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"Na contramão do mundo" : gênero, amor e sexualidade no movimento evangélico eu escolhi esperar

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LUIZA VITÓRIA TERASSI HORTELAN

“NA CONTRAMÃO DO MUNDO”: GÊNERO, AMOR E SEXUALIDADE

NO MOVIMENTO EVANGÉLICO EU ESCOLHI ESPERAR

Campinas

2020

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“NA CONTRAMÃO DO MUNDO”: GÊNERO, AMOR E SEXUALIDADE

NO MOVIMENTO EVANGÉLICO EU ESCOLHI ESPERAR

Dissertação apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos

para obtenção do título de mestra em

Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Adriana Gracia Piscitelli

ESTE TRABALHO CORRESPONDE

À

VERSÃO

FINAL

DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA LUIZA VITÓRIA TERASSI

HORTELAN E ORIENTADA PELA

PROFª DR. ADRIANA GRACIA

PISCITELLI

CAMPINAS

2020

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Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Hortelan, Luiza Vitória Terassi,

H789n Hor"Na contramão do mundo" : gênero, amor e sexualidade no movimento evangélico eu escolhi esperar / Luiza Vitória Terassi Hortelan. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

HorOrientador: Adriana Gracia Piscitelli.

HorDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Hor1. Amor - Aspectos antropológicos. 2. Gênero. 3. Sexualidade - Aspectos religiosos - Cristianismo. 4. Abstinência sexual - Aspectos religiosos. 5. Pentecostalismo. I. Piscitelli, Adriana Gracia, 1954-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "Against the world" : gender, love and sexuality in the evangelical

movement I chose to wait

Palavras-chave em inglês:

Love - Anthropological aspects Gender

Sexuality - Religious Aspects

Sexual abstinence - Religious aspects Pentecostalism

Área de concentração: Antropologia Social Titulação: Mestra em Antropologia Social Banca examinadora:

Adriana Gracia Piscitelli Maria Filomena Gregori Jacqueline Moraes Teixeira

Data de defesa: 10-03-2020

Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-2531-050X - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9581126293014142

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de

março de 2020, considerou a candidata Luiza Vitória Terassi Hortelan aprovada.

Profª Draª Adriana Gracia Piscitelli

Profª Draª Maria Filomena Gregori

Profª Draª Jacqueline Moraes Teixeira

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no

SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas

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da mulher, minha voz veio de lá, de quem me gerou. Quem explica o cantor, quem entende essa voz, sem as vozes que ele traz do interior?

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[...] todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros. Somos resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estamos sós. Valter Hugo Mãe - O Filho de Mil Homens (Ed. Cosac Naify, p. ano)

À primeira vista, essa dissertação representa um longo ciclo de quatro anos de vida, permeados por trabalhos, trocas, cuidados, rupturas, renovações, aprendizados, afetos e ajudas. Nunca é demais dizer: pesquisas, textos e trajetórias jamais são obra de uma pessoa só. São filhas de mil mães. Mas permitam-me desfiar o novelo do tempo para ainda mais longe, para os dias de ensinamentos outros que não os acadêmicos, de outras histórias, sonhos, gentes.

Agradeço, portanto e sobretudo, à minha mãe, Izabel. A “voz feminina” que me constitui e sobre a qual eu não tenho palavras pra dizer o quanto fez e faz por mim. Obrigada por ser a voz que, do outro lado do telefone, ouviu pacientemente todas as minhas crises nos últimos anos e por nunca ter podado meu sonhos. Ao meu irmão, Vitor, companheiro e exemplo de lutas. Ao meu pai, Milton, por todo amor, pela simplicidade e alegria que eu quero ter quando crescer. Ao meu avô, Antônio, por ter cuidado tanto de mim. À minha avó, Consuelo, in memorian, e com a memória da dormideira plantada no quintal. Aos meus tios e tias, pela torcida e carinho. Aos meus primos e primas, especialmente Naiá, que me acolheu em sua casa quando cheguei e abriu pra mim as portas do mundo Unicamp.

À Flavinha e sua família, pelos bolinhos de chuva na infância e por todo carinho. À Thamara, amiga de sorvetes, reflexões medonhas sobre a vida e discussões generosas sobre essa pesquisa. À Jana, por sua luz e por me fazer sentir que eu sempre tenho para onde voltar. À Renatita, pelas gargalhadas todas.

À O6, que sendo casa, foi muito mais que um teto. À Elis, que me ensinou muito sobre ser antropóloga. À Márcia, companheira de novelas. Ao Angelito, pelos cafés e discussões intermináveis. Ao Allan, por me fazer entender e assumir meu sol em virgem. Ao Thi, pela alegria e criatividade contagiantes. À Sara e Bia, que chegaram depois. Ao Cris, cuja energia

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ombros, ouvidos e palavras de incentivo sempre que precisei. Ao Thiago Andreuzzi, pela sua importância nessa trajetória.

Às amiges da graduação, especialmente à Família Top Therm: Ana Cláudia Pilon, pelas tardes de Pagu, Irmã Paulinha Chiconini, Luciana Farias, Jéssica Gossi, Ana Favacho, Marília Osis, Ingrid e Thaís Lima. Por tantas “coisas boas” divididas. E à Sophia Carmona, in memorian.

À Jota, que os caminhos do parentesco e da geracionalidade fizeram ser minha avó. E que de fato cuidou de mim desde o primeiro momento e nos últimos anos. À Maísa, um presente lindo e vermelho que a lei natural dos encontros me deu. Porque somos filhos de Iara e sem vocês nada disso teria começado.

Porque “ninguém solta a mão de ninguém”, eu agradeço ao Bonde do Igarapé, que erradia amor e cuidado. À Catarina que, dentre muitas outras coisas, me deixou dormir com seu edredom do Asterix e Obelix quando eu mais precisei. À Mari, que me disse mil vezes pra acreditar mais em mim mesma (e pelas caronas à Sergel). À Flávia, Meredith to my Yang. A Rodrigo, com quem aprendi que “gente é pra brilhar” e que não merecemos nada menos. A Julian, Gláu, Rodolfo, Paula e Ana Elisa, todos igualmente lindos, que me ajudaram ou discutiram esse texto em diferentes momentos.

Ao Rapha, por todo o carinho e apoio. E por me emprestar a Favela sempre que eu precisei de uma dose de alegria.

Ao Luciano, meu querido vizinho. À Carol Bonomi, esse mulherão da porra. Ao Sidney Melo, com quem aprendi muito sobre evangélicos e sobre ser professora. Ao Vitor Queiroz, por sua generosidade.

“Eu era carne, agora vou ser a própria navalha”: ao Cursinho Popular Lélia Gonzaléz e a todos, professores e alunos, que o constroem diariamente. À Dona Márcia, pelos cafés e abraços. À Beca, nossa coordenadora podre de chique. Às minhas alunas e alunos, obrigada por me darem um espaço onde produzir e trocar conhecimento ainda seja mágico.

Aos amigos do Centro Promocional Tia Ileide - CPTI, este lugar construído por mulheres. Obrigada por estarmos junt@s na luta contra todas as formas de injustiça. À Wânia, minha parceirinha, Léo, Ramon, Elzinha, Carol, Edite, Júlia, Seu Assis, Kraniun, Cristiane, Débora, Thiago, Crislene, Dani, Érica, Thâmara, Jhow e mais um monte de gente. Às minhas educandas e educandos, por me ensinarem a pedagogia da esperança cotidiana e por fazerem tudo valer a pena.

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Maiane, Marina, Larissa Vibe, Ana Rabêlo, Lilith, Lorena, Ligia, Inaida, Isabel Frank, Alejandra, Nicolas, Diogo, Daniel. Do doutorado, Cristiano, Ralyanara, May, Júlia. Especialmente a Nathanael Araújo que foi por vezes interlocutor e, glamourosamente, meu professor na licenciatura. Sou muito grata a vocês por todo aprendizado em sala de aula, mas também porque me ajudaram a entender as dores e delícias da vida dentro acadêmica.

Agradeço imensamente a Iara Beleli, minha orientadora de iniciação científica que sagazmente conduziu meus primeiros passos no mundo das igrejas e da pesquisa. Depois de Iara, houve José Miguel Olívar e uma certa tríplice fronteira no Alto Solimões que me marcou pra sempre. Ambos ainda leram e comentaram generosamente partes deste texto. A Zé, deixo meu agradecimento por ter sempre acreditado em mim mais do que eu mesma. E agora, agradeço-o também pela participação como suplente na banca de defesa.

Ainda sobre Tabatinga, agradeço a Marylene Marques que segurou minha mão por catraias e pontes. A Thuany Victor e Mario Augusto Carneiro, com quem foi um prazer participar do Projeto Jovem Pesquisador Gênero e Territórios Transfronteiriços na Amazônia Brasileira. Especialmente, agradeço a Mario, nosso Belchior campineiro, pelo apoio e por suas reflexões existencialistas.

A respeito de grupos de pesquisa, eu dei a sorte de poder contar com o apoio das leituras e debates de Lauren, Raquel Banuth, Jully, Paula Luna, Flávia Teixeira, Ana Araújo, Jéssica Gutierrez, Nerea Jódor, Lúcia, Tiago Vaz, Carol Pavejau, e Natáliza Corazza Padovani. Gostaria de ressaltar aqui não só o quanto aprendi com todos vocês, ou o quanto as contribuições do grupo foram decisivas no rumo desta dissertação, mas também o quanto o ambiente do grupo e a generosidade dessas pessoas foram importantes para essa menina tímida e profundamente insegura.

Agradeço à minha orientadora Adriana Piscitelli, pela generosidade com que aceitou orientar esse trabalho e pela forma como o fez, articulando liberdade, incentivo e gentileza para conduzir as reflexões sempre para um ponto mais além.

Nos meu anos de formação, tive o privilégio de contar com docentes dedicados e generosos, que serão sempre uma inspiração. Agradeço, assim, à Regina Fachinni, por todo o incentivo, Cris Tambascia, Artionka, Heloísa Pontes, Ronaldo Almeida, Carolina Branco, Nashieli, Bárbara Castro, Mario Medeiros, Guita, Carolina Catini, Ana Almeida, Maurício Ernica, Andreia Galvão, John Monteiro (in memorian), dentre tantos outros.

Agradeço a Rodrigo Toniol, José Miguel Olívar, Bibia Gregoria e Jacqueline Teixeira, pela participação na banca de defesa. À Bibia, agradeço também por ter sido minha professora em

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que deu forma a este trabalho. Quanto à Jacque, ela é simplesmente uma das pessoas mais generosas que conheço e sua influência nessa dissertação começou desde antes de existir um projeto de mestrado e de eu a conhecer pessoalmente.

Sobre minha trajetória na Unicamp, jamais poderia deixar de mencionar todas as políticas de permanência estudantil que foram fundamentais para que eu e tantos outros destinos ímpares tivéssemos garantido nosso direito à universidade. Assim, agradeço ao Serviço de Apoio ao Estudante, sua equipe e assistentes sociais, pela bolsa moradia, bolsa alimentação e bolsa auxílio-social.

A bolsa auxílio-social me proporcionou também, além de um meio de subsistência, crescer intelectualmente através da participação em diferentes projetos dentro da universidade. Assim, agradeço ao Cecult - Centro de Pesquisa em História Social da Cultura e ao professor Fernando Teixeira, meu primeiro orientador na Unicamp. À querida Malu Arruda e demais colegas da Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural, onde aprendi a importância da extensão para a universidade.

E, claro, agradeço a Karina Gama, bibliotecária do Pagu Núcleo de Estudos de Gênero -lugar que, a partir da bolsa auxílio, se tornou uma segunda casa para mim em todo o tempo em que estive na Unicamp. À Karina, agradeço o apoio como bibliotecária competente e também a ajuda quando a bolsa de mestrado acabou e escrevemos juntas um projeto para a biblioteca que me possibilitou algum alívio financeiro. No antigo corredor Pagu - Cesop (Centro de Estudos de Opinião Pública), agradeço ainda à Luciana, Jadson, Carol e Laís, cada um dos quais me ajudou em algum perrengue diferente.

Por serem fundamentais no cotidiano do IFCH, agradeço ao Benê pelas milhões de páginas de xerox, à Teresa pelo café nosso de cada dia, ao Beneti pela manutenção e sorrisos de boa tarde. E a todas as funcionárias da limpeza, dona Marli em especial, agradeço pela contribuição importantíssima ao que denominamos como excelência acadêmica. Obrigada também à Janete, por alegrar nossos dias com seus geladinhos.

Aos funcionários da Biblioteca Octávio Ianni, do IFCH, Biblioteca Central César Lattes e BAE - Biblioteca da Área de Engenharia. Contar com a ajuda e a simpatia de vocês faz toda a diferença nas horas intermináveis de escrita e leitura.

Agradeço ao misterioso “moço do trombone”, um personagem que marcou as tardes passadas na BAE, por sua persistência inspiradora.

Às funcionárias da Secretaria de Pós-Graduação do IFCH, especialmente às secretárias do PPGAS: Márcia Goulart e Tatiana Yoshida, pelo apoio em todos os processos burocráticos.

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cada vez mais essencial em tempos nos quais nossas vidas e sonhos estão em cheque. Essa dissertação jamais se concretizaria sem o apoio profissional e a torcida de Laura e Paula, que foram minhas terapeutas.

Por fim, agradeço a todas/os as/os interlocutoras/os desta pesquisa. Aos pastores e líderes que abriram para mim a porta de suas igrejas e me deram entrevistas. Aos seguidores, por sua gentileza e abertura para falar com uma semi-conhecida sobre suas histórias de vida, dores e sonhos. Além de me doarem seu tempo, essas pessoas também me abriram caminhos, ao me apresentarem redes e me levarem a lugares. Mais do que isso, vocês me abriram janelas para ver novos mundos, pensar novas questões e me re-pensar como pessoa. Especialmente, quero agradecer as mulheres que aparecem aqui como Júlia, Flávia e Alice por todo apoio. Agradeço ainda ao pastor Nelson Júnior e a equipe do Eu Escolhi Esperar, que sempre se mostraram receptivos a mim e a esta pesquisa.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Em um cenário de desmonte da universidade pública e da produção de conhecimento no Brasil, gostaria de ressaltar que bolsas de fomento são fundamentais para que estudantes da periferia, como eu, acessem e permaneçam na pós-graduação - possibilitando a reinvenção das próprias perspectivas acadêmicas. Esse lugar é nosso por direito.

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bem devagar

Que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar Tempo para ouvir o rádio no carro

Tempo para a turma do outro bairro, ver e saber que eu te amo

Belchior - Coração Selvagem

Diz-que direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor, desse, cresce primeiro; brota é depois. [...] Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe?

Guimarães Rosa - Grande Sertão Veredas, Ed.Nova Fronteira, 2001, p. 155.

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Esta dissertação tem como objeto o Eu Escolhi Esperar, um movimento evangélico em defesa da abstinência sexual pré-conjugal, bem como as narrativas e trajetórias de seus seguidores. Promovendo como ideais a pureza sexual e a saúde emocional, o movimento se constitui como uma pedagogia afetiva que produz novos sentidos para a prática da abstinência antes do casamento, distanciando-a de um noção proibitiva de pecado. Busco compreender as formas de governo da sexualidade de jovens solteiros engendradas pelo movimento, que mobiliza a abstinência pré-conjugal como uma escolha baseada em uma lógica de inteligência emocional. Assim, o movimento coloca em ação tecnologias de subjetivação que visam produzir sujeito marcados por gênero, aptos a fazerem escolhas inteligentes na autogestão de suas vidas. Reflito ainda sobre como tais discursos são profundamente perpassados por códigos e demarcações de gênero, produzindo feminilidades e masculinidades, entremeadas a concepções de amor e modelos de relacionamento amoroso. O aprendizado de novas formas de condução da vida afetivo-sexual é visto como uma questão de importância social, uma vez que a atual geração de jovens estaria imersa na busca imediatista pelo prazer, em relações fragmentadas e utilitárias, não conseguindo, portanto, estabelecer vínculos duradouros que, através da construção do verdadeiro amor - saudável e desinteressado - resultem no casamento e na família heterossexual, monogâmica e indissolúvel. Nesse sentido, a espera é mobilizada como uma decisão na contramão do mundo em prol da verdadeira liberdade. Diferentemente da liberdade sexual propalada pelo mundo, esta permitiria ao sujeito discernir sobre suas decisões sem a interferência de uma sociedade hiperssexualizada, na qual a abstinência seria um estigma, de suas carências emocionais ou dos apelos sexuais do corpo. Tal retórica sobre a liberdade tensiona os imaginários correntes em torno da abstinência com motivação religiosa, abrindo espaço para problematizarmos a forma como os sujeitos orientam suas condutas a partir das normas, em um constante agenciamento destas, ressignificando a abstinência através de suas trajetórias de vida e de seus trânsitos religiosos.

Palavras-Chave:

Eu Escolhi Esperar; Abstinência Sexual; Gênero; Amor; Sexualidade; Evangélicos

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This dissertation has as its object the evangelical movement I Chose to Wait - that advocates premarital sexual abstinence - as well as the narratives and trajectories of its followers. Through promoting sexual purity and emotional health as ideals, the movement is constituted as an affective pedagogy that produces new meanings for the practice of abstinence before marriage, disengaging it from a prohibitive notion of sin. I seek to understand the forms of young singles’ sexuality governance engendered by the movement, which mobilizes premarital abstinence as a choice based on a logic of emotional

intelligence. Thus, the movement puts into action technologies of subjectivation that aim to

produce subjects marked by gender, able to make intelligent choices in the self-management of their lives. I also reflect on how such discourses are deeply permeated by codes and demarcations of gender, producing femininity and masculinity, interspersed with conceptions of love and models of love relationship. The learning of new ways of conducting affective-sexual life is seen as a matter of social importance, since the current generation of young people would be immersed in the immediate pursuit of pleasure, in fragmented and utilitarian relationships, thus failing to establish bonds that, through the construction of true love - healthy and disinterested - result in heterosexual, monogamous, and indissoluble marriage and family. In this sense, waiting is mobilized as a decision

against the world in favor of true freedom. Unlike the world-proclaimed sexual freedom, it

would allow the subjects to discern about their decisions without the interference of a hypersexual society - in which abstinence would be a stigma -, their emotional needs or the sexual appeals of the body. Such rhetoric about freedom tenses the current imaginary around religiously motivated abstinence, allowing us to problematize the way subjects orient their behaviors based on norms, in its constant agencying, reframing abstinence through their life trajectories and their religious transits.

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Imagem 1: Priscila Alcântara na Eu Escolhi Esperar Fest ... p.18 Imagem 2: Símbolo oficial do movimento ... p.20 Imagem 3: Nelson e Ângela no programa A Hora do Faro...p.77 Imagem 4: Postagem no Tweeter oficial do movimento, com foto do jogador David

Luiz...p.101 Imagem 5: ATEA - Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos...p.121 Imagem 6: Fotografia de Nelson Júnior em 2011 ...p. 146 Imagem 7: Nelson em 2020, com a camiseta do Instituto Eu Escolhi Esperar...p. 150

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Introdução... p. 17

I- Apresentação... p. 17 II- Entre seminários, cultos, esperas e escolhas: o trabalho de campo...p. 26 III - Organização dos capítulos... p. 32

Capítulo 1: “Vivendo em santidade”: formas de governo da sexualidade jovem em contexto(s) evangélico(s)...p. 33

I – Apresentação...p. 33 II – Fofoca, disciplinamentos, honra: controles pastorais da sexualidade...p. 36 III – Redes de ajuda, aconselhamento e controle ...p. 45 IV - Ensinando a escolher: espera e inteligência emocional...p. 50 V - “Não adianta guardar só a merenda pro recreio”: virgindade, pureza e negociações da sexualidade...p. 57 VI - Considerações finais do capítulo...p. 67

Capítulo 2: “Todo mundo quer ser feliz no amor”: Concepções românticas,

performances de gênero e a gestão da vida... p. 69

I – Apresentação...p.69 II - Inteligência emocional, repertórios terapêuticos e gênero...p.70 III - Contos de fada e finais felizes: performando gênero e amor romântico... p. 76 IV - Gênero, sexualidade, amor e o governo da vida... p. 80 V - “O verdadeiro amor encontrará o caminho”: espera, solidão e buscas

amorosas ... p. 85 VI - “Deus não une pessoas, Deus une propósitos”: modelos de relacionamento,

negociação da intimidade e concepções de amor... p. 91 VII - Considerações finais do capítulo... p. 98

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I - Apresentação ...p. 101 II - Pedagogias afetivas, circulação e agência... p. 104 III - O desafio da castidade: espera, masculinidades e estigmas ... p. 112 IV - A “verdadeira liberdade” e a “liberdade do mundo” ...p. 120 V - Feminismos cristãos e a “liberdade de dizer não” ...p. 130 VI - Considerações finais do capítulo ... p. 142

Considerações Finais ...p.145

“Tudo tem seu tempo”: caminhos deixados em aberto ... p. 150

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INTRODUÇÃO

I- Apresentação:

Sob aplausos e gritos de uma plateia empolgada, Priscilla Alcântara sobe ao palco da Eu Escolhi Esperar Fest, em São Paulo. De cabelos coloridos, saltos metálicos e brincos gigantes de argola, a atração mais esperada da noite canta alguns de seus sucessos e se dirige ao público, perguntando:

Quem aqui é maior de 18 anos?” Em resposta aos gritos de parte dos jovens, ela emenda: “Uhul, já sou maior de 18 anos. Mas quem aqui é menor de 18 anos? [mais gritos] Ok, estamos bem divididos aqui. Mas eu vou falar uma coisa pra você. Essa é uma fase muito cabreira, é uma fase que nóis tem que tomar muito cuidado. É ou não é, irmão? [...] Mas eu quero dizer pra você: cara, a gente é jovem, a gente tem muitos sonhos, a gente tem muitos desejos. E a gente acha que pra chegar nos nossos sonhos é um passe de mágica, mas [...] Deus não quer criar filho mimado não! Deus quer que você conquiste as coisas e não simplesmente ganhe, Deus quer que você faça por merecer [Diário de Campo, Eu Escolhi Esperar Fest]

A ex-estrela infantil do SBT, que apresentou por anos o programa Bom dia e Cia., conta então como precisou esperar longos dez anos para que seu sonho de ser reconhecida enquanto cantora gospel se concretizasse. Mesmo pensando em desistir, ela sempre soube que estava esperando no Senhor e que toda espera em Deus vale a pena. A moral da história é clara: se você tem um sonho, sonhe com Deus, ainda que muitas vezes seus

sonhos não são o que Deus tem pra você, mas ele te conhece mais do que você mesmo.

Entregar seus sonhos nas mãos de Deus, se sacrificar e esperar o tempo de Deus para conquista-los, são princípios que se estendem a todas as áreas da vida, mas há uma área que, nessa fase tão cabreira da adolescência e juventude, necessitaria de atenção especial: a vida emocional, as coisas do coração. Aos 19 anos, Priscilla Alcântara nunca namorou e por isso, mesmo estando em um evento voltado a jovens solteiros, afirma que não tem nenhuma mensagem pra falar aos jovens sobre namoro cristão. Entretanto, ela diz não se preocupar com isso agora e sintetiza suas crenças a esse respeito ao dizer que:

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Tudo que eu sei é que Deus tem um tempo certo para todas as coisas e que cada um aqui precisa viver o tempo de Deus, porque falando sobre isso eu já consigo resumir tudo sobre namoro cristão, porque quando for o tempo certo, a pessoa certa vai aparecer e o namoro vai estar debaixo da cobertura de Deus. [Diário de Campo, Eu Escolhi Esperar Fest]

Organizada pelo movimento evangélico pró-abstinência Eu Escolhi Esperar, a Eu Escolhi Esperar Fest é, como o nome deixa claro, uma festa cujo objetivo é à adoração a Deus, mais do que a simples diversão vazia. É por isso, como dizem os organizadores, que ela não deve ser confundida com uma balada gospel. Ainda assim, durante o evento, que foi também minha primeira incursão a campo para esta pesquisa, foi impossível não fazer esta associação. Centenas de jovens, vestidos de branco para representar a pureza sexual – lema do movimento - dançavam animadamente a cada atração musical (ao todo foram seis), sob luzes coloridas e pulsantes, no salão que é também a sede da Igreja Assembleia de Deus Bom Retiro, no Brás. Ao fim da madrugada, o DJ PV é quem se encarrega de levantar a plateia, ao som de música eletrônica gospel. Em meio às apresentações artísticas, ouvimos mensagens e testemunhos que ressaltam a importância de se preservar sexualmente, mas também de guardar o coração, de dedicar a juventude a Jesus, de esperar o tempo de Deus, de refletir sobre as consequências de nossas escolhas, além de incentivos para que os jovens dancem, cantem e interajam entre si, especialmente com aqueles do sexo oposto.

Imagem 1: Priscila Alcântara na Eu Escolhi Esperar Fest Fonte: Site Oficial Eu Escolhi Esperar

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Em um telão, o pastor Nelson Júnior, fundador do ministério Eu Escolhi Esperar aparece em vídeo, no intervalo dos shows. No primeiro deles, Nelson começa apresentando o movimento que lidera, dizendo que ele não é uma campanha pela virgindade, mas sim um

movimento em prol da pureza sexual e da saúde emocional. Restaurar a vida sexual e

amorosa dos jovens, segundo padrões cristãos, teria sido seu objetivo quando criou o Eu Escolhi Esperar em 2011, como uma campanha para ajudar os jovens a se guardarem sexualmente para o casamento.

Nelson é pastor desde 1988, atualmente associado à igreja Base Church1 e teólogo (formado pelo IBAD - Instituto Bíblico das Assembleias de Deus). Com uma trajetória que passa por igrejas de grande relevância como a Assembléia de Deus, a igreja capixaba Vitória em Cristo e a Nazareno, ele se apresenta também como escritor, palestrante e

coaching.

É importante ressaltar, contudo, que sua organização não se dá vinculada a igreja na qual Nelson é pastor. Eventos tais como e Eu Escolhi Esperar Fest são realizados em igrejas e espaços das mais diversas denominações, em sua maioria aos sábados, semanalmente. Para receber o Eu Escolhi Esperar, ou mesmo apenas Nelson, para um seminário ou palestra, a igreja ou promotora de eventos interessada deve entrar em contato e fazer um convite através do site. Nem sempre os eventos são gratuitos e os ingressos variam de 50,00 (como no caso da EEE Fest), a 20,00. Dos eventos aos quais em que compareci, pude notar que geralmente as igrejas maiores, como a Assembléia de Deus Madureira, dispensavam a cobrança das entradas. Nos intervalos das palestras, costumam ser vendidos os acessórios e souvenirs: livros, camisetas com o símbolo do movimento ou frases motivacionais, pulseiras, gargantilhas, anéis etc., ficam expostos em balcões e araras, mas também é possível comprá-lo através do site oficial. Além das palestras de Nelson, seminários da campanha e da Eu Escolhi Esperar Fest, o movimento realiza ainda cruzeiros e viagens internacionais, aos parques da Disney, na Flórida, a Israel e Paris.

Porém, é na internet que se dá a maioria de suas ações. Se a ideia de pregar sobre sexualidade a jovens solteiros surgiu do trabalho de Nelson como palestrante (Junior, 2015), foi nas redes sociais online que o movimento ganhou proporções nacionais. Em 2011, o pastor criou uma conta no Twitter2, chamada Eu Escolhi Esperar, que em questão de horas

ganhou milhares de seguidores e se tornou uma hashtag que, ao divulgar uma mensagem,

1Para mais informações sobre a igreja:http://abase.org/

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também produzia, entre quem a postava, o compartilhamento de uma identidade baseada na ideia de uma experiência em comum: #EuEscolhiEsperar. Logo, Nelson começou a fazer

lives (vídeos ao vivo transmitidos pela internet) semanais e o movimento passou a estar

presente em outras plataformas digitais, como Facebook, Youtube, Instagram, nas quais hoje conta com milhões de seguidores3 e através das quais veicula grande parte de seu

conteúdo.

Assim, sua intensa capacidade de mobilização online, foi importante para que o movimento se consolidasse como uma importante força dentro do campo evangélico, sendo reconhecido e referenciado de forma quase unânime pelos interlocutores desta pesquisa, ainda que estes possuam opiniões diversas sobre ele. Sua organização em forma de ministério interdonominacional, isto é, um trabalho pastoral cristão que, sendo geralmente dedicado a um determinado tema, se vincula a carreira de um pastor e não a uma denominação ou igreja específica, também ajuda a entender como ele congrega, seja on ou

offline, milhões de jovens de diferentes igrejas, estilos, e correntes teológicas. Além disso,

o lema eu escolhi esperar ultrapassou os limites do próprio movimento e, inclusive, do campo religioso, sendo incorporado, em tom cômico, como metáfora para diversas situações (quer tenham ou não relação com a vida amorosa), conforme demonstram inúmeras páginas e memes online com o bordão não escolhi, mas estou esperando.

Imagem 2: Logotipo oficial do movimento Fonte: site oficial

Essa difusão se relaciona a sua proposta de falar sobre sexo nas igrejas, de modo direto e

3 1“Eu Escolhi Esperar”, página oficial no Facebook:https://www.facebook.com/euescolhiesperar/; Grupo “Eu Escolhi Esperar” – Oficial:https://www.facebook.com/groups/grupoEEE/; Página oficial no Twitter: https://twitter.com/escolhiesperar; Site oficial do movimento, onde se reúnem blogs vinculados à campanha: http://euescolhiesperar.com

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descontraído. Em vários momentos, tanto seus líderes quanto seguidores reiteram a urgência de falar abertamente sobre sexo nas igrejas, pontuando que o assunto ainda seria um tabu. Assim, diversos interlocutores ressaltam a importância do movimento, se queixando de que as igrejas tradicionais não saberiam lidar com o tema e muito menos orientar e acolher adequadamente aos jovens solteiros em suas angústias. Contudo, o Eu Escolhi Esperar não é o único ou primeiro movimento evangélico centrado na temática afetivo-sexual. No ínterim da formação de uma “indústria do aconselhamento cristão” (Lewgoy, 2005), ministérios (interdenominacionais ou vinculados a igrejas), bem como livros de autoajuda e canais na Internet, destinados ao aconselhamento amoroso, vêm se proliferando nos últimos anos. Para citar apenas alguns, destaco: Culto das Princesas, voltado a mulheres solteiras, Do Olhar ao Altar, da Igreja Batista Lagoinha, Sexxx Church (Leandro, 2012), The Love School e Terapia do Amor, da Igreja Universal (Teixeira, 2012, 2015). É interessante notar que essa pluralidade de grupos, ainda que todos sejam evangélicos, não apresenta posições homogêneas quanto aos temas tratados: a importância da virgindade pré-nupcial é um valor comum, mas há divergências quanto aos limites do namoro, o beijo, o papel exclusivamente masculino de dar início ao flerte, o divórcio, etc.

É preciso citar também os movimentos internacionais em defesa da abstinência pré-conjugal, como o Pure Freedom, o Silver Ring Thing e o True Love Waits, que chamam atenção da mídia internacional pela adesão de celebridades juvenis (Gardner, 2011). Nelson é frequentemente questionado pela mídia sobre uma possível inspiração nestes movimentos, mas, apesar da semelhança de nomes e abordagem, ele costuma recusar a comparação, afirmando que a concepção do Eu Escolhi Esperar se relaciona a sua própria história de vida - sobretudo, o fato de ter se casado virgem e sofrido bullying na adolescência por sua escolha. Contudo, o pastor que admite que um movimento em especial teria sido decisivo para sua compreensão de que esperar era o melhor caminho até o amor: o Quem Ama

Espera, trazido ao Brasil pela Igreja Batista e reeditado em 2009 pela Renascer em Cristo.

Em um de seus livros, Nelson considera que o Eu Escolhi Esperar não é uma cópia ou uma versão do Quem Ama Espera, mas sim um fruto deste. Ele conta ainda como a mensagem da campanha o fez perceber que se guardar para o casamento era, na verdade, uma prova de amor a Deus, a sua futura esposa e a ele mesmo (Junior, 2015: 20).

Pode-se notar o impacto dessas ideias na pedagogia do Eu Escolhi Esperar. A abstinência é vista como um desafio para a atual geração de evangélicos, que deve lidar simultaneamente com os apelos carnais do corpo - sobretudo nesta idade, quando este seria um turbilhão de

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hormônios - e com as pressões de uma sociedade hipersexualizada, que instigaria os jovens

à prática sexual. Contudo, o amor, e não apenas o sexo, seria algo pelo qual vale a pena

esperar, pois, o que se deve guardar é, sobretudo, o coração. Assim, os conselhos

difundidos nos seminários, palestras, livros, redes sociais, sites e blogs online versam sobre como encontrar um namorado/a, como saber se um namoro é da vontade de Deus, quando terminar uma relação, quais os limites das carícias no namoro, o que é pecado na vida sexual mesmo dentro do casamento, dicas para a primeira relação sexual, como cultivar a autoestima, como superar um passado de decepções amorosas, como evitar a tentação do sexo antes do casamento, como vencer a timidez no momento do flerte, quais comportamentos (vestuário, lazer, paquera, etc.) seriam adequados para jovens cristãos. A maioria dessas orientações são diferenciadas segundo gênero, ou melhor, segundo um entendimento de que homens e mulheres são naturalmente diferentes na maneira como concebem, sentem e expressam as emoções e a sexualidade.

Saber que há um tempo certo para todas as coisas é, porém, a ideia chave que sintetiza todas as recomendações do movimento para uma vida emocionalmente saudável e

sexualmente pura. Como afirma a cantora Priscila Alcântara, em sua ministração na Eu Escolhi Esperar Fest, nossos sonhos devem estar resignados à vontade maior de Deus, pois

Ele teria planos para cada um, em todas as dimensões da vida, incluindo a sexualidade e o amor. Para acessar esses planos, infinitamente melhores que nossos projetos pessoais, seria indispensável esperar o tempo de Deus. O amor para a vida toda, materializado no casamento, seria a recompensa ao sacrifício pessoal da espera. Mas o sucesso em qualquer esfera da vida seria consequência natural das decisões que tomamos. Dessa forma, mais do que ensinar a esperar, trata-se de ensinar a fazer escolhas inteligentes.

Assim, argumento que através de noções como escolha, espera, saúde emocional e pureza

sexual, o movimento tem produzido novos sentidos para a interdição ao sexo antes do

casamento, uma doutrina tradicional do cristianismo. Sua mensagem se estende muito para além da abstinência sexual ou de noções bíblicas de pecado e obediência. Trata-se de uma pedagogia afetiva cujo foco é a produção de sujeitos dotados de autonomia e inteligência emocional: em suma, sujeitos capazes de escolher de forma inteligente. Como pretendo demonstrar nos capítulos que se seguem, a espera está longe de ser concebida como um momento paralisante da vida, em que se espera passivamente por algo e, tampouco, a abstinência é uma norma condicionante ou imposta por uma doutrina. A espera ganha existência enquanto ação, produtora de inúmeras materialidades, saberes, afetos e sujeitos,

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e que enseja práticas de autogoverno e cuidado-de-si (Foucault, 2014).

Ao mesmo tempo em que capacita o indivíduo para cuidar de si mesmo, essa pedagogia pastoral se volta para a gestão de uma coletividade, baseada na ideia de uma geração de

jovens que precisaria ser ajudada no resgate dos valores que vem sendo desprezados pela

sociedade. Parte dessa ajuda seria a afirmação pública de uma identidade santa, compartilhada por uma geração de jovens que escolheu andar na contramão do mundo. Assim, a gestão da intimidade e a escolha sobre como gerí-la são permeadas por tecnologias de visibilidade, que se articulam sobretudo nas redes sociais e eventos, mas também no uso de camisetas, anéis e outros adereços. Mas é no restauração da família e do casamento que a gestão da coletividade ganha destaque, uma vez que, em última instância, tal pedagogia visa a formação de famílias heterossexuais saudáveis, nos moldes do casamento indissolúvel.

A produção cada vez mais crescente de saberes cristãos sobre sexualidade se inscreve num contexto mais amplo de preocupações com a constituição e manutenção de famílias, diante de um suposto aumento no número de divórcios entre evangélicos. Essa preocupação e a unanimidade do casamento como projeto pessoal entre os interlocutores demonstra a importância que a família adquire nesse meio. Ela aparece em vários discursos como uma instituição basilar, locus da transmissão de valores morais e de crenças religiosas. Centro da própria reprodução da sociedade, a família, em sua forma assentada sobre o casamento monogâmico, heterossexual e indissolúvel, deve ser preservada e colocada acima de interesses individuais. Produzir e manter casamentos é, dessa forma, fundamental e, para tanto, o ensino de uma sexualidade santa, prazerosa e conjugal é indispensável.

O investimento na regulação da vida íntima dos jovens solteiros ocupa um lugar crucial, uma vez que o meio para construção de famílias sólidas seriam namoros cristãos saudáveis. Essa ideia se encontra expressa na máxima de que todo namoro cristão deve ser um namoro

com propósito, isto é, deve visar o casamento, num futuro não muito distante. Ademais, há

a proposição de uma série de técnicas de gestão de si e do outro, centradas na noção de

inteligência emocional, para avaliação dos próprios sentimentos, bem como dos riscos,

custos e benefícios da relação. Seria necessário minimizar os riscos de um casamento mal-sucedido, uma vez que o divórcio começa no namoro.

Contudo, se é preciso assegurar a saúde e a pureza dos namoros, uma dificuldade anterior se interpõe: a de encontrar um par. Dificuldade essa acentuada no caso das mulheres, dadas

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a diferença numérica entre elas e os homens e os códigos de gênero que lhes prescrevem um papel passivo no flerte. A questão dos relacionamentos amorosos seria ainda especialmente delicada entre os jovens evangélicos, pois ela poderia afetar diretamente sua espiritualidade e seu relacionamento com Deus. A juventude é ela mesmo tida como um momento crítico do curso de vida, no qual as tentações do mundo se fariam presentes com maior intensidade e apelo. O jovem seria especialmente vulnerável não só às vontades sexuais, já que se trataria de uma fase de ebulição dos hormônios, mas aos sentimentos e emoções, dentre eles as paixões e decepções amorosas, que seriam os principais responsáveis por afastamentos e trânsitos religiosos. Assim, a juventude se torna foco de gestão de uma política cujo fim é produzir uma vida sem sofrimentos, afinal, eu escolhi

esperar é frequentemente acompanhado por outro bordão: eu escolhi não sofrer.

Esse cenário seria agravado pela cultura de relacionamentos do mundo, isto é, um contexto secular no qual os laços afetivos e familiares estariam fragilizados, e a construção de relações amorosas sólidas teria dado lugar a busca egoísta por prazer sexual. Assim, teria-se produzido uma geração de homens e mulheres emocionalmente vazios e de famílias desestruturadas. Resultado das mudanças ensejadas por movimentos como o feminista e o LGBT, essa sociedade teria banalizado o sexo, tornando-o um fim em si mesmo. Apesar de propagar a liberdade sexual como um valor, esta se trataria de falsa liberdade, pois seria a

liberdade do sexo e não da pessoa, porque ela incentivaria os jovens ao sexo sem

responsabilidade para com si mesmo e os outros e sem ensiná-los a lidar com as consequências do exercício sexual. Mais do que isso, essa cultura, apesar de falar em liberdade de escolha, estigmatizaria aqueles que escolheram esperar, pressionando aos jovens, sobretudo aos homens, no sentido da prática sexual pré-conjugal.

Nota-se, que muito mais do que do que romper um suposto tabu do sexo dentro das igrejas ou levar orientação sobre sexualidade aos jovens evangélicos, os discursos do movimento colocam em questão o modo como se fala sobre sexo e abstinência sexual, produzindo e conduzindo sujeitos, mas também deslocando sentidos e práticas, dentro e fora do meio evangélico. Assim, se a circunscrição do sexo aos limites do casamento é uma norma tradicional do cristianismo, a proposta dessa pesquisa é a de compreender os novos sentidos ensejados pelo Eu Escolhi Esperar para a abstinência, percebendo como eles se constituem em tecnologias pastorais de governo da sexualidade de jovens solteiros, que visam produzir sujeitos capazes de escolher. Mais do que isso, a espera constitui-se como uma tecnologia de governamentalidade, destinada não apenas à condução da sexualidade,

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mas à gestão da sociedade e da vida em si, uma vez que é tida como um modo de reestruturar a sociedade através de laços emocionais saudáveis, fundados sobre o casamento e a família.

Atenta à circulação desses discursos em diferentes contextos do campo evangélico, busco ainda refletir sobre como eles são ressignificados pelos seguidores do movimento, a partir de suas experiências afetivo-sexuais, trânsitos religiosos e de seu engajamento denominacional (isto é, dos discursos das igrejas que frequentam). Partindo das narrativas de meus interlocutores, demonstro como noções de agência baseadas na contraposição entre desejo individual e constrangimentos sociais são redutoras da diversidade de experiências ensejadas pela espera (Mahmood, 2005). Nesse sentido, me distancio de categorias clássicas do campo de estudos sociais da religião, como igreja e fiel, numa tentativa de valorizar analiticamente os fluxos e desfixar práticas, sujeitos e identidades de um conjunto de dogmas teológicos. Conforme Teixeira (2018), a noção de religião aparece neste trabalho enquanto uma tecnologia produtora de modelagens de sujeitos, sendo as igrejas não entidades institucionais, mas mecanismos de agenciamentos de conduta. Por conseguinte, a categoria fiel pressupõe um sujeito que deduz suas ações das doutrinas da igreja, mantendo com esta uma relação de obediência (Teixeira, 2018). Opto, assim, pela categoria seguidor, uma vez que esta nos permite pensar os sujeitos num movimento de interação com discursos diversos, bem como suas ações e a forma como refletem sobre elas, em processos e relações nos quais se produzem como sujeitos.

Me interessa, portanto, o trânsito de pessoas por diferentes circuitos religiosos em busca de orientações sobre a forma de se conduzir e gerir a própria intimidade, seja nos eventos do Eu Escolhi Esperar, em diferentes denominações, ministérios, palestras, ou ainda no acesso a livros cristãos de autoajuda, ou conteúdos e grupos online. Para além disso, é notável a circulação de discursos de origens distintas na composição de pedagogias cristãs. Tais fluxos são tecidos seja pelos sujeitos, seja pelos movimentos e marcados ora pela assimilação e ressignificação, ora por disputas e controvérsias. De todo modo, tais imbricamentos demonstram que a religião não se constitui como um campo encerrado em si mesmo, com ação autônoma, que age normatizando condutas. Ao contrário, minha proposta é pensar como os sujeitos se produzem religiosamente e produzem os sentidos da própria religiosidade, em relações de pertencimento, afastamentos, trânsitos e conexões. A complexidade desses processos poderia ser nublada por um uso homogeinizador da categoria “evangélicos”. Ainda assim, não é meu objetivo me deter sobre as classificações

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das diferenças entre as igrejas pentecostais, discussão já tradicional nos estudos sobre este universo religioso (Giumbelli, 2000). Me aproximo mais, portanto, da abordagem de Sant’Anna (2017), que utiliza a categoria para refletir sobre como “os evangélicos” se pensam como tal, ou seja, como uma coletividade, a despeito de suas diferenças, em momentos estratégicos de reivindicação de seu lugar nas narrativas nacionais. Lidando com um movimento interdenominacional que se autodesigna como movimento, causa, campanha ou ministério - nomenclaturas aqui adotadas -, utilizo evangélicos ou crentes como uma categoria êmica, que possui grande valor por assinalar ora as alianças, ora as segmentariedades presentes no campo4.

II- Entre seminários, cultos, esperas e algumas escolhas: o trabalho de campo

Essa pesquisa nasce como um desdobramento de minha iniciação científica, realizada entre 2014 e 2015, sobre representações de gênero e concepções românticas no Culto das Princesas. Coordenado por Sarah Sheeva, o Culto das Princesas é também um ministério interdenominacional que objetiva levar aconselhamentos amorosos a mulheres evangélicas solteiras. Buscando resgatar o romantismo das relações e autoestima feminina, o Culto produzia um padrão normativo de feminilidade, a princesa, com base em uma eficácia para o estabelecimento de relações amorosas. Contraposta à princesa, estava a figura da

cachorrete. Durante a pesquisa, o que me chamou atenção era que não apenas a modéstia e

a castidade eram ressaltadas como pilares no comportamento da princesa: a inteligência emocional e a autoestima eram tidas como os princípios através dos quais a própria pureza sexual era produzida. Neste discurso, fortemente perpassado por noções psi e terapêuticas, a autoestima feminina é vinculada a desestruturação das famílias e, consequentemente, a problemas sociais. A mulher e sua subjetividade eram, portanto, o locus de uma transformação social cuja base seria a família. A passagem para o mestrado se deu motivada por estudar um movimento ministerial semelhante, mas com maior abrangência numérica no meio evangélico e, sobretudo, constituído por um discurso pedagógico voltado a homens e mulheres. A ideia era perceber como tal pedagogia, que também articulava a defesa da abstinência sexual com inteligência emocional, opera ressignificando a abstinência sexual cristã, mas, sobretudo, produzindo feminilidades e masculinidades. Eu buscava, dessa forma, avançar na compreensão de como gênero atravessa o namoro cristão enquanto um modelo

4Assim como em relação a tantos outros aspectos deste trabalho, agradeço muitíssimo a Jacqueline Teixeira e a Maria

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particular de relação, as concepções de amor a ele articuladas e as negociações e estratégias em torno da gestão da intimidade do casal.

De certa forma, movimentos ministeriais com enfoque na vida afetivo-sexual foram um caminho privilegiado para acesso a um interesse mais amplo de pesquisa, relacionado à minha trajetória pessoal: o de compreender melhor os imbricamentos entre gênero e religião nos pentecostalismos. Como aluna de ciências sociais oriunda de classes populares, cresci na periferia de uma pequena cidade do interior, onde igrejas evangélicas compunham parte importante da paisagem. Dessa forma, minhas relações pessoais com amigos próximos, vizinhos e familiares, sempre estiveram atravessadas pela presença evangélica, sobretudo feminina. Assim, esse universo religioso, seus valores e práticas, já me eram bastante familiares e minha entrada em campo não foi marcada por um profundo estranhamento, ainda que não tenha sido completamente livre de tensões.

Inicialmente, o campo se daria apenas em eventos organizados pelo Eu Escolhi Esperar, como seminários, festas e palestras. A partir dos eventos, eu intencionava estabelecer uma proximidade maior com os seguidores e então, uma rede de interlocutores. Entretanto, o fato de os eventos se darem em igrejas diferentes, em todo território nacional, e de forma não periódica, contudo, dificultaram o objetivo inicial. Dessa forma, a pesquisa etnográfica buscou responder aos desafios metodológicos colocados pelas dinâmicas do próprio movimento, sendo inspirada por formas de etnografia que priorizam os fluxos, suas conexões e efeitos, em detrimento do tradicional estabelecimento do pesquisador em um único locus etnográfico por longo período de tempo (Marcus, 1995; Piscitelli, 2013; Ferreira, 2012; Fidalgo, 2017). Assim, estabeleci contatos com interlocutores que conheci em outros espaços, como a própria universidade e minhas redes pessoais de relação, e através destes e de seus convites, fui levada a frequentar diversas igrejas, eventos e projetos ministeriais. Esta forma “multi-situada” de etnografia, que consiste em “seguir pessoas” e seu trânsitos (Marcus, 1995), busca pensar como estes se relacionam à circulação de significados culturais, sem, entretanto, produzir uma “continuidade etnográfica que atravessa contextos, lugares e instituições” (Piscitelli, 2013) e cujo risco aqui seria o de homogeneizar um contexto tão complexo quanto o evangélico.

Ao acompanhar o movimento de meus interlocutores, acabei por me colocar novas questões, como a importância de pensar as formas pastorais de governo ensejadas pelas igrejas e suas comunidades, bem como a própria circulação dos interlocutores por diferentes espaços (congressos e seminários ministeriais, denominações e grupos de jovens,

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canais e páginas online) em busca de aconselhamento sentimental. Para além dos eventos do Eu Escolhi Esperar, frequentei, em uma ou mais ocasiões, encontros do grupo de jovens da Igreja Batista, da Bola de Neve, da Comunidade do Estudante Universitário, da Igreja Quadrangular e da Nazareno - geralmente a convite de interlocutores e em ocasiões onde especialmente se discutiriam temas ligados à vida amorosa e à sexualidade. De forma sistemática, ao longo de 2017, a pesquisa etnográfica se realizou em dois grupos: o Girls -Garotas com Propósito e o Mover - Jovens em Movimento.

O primeiro grupo trata-se de um projeto em Campinas voltado exclusivamente a mulheres e com foco em mulheres jovens. Os encontros acontecem mensalmente em um hotel localizado uma região relativamente central da cidade, e reúnem dezenas de mulheres de variadas igrejas. Mariana, fundadora do Girls, é uma mulher branca, de trinta e poucos anos, paraibana, casada com um missionário americano, ao lado de quem viaja por diversos países fazendo missões. Após morar alguns anos nos Estados Unidos, onde seus filhos nasceram, em 2011 ela se mudou para uma temporada no Brasil, onde sentiu que Deus tinha o propósito de usar seu tempo no Brasil para criar um ministério voltado ao aconselhamento de mulheres jovens. Mesmo sem nunca ter tido vontade de trabalhar com esse público, Mariana ouviu a voz de Deus e começou o grupo na sala de sua casa, com algumas meninas da igreja Assembléia de Deus, que ela frequenta quando está no Brasil, e outras da Nazareno. Em pouco tempo, porém, o projeto cresceu e elas viram a necessidade de alugar espaço próprio. Inicialmente, esse espaço foi um pequeno salão me um bairro de periferia, sempre cheio e caprichosamente decorado com flores e corações, onde conheci o grupo. Depois, as reuniões migraram novamente para o centro de convenções de um hotel de porte médio.

O Girls é concebido não como um culto de mulheres, mas como um grupo de apoio entre estas, onde elas possam desabafar, refletir e receber ajuda para lidar com problemas cotidianos, relacionados à vida profissional, casamento, vida amorosa, sonhos etc. Buscando criar um ambiente confortável e acolhedor, o sigilo de tudo que ali é compartilhado é uma norma fundamental do grupo. São estabelecidas três regras principais:

sem julgamentos, sigilo total e nada de fofoca. Por ressaltarem o tempo todo que as coisas

ditas durante o Girls permanecem no Girls, não me senti à vontade para, neste texto, reproduzir qualquer relato ou fala de alguma frequentadora durante as reuniões. Assim, incorporo ao texto apenas as conversas externas tidas com Mariana (capítulo 2) e Priscila (capítulo 1), a respeito do grupo, seus objetivos e suas trajetórias pessoais, além de uma

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reflexão sobre o Girls in love, um evento anual organizado pelo grupo, que palestrantes convidadas, no qual as falas possuem caráter público.

Já o Mover - Jovens em Movimento é um grupo de jovens de uma das igrejas Cristo Salva da Região Metropolitana de Campinas - RMC. A Igreja Cristo foi fundada em 1975, na cidade de São Paulo, sendo desde o início caracterizada por um foco no público juvenil, além da flexibilidade quanto às normas comportamentais, sendo considerada uma das precursoras do neopentecostalismo (Siepierski, 2001: 81). A igreja a qual frequentei para a pesquisa se localiza num bairro de periferia da RMC, e, como é costume em igrejas evangélicas, os cultos do grupo de jovens acontecem aos sábados, nesse caso à noite. Cheguei ao Mover por intermédio de Lilian, uma amiga da Unicamp, cuja mãe frequenta a igreja. Gentilmente, ela me colocou em contato com o pastor Vieira, que, durante uma conversa na qual lhe apresentei em detalhes os objetivos da pesquisa, me autorizou a realizar ali minha pesquisa de campo.

Os responsáveis pelo grupo de jovens da igreja são Carlos e Aline, um casal muito simpático que possui dois filhos. Os encontros são marcados pela informalidade e despojamento: as pregações eram recheadas de gírias, piadas e relatos de situações cotidianos onde o agir de Deus teria se manifestado e, no que tange ao vestuário, Carlos estava sempre de bermuda e boné de aba reta, enquanto os jovens, sempre bem arrumados e estilosos, usavam roupas de diversos estilos. A abertura dos cultos era realizada pela banda, geralmente ao som de rock gospel, mas que podia incluir até mesmo sertanejo gospel. A música, ou melhor, o louvor, que era também momento da oração, consumia grande da noite e muitas vezes éramos convidados a ir á frente do altar para dançar. Neste momento, as luzes do salão se apagavam e só se podia ver as iluminação colorida do altar. Em muitos cultos havia ainda espaço para apresentações do grupo de dança e teatro. Além disso, são os próprios jovens que, na maioria dos cultos, se revezam nas pregações e escolhas dos temas abordados.

Em diversos momentos, me pareceu possível pensar o Mover como uma espécie de círculo familiar, no qual as pessoas todas se conhecem e cuidam umas das outras. Além disso, procura-se apresentar uma imagem positiva do grupo e de seus ideais para aqueles que são

do mundo, sobretudo à figura bastante confusa, para aquelas pessoas, de uma antrópologa,

ou pesquisadora da Unicamp - sendo o nome da universidade constantemente ressaltado como um símbolo de uma suposta importância de meu trabalho (fato sempre ressaltado). Assim, embora eu tenha sido sempre tratada de forma receptiva e carinhosa, ainda que

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minha posição fosse por vezes vista com estranheza, senti que as interações com os interlocutores eram marcadas muitas vezes por um esforço em reproduzir as perspectivas da igreja sobre determinados temas, ou a evitar qualquer fala que pudesse ser entendida como crítica a essas. Dessa forma, quando se apontavam discordâncias contra os discursos institucionais, estas tinham como alvo, com raras exceções, outras denominações que não aquela a qual o interlocutor frequentava, sendo geralmente alguma a qual ele tinha abandonado no passado. Esse esforço em passar uma imagem positiva se relaciona ainda a algumas tentativas, ainda que sutis, de evangelização dirigidas a mim. Como em uma ocasião quando, durante a oração, o pastor chamou à frente todos aqueles que queriam

entregar suas vidas a Jesus e Flávia me convidou para acompanhá-la, caso Deus estivesse tocando no meu coração.

Durante a pesquisa, recebi ainda orações, profecias de bênçãos e conselhos, pois eu também, por vezes, dividi com algumas interlocutoras questões de ordem bastante pessoal. O campo foi, assim, uma experiência permeada por afetos de ordens diversas. Em primeiro lugar porque sempre me senti imensamente ajudada pela maior parte das pessoas, sobretudo aquelas como Flávia, Júlia e Alice, para citar alguns nomes, que me levaram a lugares e me apresentaram pessoas, além de compartilharem comigo suas horas durante conversas e entrevistas. Mas também do próprio Pastor Nelson que se mostrou receptivo à ideia da pesquisa, apesar das dificuldades de estabelecer contato para uma possível entrevista.

Por outro lado, se a figura de uma mestranda em Antropologia que não estava interessada em se converter parecia gerar estranheza, meu lugar como sujeito politicamente posicionado em favor dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como dos direitos de minorias sociais em geral, também fez com que, para mim, a interação com determinadas pessoas, sobre determinados temas, produzisse desconforto. Em campo, eu me apresentava como pesquisadora, como estudante universitária, como não-evangélica, mas jamais como feminista. Contudo, embora tenha buscado manter uma postura reflexiva e menos valorativa, sobretudo quanto a assuntos que interessavam diretamente a essa pesquisa, não deixei de me afetar por determinadas falas ou posições de meus interlocutores. Nessas ocasiões, eu procurava contornar as conversas, mudando de tema. Em outros momentos, porém, eu procurei dialogar acerca de temas controversos neste contexto, quando julgava haver espaço e receptividade para tanto. Considero minha conversa amigável com Júlia acerca da ideia de “ideologia de gênero”, em outubro de 2017, quando os ânimos estavam

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bastante exaltados em torno desta questão, uma das experiências mais marcantes neste sentido.

Assim, a pesquisa de campo foi também atravessada pelas tensões do cenário político mais amplo, no qual questões em torno do gênero, da sexualidade e da família vem se constituindo cada vez mais em controvérsias públicas, produzindo disputas conflituosas e, por vezes, violentas, nas quais atores evangélicos ocupam um lugar significativo (Almeida, 2017). A ascensão do debate em torno da chamada “ideologia de gênero”, por exemplo, me levou a temer usar o termo “gênero” junto aos interlocutores ao falar sobre a pesquisa, ou mesmo a evitar postagens políticas públicas em minhas redes sociais a respeito, por temor de ser politicamente identificada como feminista e colocar sob suspeita minha presença nestes espaços. Contudo, esta é uma questão que ultrapassa meus posicionamentos pessoais, mas que se coloca na medida em que a própria produção de saber antropológico, especialmente no campo de Estudos de Gênero, não pode ser dissociada da crítica às desigualdades (Dell Valle, 1996) e da defesa dos direitos fundamentais daqueles sujeitos cujas expressões de gênero e sexualidade os colocam em posições de subalternidade (Facchini e Sívori, 2017). Nesse sentido, a Antropologia não apenas contribui com ferramentas analíticas férteis para a compreensão de embates em arenas políticas, como se torna também parte destes embates, sendo por vezes apropriada de formas não-intencionais nestas arenas (Piscitelli, 2016).

Para além de posicionamentos políticos, meus próprios marcadores de diferença social certamente atravessaram minhas interações com os interlocutores. Ser branca, universitária, de classe baixa, mas sobretudo, o fato de ser mulher foram fatores que implicaram os imaginários das pessoas a meu respeito, bem como nossas relações. Na maior parte dos espaços, eram as mulheres que primeiro se aproximavam de mim e com quem eu conseguia estabelecer relações mais profundas, que me permitissem conversar com maior abertura sobre os temas propostos. Consequentemente, a maioria dos interlocutores entrevistados acabou por ser feminina. Acerca do uso metodológico de narrativas, tomadas a partir de entrevistas, é preciso levar em conta a forma como a relação entre pesquisador e interlocutor afetam aquilo que é dito por estes (Pack, 2006). Assim, busquei dar relevância a conversas informais e realizar as entrevistas apenas após algum tempo de convivência, garantindo espaço para que as fala fossem o mais espontâneas possíveis, ainda que as entrevistas fossem semi-estruturadas e os interlocutores conhecessem previamente o objeto da pesquisa.

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Procurando evitar as armadilhas da “ilusão biográfica”, isto é, de tratar as narrativas de vida como expressões de uma realidade linear e coerente (Bourdieu, 2006), considerei as narrativas como “relatos de si”, no sentido de Butler (2009). Para a autora, narrar a si mesmo é uma ação fundamentalmente relacional, que ultrapassa a simples transmissão de uma informação, na medida em que narrar é produzir a si mesmo e ao seu interlocutor como sujeitos na interação. Assim, interessa-me compreender como os sujeitos se produzem no ato performativo de “relatar a si mesmos” e não demandar transparência ou coerência em narrativas pessoais - busca que Butler denomina como um tipo de “violência ética”.

No que tange aos marcadores sociais de diferença dos sujeitos, é preciso ressaltar que todas as vezes em que alguém é descrito como negro ou branco, tal designação não representa uma autoclassificação dos interlocutores - ao contrário, é feita com base em meu olhar. Isso se dá por entendermos que, no contexto brasileiro de uma forma geral, raça é um fator social de grande relevância na produção de diferenças e desigualdades (Brah, 2006). Enquanto nos cultos e eventos, de forma geral, pude notar uma presença semelhante de pessoas negras e brancas, tendo destaque quase sempre o maior número de mulheres, a questão racial não aparece nas narrativas de quase nenhum interlocutor e quase nenhum deles se classifica explicitamente. A única exceção é Carla, uma jovem para quem seu processo de construção como mulher negra e feminista cristã, a partir de seu engajamento em coletivos políticos do movimento estudantil, abriu um espaço para problematizar a questão racial como parte de sua trajetória religiosa. Vale notar que a maior parte das igrejas em que a etnografia foi realizada eram localizadas na periferia da cidade de Campinas - com exceção de uma Igreja Batista, localizada na região central e a única com público majoritariamente branco5.

A respeito das negociações éticas implicadas no trabalho de campo, optei por trocar todos os nomes de interlocutores, bem como dos grupos citados, com exceção do Eu Escolhi Esperar. Todas as pessoas a quem me apresentei em campo foram devidamente informadas de minha posição como pesquisadora e dos termos gerais da pesquisa. As pessoas entrevistadas receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para além disso,

5Pesquisa do Datafolha, divulgada em janeiro de 2020, aponta que as mulheres negras representam a ampla maioria dos cristãos evangélicos no Brasil. Segundo os dados, 58% dos evangélicos são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como pretas. 30% se identificam como brancas, enquanto as indígenas e amarelas aparecem com 3% e 2%, respectivamente. Disponível em:

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como as conversas e entrevistas envolviam o compartilhamento de fatos bastante íntimos, cuja exposição poderia macular a imagem das pessoas envolvidas, por tratar-se de um contexto onde tais temas são objeto de atenção especial, preferi ocultar certos aspectos das narrativas, bem como informações sobre os interlocutores que pudessem permitir sua identificação.

Por fim, optei por redigir em itálico as palavras, expressões e frases que indiquem termos êmicos. Aspas foram usadas apenas para remeter a citações bibliográficas.

III - Organização dos capítulos:

Esta dissertação se divide em 3 capítulos. No primeiro, traço um panorama das formas de governo da sexualidade existentes no campo evangélico, e quais são as ressignificações produzidas pelo Eu Escolhi Esperar a partir de noções como inteligência emocional, pureza sexual e escolha. No segundo capítulo, aprofundo o entrecruzamento entre a ideia de abstinência sexual e amor, demonstrando como o movimento se constitui em uma instância de aprendizado emocional para gestão da vida e da sociedade. Por fim, no último capítulo, reflito sobre as relações entre evangélicos, sexualidade e agência, descrevendo os agenciamentos e fluxos dos sujeitos por dentre diferentes pedagogias afetivas, bem como os fluxos de repertório que marcam a construção retórica do movimento.

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CAPÍTULO 1:

“Vivendo em santidade”: formas de governo da sexualidade jovem em

contexto(s) evangélico(s)

I - Apresentação

Estávamos Júlia e eu sentadas lado a lado, cercadas por centenas de adolescentes, que lotavam o salão na Conferência Regional Jovem das Igrejas Quadrangulares. À minha esquerda, ela sorria e arqueava as sobrancelhas todas as vezes em que o pastor conferencista fazia alguma piada, de tom depreciativo, sobre o Eu Escolhi Esperar. Júlia (31 anos, branca, gestora de Recursos Humanos) já foi a seminários, coleciona livros autografados e fotos com o fundador da campanha, e é talvez a pessoa mais entusiasmada com o Eu Escolhi Esperar que eu encontrei durante o trabalho de campo. Nós nos conhecemos desde 2015 e, no percurso da pesquisa, acabamos nos tornando amigas. De lá pra cá, pude acompanhar suas idas e vindas com namorados, seus planos, decepções e recomeços, nos quais os conselhos do movimento tiveram sempre um papel importante.

Foi Júlia quem me convidou para a Conferência, que reuniu os grupos de jovens de todas as igrejas Quadrangulares de Campinas. Além de me dar o ingresso de presente, ela insistiu para que eu fosse, dizendo que ela mesma não iria, porque se sentia um pouco deslocada em meio aos outros jovens, muito mais novos em idade do que ela. A igreja frequentada por Júlia, trata-se de uma igreja pequena, localizada em um bairro popular, no qual ela reside com a mãe. Apesar da diferença de idade em relação aos colegas, Júlia ainda é vista como jovem pela comunidade, assim como todos aqueles que ainda não se casaram. Assim, Júlia diz não se sentir bem tanto nas reuniões de jovens, quanto nas de mulheres, nas quais quase todas já são casadas e os temas abordados giram em torno do casamento.

O evento da Conferência Regional, foi conduzido por André, um pastor que nesse dia vestia bermuda e boné de aba reta. André já começa a noite afirmando que suas palavras seriam duras, mas necessárias. No decorrer do culto, o pastor critica o que chama de superficialidade dessa geração de jovens, que se preocuparia em demasia com coisas mundanas, ao invés de

mergulhar nas águas profundas de Deus. Dentre as preocupações superficiais dos jovens, a

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Os jovens da igreja hoje estão muito preocupados com o crush. ‘Ah pastor, meu crush isso, meu crush não sei o quê’. Deixa eu falar uma coisa pra você, se até eu casei, feio do jeito que eu sou, você casa também, é só você encontrar Jesus! Busca Jesus primeiro! [Diário de Campo, Conferência A Resposta, 05/08/2017]

Embora o tema da palestra não fosse relacionamentos, em vários momentos o pastor toca no assunto, e menciona o Eu Escolhi Esperar, em tom pejorativo, mas sempre fazendo a ressalva de que não pretendia criticar o movimento, pois o considera necessário.

Eu e Mariana namoramos dois anos e a gente não ficava se vendo sozinho. Meu irmão, para com esse negócio de ficar saindo à noite com a sua namorada, para com esse negócio de namoro pentecostal6, Deus quer que você tenha um namoro

santo de verdade! Eu e Mariana casamos virgens e a gente não precisou ir pedir orientação no Eu Escolhi Esperar pra isso não, porque a gente tinha Jesus! A gente não precisou ir no Eu Escolhi Esperar porque a gente já sabia o que podia e o que não podia! [Diário de Campo, Conferência A Resposta, 05/08/2017]

Contudo, na opinião de Júlia, o movimento está longe de ser algo superficial, pelo contrário, ela o considera fundamental, pois este falaria de forma direta e engraçada sobre sexualidade aos jovens evangélicos, fornecendo um tipo de orientação que ela se ressente por não ter tido na igreja em sua adolescência. Mais do que isso, Julia acredita que uma orientação cristã sobre sexualidade teria sido fundamental para evitar vários percalços pelos quais passou em sua trajetória. O pastor Nelson Júnior, fundador do Eu Escolhi Esperar, também reafirma constantemente, seja em seminários, cultos ou entrevistas, a importância de falar sobre sexo e quebrar o que vê como um tabu nas igrejas evangélicas brasileiras. Em tom de humor, durante um evento da Assembléia de Deus Bom Retiro, ele arranca risos da plateia ao dizer:

Só de falar a palavra sexo dentro da igreja tem gente que já treme, já até se arrepia. Os religiosos já vão falar que é falta de reverência. Mas não é falta de reverência não, irmão. O sexo não é uma coisa suja, foi Deus quem criou o sexo. O sexo é um presente de Deus, uma benção de Deus pro casamento. Se não pode falar de sexo na igreja, como faz quando for fazer em casa? [Diário de Campo, Escola Bíblica de Adolescentes, 23/09/2017]

Foi com o objetivo de restaurar e propagar uma cultura cristã de relacionamentos que Nelson Júnior criou o Eu Escolhi Esperar, que, conforme ele considera, viria suprir essa necessidade de orientar os jovens evangélicos a respeito da sexualidade e do amor. A partir da Internet,

6Namoro pentecostal, ou namoro quente, ou namoro fogoso, são uma terminologias usadas, frequentemente em tom de piada, para se referir a namoros onde, apesar de não haver relação sexual (entendida como penetração genital), o casal apresentaria um comportamento inadequado ao se exceder em carícias e contatos físicos inapropriados. O termo se refere ainda ao episódio de Pentecostes, de grande importância na tradição teológica pentecostal, narrado pela Bíblia no Capítulo 2 de Atos dos Apóstolos. O Pentecostes marca a ocasião em que o Espírito Santo teria descido sobre os apóstolos e demais pessoas presentes no culto, conferindo a estes seus dons, dentre os quais o dom de falar em línguas é especialmente caro aos evangélicos pentecostais. A referência ao namoro vem do fato de que, ao serem batizados com o Espírito Santo, os discípulos teriam visto a este na forma de línguas de fogo .

Referências

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