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Dignidade animal: desafios jurídicos e morais

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Academic year: 2021

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FÁBIO ISRAEL BUTIGNOL MARIANI

DIGNIDADE ANIMAL: DESAFIOS JURÍDICOS E MORAIS

Ijuí (RS) 2015

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FÁBIO ISRAEL BUTIGNOL MARIANI

DIGNIDADE ANIMAL: DESAFIOS JURÍDICOS E MORAIS

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Monografia.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

Orientadora: MSc. Anna Paula Bagetti Zeifert

Ijuí (RS) 2015

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Dedico este trabalho a todos os animais, vítimas da crueldade humana.

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Agradeço a minha família pelo incentivo, em especial à Lenisa Butignol e Marlova Bardini Klohn.

À professora orientadora Anna Paula Bagetti Zeifert, pelas sugestões, pelos longos diálogos e auxilio na elaboração desse trabalho.

Aos meus amados filhos e filhas por me ensinar o que é o amor incondicional.

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“Para pôr fim à tirania temos, em primeiro lugar, de compreendê-la”.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objeto a análise de argumentos que visam manter os animais na atual situação de meios para os fins humanos, bem como aqueles que visam refutar essa ideia. A metodologia utilizada cinge-se à pesquisa bibliográfica. Parte-se da apresentação dos principais argumentos e representantes do pensamento ocidental que contribuíram e ainda são importantes na manutenção do status jurídico e moral dos animais enquanto meios para os fins humanos. Após, busca-se apresentar outra visão da condição animal, baseada no movimento dos direitos animais, o qual surge para refutar a ideia tradicional dos animais como propriedade, demonstrando a possibilidade de participação dos animais na comunidade moral.

Palavras-chave: Senciência. Direitos Animais. Dignidade.

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ABSTRACT

This work has as object the analysis of arguments seeking to keep the animals in the current situation means to human ends, as well as those who seek to refute this idea. The methodology used gird up the literature. It starts with the presentation of the main arguments and representatives of Western thought that have contributed and are still important in maintaining the legal and moral status of animals as means to human ends.After, it seeks to present another view of the animal's condition, based on animal rights movement, which appears to refute the traditional idea of animals as property, demonstrating the possibility of participation of animals in the moral community.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...09

1 A VISÃO TRADICIONAL OCIDENTAL DO STATUS JURÍDICO E MORAL DOS ANIMAIS...11

1.1 A instrumentalização animal...11

1.2 O direito natural à propriedade...15

1.3 Um meio para um fim e os deveres indiretos...20

1.4 O especismo e a linguagem dissociativa...24

2 OS DIREITOS ANIMAIS E O NOVO STATUS JURÍDICO E MORAL DOS ANIMAIS...29

2.1 A senciência e os deveres diretos...29

2.2 O princípio da igual consideração de interesses semelhantes...32

2.3 Sujeitos morais e de direito...35

2.4 A dignidade para além do humano: uma nova comunidade moral...38

CONCLUSÃO...41

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INTRODUÇÃO

A dignidade é preceito fundamental que sustenta todo o arcabouço jurídico do Estado de Direito, sendo ela uma dimensão que abarca exclusivamente o ser humano. E como a lei e o direito são produtos da atividade humana e carregam, inevitavelmente, os padrões da mentalidade humana, certamente se torna difícil alterar esse paradigma exclusivista.

No entanto, o movimento abolicionista pelos direitos animais surge com o intuito de clarificar esse equívoco, demonstrando ser mais que possível, diria necessário, um repensar o status jurídico dos animais no sentido de propor uma revisão em sua condição enquanto propriedade. É possível que a dignidade alcance toda a vida animal, para além do próprio animal humano?

Para a presente pesquisa se realizar, foi desenvolvida uma análise dos materiais de referência, o que possibilitou o acesso a informações que se tornaram uma valorosa fonte de investigação. Nesse sentido o estudo busca, de maneira geral, analisar criticamente os pressupostos antropocêntricos, a fim de apontar as contradições inerentes a esse posicionamento, bem como apresentar argumentos de superação desse paradigma.

No primeiro capítulo foram reproduzidos os principais argumentos de cunho antropocêntrico, que ainda hoje se mantém e que são utilizados como tentativa de justificar a exclusão dos animais da comunidade moral e, consequentemente, a ausência de uma proteção jurídica enquanto seres sencientes.

Já no segundo capítulo, foram abordados os argumentos da corrente ético-filosófica dos Direitos Animais, com o intuito de refutar as ideias apresentadas no primeiro capítulo, dos

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animais como coisas, simples meios para os fins humanos. A intenção é demonstrar que os animais devem ter alterado o seu status jurídico, sendo reconhecidos como seres sencientes, sujeitos morais e de direito.

Para a realização do trabalho foi utilizada a abordagem hipotético-dedutiva, pautando-se no procedimento inicial de pautando-seleção bibliográfica, com posterior leitura e fichamento, a fim de viabilizar uma reflexão crítica acerca do tema.

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1 A VISÃO TRADICIONAL OCIDENTAL DO STATUS MORAL E JURÍDICO DOS ANIMAIS

A visão do mundo monoteísta, cultural e religiosa de grande parte das sociedades ocidentais reforça a resistência à igualdade entre os homens e animais. O Cristianismo outorgou ao homem um lugar especial na natureza, e essa é uma das explicações apresentadas por alguns filósofos para diferenciar moralmente a existência de uma superioridade natural do homem sobre o resto da natureza. Entre eles estão Renê Descartes, no século XVII, e John Locke, no século XVIII, os quais foram influenciados pelos dogmas religiosos no desenvolvimento de suas teses. O primeiro associou a moralidade à consciência, e esta às capacidades intelectuais superiores, como a racionalidade e a linguagem. Para Descartes, os animais não possuíam mentes (alma racional), assim não poderiam pensar, ter consciência e linguagem, não podendo ter, dessa forma, experiências de sofrimento. Eram meras máquinas desprovidas de racionalidade. O segundo desenvolveu a tese da propriedade privada a partir do trabalho, sendo a natureza passível de apropriação e transformação, incluindo os animais, os quais, por serem seres irracionais não passavam de meras criaturas inferiores.

No século XIX, Immanuel Kant busca justificar moralmente a ideia de que os homens são fins em si mesmos, enquanto os animais, por serem seres irracionais, são apenas meios para os fins humanos. Mas deixa claro que essa utilização não pode ser justificada através da crueldade, pois quem é cruel com um animal, certamente poderia voltar-se contra o seu semelhante, humano.

Também busca-se justificar a forma como os animais são tratados a partir da ideia de que eles simplesmente não fazem parte da espécie humana, essa espécie que busca sem fim autopromover-se, criando mecanismos que visam sustentar essa prerrogativa.

1.1 A instrumentalização animal

A utilização de animais como meios para se atingir um certo grau de conhecimento científico tem origem na antiguidade, mas atinge seu ápice com Renê Descartes (1596-1650), no século XVII.

Em sua clássica obra Discurso do Método, desenvolve um método como caminho que objetiva garantir o sucesso do conhecimento, conhecimento este baseado na

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racionalidade, característica natural do homem, e somente dele. A sua proposição “Penso, logo existo”, é justamente o resultado desse trabalho de questionamento radical das coisas passíveis de serem conhecidas, e está intimamente relacionada à tomada de razão como ponto de partida para o conhecimento.

O viés antropocêntrico do pensamento cartesiano é evidente, fazendo com que até mesmo Deus seja uma decorrência do entendimento humano. Ocorreu-lhe, assim, investigar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que ele próprio o era, chegando à conclusão, de que deveria ser uma natureza que fosse, de fato, mais perfeita. E essa natureza seria Deus, já “que a ideia de perfeição, não tendo a sua origem no nada nem numa criatura por definição imperfeita, tenha sido posta na razão por um ser perfeito.” (DESCARTES, 2013, p. 25).

Ao provar racionalmente a existência de Deus, Descartes julga ter comprovado também a existência da alma humana, a qual seria distinta do corpo, de forma que:

[...] examinando com atenção o que eu era, e, vendo que eu podia fingir que não tinha corpo algum e que não havia mundo algum ou lugar onde estivesse, mas nem por isso podia fingir que eu não existia; e que, ao contrário, do fato mesmo de pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se muito evidente e certamente que eu existia; ao passo que, se tivesse parado de pensar, ainda que o resto do que imaginara fosse verdadeiro, eu não teria razão de crer que tivesse existido; compreendi assim que eu era uma

substância cuja essência ou natureza consistem apenas em pensar, e que, para ser, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de coisa material alguma. De modo que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que eu

sou, é inteiramente distinta do corpo, sendo inclusive mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que ele não existisse, ela não deixaria de ser tudo que é. (DESCARTES, 2013, p. 64, grifo nosso).

A razão se encontra, portanto, no ato puro de pensamento, livre de qualquer condicionamento físico, sensível ou imaginativo. A realidade ontológica do ser humano é a do ser que pensa. Ou seja, o atributo essencial da razão ou da alma é o ato mesmo de pensar, o que Descartes denomina de substância da alma, que não depende de qualquer coisa material.

A realidade passa a ser passível de mensuração e quantificação matemática, sujeita a leis compreensíveis pelo entendimento humano. Essa concepção cartesiana da realidade legitima filosoficamente o mecanicismo, no qual a matéria universal comporta-se como uma máquina, sujeita a leis infalíveis.

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Sob a influência da ciência da mecânica, Descartes (apud SINGER, 2008, p. 187) afirmou que “tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio”. Um problema óbvio que esta perspectiva colocava prendia-se com a própria natureza humana. O corpo humano é composto por matéria e faz parte do universo físico. Portanto, podia-se pensar que os seres humanos também deveriam ser máquinas cujo comportamento era determinado pelas leis da ciência.

Para Peter Singer (2008, p. 187),

Descartes conseguiu evitar a conclusão herética e desagradável de que os humanos são máquinas introduzindo a ideia de alma, este filósofo afirmou haver não um mas dois tipos de coisas no universo: as coisas do espírito ou alma e coisas da natureza física ou material. Os seres humanos têm consciência, e a consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência, com a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, disse Descartes, apenas os seres humanos possuem alma.

A filosofia cartesiana, portanto, incorporou a doutrina cristã de que os animais não possuiriam alma. Como consequência extraordinária, os animais não possuindo alma, não possuiriam consciência. Não tendo consciência/alma, os animais seriam apenas matéria bruta, inanimados, no sentido puro do vocábulo, seres sujeitos às leis mecânicas tal qual como qualquer outro objeto. Não sentiriam dor nem prazer, pois seriam meros autômatos.

Foi nesse período que as práticas de experimentação com animais vivos se disseminaram pela Europa. Uma vez que não havia anestesias, estas experiências certamente provocaram dores atrozes nos animais. Sobre não experienciar dor nem prazer, nem nada, os animais seriam meras máquinas, autômatos. Esse entendimento permitia que os experimentadores ignorassem quaisquer escrúpulos que pudessem sentir nestas circunstâncias.

Singer (2008, p. 188) apresenta um relato sobre alguns experimentadores que eram adeptos da tese cartesiana, a partir de um testemunho ocular ocorrido no seminário jansenista de Port-Royal no final do século XVII:

Batiam nos cães com indiferença e troçavam daqueles que se apiedavam das criaturas, como se elas sentissem dor. Diziam que os animais eram relógios; que os gritos que emitiam quando eram golpeados era o ruído de uma pequena mola que tinha sido acionada, mas o corpo não tinha sensibilidade,

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pregavam as quatro patas dos pobres animais a tábuas para os dissecar e observar a circulação do sangue, que constituía o tema da conversa.

E no já mencionado Discurso do Método, ao tratar sobre a constituição dos nervos e músculos do corpo humano, Descartes (2013, p. 85-88) discorre sobre a teoria da automação dos animais nos seguintes termos:

[...] O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo quanto autômatos, ou máquinas moventes, a indústria dos homens pode criar, utilizando-se poucas peças em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, hão de considerar esse corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e possui em si movimentos mais admiráveis do que nenhuma das que podem ser inventadas pelo homem. E nesse ponto me detive particularmente para mostrar que, se houvesse máquinas que tivessem os órgãos e a figura exterior de um macaco ou de outro animal sem razão, não teríamos nenhum meio de reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais; ao passo que, se houvesse algumas que tivessem a semelhança de nossos corpos e imitassem as nossas ações tão moralmente quanto possível, teríamos sempre dois meios muitos seguros de reconhecer que elas nem por isso seriam verdadeiros homens. O primeiro é que jamais poderiam usar palavras nem outros sinais, compondo-os como fazemos para declarar aos outros nossos pensamentos. Pois pode-se perfeitamente conceber que uma máquina seja feita de modo a proferir palavras, e mesmo a proferir algumas a propósito das ações corporais que causarão alguma mudança em seus órgãos, como, se a tocarem em algum lugar, perguntar o que lhe querem dizer, se a tocarem num outro, gritar que a machucaram, e coisas semelhantes; mas não que ela as disponha diversamente para responder ao sentido de tudo que se disser em sua presença, como fazem os homens mais embrutecidos. E o segundo é que, embora façam coisas tão bem ou talvez melhor que qualquer um de nós, elas infalivelmente deixariam de fazer algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem por conhecimento, mas apenas pela disposição de seus órgãos. Pois, enquanto a razão é um instrumento universal que pode servir em todo tipo de circunstância, esses órgãos têm necessidade de uma disposição qualquer para cada ação particular; do que resulta ser moralmente impossível que haja disposições bastante diversas numa máquina para fazê-la agir em todas as ocorrências da vida, da mesma maneira que nossa razão faz agir. Ora, por esses mesmos dois meios pode-se também conhecer a diferença que existe entre os homens e os animais. Pois é uma coisa muito notável que não há homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os loucos, que não sejam capazes de dispor juntas diversas palavras, e de compor com ela um discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; ao contrário, não há nenhum outro animal, por mais perfeito e bem-nascido que possa ser, que faça o mesmo. O que não acontece por lhe faltarem órgãos, pois sabemos que as pegas e os papagaios podem proferir palavras como nós, sendo no entanto incapazes de falar como nós, isto é, de testemunha que pensam o que dizem; enquanto os homens que, nascidos surdos e mudos, são privados, tanto ou mais que os animais, dos órgãos que servem aos outros para falar, costumam inventar eles próprios alguns sinais, fazendo-se entender por aqueles que, vivendo ordinariamente com eles, têm vontade de aprender sua língua. E isto mostra não apenas que os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm nenhuma.

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Filosoficamente, percebe-se que Descartes associou a moralidade à consciência, e esta, às capacidades intelectuais superiores, como a racionalidade e a linguagem. Para ele, já que os animais não possuem uma mente (ou alma racional), eles não podem pensar, ter consciência e linguagem; portanto, eles não podem ter a experiência do sofrimento. Em outras palavras, os animais não podem sofrer porque eles não têm condições mentais para isso.

A perspectiva cartesiana sustenta que, dado que os animais são irracionais ou desprovidos de consciência, e a dignidade depende inteiramente da razão, os animais não têm qualquer importância moral. Essa mesma perspectiva pode ser encontrada ainda hoje, principalmente no que tange aos experimentos biomédicos, testes de produtos e educação/ensino, onde continuam sendo utilizados em larga escala.

Pela tese cartesiana, possuir alma, razão/racionalidade e linguagem são habilidades exclusivamente humanas e serviram (como ainda hoje servem) para justificar a desconsideração moral dos animais. Nesse sentido, Daniel Braga Lourenço (2008, p. 196) diz que

[...] Descartes nos deixou dois legados particularmente terríveis e perenes: o de que a dor e o sofrimento seriam exclusivos da experiência humana – o que tornava os animais passíveis de qualquer destino nas mãos dos homens – e o dualismo “corpo/alma”, negando a “animalidade” ao homem, tornando-o um ser absolutamente “desnaturalizado”.

A contribuição filosófica cartesiana moldou o pensamento moderno e influencia até hoje o método de abordagem científica (e o Direito não fica alheio a tal condicionamento). Ao afirmar que os animais não possuem nenhuma razão, e, portanto, nenhum valor intrínseco, Descartes abriu caminho para a separação entre humano e Natureza que até hoje marca a abordagem científica e quase todas as áreas do conhecimento, bem como para o processo de instrumentalização e apropriação da Natureza e dos recursos naturais.

1.2 Do direito natural à propriedade

Embora os animais venham sendo considerados propriedade há muito tempo, o principal arquiteto de nosso atual conceito de propriedade privada, e dos animais como propriedade privada, foi John Locke (1632-1704).

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A noção do direito de propriedade elaborada por ele, no sentido de que o domínio confere um direito exclusivo ao seu titular sobre determinado bem, oponível a terceiros, transformou-se na pedra de toque da teoria moderna da propriedade privada.

Como a maioria das pessoas de sua época, Locke era adepto da crença judaico-cristã sobre a criação do universo e o estabelecimento da supremacia humana por Deus. Gary L. Francione (2013, p. 118) faz menção ao livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia, da qual ele extrai a seguinte trecho, de profunda influência sobre Locke, onde Deus disse: “Façamos o homem a Nossa semelhança; que ele tenha o domínio sobre os peixes do mar, as aves do ar e os animais domésticos, sobre toda a terra e todas as coisas rastejantes sobre a terra”. A partir dessa passagem, entendeu-se que Deus criou a Terra e seus recursos para o uso comum de todos os humanos. Mas como os recursos poderiam ser de todos ao mesmo tempo, sem que houvesse uma disputa pelos mesmos recursos? Locke apresentou uma solução para esse problema, a qual chamou de direito natural à propriedade baseada no trabalho.

John Locke (2005, p. 406-409, grifo nosso) assim explica:

Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, a fim de que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida. A Terra, e tudo quanto nela há, é dada para o sustento

e o conforto de sua existência. E embora todos os frutos que ela naturalmente produz e os animais que alimenta pertençam à humanidade em comum, produzidos que são pela mão espontânea da natureza, e ninguém tenha originalmente um domínio particular sobre eles à exclusão de todo o resto da humanidade, por assim estarem todos em seu estado natural, é, contudo, necessário, por terem sido essas coisas dadas para uso dos homens, haver um meio de apropriar parte delas de um modo ou de outro para que possam ser de alguma utilidade ou benefício para qualquer homem em particular. [...] Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e as obras de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado em que a natureza o proveu e deixou, mistura-se com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sutransformando-a propriedtransformando-ade. Sendo por ele retirtransformando-adtransformando-a do esttransformando-ado comum em que transformando-a

natureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens.

No contexto acima, Deus não só presenteou a humanidade com tudo o que há na terra, incluindo, claro, as “criaturas inferiores”, mas também lhe deu a dádiva da razão, para que fosse capaz de utilizar todos os recursos da melhor maneira possível. Assim como defende Locke, a razão obriga a humanidade a fazer bom uso dos recursos fornecidos pelo Criador, de

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modo que a quilo que está a sua disposição não é apenas para desperdiçar ou destruir, como fica claro nessa passagem:

Deus nos deu tudo em abundância, é a voz da razão confirmada pela revelação. Mas até que ponto ele no-lo deu? Para usufruirmos. Tanto quanto qualquer pessoa possa fazer uso de qualquer vantagem da vida antes que se estrague, disso pode, por seu trabalho, fixar a propriedade. O que quer que esteja além disso excede sua parte e pertence aos outros. Nada foi feito por Deus para que o homem estrague ou destrua. [...] Quando deu o mundo comum para toda a humanidade, Deus ordenou também que o homem trabalhasse, e a penúria de sua condição assim o exigia. Deus e sua razão ordenaram-lhe que dominasse a Terra, isto é, que melhorasse para seu benefício da vida, e que, dessa forma, depusesse sobre ela algo que lhe pertencesse, o seu trabalho (LOCKE, 2005, p. 412-413).

Trata-se de um raciocínio incisivo, servindo para enunciar em alto e bom tom a crença total e absoluta de Locke de que a razão é também o modo de cooperação entre os homens, já que ele afirmava que “[...] à razão concedida por Deus para ser uma regra entre um homem e outro [é] um vínculo comum pelo qual o gênero humano se une numa única irmandade e sociedade.” (LOCKE, 2005, p. 539).

Fica claro que é o trabalho que distinguirá aquilo que é possuído no sentido privado e o que é possuído em comunidade. O trabalho surge como o verdadeiro e original fundamento do direito de propriedade:

Antes da apropriação da terra, aquele que colhesse tantos frutos selvagens, matasse, apanhasse ou domasse tantos animais quantos pudesse; aquele que empregasse seus esforços em qualquer dos produtos espontâneos da natureza, bem como qualquer maneira de alterá-los em relação ao estado em que ela os deixou, colocando nisso qualquer parte de seu trabalho, adquiria dessa forma uma propriedade sobre eles. (LOCKE, 2005, p. 418).

Francione (2013, p. 177) ao tratar da questão da propriedade, e demonstrar a importância e influência da teoria lockeana da propriedade, é muito claro ao afirmar que a domesticação e a posse de animais estão intimamente relacionadas com a ideia de propriedade. Assim,

Os animais são nossa propriedade; eles são coisas que possuímos. Em virtualmente todos os sistemas políticos e econômicos modernos, os animais são explicitamente considerados mercadorias cujo único valor é aquele que lhe é atribuído por seus proprietários – sejam indivíduos, corporações ou governos.

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E a importância do direito de propriedade e o papel dos animais como propriedade estão claramente ilustrados na obra de John Locke. Nesse sentido, Edna Cardozo Dias (2000, p. 17) ressalta que:

Locke coloca o homem, na sua origem, como senhor de todas as criaturas inferiores, podendo fazer delas o que lhe aprouver. Em princípio, tudo pertence a todos. Entretanto, a força do trabalho pertence a cada um individualmente, o que vem constituir a primeira forma de propriedade privada. Com ela o homem pode se apossar de frutos da Terra e das criaturas. Pertence a quem caçar ou pescar o animal perseguido. Assim, Locke retirou da natureza o animal, tornando-o propriedade privada. A natureza extra-humana não tem vontades nem direitos; constitui recursos à disposição de toda humanidade. Pertence a quem delas tiver o trabalho de se apossar.

E Locke (2005, p. 299-300), abre uma exceção à regra sobre “não desperdiçar ou destruir” os recursos adquiridos pelo trabalho, justamente quanto se trata de apropriar-se dos animais:

A propriedade, cuja origem se encontra no direito de que tem o homem de utilizar qualquer uma das criaturas inferiores para sua subsistência e conforto de sua vida, destina-se ao benefício e vantagem exclusiva do proprietário, de forma que este poderá até mesmo destruir, mediante o uso, aquilo de que é proprietário, quando o exija a necessidade.

Para ele, Deus deu aos seres humanos o domínio sobre a criação. Os animais, nesse sentido, não difeririam de nenhum outro recurso ou objeto passível de apropriação. O direito de propriedade sobre os animais teria o mesmo viés de qualquer outra forma de propriedade sobre outros recursos. O homem tem o direito ao uso das criaturas, pela vontade e concessão de Deus, para a sua autopreservação e conservação.

[...] Deus, depois de haver criado o homem, implantando nele, bem como em todos os outros animais, um forte desejo de autoconservação e provendo o mundo das coisas adequadas à alimentação, ao vestuário e a outras necessidades da vida, para que se servissem a seu desígnio de que o homem vivesse e habitasse por algum tempo a face da Terra e que tão curioso e esplêndido artefato [o homem] não viesse a perecer de pronto, ao cabo de alguns instantes de subsistência, por sua própria negligência ou falta do que necessitasse, Deus, digo eu, após haver criado o homem e o mundo dessa forma, falou a ele, isto é, orientou-o através dos seus sentidos e da razão – tal como o fez para com os animais através dos sentidos e instinto destes, os quais introduzira neles com essa finalidade – quanto ao uso das coisas que eram úteis à sua subsistência e que lhe eram dadas como meios de sua conservação. (LOCKE, 2005, p. 293).

A abordagem lockeana é bastante clara no que se refere ao status jurídico e moral dos animais: eles são recursos, mercadorias apropriáveis pelo trabalho, sobre os quais os seres

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humanos detém um direito de propriedade. Francione (apud TRINDADE, 2014, p. 131), clarifica que “Locke possibilita que o conceito de ‘propriedade animal’ seja não apenas filosófica, mas também jurídica e economicamente admissível em sua teoria política.”.

Os animais, na teoria lockeana, não possuem qualquer significação moral, pelo fato de não passarem de “commodities”. De fato, “não pode haver qualquer subordinação entre nós [humanos] que possa autorizar que nos aniquilemos mutuamente, tal como se fossemos feitos para o uso uns dos outros, como as criaturas inferiores são para nós” (LOCKE, apud LOURENÇO, 2008, p. 224-225).

Como consequência disso, qualquer agressor que violasse os ditames da razão, deveria ser aniquilado como um animal, pois Deus ao dotar o homem com a razão, dela não poderia escusar-se:

Quando olhamos para nós mesmos como artefatos de Deus, reconhecemos sermos todos dotados de razão porque Ele a outorgou a nós e, portanto, qualquer homem que proceda de forma irracional é, nesta medida, um animal, e como tal poderá ser tratado. [...] qualquer homem que procure submeter outrem ao seu poder, a sua vontade, negando que esse outro indivíduo é tão livre quanto ele porque também é detentor de razão, assim se recusando a reconhecer na razão a regra entre os homens, tal homem torna-se

passível de ser destruído pela pessoa prejudicada e pelo resto da

humanidade, como qualquer outra besta selvagem ou fera nociva que proceda de modo destrutivo para com seus pares. (LOCKE, 2005, p. 139, grifo nosso).

Locke concebia o direito de propriedade como um direito natural. O direito de propriedade sobre as coisas e sobre os animais eram análogas, pois estes constituiriam, hierarquicamente, um degrau mais baixo da Criação e, portanto, não se exigiriam qualquer tipo de obrigação moral para com eles.

A justificativa ética da propriedade no sistema lockeano, portanto, se dá por meio de argumentos que pouco diferem dos demais pensadores da época. O direito da humanidade aos bens na natureza provém da concessão divina, relatada nas Escrituras, da racionalidade do homem e da lei natural fundamental da autopreservação.

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1.3 Um meio para um fim e os deveres indiretos

Os animais, para Immanuel Kant (1724-1804) não passam de meios para os fins humanos, e as obrigações que temos para com eles são apenas indiretas.

A filosofia kantiana apresenta uma fórmula demasiadamente antropocêntrica (nada diferente de Descartes e Locke), pois apenas o ser humano é tido como um fim em si mesmo, e está essencialmente baseada na razão, tanto que ele afirma que

[...] o homem – e, de uma maneira geral, todo ser racional – existe como fim, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que são a outros seres racionais, deve ele ser sempre considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm um valor apenas condicional, pois se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se fundamentam seria sem valor o seu objeto. As próprias inclinações, porém, como fontes das necessidades, tão longe estão de possuir um valor absoluto que as torne desejáveis em si mesmas que, muito pelo contrário, melhor deve ser o desejo universal de todos os seres racionais em libertar-se totalmente delas. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja

existência, não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio [...] (KANT, 2011, p.

58-59, grifo nosso).

O mundo concebido por Kant é, nesse sentido, um mundo marcado pela dicotomização, “coisas” versus “pessoas”. Em virtude de suas naturezas, estão indissociavelmente ligadas a um preço e a uma dignidade, respectivamente, sendo que, para explicar essa condição Kant cria um conceito que ele denomina reino dos fins.

No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade (KANT, 2011, p. 65).

Como se percebe, o ser racional possui dignidade, enquanto o ser irracional, um preço. E Kant (2011, p. 84) faz questão de ser incisivo quanto à importância da racionalidade enquanto diferença moralmente relevante, quando afirma que “o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade pela qual se distingue de todas as outras coisas [...] e essa faculdade é a razão”. Para ele, a natureza racional existe como um fim em si mesmo. Afirma, ainda, que “o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado

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como simples meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo.” (KANT, 2011, p. 60).

Nas suas ações, como fim em si mesmo, o homem deve obedecer a uma condição, que Kant chamou de imperativo categórico, e que pode ser descrito da seguinte forma: age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. Nesse sentido, Lourenço (2008) explica que a ação moral deve ser dotada de universalidade, ou seja, o motivo da ação moral deve ser liberto de qualquer motivação particular. Esta ética prescritiva teria como base o cumprimento do imperativo categórico, lei que se impõe universal a todos os seres racionais.

A moralidade, ou a ação moral, é tida para Kant como a “única condição que pode fazer de um ser racional um ser em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins.” (KANT, 2011, p. 65). Acrescenta que

Nada menos do que a possibilidade que proporciona ao ser racional de participar da legislação universal e o torna, por meio disso, apto a ser membro de um possível reino dos fins, ao qual estava destinado já por sua própria natureza e, exatamente por isso, como legislador do reino dos fins, como livre a respeito de todas as leis da natureza, obedecendo unicamente àquelas que ele mesmo se dá, e segundo as quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação universal (à qual ele simultaneamente se submete), pois coisa alguma tem outro valor senão aquele que a lei lhe confere.

E continua

Pois como a moralidade nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, ela tem de valer também para todos os seres racionais; e como não pode se derivar senão da propriedade da liberdade, a liberdade tem de ser demonstrada como propriedade da vontade de todos os seres racionais [...] e a todo ser racional que tem uma vontade devemos lhes atribuir necessariamente também a ideia da liberdade, sob a qual ele age. (KANT, 2011, p. 80-81).

Como legislador universal, o homem racional e livre, dotado de uma vontade autônoma (que é esta o princípio supremo da moralidade), deve estabelecer leis a si mesmo, como se estivesse a fazer para toda a humanidade, obedecendo sempre ao imperativo categórico.

Do imperativo categórico se podem derivar os imperativos do dever, sendo eles, “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza”

(22)

(KANT, 2011, p. 52, grifo do autor) e o imperativo prático “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2011, p. 59, grifo do autor).

Como bem explica Cleopas Isaias Santos (2015, p. 66),

O agir moral e a dignidade humana são inseparáveis. Ao se perceber capaz de legislar para si e para toda a humanidade, isto é, sabendo-se legislador universal, o homem sente-se convidado a reverenciar e respeitar todo ser humano. Este sentimento, que é, em verdade, uma exaltação ou uma estima de si mesmo, fá-lo ciente de seu valor e de sua própria dignidade.

No âmbito do Direito, o conceito kantiano da dignidade humana é ainda hoje amplamente contemplado, pois

Assume a condição de matriz axiológica do ordenamento jurídico, visto que é a partir deste valor e princípio que todos os demais princípios (assim como as regras) se projetam e recebem os impulsos para os seus respectivos conteúdos normativo-axiológicos [...] e a dignidade da pessoa humana apresenta-se, além disso, como a pedra basilar da edificação constitucional do Estado (social, democrático e ambiental) de Direito brasileiro [...] (SARLET;

FENSTERSEIFER, 2012, p. 177).

A filosofia kantiana, apesar de não considerar os animais como fins em si mesmos, negando que teríamos qualquer obrigação moral para com eles, “também pode ser elencada entre aquelas que servem de instrumento para promoção dos ditos deveres indiretos” (LOURENÇO, 2008, p. 314).

Os deveres indiretos têm uma razão de ser, por que

[...] não possuímos deveres diretos com relação aos animais. Animais não são autoconscientes, constituindo apenas meios para um fim. Esse fim é o homem [...]. Nossos deveres para com os animais consistem tão-somente em deveres indiretos para com a própria humanidade. A natureza animal possui semelhanças com a natureza humana e, cumprindo nosso dever perante os animais, estaremos indiretamente cumprindo nossos deveres junto à humanidade. Desta forma, se um cão serviu ao seu dono durante um longo período de tempo e foi sempre leal, por analogia com os serviços humanos, merecerá recompensa por isso e, quando o mesmo cão envelhecer a ponto de não mais conseguir ser útil, seu dono deverá mantê-lo ao seu lado até o fim de seus dias. Tal modo de proceder colabora para que respeitemos nossos deveres para com nossos semelhantes. Assim sendo, se os atos dos animais são análogos aos humanos e derivam dos mesmos princípios, temos deveres para com relação aos animais porque cultivamos os mesmos deveres com

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relação aos seres humanos. Se um homem abate seu cão somente porque este tornou-se imprestável, não infringe deveres com o cão, já que este não possui a capacidade de julgar, mas seu ato é desumano e atinge a humanidade que deve trazer consigo. Se não quiser acabar com seus sentimentos humanitários, deve praticar a compaixão com os animais, já que aquele que é cruel com eles, torna-se insensível no seu trato com os homens [...] nutrir sentimentos nobres para com os animais proporciona um alargamento dos sentimentos humanitários com a própria humanidade. (KANT apud LOURENÇO, 2008, p. 316).

Nesse sentido, o tratamento dispensado aos animais pelos seres humanos só é condenável se o ato em si for cruel, ou seja, destituído de uma razão lógica. O prazer em torturar e matar é errado, mas utilizá-los como meios para o fim humano, seja ele qual for (alimentação, vestuário, ciência, etc.), não haveria qualquer objeção. É, pois, o agir violento para com os animais que é criticado por Kant, porque esse agir poderá voltar-se contra a humanidade.

Fernando Araújo (2003, p. 17) cita outra passagem onde Kant ressalta essa preocupação.

Relativamente à parte da criação que é viva, apesar de desprovida de razão, a violência mesclada de crueldade no modo de tratar os animais é ainda mais profundamente contrária ao dever do homem para consigo mesmo, visto que isso entorpece no homem a simpatia para com o sofrimento daqueles, enfraquece e paulatinamente aniquila uma disposição natural, muito proveitosa para a moralidade na relação com os outros homens - ainda que, entre outras coisas, seja consentido aos homens matar os animais de uma forma célere (sem tortura), ou impor-lhes um trabalho (já que os próprios homens têm que se lhe submeter) na condição de que ele não exceda as suas forças; em contrapartida, há que condenar as experiências no decurso das quais os animais são martirizados por meros objetivos especulativos, quando se poderia atingir os mesmos fins sem recorrer a elas.

Se um indivíduo atua violentamente em sua interação com os animais, tal comportamento pode voltar-se aos seres humanos, ao passo que ações bondosas para com os animais refletiriam positivamente nas relações morais entre os seres humanos.

Certamente que os animais, por não possuírem razão e não serem autoconscientes, segundo Kant, não fazem parte da comunidade moral, não ensejando qualquer preocupação moral quanto a sua proteção que vá além dos deveres indiretos.

(24)

1.4 O especismo e a linguagem dissociativa

A mais evidente forma de refutar a ideia de que os animais devam fazer parte da comunidade moral e usufruir de proteção jurídica é dizer que eles não são humanos. Como se não bastasse, há uma necessidade latente do ser humano de autopromover-se, a partir daquilo que elege como sendo excepcional de sua espécie, como por exemplo, a racionalidade, a linguagem e uso de símbolos, a capacidade reflexiva, a consciência de si e assim por diante.

Por isso, talvez, a forma de preconceito mais usual utilizada em relação aos animais seja o especismo. Talvez, mais do que os argumentos em relação à ausência de alma, razão, autonomia, linguagem (os quais também são utilizados dentro do especismo, para exaltá-lo), utilizados para evidenciar as diferenças entre seres humanos e as outras espécies de animais.

O termo especismo foi cunhado originalmente pelo psicólogo e cientista inglês Richard D. Ryder, em 1970. O autor utilizou esse termo em diferentes edições de um panfleto distribuído nos corredores da Universidade de Oxford nos primeiros anos de 1970. O panfleto tinha o intuito de denunciar o comportamento discriminatório e os hábitos cruéis advindos dos seres humanos para com os membros das outras espécies.

De acordo com Ryder (apud TRINDADE, 2014, p. 43), o termo especismo tem a função de

[...] descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de preconceito que se baseiam em aparências – se o outro individuo aparenta ser diferente é considerado como estando fora do âmbito moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas inteligentes e compassivas, e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até mesmo sexismo) não levam em conta ou menosprezam as semelhanças entre os discriminadores e discriminados, e ambas as formas de preconceito, expressam um desprezo egoísta pelos interesses dos outros e seu sofrimento.

E no decorrer dos últimos quarenta anos, o conceito de especismo foi vastamente problematizado e reformulado por uma miríade de autores, com vistas a uma interpretação mais refinada das relações morais estabelecidas entre humanos e os membros de outras espécies.

(25)

Hoje, talvez o conceito de maior evidência seja a definição dada por Francione (2013). Para ele, o especismo não é outra coisa senão a utilização do simples pertencimento à espécie humana para justificar o status de propriedade dos animais. É o paradigma legal sob o qual o especismo está alicerçado. E ainda há um grande grupo de argumentos cujo objetivo é justificar a exclusão dos animais da comunidade moral a partir de uma suposta inferioridade natural pela ausência de capacidades/habilidades que seriam tipicamente humanas.

Certamente o melhor material que discute essa temática de exploração animal, a partir de argumentos tipicamente antropocêntricos, é “Ética & animais: um guia de argumentação filosófica”, do filósofo Carlos M. Naconecy. Nele estão contidos diversos tópicos (principalmente o capítulo 3), onde o autor apresenta os argumentos (ao mesmo tempo em que demonstra como refutá-los eticamente) que evidenciam uma suposta superioridade humana sobre os animais, e que está fortemente impressa na mentalidade da civilização ocidental, a qual tem tradicionalmente se limitado à autopromoção da excepcionalidade de sua espécie.

Essa autopromoção vem sendo historicamente construída. Segundo Steven J. Bartllet (2007, p. 41),

O movimento que postula a pretensa superioridade humana está devidamente internalizado e conta com mecanismos eficazes que perpetuam o paradigma. Sob essa ótica, seria perfeitamente aceitável que: “o mundo foi criado tão somente para o beneficio do homem que, por sua vez, ocupa o topo da ordem da criação. Os homens porque dotados de razão estão em lugar de destaque na hierarquia natural e, deste modo, podem tiranizar a natureza sem enfrentar qualquer dilema moral”. Resumidamente, tornou-se lugar-comum afirmar que: “tudo existe para a satisfação daqueles dotados de racionalidade, isto é, para os seres humanos”.

Essa ideologia de autopromoção e, ao mesmo tempo, autopreservação, constitui uma forte fonte de explicação para a forma que os animais são tratados. Melanie Joy (2014, p. 32) explica que “uma ideologia é um conjunto compartilhado de crenças, assim como as práticas que refletem essas crenças.” E Singer (apud BARTLLET, 2007, p. 29-30) assinala que,

Uma das características típicas de uma ideologia é a capacidade que ela possui de resistir à refutação. Se uma das bases de sustentação de uma determinada posição ideológica é minada, novas surgirão automaticamente para ocupar o seu lugar, ou a antiga permanecerá, ainda assim, intacta, mesmo desafiando o equivalente lógico das “leis da gravidade”.

(26)

Joy (2014, p. 103-107), ao retratar a ideologia de exploração animal para alimentação, por exemplo, busca explicar como ela se dá de forma normal, natural e necessária:

Quando encaramos os princípios de uma ideologia como normal, isso significa que a ideologia adquiriu um caráter normativo e seus princípios viraram normas sociais. Normas sociais não são meramente descritivas (mostrando como a maioria das pessoas se comporta), são também prescritivas, ditando como devemos nos comportar. Normas são socialmente construídas. Não são inatas e não vêm de Deus (embora possam ter ensinado diferente a alguns de nós); são criadas e sustentadas por pessoas, servindo para nos manter em linha para que o sistema permaneça intacto. [...] A maioria das pessoas acredita que comer carne é natural porque há milênios os seres humanos têm caçado e consumido animais. [...] O modo como “natural” se traduz em “justificável” se dá por meio do processo de naturalização. [...] Quando uma ideologia é naturalizada, acredita-se que seus princípios estejam de acordo com as leis da natureza. A naturalização reflete uma crença no modo como as coisas estão destinadas a ser; comer carne é visto como simplesmente seguir a ordem natural das coisas. [...] As disciplinas básicas que dão suporte à naturalização são a história, a religião e a ciência. A história nos brinda com um foco histórico seletivo e “fatos” que provam que a ideologia sempre existiu. A lente histórica eterniza a ideologia, fazendo parecer que ela mostra como as coisas sempre foram e, portanto, sempre serão. A religião defende a ideologia como fruto da ordenação divina e a ciência prove a ideologia de uma base biológica. [...] A naturalização torna a ideologia histórica, divina e biologicamente irrefutável. [...] A crença de que comer carne e necessário está intimamente relacionada à crença de que comer carne é natural; se comer carne é um imperativo biológico, trata-se então de uma necessidade para a sobrevivência da espécie (humana). E, como acontece com todas as ideologias violentas, essa crença reflete o paradoxo central do sistema: matar é necessário para o bem maior; a sobrevivência de um grupo depende da morte do outro.

Ela os chama de os Três N’s, os quais são completamente interiorizados pelos seres humanos, que costumam viver de acordo com seus princípios, como se eles fossem verdades universais, em vez de opiniões muito difundidas.

Bartllet (2007) vai mais longe, e afirma que os seres humanos sofrem de um narcisismo doentio, que é caracterizado pela necessidade de autoafirmação, conjugada com uma postura de não admissão dos próprios erros, de orgulho e por refutação constante de uma possível falibilidade. Tudo isso ela atribui a um déficit de empatia, que ocasiona um entorpecimento psicológico levando as pessoas, voluntariamente, a não se questionarem sobre princípios ideológicos e políticas sociais que legitimam enormes atrocidades em relação aos animais.

Associada a essas práticas, verifica-se também a partir de Joy (2014, p. 112-119), uma distorcida realidade de quem são os animais, que ela denomina de Trio Cognitivo, que são: a

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objetivação, a desindividualização, e a dicotomização. Esse trio cognitivo revela uma desnaturalização da vida animal, os quais passam a ser vistos como coisas, abstrações, adequações para o consumo humano. Ela explica (ainda falando sobre a indústria da exploração animal para a alimentação humana) que

A objetivação é o processo de encarar um ser vivo como um objeto inanimado, uma coisa [...] especialmente por meio da linguagem. Objetivar a linguagem é um poderoso mecanismo de distanciamento. Pense em como os trabalhadores de matadouros se referem aos animais que vão matar como os objetos que eles vão se tornar, não com animais vivos que são: os frangos são chamados de espetos, os porcos de presunto, e os bois de bife. [...] A desindividualização é o processo de encarar os indivíduos apenas em termos de sua identidade de grupo, como se tivessem as mesmas características de qualquer outro membro do grupo. [...] não pensamos neles como indivíduos, com suas personalidades e preferências. Nós os vemos, certamente, como uma abstração, como um grupo. [...] A dicotomização é o processo de encaixar mentalmente os outros em duas categorias, frequentemente em oposição, com base em nossas crenças sobre eles. [...] Quando se trata de carne, as duas categorias principais que temos para os animais são comestíveis e não comestíveis.

A forma como falamos dos animais é um meio de encaixá-los pela utilidade. O uso de uma linguagem conceitual, portanto, em associação com características tidas como exclusivamente humanas são utilizadas para diferenciar os seres humanos dos animais. Essas características seriam condicionantes a garantir quem possuiria direitos ou não.

Vemos os animais sendo distanciados de sua natureza enquanto indivíduos, desnaturalizados, para se tornarem objetos inanimados, recebendo denominações enquanto grupos, perdendo a sua individualidade, tornam-se abstrações. São representados por expressões utilitaristas conhecidas tipo “res”, “peças, “carcaças”, “matrizes”, “cabeças”, “modelos”, “semoventes”, ambíguas como “objeto material”, “cobaias”, “manejo”, “sacrifício”, ou então aquelas que evidenciam algum tipo de submissão, como animais “de corte”, “de guarda”, “de consumo”, “de companhia”, “de tração”, dentre outras tantas, incorporando-se, sem maiores questionamentos éticos, ao costume dos povos.

Assim, o movimento que sustenta a superioridade humana está internalizado e conta com mecanismos eficazes que perpetuam esse paradigma. Há a ideia perfeitamente aceitável para a maioria das pessoas de que o mundo natural foi criado tão somente para o benefício humano. Por ser dotado de razão, linguagem e autonomia, o homem está em lugar de destaque na hierarquia natural, e desse modo, pode, sem constrangimento moral algum tiranizar a

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natureza. Resumidamente, tornou-se lugar comum a afirmação de que tudo existe para a satisfação daqueles dotados de racionalidade, isto é, para os seres humanos.

(29)

2 OS DIREITOS ANIMAIS E O NOVO STATUS JURÍDICO E MORAL DOS ANIMAIS

O movimento dos direitos animais trabalha com outro olhar sobre a relação dos seres humanos com os animais. A discussão acerca desse olhar evidencia que há uma possibilidade de superação do paradigma antropocêntrico, e reconhece a dignidade da vida para além do ser humano.

A abordagem de tal temática exige, portanto, uma descrição, mesmo que breve, das razões utilizados como meios para garantir a modificação do status jurídico e moral dos animais, tais como a senciência e o principio da igual consideração de interesses semelhantes, bem como os desdobramentos jurídicos e morais a partir delas.

2.1 A senciência e os deveres diretos

Analisando os argumentos tradicionais de exclusão dos animais da comunidade moral (Capítulo 1), verificamos uma inconsistência generalizada que não resiste ao escrutínio moral. Podemos pegar aqueles argumentos e desconstruí-los moralmente, a fim de demonstrar sua inaplicabilidade universal1.

Senão, vejamos: utilizando a teoria dos Casos Marginais (ou Casos Não Paradigmáticos), Naconecy (2014) explica que se ao ser humano é moralmente permitido utilizar animais para seu beneficio porque eles carecem de racionalidade (ou qualquer outra aptidão logicamente relacionada a essa – linguagem, autonomia, etc.), não haveria nenhum fundamento para não se estender a mesma justificativa às pessoas não racionais, o que resultaria em eliminar da comunidade moral aqueles que nunca tiveram e, em alguns casos

1

Os requisitos dos princípios éticos são: a) gerias em sua forma, ou seja, ele é geral quando não se refere a pessoas individuais ou ações individuais. [...] A regra ‘não matar’, por exemplo, é perfeitamente geral em sua forma, uma vez que estabelece uma proibição sobre todas as ações de certo tipo; b) universalmente aplicáveis a todos os agentes morais enquanto tais, ou seja, deve ser concebido a ser universalmente aplicável e universalmente comprometedor. Uma regra que não atende a essa imparcialidade não é uma regra moral. É por falta dessa universalizabilidade que as prescrições jurídicas e sociais (aplicáveis a um determinado grupo humano) e as prescrições religiosas (aplicáveis somente aos crentes) não são prescrições morais; [...] c) aplicados desinteressadamente, ou seja, deve ser seguido por cada pessoa independentemente do fato de que isso possa lhe trazer alguma vantagem, atenda aos seus interesses ou alcance os objetivos e fins particulares; d) pleiteados como princípios a seres adotados por todos, ou seja, ele será válido apenas se aquele que o aceita como seu

próprio princípio orientador também deseja e tem uma atitude de aprovação com relação a ser adotado e reconhecido por todos os indivíduos; e) sobrepujar todas as normas não morais, ou seja, deve ser prioridade e preceder todas as considerações não morais (aquelas que não atendem aos requisitos anteriores). (TAYLOR apud NACONECY, 2014, p. 42-44, grifo do autor).

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nunca terão essas habilidades. Mas, de fato, ninguém aceitaria que os seres humanos tivessem o mesmo tratamento dispensado aos animais, mesmo que eles [os humanos] sofram a ausência das capacidades que supostamente também faltariam aos animais. E essa não deixa de ser uma manifestação especista. E como tal, não se sustenta moralmente.

Portanto, os argumentos de Descartes, Locke, Kant e a ideia de que os animais são inferiores porque “não são humanos”, demonstram sofrer de uma profunda falta de coerência moral. Mas devido à ideia da superioridade humana ainda estar fortemente impressa na mentalidade da civilização ocidental, que tradicionalmente tem se limitado à autopromoção da pretensa excepcionalidade da espécie de forma narcisista, somada a uma visão de mundo baseada num destrutivo paradigma que torna o ser humano conquistador e dominador da natureza e dos animais, fica muito difícil de romper com essa hierarquização, apesar de que, como visto acima, ser insustentável moralmente.

Por isso, a sugestão apresentada por Francione (2013), no que diz respeito à inclusão dos animais na comunidade moral, surge como uma nova proposta ético-filosófica, fundada em apenas uma característica: a senciência.

A senciência2 é a consciência de sentir dor/prazer. Em outros termos, significa que um ser senciente é um ser que possui um bem-estar experimental, ou seja, é capaz de sofrer e sentir prazer. Mas ela pode ser entendida como muito mais do que apenas isso. Conforme Marc Bekoff (2010), as pesquisas científicas sobre biologia evolucionária, etologia cognitiva e neurociência social apoiam a tese de que várias espécies animais têm uma vida emocional rica e profunda, fruto da evolução, caracterizada por adaptações necessárias para regular uma variada gama de interações sociais, permitindo aos animais se projetarem de maneira adaptativa e flexível, usando vários padrões de comportamento numa grande variedade de situações.

Essa tese foi corroborada através daquela que ficou conhecida como Declaração de Cambridge (2015). No dia 7 de julho de 2012, um grupo internacional de neurocientistas,

2

Lourenço (2008) explica que foram Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) os principais pensadores responsáveis pelo surgimento da visão denominada ‘utilitarismo clássico’ (que não será trabalhado explicitamente nessa pesquisa), onde a posse da senciência e não da racionalidade, autonomia, ou capacidade linguística, era o que viria a conferir consideração moral direta a um dado ser. Já que os animais são sencientes, o dever para com eles deve ser direito, de modo a garantir que não sofram sem que haja boas razões para tanto. No entanto, esses autores nunca criticaram a condição de propriedade dos animais, o que leva a uma não consideração moral efetiva, já que as teses bem-estaristas incorporaram nas legislações a ideia utilitarista e não de direitos.

(31)

neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reuniram-se para reavaliar os substratos neurobiológicos da experiência consciente e comportamentos relacionados aos seres humanos e outros animais. Dessa reunião saiu a seguinte declaração:

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.

Não obstante, apesar do acúmulo de provas científicas e da crença popular disseminada, alguns membros da comunidade científica ainda continuam céticos. Alguns ainda duvidam até mesmo da existência das emoções dos animais, e muitos que acreditam que elas de fato existam tendem a pensar que devem ser menos complexas que as emoções humanas. Mas o importante é que as provas estão disponíveis, sendo, talvez, a maior barreira a ser superada a ideia de que as diferenças interespécies são mais importantes que as semelhanças. A questão é: seria possível superar o narcisismo humanista?

Quando se busca defender (moral e juridicamente) os vulneráveis, como por exemplo, as crianças, principalmente as recém-nascidas, os senis e os que por alguma deficiência mental permanente não possam exprimir sua vontade, não é porque não podem raciocinar, porque não podem falar ordenadamente manifestando seus desejos, mas porque eles são passíveis de sofrer. E esse é um pressuposto que não reside exclusivamente na espécie humana, portanto, não pode ser critério de exclusão das outras espécies de animais, já que hoje sabemos muito mais em termos científicos do que a duzentos anos sobre a vida animal e suas relações.

Todo ser senciente possui um “eu” que está ciente da dor e do prazer que ele ou ela experienciar. Isso significa que esse ser é capaz de desfrutar de boas experiências, não há porque duvidar que isso seja do seu interesse. A senciência é um mecanismo biológico evolutivamente produzido para auxiliar na sobrevivência de organismos complexos. A ideia de que um organismo possa evoluir de modo a desenvolver uma consciência da dor e do prazer, porém, ao mesmo tempo, não demonstrar um interesse de permanecer vivo seria, em

(32)

essência, o mesmo que afirmar que seres conscientes não têm um interesse em permanecer conscientes.

Segundo Francione (2013), nenhuma outra característica além da senciência é necessária para que um ser vivo seja considerado um verdadeiro membro da comunidade moral. Ele busca uma igualdade moral baseada em uma característica que não possibilita o surgimento de hierarquias interespécies. Se um ser é senciente, ele possui ao menos um interesse em não sofrer. Isto é o suficiente para que ele ou ela possa ser incorporado na esfera da moralidade. Ou seja, esse indivíduo (humano ou animal) passa a ser considerado uma pessoa moral. Para Francione, uma pessoa é um ser senciente para o qual o princípio da igual consideração de interesses semelhantes é aplicável e ao qual não se pode impor a condição de simples recurso econômico.

2.2 O princípio da igual consideração de interesses semelhantes

Certamente que há importantes diferenças óbvias entre seres humanos e outros animais, e elas devem traduzir-se em algumas diferenças nos direitos que cada um deva vir a ter. Essas diferenças dão origem a diferentes direitos.

Por isso Singer (2008), ao buscar trabalhar com a ideia do princípio da igual consideração de interesses semelhantes verifica que a extensão do princípio básico da igualdade de um grupo [humano] a outro não implica que se deve tratar ambos os grupos exatamente da mesma forma, ou conceder os mesmos direitos aos dois grupos, uma vez que isso depende da natureza dos membros dos grupos. O princípio básico da igualdade não requer um tratamento igual ou idêntico; requer apenas consideração igual. A consideração igual para com os diferentes seres pode conduzir a tratamento diferente e a direitos diferentes. Singer (2008, p. 4, grifo do autor) continua e afirma que,

A igualdade é uma ideia moral, e não a afirmação de um facto. Não existe nenhuma razão obrigatória do ponto de vista lógico para uma diferença factual de capacidade entre duas pessoas justificar qualquer diferença na consideração que damos às suas necessidades e interesses. O princípio da igualdade dos seres humanos não constitui uma descrição de uma suposta igualdade factual existente entre os humanos: trata-se de uma prescrição do modo como devemos tratar os seres humanos.

(33)

Como nota Francione (2013), não há nada de incomum ou particularmente complexo no princípio da igual consideração interesses semelhantes, sendo este, em realidade, um componente essencial em qualquer teoria moral. O princípio em pauta requer apenas que casos similares sejam tratados de modo similar – isto é, interesses semelhantes devem ser avaliados como semelhantes.

Um ser vivo senciente é um ser portador de consciência, capaz de ter experiências subjetivas de dor e sofrimento. Seres sencientes são aqueles que possuem um interesse fundamental, o de não experienciar dor e sofrimento. Ou seja, seres sencientes preferem, desejam ou querem evitar essas sensações. Animais (humanos e não humanos) podem demonstrar outros interesses, porém, enquanto sencientes, seu interesse mais básico é o de evitar o sofrimento.

Nesse sentido, é importante observar o que Francione (apud TRINDADE, 2014, p. 57-58) escreve em relação a um interesse em não sofrer e aquilo que ele chama de interesses triviais.

O interesse em não sofrer é, para Francione, o interesse mais fundamental que um ser senciente possui. O interesse em não sofrer é tão essencial ao ponto dele sugerir que já é parte integral do pensamento moral a ideia de que o fato de uma ação causar sofrimento conta como uma razão contra essa ação, não meramente porque impor sofrimento em outro ser senciente nos diminui de alguma forma, mas porque infligir dano em outro ser senciente é algo errado em si mesmo.

Por seu turno, os interesses triviais dizem respeito ao mero prazer humano, ao divertimento e à conveniência. Os interesses triviais, na concepção de Francione, deveriam sempre ser considerados como estando abaixo do interesse de não sofrer. Por exemplo, se um determinado indivíduo sente prazer em espancar animais até a morte, esse prazer (por mais intenso que seja) jamais poderia ser considerado como justificativa para o que o interesse do não humano em não sofrer seja violado.

Entretanto, é preciso notar que, embora o interesse em não sofrer deva ser tratado como estando acima de interesses triviais, o que ocorre nas relações morais mantidas entre humanos e animais, é a inversão da relevância desses interesses.

Trindade (2014, p. 59-60) relaciona ainda três aspectos gerais acerca do princípio da igual consideração de interesses semelhantes e que devem ser observados:

(34)

Primeiramente, no tocante à esfera filosófica, salienta-se que é um princípio forma, ou seja, ele diz respeito à forma do raciocínio moral, sem nada proclamar sobre o seu conteúdo. Ele requer apenas que seja legada igual consideração de interesses, que casos similares sejam tratados de modo similar. Nesse sentido, o princípio em pauta não diz nada sobre quaisquer benefícios particulares que deveriam ser proporcionados a alguém, ou mesmo que se devesse proporcionar quaisquer benefícios além da própria igual consideração.

Em segundo lugar, como explica Francione, o princípio não requer que todos sejam tratados como ‘iguais’ ou como ‘o mesmo’, mas apenas que os indivíduos alvos do princípio tenham os interesses considerados igualmente. Isso significa dizer que ele é um princípio mínimo de igualdade, ou seja, que não impõe um tratamento igual, mas igual consideração. Assim, a aplicação do princípio da igual consideração de interesses semelhantes, por vezes, é passível de culminar em algo que poderia ser visto como um resultado não igualitário. A consideração de interesses deve ser igual, o que não implica que o peso dos interesses considerados seja o mesmo.

Em terceiro lugar, esse princípio é um componente necessário de qualquer teoria moral. Ele representa a prática da imparcialidade e universalidade necessárias para a avaliação de interesses morais.

No entanto, existe um grande empecilho para que o princípio da igual consideração de interesses semelhantes seja efetivamente aplicado aos animais, que é a sua condição de propriedade. Na medida em que os animais são propriedade, eles se encontram fora do escopo da comunidade moral. Em outras palavras, o princípio da igual consideração de interesses semelhantes não pode ser adequadamente aplicado a eles. A condição de propriedade engessa as relações morais de tal modo que, quase sempre, os interesses do proprietário (humano) serão tomados como mais importantes do que os interesses da propriedade (animal), independentemente de quão triviais possam ser os interesses do proprietário de quão fundamentais possam ser os interesses da propriedade.

De modo semelhante ao caso da escravidão humana, a exploração animal institucionalizada dificilmente protegerá os interesses dos animais, salvo quando isso for vantajoso economicamente para os seres humanos. Essa ideia é particularmente manifestada com a introdução do tratamento humanitário no cenário legal. O resultado disso foi a criação das teorias jurídicas de bem-estar animal. Essas teorias sustentam que, embora os animais sejam capazes de sofrer e que, devido a isso, o seu sofrimento deva ser minimizado, eles são inferiores aos seres humanos. Em síntese, as teorias de bem-estaristas são incapazes de prover qualquer proteção minimamente significativa mesmo aos mais básicos dos interesses animais.

A aceitação da igual consideração de interesses semelhantes requer a abolição do uso dos seres sencientes enquanto recursos. Mas, similarmente, ao que aconteceu com relação à abolição da escravidão humana, se sabe que a liberdade não é uma garantia de igualdade. Para

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