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A dignidade para além do humano: uma nova comunidade moral

2 OS DIREITOS ANIMAIS E O NOVO STATUS JURÍDICO E MORAL DOS

2.4 A dignidade para além do humano: uma nova comunidade moral

O que torna algo ou alguém membro de uma comunidade moral não é o seu pertencimento a uma determinada espécie, tampouco a sua racionalidade, linguagem ou consciência, mas o fato de ser paciente da ação do outro. Portanto, é a existência de uma vida que pode ser prejudicada pela decisão alheia que leva a uma consideração moral.

No reconhecimento do outro como alguém diferente, que tem o direito de ser tratado com respeito, figura a vulnerabilidade. Basta pensarmos na condição das crianças, por exemplo. Elas são moralmente inocentes no sentido estrito, vulneráveis e impotentes em relação aos adultos. Além de serem completamente dependentes dos adultos, são incapazes de representarem a si próprias, de dar consentimento ou articular discursivamente suas necessidades. Todas essas situações levam a sua proteção, justificando um cuidado moral especial. Com os animais não é diferente. Eles apresentam as mesmas vulnerabilidades. Então, por que não podemos incluir os animais no âmbito de proteção dispensado aos seres humanos?

Muitas questões podem ser trazidas como justificativas. Questões econômicas e políticas são as mais óbvias. Mas também podemos reconhecer que muito do sofrimento, exploração e morte dos animais são fruto da indiferença humana frente a sua instrumentalização e uso. Preocupar-se com o outro é uma questão ética. O exercício ético consiste em se colocar no lugar dos outros a fim de avaliar uma situação. Se uma pessoa não está preparada para se preocupar com algo ou alguém além de si mesmo, será praticamente impossível a ela a adoção de princípios éticos. Esse “preocupar-se” envolve empatia, isto é, tentar adotar concepção imaginária do estado, situação ou condição alheia. A empatia é um componente básico para as atitudes éticas.

A grande questão, é que a condição animal dificilmente é questionada. Atrocidades são cometidas diuturnamente contra a vida animal. Hanna Arendt (apud BARTTLET, 2007, p. 36) denomina a ausência de resposta de pessoas normais à atrocidades morais perpetradas de “banalidade do mal”. Efetivamente há uma inegável “banalização do mal” na relação dos seres humanos com os animais. As atrocidades cometidas contra os animais dão conta de algumas das mais duras evidências da falta de comprometimento das pessoas com a dimensão moral. Naconecy (2014, p. 33, grifo do autor), expõe a questão da seguinte forma: “E eu com

isso? Por que afinal tenho que me preocupar com os outros? Que me importa o aborto, a fome, a violência e os animais? O problema não é meu!”. Certamente, que a esse sujeito, agindo egoisticamente, ao afirmar que não quer se entender como um membro do universo moral, ao lado de outros sujeitos morais, não haverá muito a se dizer.

Mas, há outro caminho, sendo ele justamente o oposto ao posicionamento egoísta demonstrado no exemplo acima. É adotar princípios éticos que envolvam a empatia (que é o preocupar-se com algo ou alguém além de si mesmo), pois é através dela que as mudanças se operam. Se formos visualizar a própria situação do ser humano, veremos que muitos hoje, sujeitos morais, não o foram em algum momento na história humana. Inclusive, se olharmos com atenção, veremos que várias situações que hoje lamentamos profundamente existiram de forma institucionalizada. A escravidão dos negros talvez seja a situação mais representativa do alijamento de direitos fundamentais, pelo fato daqueles terem sido considerados propriedade. Fica evidente que não é possível garantir que o eticamente válido coincida com o sociojuridicamente vigente. O fato é que hoje a nossa sociedade aprova a livre utilização de animais para o beneficio humano, mas a história, como apontado acima, também aprovou uma prática que hoje é considerada fortemente imoral.

Foi uma longa jornada para que os alijados de seus direitos fundamentais (homens, mulheres e crianças) adquirissem sua condição de membros da comunidade moral e tivessem a sua dignidade reconhecida. A luta pela respeito a ela (dignidade) é contínua. Nesse sentido, Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó (2008, p. 130) constata “que a dignidade apresenta uma relação estreita com o respeito. A dignidade humana, então, é reconhecida de forma prática, através do respeito a ela outorgado.” Mas apenas o ser humano é merecedor e portador de dignidade?

Tiago Fenstersifer (2012) reconhece que a dignidade (da pessoa) humana constitui um conceito submetido a um processo de reconstrução, tratando-se de uma noção histórico- cultural em permanente transformação quanto ao seu sentido e alcance. E pode-se ir além. A dignidade consiste em um valor que os seres humanos atribuem à determinada manifestação existencial – no caso da dignidade humana, a nós mesmos –, sendo possível o reconhecimento do valor “dignidade” como inerente a outras formas de vida, para além da humana.

Tagore Trajano de Almeida Silva (2014) entende que a Constituição Federal brasileira de 1988 concede a proteção dos animais no sentido de reconhecer o seu sofrimento. Ao estabelecer a regra de não-crueldade (art. 225, §1º, inc. VII), a norma constitucional avançou na direção da valorização individual dos animais, a ponto de ser possível a mudança de seu status jurídico. Talvez não esteja longe o momento em que os animais já não serão mais tratados como simples meios para os fins humanos.

CONCLUSÃO

No primeiro capítulo, vimos as tentativas argumentativas mais comuns de condicionar a vida animal à sua utilidade para os seres humanos. No entanto, como demonstrado no segundo capítulo, todos os argumentos antropocêntricos lá relacionados, são maus argumentos, porque elegem questões irrelevantes moralmente para negar nossos deveres de respeito e proteção perante a vulnerabilidade da vida animal, que é muito similar a vulnerabilidade da vida humana.

Para muitas pessoas, no entanto, é difícil uma identificação ou empatia com criaturas que estão psicologicamente tão distantes e, sobretudo, cuja situação antiética não pode ser criticada diretamente por elas. A própria vitima sempre expressa melhor sua opressão do que o discurso dos seus defensores. Ao contrário dos sujeitos humanos em vulnerabilidade (mulheres, negros, etc.), os animais não falam. Alguém precisa fazê-lo por eles.

E nesse sentido concordamos com Joy (2014, p. 145) quando diz que precisamos tomar partido, já que “não existe neutralidade moral”. Diante de toda crueldade praticada contra a vida animal, baseada num senso comum deturpado pela ganância, menosprezo e vaidade, caberá de forma inequívoca, um papel a todos nós, que fará a diferença para a mudança ou para a perpetuação desse paradigma da crueldade. Não há outra saída: estaremos ao lado dos algozes e, muitas vezes seremos os próprios, ou estaremos do lado das vítimas.

Muitos olham para os animais, mas não os veem. A nossa ciência, história, cultura, filosofia e direito, foram responsáveis por reduzir os animais à condição de coisas, de

recursos, de meios para os fins humanos. É esse pensar humanista que deve ser superado, sob pena de se não o fazermos, continuarmos a perpetrar o mal no mundo.

Naturalmente, testemunhar todas as atrocidades cometidas contra os animais gera uma carga emotiva e racional deveras pesada. No entanto, não podemos fechar os olhos para esse sofrimento desnecessário. Precisamos assumir um papel. E embora possamos sofrer com o que veremos, o sofrimento deles certamente é muito maior. Em outras palavras, embora os que optarem por ficar ao lado das vítimas possam sofrer, como bem afirmou Judith Herman (apud JOY, p. 145): “não há honra maior”.

REFERÊNCIAS

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