc6rdia. Isto pode derivar da ira (minima) de um morro poderoso que tern de ser «apaziguado». Nestes casos torna-se necessario o conselho do oraculo e do vidente. Nao raras vezes as pessoas conrentam-se com a venera\iio de um «her6i» an6nimo182.

Inversamenre, do her6i «apaziguado» pelo culto espera-se todo o bem, a fecundidade dos campos, curas, sinais manricos. Os her6is sao sobretudo auxiliares durance as lutas em prol da sua tribo, da sua cidade, do seu pafs183• E sobretudo a imagem do Grande Ajax e dos seus

irmaos que esta enraizada na cren\a nos ajudanres poderosos na batalha. Na poesia homerica, OS «Ajantes» sao diferenciados como dois her6is de nome idenrico, com arvores geneal6gicas e caracteres diferentes: Ajax, o Telamonio, e quase idenrico ao grande escudo protector da muralha; Ajax, o 16crio, que a epopeia descreve como difamador sacrflego dos deuses, nao deixa por isso de ser um fiel camarada de armas durance a baralha, ao !ado dos seus 16crios: para ele e deixado um espa\o na falange e ai do inimigo que tente penetrar ate af184. Anres da batalha de

Salamina, os atenienses evocaram Ajax e Telamon de Salamina para que os auxiliassem, e enviaram um barco a Egina para que trouxesse Eaco e

180

Ephodoi: Hippocr., Morb. Sacr. (VI 362 Lime), cf. Eur., Ion, 1049. 181

0 supersticioso ergue no local da apari~iio de uma serpente «sagrada» um Her6on: Theophr., Char., 16, 4; represenra~6es iconograficas, por ex., Harrison,

(1), pp. 325-31; ~IV, 2, nota 3. 182

Rohde, I, p. 173 e seg.; GGR, p. 188; Herrmann, (1), p. 61 e seg. (em Olfmpia); IE, p. 349.

18

' Rohde, I, p. 195 e seg.; Pfister, p. 512 e seg. e RE, sup!., IV, p. 293 e seg.; GGR, p. 715 e seg.; P. von der Muehll, Der Grosse Aias, 1930.

184

Lendas sobre (a vit6ria dos 16crios sobre Croton) a batalha nas margens do rio Sagra: C6non, FGrHist, 26 F 1, 18; Paus., 3, 19, 13.

402

os Eacidas. No barco foi construfda uma kline para que os her6is se

pudessem recostar185

• 0 quadro da batalha de Mararona pintado por

Polignoto186 mostrava o pr6prio her6i Maraton e Teseu, o primeiro rei

da Arica, saindo da terra para vir ajudar o seu povo. Um cego, veterano cla guerra, conrava a quern o quisesse ouvir que na batalha tinha visto um guerreiro armado, cuja barba encobria o escudo inreiro e que massacrava quern dele se aproximasse - isto teria sido a ultima coisa que viu187

• Quando um conringenre persa deu meia volta pouco antes

de alcan\ar Delfos, escapando assim o sanruario, de modo surpreen-denre,

a

pilhagem, come\OU a correr a lenda de que dois her6is, Filaco, o «guardiao», e Aut6noo, a «auro-considera\ii:O», repeliram o inimigo,

t· eram mostradas as rochas que eles teriam lan\ado dos flancos do

Parnasso em direc\fo aos invasores188

. No Edipo em Colono, de S6focles,

(~Ji po anuncia que o seu tumulo secreto sera muito mais valioso do que rnuiros escudos e mercenarios, que ele protegera Arenas da desola\ao ea

\Ua ira inexoravel Sera dirigida contra OS tebanos189

.

Os deuses sao distantes, OS her6is estao pr6ximos.

Frequente-menre comparou-se o culto dos her6is com o culto cristao dos sanros.

Nao ha duvida que aqui rem lugar tanro uma conrinuidade directa

t omo uma afinidade estrutural. No entanto, os her6is nao precisam de

rnodo algum de ter uma biografia de caracter santo. 0 merito apenas

ll<lO e suficiente para fazer 0 heroi. 0 facto de OS que caem na guerra

rcceberem honras de her6is nao e uma regra, e antes uma excep\ao190 • A proveniencia divina nao e uma pre-condi\fo necessaria, ainda que OS fdhos dos deuses sejam considerados a maior parte das vezes her6is. Ate mesmo um criminoso, que teve um fim espectacular, pode tornar-se num her6i 191

, um inimigo do pafs pode tornar-se ap6s a sua morre em

18~ Hdt., 8, 64; Plue., Them., 15; cf. Hdt., 5, 80 e seg.; Diod. Sic., 8, 32

Justin, 20, 2.

186 Paus., 1, 15, 3.

187 Hdt., 6, 117.

188 Hdt., 8, 3 7 e seg. 189 Soph., Oid. Kol., 1524-33.

190 ller6is de Maracona: Paus., 1, 32, 4; de Plateias, Plue., Aristeid., 21; uma 11·11ovl1<.;iio posterior de uma inscri~iio dedicada aos «her6is» da guerra, perto de Mt·g,1ra: IG, VII, 53 Simonides Fr. 96 (Diehl). Em princfpio, Platiio pretende

1·l1•v;1r todos os que cafram durance a guerra a dafmones, ~ III, 3.5, nota 24; VII, I l, llOta 20.

1"1 Cl<·6medes de As1ipale1a: Paus., 6, 9, 6 e scg., Rohde, I, p. 178 e seg. 'I();)

(7)

ajudante e protector192• Todavia, tambem ha her6is que, em constante

furia, s6 espalham o mal, ate que de algum modo se consiga acabar com eles.

E

o .caso do her6i de Temesa, ao qual tinha de ser levada todos os anos a rapariga mais bela para ser por ele desflorada, ate que o atleta Eutimo mostrou ser mais forte do que ele193.

E

uma qualidade extraordinaria que faz o her6i. Algo de impre-visfvel e sinistro que fica para tras, mas esta sempre presente. Ao lado

de um Her6on passa-se em silencio194

• Numa comedia intitulada a

pro-p6sito, Os Herois, Arist6fanes apresenta OS her6is como coro. Eles vem

a

superffcie em busca do homem justo: «Acautelai-vos, homens, e

vene-rai os her6is, pois nos somos quern ministra o bem e o mal, vigiamos os injustos, os ladroes e os bandidos» - segue-se uma lista grotesca das doenc;as - desde a comichao

a

loucura - que OS herois infligem aos malfei tores 195

No entanto, OS her6is nao sao representados geralmente como ancioes grisalhos e decrepitos, mas na plenitude das suas for\as e na

«perfei\ao» da juventude. Aparecem tambem crian\as herofnas como

Paleimon no fstmo e Arcemoro em Nemeia196. Assim, na epoca hele-nfstica as crian\as falecidas precocemente sao com frequencia heroizadas. 0 culto dos herois e muito encorajado entre OS adolescentes, OS efebos. Cada ginasio tern o seu her6i; em Arenas, por exemplo, e Hecademo na

«Academia» 197, Li cos no «Liceion», Hercules no ginasio de Cinosargos.

Em Salamina, os efebos celebram a festa em honra de Ajax de um modo particularmente grandioso198• Assim se conseguia inserir a gera\iio

seguinte no mundo dos mortos e na tradi\iio vinculativa que deles partia. A ideia de que nestas homenagens aos mortos se reproduziriam

192

Cfmon, em Cftion: Plue., Cim., 19, 5; Eurisreu, em Arenas: Eur.,

Heraklid., 1024-43.

193

Paus., 6, 6, 4-11. Cf. o agrilhoamenro de Acreon a um rochedo, na forma de uma effgie de bronze: Paus., 9, 38, 5.

194

Epicarmo, Fr. 165 (CGF, ed. Kaibel) = Hsch. e Phor. s.v. krefJsonaJ ( krefttonaJ); sobre her6is perigosos: Camaileon, Fr. 9 (ed. Wehrli); Schol. Arisroph.,

Av., 1490; Rohde, I, p. 190 e seg.

195

Aristoph., Fr. 58 (C01n. Graec, Frag. in Pap. Repert., ed. Austin, 1973); R. Merkelbach, «Die Heroen als Geber des Guren und Bosen», ZPE, 1, 1967, pp. 97-9.

1

% RE, VIII, p. 1118 e seg.

197

Sobre a anriga inscri~ao horoJ: BCH, 92, 1968, p. 733; cf. AAA, 1, 1968, p. 107; ]. Fontenrose, «The Hero as Athlete», California StudieJ in ClaJJical

Antiquity 1, 1968, pp. 73-104.

198

AF, p. 228. 404

fundamentalmente ritos de inicia\iio199

, e a ideia de que os her6is se

podem encontrar presentes tambem como mascaras, sao suposi\6es que

ja niio podem ser verificadas de modo directo.

5. Seres duplos ct6nico-oHmpicos

5 .1 Hercules

Algumas figuras do culto e do mito, que siio evocadas de modo

particular como poderosas auxiliares, abrangem tanto o domfnio dos

her6is ct6nicos como o dos deuses, e retiram precisamente deste facto a

sua dinamica: elas penetram tanto no domfnio superior como no

inferior, encontram-se tanto perto como longe. Elas niio iludem a morte. Entre elas a mais popular e Hercules200

.

Hercules, o poderoso filho de Zeus, que pode sempre nomear a «bela vit6ria» como sua, e o maior dos her6is gregos, e mesmo assim completamente ut6pico. Nao existe qualquer sepultura de Hercules, e tanto quanto as suas hist6rias eram conhecidas por toda a parte, o seu

culto estava difundido por todo o mundo grego, e mesmo fora dele. Por

conseguinte, Hercules e ao mesmo tempo her6i e deus, hiros theos, como diz Pfndaro201

. Na mesma festa faziam-se-lhe sacriffcios primeiro como

her6i e depois como deus202 .

A figura de Hercules foi moldada primeiramente pelo mito, por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia s6 inter-veio de modo secundario: nao existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Hercules. 56 mais tarde, os poetas analisaram o fen6-meno Hercules, envolvendo assim o mito numa atmosfera tragica,

l9'J Defendido por Brelich (~ nora 1).

"" PR, II, pp. 422-675; A. Furrwangler, RML, I, pp. 2135-2252; U. v.

Wilamowirz-Moellendorff, EuripideJ HerakleJ. I', 1895 (= II, 1959), pp. 1-107; 0. Gruppe, RE, sup!., III, 1918, pp. 910-1121; Farnell, pp. 95-174; B. Schweitzer, HerakleJ, 1922; F. Brommer, HerakleJ, Die zwolf Taten deJ Heiden in antiker K11mt und

Literat11r, l972'; F. Prinz, RE, sup!., XIV, 1974, pp. 137-96; (S&H, 78-98).

'01 Pind., Nem., 3, 22.

'01 IIdt., 2, 44; LSCG, 151 C, pp. 8-15; Paus., 2, 10, l; Pfister, p. 466 e seg.

(8)

her6ica e humana203, em contraste com a sua tendencia pr6pria gue transcende despreocupadamente o humano.

E

que Hercules es ta relacionado antes de mais com os animais: ele

mata os animais mais perigosos, o leao ea serpente, e captura os outros,

os gue podem ser comidos, para os trazer aos homens; ele cai;a a cori;a, veloz como o vento, mata e carrega o javali, rouba os cavalos

antrop6fa-gos de Diomedes, o tracio, e traz da Ilha «Vermelha», Erftia, situada do

outro lado do oceano, uma manada de gado gue pertencia ao

« Vociferador» de tres cabei;as, Gerioneu. Ele limpa o estabulo do gado

solar para ganhar do filho do Sol, Augeias, um decimo das suas manadas, e captura as Aves Estinfalias.

Motivos orientais foram inclufdos neste complexo. Fica em aberto a guestao se os gregos da antiguidade alguma vez tiveram a

oportuni-dade de ver um leao vivo, mas a migrai;ao da imagem do leao, ate

mesmo da imagem da luta dos le6es, esta bem documentada

arqueolo-gicamente204. Alem disso, a «serpente das sete cabei;as» morta por um

deus faz parte tanto da mitologia ugarita como da do Velho Testa-mento205, e aparece ja em sinetes sumerios. De resto, nas imagens dos sinetes cilfndricos do terceiro milenio existe um her6i com pele de leao, arco e clava gue subjuga monstros, le6es, drag6es eaves de rapina. Ele e identificado como Ninurta ou Ningirsu, filho do deus da tempestade

Enlil2°6. 0 nucleo do complexo de Hercules deve ser consideravelmente

mais antigo ainda: a captura e oferta de animais comestfveis aponta para a cultura dos cai;adores, e a relai;ao com o alem expressa na

aqui-sii;ao do gado solar, na Ilha Vermelha, nos cavalos antrop6fagos, faz

parte da magia xamanfstica dos cai;adores, com a qual parecem estar relacionadas tambem as pinturas das cavernas gue remontam ao infcio

do Paleolftico207. Alcani;ar a terra dos mortos e dos deuses ea funi;ao do

xama: Hercules captura o cao do Hades, Cerbero, e tra-lo do mundo 201

Ede referir 0 poema epico Oichalias Halosis, cf. (Burkert), MH, 29, 1972, pp. 74-85; Estesfcoro, Geryoneis, SLG, pp. 7-87; S6focles, As mu/heres da Tracia, Euripides, Hercules.

204

A pinrura mais anriga de uma Jura enrre leoes: Schefold, Q. 5a, Brommer (~ nora 1) Q. 4a, cf.]. Carter, BSA, 67, 1972, p. 43.

20

' Baal I*i, 1 (G. R. Driver, Canaanite Myths and Legends, 1956, pp. 102-5)

= 27 e seg., ANET, p. 138, e repetido quase literalmenre no VI, Is., 27, l; sinetes:

}HS, 54, 1934, p. 40; Q. 2, 1. 206

Frankfort, Cylinder Seals, 1939, p. 121 e seg.; G. R. Levy,JHS, 54, 1934, pp. 40-53.

' 0

' C. Gallini, «Animali e al di E1», SMRS, 20, 1959, pp. 65-81; (S&G, 83--94).

406

\11lnerraneo, embora s6 por pouco tempo, ganhando assim as mai;as clouradas do jardim dos deuses no longfnguo ocidente, gue podem ser 1111erpretadas como o fruto da imorralidade.

Alem disso, ha os combates com seres fabulosos, no limiar do

ltumano, com centauros, por um lado, com amazonas, por outro. Agui

I IL-rcules concorre com Teseu, assim como na domesticai;ao do touro. <Juando Hercules foi inclufdo no domfnio da epopeia her6ica, passaram

.1 ser-lhe atribufdos feitos mais her6icos. Hercules teria ja sagueado

Troia e subjugado tambem outras tribos e cidades, sobretudo Eicalia.

Na epoca de gue dara a primeira documenta<;iio de gue dispomos, cerca

de 700, tudo isto e ja conhecido e popular: a lliada menciona a aventura

<om Cerbero ea viagem a Tr6ia208, e as representai;6es mais antigas de < l'nas mitol6gicas mostram as aventuras com o leao, com a hidra, a

< ori;a, as aves, os centauros e as amazonas209. A formulai;ao de um ciclo

f'1xo de 12 combates (Cith/a) e atribufda pela tradii;ao a um poema epico, <·scrito por um certo Pisandro de Rodes, gue talvez possa ser localizado

< erca de 600210.

E

por vol ta desta altura gue se imp6e o ti po

icono-grafico do Hercules com a pele de leao gue cobre a sua cabei;a como um capuz211.

A morte de Hercules e particularmente curiosa: a sua esposa

Dcjanira, a «gue combate os homens», levada pelo ciume, envia-lhe

um fato envenenado gue o gueima ou antes, como o conto explica, o obriga, atraves de um sofrimento insuportavel, a queimar-se a si mesmo

n,t pira. Esta hist6ria e conhecida em pormenor dos Catdlogos

hesi6-d icos212. Entretanto, os versos que aqui e na Odisseia relatam a divinizai;ao

208 II., 8, 365-9; 20, 144-8; 5, 638-42.

209 0 leao: ~ nota 5; a hidra: Schweitzer(~ nota 1), figs. 32, 34; Schefold,

T. 6a; Brommer(~ nora 1), 13, Q. 8; a cor~a: R. Hampe, Friihgriechische Sagenbilder

1111r Bo'otien, 1936, pp. 42-4; H. V. Herrmann, BJB, 173, 1973, p. 528 e seg.; cf. K Meuli, Schweiz. Archiv fur Volkskrmde, 56, 1960, pp. 125-39; as aves: Schefold, Q. 5b, Brommer, Q. 18, Q. 3; o cenrauro: Schefold, T. 6c; as amazonas: Schefold, Q. 6b, Brommer, Q. 23a.

210 G. L. Huxley, Greek Epic Poetry from Ermzelos to Panyassis, 1969, pp. 100-'5. De acordo com PR, II, pp. 435-9, Brommer, pp. 53-63, p. 82 defende a tese de quc o Dodecarlo s6 teria surgido no sec. V. A liga~ao com o zodfaco (RE, sup!., III,

p I I Oil)

e

secundaria.

111 Pisandros ap11d Srrab., 15,l,8 e seg. (C 688); cf. Estesfcoro, PMG 229;

Funwiingler, RML, I, pp. 2143-8; represenra~ao mais anriga: Alabastros de Corinto, AJA, 60, 1956, Q. 69, 9110.

'" 1 les., Fr. 25, 20-33 - um texto que F. Stoss!, Der Tod der Herakles, 1945

(()llht·u.1 s6 parc1almcnrc; e ainda Bacch., 16 e Soph., Trach.

(9)

de Hercules foram repudiados pelos crfticos antigos como sendo uma interpolac;ao do seculo VJ213, porque, Segundo parece, a l/fada, aparente-mente, diz simplesmente que Hercules morre214 . 0 mito que localiza o fim de Hercules no monte Eta perto de Tracis, reporta-se a um local de culto real que foi escavado. De quatro em quatro anos comemo- rava-se af uma festa do fogo com sacriffcios de bois e dgones215

Hercules ascende

ate aos deuses atraves das chamas. Pinturas de vasos mos-

tram-no sobre uma pira elevando-se para o ceu216. 0 complexo da imo-lac;ao e da apoteose lembra a tradic;ao oriental, embora a maneira como isto foi associado ao fogo, no cume do monte Eta, permanec;a ate hoje um misterio. Em Tarso, na Cilfcia, e preparada anualmente uma pira em honra de um deus que, em grego, se chama Hercules e, na lingua autoctone, Sandes ou Sandon. 0 nome provem da antiga tradic;ao ana-tolia217. Os reis hititas eram «feitos deuses» tambem atraves de um funeral sumptuoso com incinerac;ao218 . De resto, desde Herodoto, a equiparac;ao de Hercules ao Melqart fenfcio esta fora de duvida219, pelo que os pilares de Melqart no templo de Cadiz-Gadeira se tornaram as

«Colunas de Hercules».

A figura do heroi que e sempre forte, nunca derrotado, extraor-dinariamente potente do ponto de vista sexual, e identica a alguns dos motivos dos contos, que se caracterizam pela fantasia da consumac;ao dos desejos. Porem, este heroi niio so encontra sempre um fim terrfvel ou, em todo o caso, ambivalente, como tambem contem em si a sua antftese: o heroi glorioso e tambem um servo, uma mulher e um louco. 0 filho de Zeus nao e um «rei honrado por Zeus», mas desde infcio subdito de Eurisreu, o rei de Micenas. Acima de Euristeu esta Hera, a deusa da Argolida. Hercules parece ter o nome de Hera inclufdo no

m Schol.,Od., ll,60l;ObelofapudHes.,Fr. 25,26-33eFr. 129,47-50.

214

II., 18, 117-9.

m 4 II, l , nora 7 l.

216

Numa Pelike em Munique, 2360, ARV', 1186, p. 30; Cook, III, 514, cf. 513 e 516.

217

Dio Chrys., Or., 33, 47; moedas: }HS, 54, 1934, p. 52; P. R. Franke,

Kleina1ien z11r Rb1nerzeit, 1968, n." 376; Berossos, FGrHi1t, 680 F 12; P. Friedlander,

HerakleJ, 1907, p. 123; H. Th. Bossert, Sanda1 und Kupapa, 1932; H. Goldman, He1peria, sup!., 8, 1949, pp. 164-74; T.]. Dunbabin, The Greek1 and their Ea1tern

neighborm, l 95 7, p. 52 e seg.

408 218

H. Orren, HethitiJChe Totenrit11ale, 1958; 4 IV, 1, noras 4/5. 219

Hdr., 2, 44.

seu, como se «Hera fosse a sua fama» ( klios)220

Porem, o que e cons-tantemente descrito e sempre o odio amargo com que a esposa ciu-menta de Zeus persegue o seu enteado, desde o seu nascimento ate ao seu fim. Nao se pode excluir a possibilidade de esra semelhanc;a no nome ter surgido por mero acaso. No entanto, uma vez que ela riunca era ignorada pelos gregos, o paradoxo mantem-se. Em Cos, o

sacriffcio em honra de Hercules era feito por um sacerdote vestido de

mulher, contava-se que o proprio Hercules se tinha uma vez

disfar-c;ado de mulher221 . 0 seu cativeiro sob a rainha lfdia Omfale, motivado,

segundo o mito, pela culpa por um crime de sangue, era bem

conhe-cido, mas os papeis siio rrocados: Omfale brande o machado duplo

enquanto Hercules trabalha com o fuso 222 . 0 facto de em Tebas,

durante um ataque de loucura, Hercules ter massacrado e queimado a sua mulher e os seus filhos, esta em ligac;ao com uma festa do fogo nocrurna celebrada, no entanto, em honra dos «filhos do poderoso», os Alcidas. Mas a interprerac;ao que a associa a Hercules mantem-se irre-futada223. 0 extremo tern de passar ao seu oposto, impotencia e auto-destruic;ao, de modo a poder afirmar-se de novo.

Os cultos de Hercules estiio difundidos por todo o mundo grego - so Crera e excepc;ao224 . Um santuario antigo e importante existia na ilha de Tasos225 . As festas em honra de Hercules siio menos festas da

polis do que iniciativas de associac;oes cultuais individuais.

Corres-pondentemente, na Arica, ha toda uma serie de santuarios de Hercules,

uns maiores outros mais pequenos226. Hercules adapta-se

particular-220 0 a breve no nome

e

curioso. W. Porscher, Emerita, 39, 1971, pp.

169--84 supoe uma inversao mirol6gica mais rardia; sem fundamenro RE, sup!., XIV,

pp. 159-62; a associa~ao com Hera

e

contesrada por H. Usener, Sintfl11tJagen, 1899, p. 58; Eragal = Nergal

e

recordado por H. Schrerrer, Alter Orient 11nd Hella1, 1974,

p. l 70 e seg.; manifesramenre, Nergal em Tarso (com leoes, arco e clava: WM, I,

l LO; AK. Beih. 9, l 972, pp. 78-80) nao parece ser idenrico a Sandon. 221 Plur., QuaeJt. Graec., 304 c; GF, p. 451 e seg.

m Relacionado com Labraunda, Plur., Quaest. Graec. 301 e; cf. H. Herter, Kleine Schriften, 197 5, p. 544 e seg.

121 4 II, l, nora 72.

221 De acordo com isso, seguindo os argumenros de Farnell, pp. 95-145,

Wilamowirz rerirou a sua rese sobre Hercules, o d6rio, GdH, II, 20.

111 B. Bergquist, HerakleJ on Tha101, 1973.

m AF, r. 226 e seg., cf. Cf, pp. 445-52; S. Woodford, «Cul rs of Heracles

111 Arrita», S111die.r pre.rented 111 G. M.A. l!t111/111a1111, 1971, pp. 211-25.

(10)

mente bem aos ginasios e aos efebos227

, uma vez que aqueles que viajam, que lutam, que nunca se fixam em lado nenhum, tern algo de juvenil. 0 indfcio principal das festividades em honra de Hercules sao grandes banqueces em que se come muita came. No ginasio de Cinosarges, Hercules tern os atenienses nobres como «Comparsas de banquete», pardsitoi, sempre que a mesa e pasta para ele228

. Por isso, Hercules e representado a fazer sacriffcios229

, e nomeado fundador de altares, e imaginado como um devorador de came incrfvel230

. Por isso, cambem foi principalmente a comedia que o trouxe ao palco. As pessoas sentiam-se familiarizadas com Hercules. Para alem do culto, ele e o auxiliar omnipresence que e evocado em codas as ocasi6es. As pessoas escreviam por cima da porta da casa: «O filho de Zeus, Hercules, belo e vicorioso, mora aqui. Nenhum mal entrara»231

. Ele e o repelidor do ma!, Alexikakos. Eram fabricados amulecos com a imagem de Hercules, onde elementos orientais se fundiam mais uma vez com elementos tipicamente gregos232

. As pinturas em vasos, que repecem centenas e centenas de vezes a !uta com os le6es, cambem testemunham a popularidade inaudita de Hercules233

. Ele cambem foi inserido no mico e no culco ecruscos e romanos muito cedo234

. De modo que, para o romano, a exclamac;ao mehercule se comou tao corrente como Herdkleis

para os gregos.

Entrecanto, Hercules ganha um grau social mais elevado, pois os reis dos d6rios fazem-no seu antepassado oficial. Provavelmence, tra-tou-se de uma legicimac;ao fictfcia da invasao d6ria do Peloponeso: Hilos, her6i ep6nimo de uma phyle d6ria, comou-se filho de Hercules,

227

) . Delorme, GymnaJion, 1960, p. 339 e seg.; oferendas de cabelo: Ach., 494 e seg., Phoc. e Hsch. s.v. oiniJtiria.

228

A lex Jacra mencionada por Polemon: Ach. 234 e.

229 Por ex., kylix, Berlim, 3232, ARV2, 117, n." 2, cf. 225, n.0 3; 472, n." 210.

210 Sobre o mico e o sacriffcio em Lindos: ZRGG, 22, 1970, p. 364 e seg. rn Kaibel, p. 1138; (0. Weinreich, ARW, 18, 1915, pp. 8-18; RAL, 1954, pp. 210 e seg.).

212 Diod., 5, 64, 7; 3, 74; C. Groccanelli, Griem antiquuJ, 11, 1972, pp. 201

--8, sobre os fdolos do deus egfpcio Bes e «Hercules, o Daccilo», cf. Furcwangler, RML, I, pp. 2143-5.

m F. Brommer, VL 3, pp. 1-209; Denkmiiler/iJten wr griechiJchen Heldemage: HerakleJ, I, 1971,

214 ) . Bayer, Hercli, 1926; LeJ origineJ de /'Hermie ro111ain, 1926. 410

011ginario da Arg6lida235 . Enquanco o reinado d6rio em Argos declinou 1,1pidamente, em Esparta, os reis culcivavam canto mais assiduamente a 11.td ic;ao geneal6gica. Os re is !fdios, e posteriormente os re is maced6nios, • omo soberanos do mesmo nfvel, cambem se tomaram Heraclidas236.

A lenda sabre os reis egfpcios foi transferida ja nos tempos arcaicos para os progenitores das casas reais gregas. Esta lenda conta coma o deus

~

11premo,

acompanhado do seu servo, o mensageiro dos deuses, assumiu

,, figura do rei para partilhar o leito com a rainha e gerar o fucuro

~

ob

e

rano

- uma hist6ria que entrou depois na literacura mundial

< omo a comedia do Amficriao237•

A figura de Hercules pode comar-se mais carde uma forc;a espi-11cual influence sobretudo por duas raz6es. Primeiro, porque ele e o inodelo do soberano238 que, em vircude da sua legitimac;ao divina, actua 1 rresiscivelmente para bem do genera humano e que encontra a sua realizac;ao entre OS deuses - e nesta qualidade que Alexandre imprime 1 lercules na sua moeda. Em segundo lugar, ele e um modelo para o homem comum que pode aspirar, ap6s uma vida de sofrimentos e 1uscamence acraves deles, a ascender ace aos deuses. Hercules quebrou o 1error da morte. Ja no seculo V se contava que a sua consagrac;ao em Elcusis o protegia dos perigos do mundo subcerraneo. Mas a dinamica de Hercules chega mesmo a deixar Elcusis para eras. Na figura de l lercules, o divino comava-se acessfvel ao homem, nao como

contra-1magem apolfnea, mas como prot6tipo inspirador239. Em Hercules .dbergava-se a potcncia capaz de escilhac;ar os limices da religiao grega.

m Cf. cambem Desborough, (1), p. 246 e seg.; porem, o problema da

migra~ao d6ria» e accualmence muiro debacido; --t I, 4, noca 8.

216 Sobre os lfdios: --t noca 23. Sobre os maced6nios: Hdc., 8, 137 e seg.

m Amffcrion aparece ja na II., 5, 392 e na Od., 11, 266-8; e ainda em Hes.,

A~pis (Sml11m); cf. Burkerc), MH, 22, 1965, p. 168.

118 W. Derichs, HerakleJ, Vorbild deJ HerrscherJ, diss., Col6nia, 1950.

m F. Pfister, «Herakles und Chriscus», ARW, 34, 193 7, pp. 42-60;). Fink,

•I lcrakles, lleld und IIeiland», A & A, 9, 1960, pp. 73-87; C. Schneider, I lcr.1klcs dcr TodLiberwinder», WiJJ. Zeitschr. d. Univmitiit Leipzig, 7, 1957/8,

pp. 661 6.

Referências

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