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Any Role for Mock News? Normative Journalism through Barcelona’s and the Daily Show’s Critical Narratives

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Copyright © 2016 SBPjor / Associação Brasileira de

Pesquisa-dores em Jornalismo ARTIGO

Phellipy Pereira Jácome

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil

RESUMO - A partir da caracterização de um discurso normativo acerca do jornalismo, este artigo busca investigar o papel desempenhado por mídias metajornalísticas contemporâneas que questionam dita normatividade. Com exemplos de uma publicação impressa argentina e um programa de TV estadunidense, nos perguntamos como esses produtos se utilizam de formas textuais e estratégias narrativas que poderiam ser reconhecidos como “tipicamente jornalísticas” para enfrentar, por meio da ironia e da paródia, as formas em que meios jornalísticos hegemônicos em seus respectivos países configuram realidades. Nossa hipótese é que as técnicas narrativas dessas publicações servem como índices de esgotamento dos procedimentos da retórica da objetividade jornalística.

Palavras-chave: Jornalismo normativo. Metajornalismo. Barcelona. The Daily Show. Paródia.

¿CUAL ES EL ROL DE LAS NOTICIAS SIMULADAS? Periodismo norma-tivo a través de las narraciones críticas de la revista Barcelona y de

The Daily Show

RESUMEN: A partir de la caracterización de un discurso normativo del periodismo, este artículo busca investigar el papel desempeñado por algunos medios de comunicación meta-periodísticos contemporáneos que cuestionan esta normatividad. Con ejemplos de una publicación impresa argentina y un programa de televisión estadounidense, nos preguntamos cómo estos productos utilizan formas textuales y estrategias narrativas que podrían ser reconocidos como “típicamente periodísticas” para enfrentar, desde la ironía y la parodia, las formas en que los medios hegemónicos configuran sus realidades. Nuestra hipótesis es que las técnicas narrativas de estas publicaciones sirven como índices de un agotamiento de los procedimientos de la objetividad periodística

Palabras-clave: Periodismo normativo. Metaperiodismo. Barcelona. The Daily Show. Parodia.

BANY ROLE FOR MOCK NEWS? Normative journalism through Barcelona’s and The Daily Show’s critical narratives

ABSTRACT - From the characterization of a normative discourse of journalism, this

QUAL O PAPEL DAS

NOTÍCIAS SIMULADAS?

Jornalismo normativo através das

narrativas críticas da revista Barcelona

e The Daily Show

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Introdução

Nas últimas décadas, é possível perceber a emergência de vários produtos na imprensa, na televisão e, notadamente, na internet que são capazes de criticar de um modo muito peculiar alguns dos conceitos e práticas regulatórias que vêm sustentando normativamente o jornalismo como um “ismo” (NERONE, 2009, 2013) por mais de um século. Tais produtos, que podem ser vislumbrados em diferentes países com distintos ambientes midiáticos e sistemas noticiosos diversos, possuem a peculiaridade de construir notícias de uma maneira evidentemente ficcional, mesclando fatos aparentemente absurdos com personagens reais em narrativas com um forte apelo irônico. Para isso, lançam mão de convenções textuais que poderiam ser descritas como “tipicamente jornalísticas”, o que gera dúvidas acerca da veracidade ou não dos eventos descritos, além de claramente propor uma outra relação com a audiência. Isso porque ao invés de pretenderam relatar uma verdade irrefutável de um modo neutro e pedagógico, como sugerido em alguns modelos normativos, a ironia clama por uma participação mais ativa do espectador/leitor, além de possuir arestas avaliativas (HUTCHEON, 1985) que combinam o dito e o não-dito para criar novos sentidos bem distantes de uma ideia fixa de objetividade ou de reprodução da realidade.

article seeks to investigate the role played by contemporary meta-journalistic media outlets that question this normativity. With examples of an Argentine print publication and an American TV show, we wonder how such products used textual forms and narrative strategies that could be recognized as “typical journalistic” to confront, through irony and parody, the ways in which the hegemonic journalistic outlets configure their realities. Our hypothesis is that the narrative techniques of these publications serve as indices of a depletion of journalistic objectivity procedures.

Keywords: Normative Journalism. Meta-journalism. Barcelona. The Daily Show. Parody.

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Nessa caracterização inicial, parecem se encaixar alguns produtos como a revista estadunidense the Onion e o programa televisivo The Colbert Report, além de sites brasileiros como The

Piauí Herald e Sensacionalista, ou da página web venezuelana El Chigüire Bipolar, além de vários outros. Ditas publicações, em maior

ou menor grau, utilizam-se de recursos expressivos como a paródia e a ironia para satirizar figuras públicas, políticos, personalidades e especialmente o jornalismo, sua agenda midiática, suas convenções narrativas e seus modos de configurar realidades. Cabe aclarar que países como Brasil, Argentina e Estados Unidos possuem uma ampla tradição de jornais satíricos ao longo de suas histórias (o que pode ser percebido em produtos como El Mosquito¸O Pasquim,

O Binômio, The Great Moon Hoax etc.). E, até mesmo, na chamada

“mídia tradicional” é possível encontrar espaços consagrados –por exemplo, as charges-, nos quais a ironia é amplamente utilizada para caricaturar figuras poderosas. Entretanto, a “novidade” dos produtos que pretendemos aqui analisar é que, diferentemente da maioria dos seus predecessores, seu principal alvo parece ser o próprio jornalismo, suas convenções e seu monopólio das notícias do dia.

É nesse sentido que, neste artigo, nossas preocupações estarão direcionadas a dois produtos midiáticos que nos parecem seminais para esse novo tipo de configuração narrativa nos Estados Unidos e na América do Sul. Trata-se de The Daily Show with

Jon Stewart e da revista argentina Barcelona, respectivamente.

Ditas mídias, apareceram quase simultaneamente (Barcelona foi arquitetada em 2001 e oficialmente lançada em 2003, enquanto Jon Stewart comandou o programa televisivo da Comedy Central de 1999 a 2015) e contam com pelo menos uma década de existência no mercado midiático. Nesse sentido, elas são capazes de já há algum tempo problematizarem o jornalismo, ao utilizarem convenções textuais típicas para pontuar dimensões conflitivas e espaços de incertezas existentes nas narrativas jornalísticas, operando o que aqui chamaremos de metajornalismo crítico.

Cabe aclarar que o conceito de metajornalismo, pese a escassa literatura sobre o tema, vem sendo abordado por alguns autores como Oliveira (2007, 2010), Paredes (2013), Campos-Dominguez; Redondo-García (2015). De uma maneira geral, a função metajornalística é geralmente descrita por estes autores como uma avaliação deontológica dos procedimentos jornalísticos e, por isso, está fortemente vinculada a um ideal de escrutínio público da mídia.

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Nessa perspectiva, o que é comumente entendido como o “meta” no jornalismo tende a ser associado àquelas práticas e critérios de julgamento das dimensões procedimentais das notícias, propondo correção dos desvios, identificando falhas nas coberturas ou indicando outras maneiras entendidas como mais apropriadas para a apreensão de determinadas realidades. Essa concepção de metajornalismo possui uma forte impronta normativa e, por isso, é geralmente ligada a dois principais tipos de produtos (tal como defende PAREDES, 2013, p.7): aqueles especializados no debate do jornalismo (como são exemplos: Editor&Publisher e Observatório da Imprensa), ou ainda seções específicas das mídias informativas como o ombudsman, as cartas dos leitores, ou a seção “erramos”. Como aponta Oliveira (2007, p.8), entendido dessa forma, o metajornalismo “visa aceder, vigilante, aos abatimentos e aos cansaços do discurso midiático”. Por isso, a importante crítica desse tipo de metajornalismo quase sempre se utiliza dos valores profissionais e códigos de ética para denunciar as falhas de determinadas coberturas que não teriam seguido as regras operacionais do “bom jornalismo”. Há, quase sempre, um reforço da concepção normativa entendida na função do jornalismo como watchdog, encarnada numa profunda crença de sua capacidade fiscalizadora e sua habilidade como um observador neutro e objetivo. Entretanto, essa concepção mais convencional e estrita de metajornalismo parece não ser capaz de caracterizar as estratégias empregadas em Barcelona e The Daily Show with Jon Stewart. Como já adiantamos, esses produtos abordam criticamente convenções naturalizadas do jornalismo para rearranjá-las, expondo fissuras e contradições no espelho realista do jornalismo. Eles refutam uma suposta capacidade purificadora do jornalismo, na medida em questionam sistematicamente a realidade proposta pelos meios de comunicação hegemônicos de seus respectivos países. Assim, buscando formas de ampliar o conceito de metajornalismo a partir das experiências propostas por esse tipo específico de mídia, estamos particularmente interessados na inversão das convenções textuais realizadas por esses produtos e suas implicações para ideais como objetividade e neutralidade que têm caracterizado o entendimento moderno do jornalismo como uma disciplina das notícias por excelência. Neste artigo, analisaremos algumas estratégias metatextuais para lançar pistas acerca do papel ocupado por esses produtos irônicos e sua relação com os discursos de autolegitimação do jornalismo.

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O jornalismo “moderno”

Como postula John Nerone (2009, 2013), o que torna o jornalismo um “ismo” é também um sistema de crenças que busca definir quais seriam as práticas e valores mais apropriados tanto para os profissionais da notícia, quanto para as mídias e sistemas noticiosos (NERONE, 2013, p. 447). Esse sistema de crenças, além disso, busca ser capaz de criar uma espécie de barreira ao redor do bom exercício da profissão, separando-o de práticas que deveriam ser a todo custo, evitadas (como o sensacionalismo, o melodrama, a tabloidização etc.). Por mais de um século, o entendimento “moderno” do jornalismo tem sido parte de um sistema de crenças hegemônico, cujas raízes podem ser encontradas, particularmente nos EUA, na passagem do século XIX ao XX, num momento em que a imprensa vai deixando seu modelo político-partidário de informação em direção a uma ética profissional e moderna (KAPLAN, 2010).

A palavra “moderna” assume aqui um tom muito importante, tendo em vista que naquele momento, o jornalismo buscava incorporar métodos científicos para a apuração dos fatos, buscando-o reproduzi-los em suas páginas diárias com a maior exatidão possível. Como pontuam Latour (1993) e Sousa Santos (1995), o paradigma dominante do conhecimento moderno estrutura-se na emergência de uma aparente fissão entre natureza e sociedade. É da dicotomia entre o conhecimento dos fatos e as ações políticas que está edificada e modernidade (LATOUR, 1993). Boaventura de Sousa Santos (1995) e Mary Poovey (1998) argumentam ainda que essa nova episteme, ancorada na racionalidade científica, é a responsável pela ideia moderna de fato. Na ciência, isso significa a separação entre duas instâncias: a condição inicial, na qual o cientista selecionaria o fato a ser observado; e o reino da regularidade, as leis da natureza aprendidas através de uma rigorosa e sistemática observação de ditos fatos. Esse modelo de conhecimento começa a se impor a partir do século XVI, tendo sido desenvolvido primeiramente no âmbito das chamadas ciências da natureza. Somente no século XVIII e proeminentemente no XIX é que ele foi estendido às ciências sociais ainda emergentes (SOUSA SANTOS, 2003, p.10) num complexo processo de sobreposições e rearranjos sociais.

Isso significa que “jornalismo”, como postula Nerone (2013) é algo relativamente recente e, até mesmo, tardio. O vocábulo adquiriu seu sentido “moderno” somente na primeira metade do século XX,

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quando passou a referir-se a “uma verificação e investigação ativa” e a uma “disciplina da observação e equilíbrio” (NERONE, 2013, p.449). Esse novo ethos foi possível graças a fatores sociais e econômicos, tais como um novo maquinário para impressão, abundantes espaços para a propaganda, preço mais barato para o papel, criação de associações de classe, industrialização etc. (KAPLAN, 2002; SCHUDSON, 1978). Nesse sentido, a profissionalização do jornalismo e o aparecimento do ideal da objetividade aparecem como respostas às críticas à chamada

yellow press, como os jornais sensacionalistas de circulação massiva

eram chamados nos EUA. De acordo com Nerone, os empresários do setor midiático foram pressionados a “garantir independência às suas práticas noticiosas, sendo forçados a criar barreiras para separar os departamentos noticioso/editorial dos escritórios de negócios, além de tornar público um compromisso com a justiça, equilíbrio, o que viria a ser chamado de objetividade” (NERONE, 2009, p. 33). Sob a égide da objetividade, jornalistas puderam adotar a pose de cientistas (KAPLAN, 2002) e, ao utilizar técnicas e normas específicas, acreditava-se que eles poderiam eliminar seus valores e crenças, sendo capazes de, por isso, apurar os fatos sem viés e reproduzi-los objetivamente nas páginas dos jornais.

Esse modelo normativo de jornalismo que tem na objetividade seu componente mais controverso e característico surgiu nos Estados Unidos e foi então “exportado” e adaptado em vários países, estando associado a ideias como o “livre fluxo de informação” e o “livre mercado de ideias” (BLANCHARD, 1986). A profissionalização dos jornalistas dos promovida através da criação de cursos superiores em todo o mundo, alavancados por diversas associações e escritórios do governo estadunidense (ROGERS, 1994). Especialmente na América do Sul, o “modelo americano de jornalismo” serviu como inspiração para as chamadas modernizações dos sistemas jornalísticos de diversos países (MELLADO, 2010; RIBEIRO, 2002; ALBUQUERQUE, 2010). Assim, remodelada de diferentes formas, essa versão “moderna” do jornalismo possui uma clara existência internacional (NERONE, 2013) e pode ser entendido como uma commodity estadunidense (KAPLAN, 2002; ROSEN, 2003). Jornalismo como um “ismo” é, ainda, uma série de valores que também envolve determinadas convenções narrativas, formatos noticiosos e um discurso de autolegitimação associado a um ideal normativo. Nessa perspectiva, o compromisso com a verdade, a competência e a expertise profissionais estão fundados numa retórica que clama a capacidade jornalística de tecer

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uma realidade sem viés, e defende a notícia como um fragmento de uma realidade externa e totalizável. Nesse sentido, como apontado em outro momento (JACOME, 2015), essa ideia normativa moderna de jornalismo pode ser observado em, pelo menos, três níveis complementares.

1) Numa concepção, que define o jornalismo por sua “natureza objetiva” e seu apego ao “fato”, entendido como algo meramente externo à sua ação de narrar. Assim, desvios à estética realista, como o sensacionalismo e o melodrama, por exemplo, são tomados como objetos de menor valor, descomprometidos.

2) Nessa concepção, observa-se uma série de valores através dos quais o jornalismo pretende se distinguir de outras modalidades narrativas por sua suposta habilidade em mostrar uma verdade empiricamente determinável. É nesse sentido que se advoga separações totais entre ficção e jornalismo, jornalismo e literatura, verdade e ficção.

3) Concepção e valores estão engendrados em procedimentos

operacionais que regulam um certo modo do fazer jornalístico. Aliado

a isso, é possível perceber configurações canônicas para uma forma da notícia, que assegura unidade aos planos argumentativos através de determinadas convenções narrativas (como o lide, a pirâmide invertida, a ideia de ouvir dois lados de uma querela etc.)

Os três níveis acima citados acabam por engendrar a objetividade como parâmetro do que seria o bom jornalismo, ao permitir que os profissionais e mídias noticiosas se apresentarem como impessoais e imparciais, levando adiante uma verdadeira obsessão em reportar os fatos entendidos como realidades reproduzíveis, criando modelos normativos a serem seguidos.

Nesse sentido, em Normative Theories of the Media (CHRISTIANS et al., 2009), por exemplo, somos apresentados a diferentes modos de atuação do jornalismo que variam de acordo com seu modelo de negócios, suas relações com o poder instituído e com a própria percepção de suas práticas. O livro parte da tentativa de ampliar os modelos possíveis de jornalismo e seus entendimentos, que vêm sendo pensados desde, pelo menos a década de 1950 com o lançamento de Four Theories of the Press (PETERSON et al., 1956). Uma ampliação dessas idealizações do jornalismo e de como ele deveria

ser são certamente importantes para caracterizar uma ampla ecologia

e propiciar a criação e reflexão sobre ferramentas para entender suas variadas facetas. Assim, o livro Christians et al. corresponde a

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um esforço relevante de propor não “teorias da imprensa”, mas de tentar perceber distintos lugares ocupados por diferentes agentes midiáticos. Assim, somos apresentados a determinados papeis como o de monitoramento (fortemente associado ao watchdog), o de

facilitador (encarnado em fenômenos como o jornalismo comunitário

e público), o radical (no qual o jornalista é geralmente confundido com o papel de ativista) e o colaborativo (que possui uma relação de colaboração com o Estado). Ditos modelos, entretanto, comungam -de maneira mais ou menos entusiástica- o mesmo regime de crenças do jornalismo moderno e a idealização de uma realidade fixa (ainda que complexa) a ser revelada.

E é precisamente nesse sentido que nos perguntamos como proceder como uma estranha publicação quinzenal que aciona as contradições no discurso jornalístico como seu ponto de partido e atuação, avisando já em sua capa que “nem toda informação aqui publicada foi devidamente apurada”? E como analisar um outro produto informativo que mescla crítica midiática em formato de

talk show, mesclando o estilo jornalístico num canal de comédia

e apresentado por um âncora eleito seguidamente como um dos mais confiáveis jornalistas do país (TIME, 2009; ANDERSON & KINCAID, 2013), ainda que ele negue seu rol como jornalista? Esse é o caso de Barcelona e de The Daily Show with Jon Stewart, respectivamente. Esses produtos midiáticos parecem não se encaixar facilmente em nenhum papel normativo. Entretanto, eles possuem uma importante atuação no ambiente jornalístico, satirizando e questionando as mídias de referência. Assim, qual seria o seu papel?

Notícias simuladas para uma “Solução Europeia para os problemas dos argentinos” e advindas “do quartel-general

mundial de notícias da Comedy Central”

Em abril de 2003, apareceu pela primeira vez nas bancas argentinas uma publicação cuja capa claramente fazia referência ao formato dos principais jornais impressos daquele país (Clarín e La

Nación), mas com manchetes como “Agora dizem que engolir esperma

emagrece” ou “a Argentina estaria indo à merda” inimagináveis de serem publicadas por um jornal tradicional. Entretanto, ao mesmo tempo, o periódico possuía um tipo de disposição visual e um modo

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de escritura bastante similar a outros produtos jornalísticos, na mesma medida em que misturava imagens exageradas e visivelmente alteradas. Trata-se de Barcelona, lançada de forma independente e estruturada num misto de formatos, configurando-se entre uma revista e o formato tabloide. Suas origens remontam a uma Argentina em plena crise dos anos 2000, um dos períodos mais críticos na história recente daquele país, caracterizado por uma enorme desconfiança nas instituições como o governo, os bancos, os juízes e a mídia. Assumindo desde sempre uma posição de descrença,

Barcelona assume já em seus primórdios, uma posição sarcástica em

relação às “grandes verdades do mundo”, fazendo sátira de inúmeros discursos institucionalizados (como a igreja, o poder executivo, os empresários). Nessa batalha contra as instituições e um sistema moral estabelecido, um dos principais alvos da revista está direcionado à própria mídia informativa. O subtítulo original da publicação (“Uma solução europeia para os problemas dos argentinos”) é uma clara referência ao então slogan do Clarín (Um toque de atenção para a solução argentina dos problemas argentinos). Além disso, suas páginas emulam os jornais de referência em seus formatos verbovisuais, e também os cita diretamente. Não por acaso, uma seção da revista intitulada “Dxt [esporte]” é dedicada a coletar material dos próprios jornais de referência, destacando erros ortográficos, dados infundados ou incorretos, contradições nos discursos, utilização de imagens repetidas, tudo isso com vistas a questionar uma alegada imparcialidade e objetividade jornalística. Assim, tal como assumido por uma de suas editoras,

quando começamos o projeto, tínhamos vontade de fazer uma revista política. Encontramos no formato de Barcelona uma maneira de fazer jornalismo sem ter que trabalhar demais, ou seja, sem ter que sair à rua, fazer investigações ou checar nenhum dado e mesmo assim continuar sendo jornalismo. Sempre nos juntávamos para ler Clarín e La Nación e, entre risos e indignação, também surgiu como interessante a ideia de fazer uma crítica aos meios de comunicação a partir da paródia. (BECK, Ingrid. Entrevistada por Phellipy Jácome em abril de 2012)

Uma edição regular de Barcelona é composta de 32 páginas e todas as seções funcionam como uma inversão paródica de um jornal tradicional, associando, por exemplos, falas preconceituosas e, a princípio, absurdas, com discursos de políticos e de personalidades.

Barcelona simula ainda artigos de opinião, imagens e dados para

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mão do humor, é capaz de abordar assuntos sensíveis e complexos como a ditadura, os abusos aos direitos humanos, negócios obscuros entre empresas e o governo etc. Os tópicos discutidos na revista são sempre aqueles que estão na agenda midiática do país, ou outros “propositalmente” esquecidos pelas mídias tradicionais.

Na América do Norte, uma voz over masculina anuncia a data, que aparece visualmente na tela da televisão sobrepondo-se a um globo terrestre. As cores vermelha e azul são predominantes naquilo que aparenta ser uma abertura regular de um telejornal. O globo então se divide e nomes de variados países e cidades aparecem, enquanto a voz masculina anuncia “Do quartel-general mundial de notícias da Comedy Central em Nova Iorque, começa agora The Daily

Show with Jon Stewart”. Até esse momento, a estrutura é a mesma

daquelas que poderiam sem encontradas em quase todo programa televisivo noticioso de canais como Fox News, CNN ou Msnbc. Eis que então um som mais roqueiro se impõe, e somos levados a um cenário que combina aquilo que pode ser descrito como uma mistura entre um telejornal e um talk show (similar a The tonight show with

Jimmy Fallon, the O’Reilly factor, The Kelly File, Jô Soares, entre vários

outros). A plateia está em polvorosa. Nesse momento, Jon Stewart assume para conduzir seu programa com duração de 30 minutos.

Cabe destacar que The Daily Show foi ao ar pela primeira vez em 1996, sendo conduzido por Craig Killborn, mas só veio a possuir influência política quando Jon Stewart assumiu a bancada em 1999 (ANDERSON & KINCAID, 2013). Desde então, o programa da Comedy Central se tornou um constante ganhador de prêmios como o Emmy e o Peabody (ANDERSON & KINCAID, 2013). Além disso, várias pesquisas e enquetes (PEW RESEARCH CENTER, 2007) colocam Jon Stewart como um dos jornalistas mais admirados dos Estados Unidos, ou atestam ainda que “audiências que só assistem

Fox News, CNN, ou MSNBC estão menos informadas sobre assuntos

domésticos e internacionais do que aqueles que somente assistem ao programa de Stewart” (ANDERSON & KINCAID, 2013, p.2). Em 2015, The Daily Show começou a ser comandando por Trevor Noah, mantendo boa parte do formato de seu predecessor. Entretanto, é notadamente com Jon Stewart que o programa atingiu um enorme sucesso e credibilidade, na medida em que Stewart é listado quase sempre como uma das personalidades mais confiáveis dos EUA, e, por isso, será aqui analisado.

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além de um pequeno encerramento. No primeiro bloco, Jon Stewart fazia seu monólogo, mas diferentemente de outros talk shows, ele está sentado atrás da bancada, como um verdadeiro âncora, enquanto na tela bipartida vão se alternando imagens relacionadas ao que ele diz. Além disso, são mostrados fragmentos de outros programas noticiosos de emissoras diversas que vão dando suporte ao que é dito por Stewart ou que são diretamente atacados por ele de uma maneira muito irônica. Na edição de 09 de dezembro de 2014, por exemplo, o principal tópico da agenda midiática estadunidense era a divulgação de relatórios da CIA sobre práticas de tortura cometidas pela organização. Em seu seguimento, Jon Stewart utilizou-se de imagens advindas de mais de seis diferentes canais e programas como

CNN, arquivos da Fox News, C-Span, CBS news, Al Jazeera, Msnbc.

Seu programa misturava imagens reais com outras visivelmente manipuladas para, com isso, poder criticar os outros programas jornalísticos, expondo a “realidade crua” das mídias mainstream, apontando suas várias incongruências. Nesse seguimento particular, por exemplo, Stewart demonstra, a partir do relatório divulgado, que o ex-presidente George W. Bush mentiu quando em 2007 ele afirmou que o governo do seu país não utilizava a tortura como método de interrogatório. O documento da CIA, ao contrário, prova que esses métodos não só existiam como eram uma prática regular da sua administração. Por fim, Stewart compara os métodos da CIA com aqueles empregados por países autoritários, questionando o ideal americano de democracia. Nesse seguimento, Stewart conseguiu burlar-se de dois presidentes, seis canais de televisão, representantes do governo, utilizando-se, para isso, de seus próprios discursos para tecer a sua crítica.

Outro bloco regular de The Daily Show é a presença do que seriam “correspondentes”. Alguns repórteres do programa vão a diferentes partes do país para revelar desde histórias hilárias a assuntos importantes como conflitos e protestos. Para isso, eles conduzem entrevistas com pessoas relacionadas a ditos assuntos, mas de uma maneira bastante particular. Isso porque emulam procedimentos jornalísticos, mas os utilizam de um modo absurdo, na medida em que fazem perguntas desinteressadas, gestos exagerados, usam palavrões etc. Além disso, o tipo de formato escolhido para ditas entrevistas utiliza-se de duas câmeras que algumas vezes focam as costas do entrevistado e outras o perfil do

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entrevistador (às vezes, o contrário), mas que geram dúvidas acerca da utilização do chroma key, rompendo a ilusão referencial típica da narrativa jornalística, gerando opacidade e demonstrando a natureza ficcional e controlada de vários dos seus procedimentos. Algumas vezes, os correspondentes aparecem ainda numa simulação de uma participação ao vivo para comentar assuntos do momento, sempre de maneira irônica.

O bloco das entrevistas por ser considerado como uma das partes mais emblemáticas e “sérias” de The Daily Show, Ainda que na maior parte do tempo, o humor e a ironia se mantêm como estratégia dominante do âncora (que, vale lembrar, se define como humorista e não como jornalista). Nessa seção diretores, músicos, escritores, atores e personalidades são convidados a comentar seus trabalhos. Algumas vezes políticos são convidados, o que ajuda a aprofundar o clima e o conteúdo das entrevistas. O bloco final é muito pequeno, composto por um vídeo engraçado enquanto os créditos de encerramento dão fim ao show.

Tal como Barcelona, a existência e o sucesso do formato de

The Daily Show pode ser parcialmente creditado a uma profunda crise

de credibilidade enfrentada pelo jornalismo e pela mídia tradicional. Vale lembrar o escândalo envolvendo o papel colaborativo dos jornais estadunidenses no início dos anos 2000, especialmente o New York

Times, com o governo Bush, quando o jornal corroborou a tese da

existência de armas de destruição em massa e que justificariam uma invasão armada ao Iraque (o que depois se revelou uma farsa). Além disso, o início de uma nova década trouxe tanto na argentina quantos nos EUA (como também em outros países como o Brasil) uma maximização das disputas entre as mídias e seus respectivos governos, gerando uma polarização e um ambiente midiático partidário.

Por isso, em nossa análise, gostaríamos de enfatizar dois exemplos específicos através dos quais Barcelona e The Daily Show tratam de expor e questionar duas principais mídias de seus países para ridicularizar as críticas em relação a algumas ações do governo. No primeiro caso, a disputa envolvendo Clarín e a presidenta Cristina Kirchner nos parece bastante interessante na medida em que o governo propôs em 2010 uma lei com vistas à democratização do acesso aos meios de comunicação (Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual Nº 25.222). Dita lei, entre outras coisas, limitava o número máximo de licenças que poderiam estar a cargo de uma única empresa. Essa medida afetava diretamente ao Clarín que teria que desfazer-se de

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várias emissoras do seu conglomerado midiático e, consequentemente, perder parte do seu poder de controle sobre a agenda política e midiática. Clarín frequentemente acionou instituições internacionais para denunciar o que acreditava ser um atendo do governo “para silenciar as vozes independentes do país”, classificando a Lei de Meios como antidemocrática. Já no segundo caso, os ataques sistemáticos realizados pelo canal conservador Fox News à administração Obama são frequentemente expostos ao ridículo por Jon Stewart. As críticas são possíveis na medida em que a Fox News, um dos mais importantes canais jornalísticos daquele país, e que deveria ser o bastião da objetividade, estaria sistematicamente falhando nesse seu intento de isenção e imparcialidade, atuando como um canal partidário. Além disso, e talvez mais importante, ambos os produtos desacreditam as formas e convenções que tornam um certo discurso de autolegitimação do jornalismo possível. Ao usar das mesmas estratégias, Jon Stewart e

Barcelona denunciam a perda de valor da objetividade e seu discurso

como ferramenta para alcançar “a” verdade.

No caso da revista argentina, ela utiliza-se de recursos verbais e visuais numa diagramação e num modo de narrar que se assemelham à familiaridade dos planos verbovisuais típicos do jornalismo impresso, mas que através da ironia gera áreas de opacidade e estranhamento. Imagens notadamente truncadas, manchetes e subtítulos que são desproporcionais em tamanho e em forma, e uma maneira muito particular de atribuir falas a terceiros são algumas das estratégias narrativas de inversão paródica. Além disso, o formato tradicional do jornalismo impresso e a racionalização de seus recursos expressivos levam a modularização de seus seguimentos, orientada na repetição da localização de suas unidades informativas para facilitar o percurso de leitura. Se compararmos uma página específica do New York Times, por exemplo, podemos observar uma recorrência da forma, do mesmo número de colunas por página, substituídas diariamente por novos conteúdos. Isso facilita uma racionalização da prática jornalística e contribui para a naturalização das formas para os leitores, ajudando-os a interpretar um determinado percurso noticioso. No caso de Barcelona, há uma inversão dessa fórmula. Isso porque de uma página a outra podemos observar diferentes padrões de colunagem, o que torna a experiência de leitura menos transparente e suave. Ademais, suas narrativas geralmente apontam para continuação de páginas inexistentes ou são “invadidas” por módulos informativos advindos de outras notícias.

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Isso tende a causar um desconforto na leitura ao mesmo tempo em que demonstra o caráter ficcional das convenções através das quais essas páginas e realidades estão configuradas.

Outra característica bastante peculiar de Barcelona é a maneira pela qual ela produz sua capa. O módulo “nome do jornal”, como ressalta Mouillaud (2002) é uma unidade informativa que funciona como uma espécie de assinatura e marca o compromisso do jornal com seus leitores e anunciantes. Figura hierárquica, acima de todas as outras, é um rótulo que unifica todos os outros títulos do jornal. Em Barcelona, entretanto, esse módulo informativo é ironicamente invertido.

FIGURA 1 – Barcelona remarca as relações entre o jornal

Clarín e a ditadura argentina

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Como já havíamos mencionado, o subtítulo que acompanha o nome de Barcelona é uma paródia do slogan do jornal Clarín. Além disso, ao reposicionar criticamente uma postura nacionalista e eleger o nome de uma cidade estrangeira, Barcelona é capaz de remeter-se a todo um contexto histórico, na medida em que durante a crise de 2001, milhares de argentinos deixavam o país em busca de melhores condições de vida e viam na cidade catalã um futuro desejável. Assim, ao contrário de outros jornais nos quais um certo senso de pertencimento local é posto em voga (como na Folha de

S.Paulo, Estado de Minas, La voz del interior, Chicago Tribune etc.),

na revista argentina altera-se esse sentido com vistas a uma inversão irônica. Ademais, o nome de Barcelona é escrito como o mesmo tipo de fonte que o New York Times, o que também pode ser lido como uma referência ao modelo americano de jornalismo. Como mais um elemento dessa referência, podemos observar como Barcelona se apropria do famoso lema do jornal nova-iorquino “All the News That’s Fit to Print” para deslegitimá-lo, propondo uma advertência “Nem todo informação aqui publicada foi devidamente apurada” num espaço similar ao do New York Times.

A credibilidade, que parece ser um fator determinante para o pacto de confiança entre leitores e mídias informativas é, então, posta em questão já no “nome do jornal” de Barcelona. A revista rejeita, assim, um dogmatismo moral tendo em vista que se utiliza de algumas estratégias textuais para desmascará-las. Sua advertência “inspirada” pelo New York Times é seguida por uma referência à lei 23.444, o que pode ser interpretado como uma desestabilização do uso das unidades informativas. Isso porque uma primeira leitura sugere que a falta de apuração das informações poderia estar, de alguma maneira, balizada por dita lei, tendo em vista que uma memória de leitura sugere que uma lei alocada como salvaguarda de uma informação serviria para autentica-la ou permiti-la de alguma forma. Surpresa nos é causada quando pesquisa-se que dita lei não tem nada a ver com uma suposta autorização para divulgação de notícias simuladas ou inventadas e, nem mesmo, com algo relacionado à garantia da liberdade de expressão. Dita lei, na verdade, se refere à regulação da publicidade de tabaco no radio e na televisão. Nossa primeira interpretação é gerada, portanto, pelo mesmo gesto narrativo que conecta uma lei à ideia de autenticação, na medida em que convencionalmente funciona como um discurso de autoridade, capaz de restringir, permitir, confirmar etc. Agora que a unidade

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informativa “nome do jornal” foi apresentada, exploremos, pois, um exemplo através do qual Barcelona mobiliza distintos elementos para criticar modelos normativos de jornalismo, especialmente vinculados ao Clarín. A capa de 23 de dezembro de 2011 (figura 1), por exemplo, é significativa na medida em que faz referência a uma disputa entre o jornal mais importante da argentina e o governo de Cristina Kirchner.

A capa é fruto de um contexto em que, durante os anos 1970, vários jornais latino-americanos sofriam com os elevados preços do papel, motivo pelo qual o então governo argentino decidiu apoiar a construção de uma fábrica para essa importante matéria-prima. A fábrica, privada, foi expropriada alguns anos depois já durante a ditadura militar argentina, num episódio bastante turvo. A administradora do empreendimento, Lidia Papaleo de Graiver, acusou o governo militar de tê-la torturado para obriga-la a ceder seu negócio aos principais grupos midiáticos do país: Clarín e La Nación. Ambos os conglomerados negam qualquer participação ou conhecimento no episódio de tortura, mas desde então gozam dos frutos de administrar a Papel Prensa, controlando a produção de papel da Argentina e, por isso, obtendo os lucros e vantagens do empreendimento.

Foi então que em 2010, o governo de Cristina Kirchner propôs uma investigação detalhada para apurar o que de fato havia acontecido naquele período. A pesquisa gerou um amplo relatório1

que, entre outras coisas, acusava o Clarín (entre outros jornais) de ter participado ativamente do processo de expropriação da companhia papeleira e de possuir estreitos vínculos políticos com o regime militar. O relatório foi visto pelo Clarín e denunciado como mais uma tentativa de censura e pressão política e econômica contra o grupo. Em um dos seus mais destacados protestos, o jornal foi às bancas com uma capa (ver edição de 18 de dezembro de 2011) que trazia, além do nome do jornal, o artigo da constituição argentina que proibia o governo de limitar a liberdade de expressão, como uma metáfora para denunciar o que considerava se tratar de censura.

Como podemos observar na capa acima de Barcelona, a revista deslegitima as reclamações de Clarín ao expor seu rol colaborativo com a ditadura dos anos 1970 e 1980. Com letras garrafais, temos a manchete: Jornalismo Militante. Numa impronta irônica Barcelona utiliza-se de pelo menos dois sentidos opostos da palavra militante: de uma maneira mais literal, o termo pode ser entendido como um jornalismo mais ativo, engajado politicamente contra os abusos do governo e das elites (que poderia ser entendido como a ação do Clarín

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contra o governo Kirchner). Entretanto, um sentido figurado é agregado pela relação da palavra militante e a imagem simulada de uma capa do Clarín. A fotografia (que é real) trata do dia em que o ditador Jorge Rafael Videla transferia a Papel Prensa ao Clarín. Na foto, o ditador brinda com a chefe-executiva do diário argentino, Ernestina del Noble, num claro esforço cooperativo entre ambos. A palavra “militante”, então, também se refere à “militar” e ao apoio do Clarín aos ditadores do país.

O gesto de Barcelona, portanto, deslegitima a reclamação vigente de Clarín, na medida em que revela que o grupo denuncia ataques a democracia agora, mas que não o fez durante a ditadura. Ao contrário, Clarín foi parceiro de uma das ditaduras mais sangrentas da história argentina, num modelo de poder completamente oposto a qualquer forma de liberdade de expressão. Por fim, o texto que completa a capa faz referência ao monopólio do Clarín e a defesa de seus interesses econômicos, ironicamente demonstrados pelos “cupons de desconto” ofertados pelo grupo.

No caso do The Daily Show, a crítica através da forma jornalística (como a inversão de unidades informativas) é menos explicita e mais evidente dos contornos das transformações atravessadas pela televisão. Vários autores (ECO, 1984; CASSETTI & ODIN, 1990; IMBERT, 2003) demonstram a passagem de uma televisão “transparente” e pedagógica, na qual os conteúdos e formatos eram bem definidos e demarcados, para outro, no qual o fluxo televisivo deslocava e borrava as fronteiras entre os distintos gêneros. Entretanto, o jornalismo sempre buscou diferenciar-se dos outros produtos da emissora, mais relacionados ao entretenimento e à ficção, postulando-se como um espaço nobre e “sério”. Nesse sentido, Jon Stewart é ao mesmo tempo índice da hibridização da televisão e seus formatos e conteúdos, como também uma inversão profana do espaço “sagrado” do telejornalismo. Afinal, tal como em

Barcelona, no programa estadunidense também há um claro uso

exagerado e hiperbólico das estratégias jornalísticas para narrar a realidade. Seus procedimentos são similares aos empregados pelos noticiários tradicionais: a ida a cena dos eventos, investigação de dados complementares, entrevistas etc. Entretanto, em Jon Stewart, tudo isso é feito de maneira caricatural e crítica, expondo ao ridículo diferentes personagens e instituições midiáticas. Nesse sentido, o bloco mais direcionado aos meios de comunicação tradicional e suas formas de narrar o mundo pode ser percebidos nos ácidos monólogos de Stewart.

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Figura 2 – Jon Stewart e o cenário de The Daily Show

Fonte: Publicidade de The Daily Show. Disponível no site oficial do programa

No programa especial de 27 de novembro de 2014, logo após as comemorações pelo Dia de Ação de Graças, o principal tópico destacado no monólogo de Jon Stewart foi a “denúncia” feita pela Fox News de que Barack Obama não havia mencionado Deus no tradicional discurso de Thanksgiving. Em sua fala, Stewart remarcou ironicamente que o discurso é uma das tradições estadunidenses mais importantes quando, então, um fragmento da fala de Obama é exibido. Quando voltamos ao cenário do programa, Stewart é “flagrado” cochilando, numa clara demonstração de desinteresse em relação ao pronunciamento oficial, descrito pelo âncora como “muito inspirador”. Nesse momento, ele compara o número de visualizações no youtube do discurso de Obama e um outro vídeo com pandas dorminhocos (4.000 para o primeiro e 100.000 para o segundo), no que seria uma demonstração de desinteresse geral. O vídeo dos pandas é exibido e quando a câmera retorna para Jon ele parece “encantado”, diferentemente da sua reação com o vídeo presidencial. Ele então faz uma pergunta imaginária à audiência e responde “Não, nós não podemos ver os pandas pelo resto do programa”.

Logo em seguida, ele indica a reação ao pronunciamento de Obama, exibindo diferentes fragmentos de programas da Fox

News que tratavam de denunciar enfaticamente que o presidente

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duramente criticada por vários jornalistas e comentaristas da Fox que ressaltavam que Obama tinha sido o primeiro presidente a não mencionar Deus no discurso de Ação de Graças. No trecho final, Kimberly Guilfoyle da Fox tratar de impor uma versão idealizada da Ação de Graças como uma celebração do contato pacífico entre culturas, o que é desmascarado Stewart. Então o âncora se pergunta: “É sério isso? Falhar na menção a Deus no discurso de Ação de Graças. Um enorme ato falho para a Ação de Graças”, e completa, “Eu acho meio estranho que Obama seja o primeiro presidente na história a não mencionar Deus no pronunciamento de Ação de Graças”. No mesmo instante, são exibidos outros fragmentos noticiosos da Fox News, no qual Jamie Colby diz: “Presidente Obama não é o único presidente em exercício a deixar Deus de fora da Ação de Graças” A imagem retorna para Jon Stewart que, surpreso, se pergunta “E então”? A imagem retorna ao fluxo da Fox News que, na sequência, demonstra a número de vezes em que Deus foi deixado aparte durantes os discursos de Clinton, Bush e Obama. Tudo numa presumida linguagem objetiva, tipicamente jornalística.

Quando a imagem retorna ao cenário de The Daily Show a expressão facial de Jon Stewart é de descrença e enfado. Ele então questiona, desautorizando a construção noticiosa que permeou vários programas da Fox News: “Quem fez você ficar assistindo essa merda durante todo o feriado?”. Então um novo fragmento da Fox

News aclara: “Obama sim mencionou Deus no seu discurso escrito”.

Nesse momento, Jon Stewart se revolta e diz “Obama não só não é a primeira pessoa a não citar Deus no discurso de Thanksgiving, como nem sequer ele fez isso...”

A exibição de diferentes fragmentos de distintos programas da Fox expõe a crítica realizada exaustivamente pela emissora ao ridículo, na medida em que sugere um forte apelo oposicionista que, ao ser reaproveitado por The Daily Show, se converte num discurso vazio. Além disso, Stewart desacredita a maneira pela qual a informação foi construída e exaustivamente repetida durante todo o feriado. Eis que quando a falta de autocrítica da Fox parece já ter atingido níveis absurdos, The Daily Show apresenta um novo fragmento no qual um pastor foi convidado a explicar a “falha” de Obama, e um outro em que o senador Steven Smith reza e agradece a Deus por viver no “maior país da terra”. Revoltado, Stewart pergunta “Quando a Fox se tornou o 700club [programa religioso]? Querem saber: f*da-se. Vamos ver os pandas pelo resto do programa”

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Desinteressado e enfadado pela informação incongruente da Fox, Stewart sugere que as narrativas noticiosas da emissora são menos relevantes que o vídeo dos pandas...

Um metajornalismo crítico

Ao fazerem referências explícitas e implícitas a outros agentes jornalísticos, emulando seus procedimentos, a revista argentina e o programa televisivo estadunidense parecem ser capazes de confrontar todo um discurso jornalístico baseado numa relação normativa, convocando nossa atenção aos processos de configuração da realidade tornados possíveis pela ação de narrar o mundo. O papel principal dessas mídias parece ser então o de produzir uma metarreflexão acerca dos processos e parâmetros do jornalismo. Mas diferentemente de outras experiências metajornalísticas já citadas, The Daily Show e Barcelona não buscam reparar uma crença na capacidade purificadora das técnicas jornalísticas (pelo menos não de uma maneira normativa ou objetivadora). Ao contrário, eles criticam essa crença, simulando as convenções da objetividade de forma irônica. Eis o que chamamos de metajornalismo crítico. Entretanto, ao mesmo tempo, esses produtos constituem suas identidades num embate ambíguo, na medida em que suas existências só são possíveis graças aos procedimentos da mídia mainstream, as mesmas por eles ridicularizadas. Nesse sentido, um desgaste no discurso de autolegitimação do jornalismo como um “ismo” e seu apreço à objetividade revelam que tanto Barcelona quanto The

Daily Show são consequências de um possível esgotamento dos

modos normativos de conceber a atividade jornalística.

Nesse sentido, o realismo jornalístico moderno e sua ideia de purificação da realidade parecem propor a adaptação da escritura a um único plano temporal, o da atualidade, cujas fronteiras seriam definidas por certas práticas e valores profissionais. Assim, uma reflexão acerca da narrativa tende a ser ignorada, na medida em que sua função é entendida frequentemente como técnica ou como um veículo para a transmissão de informação clara e concisa ao espectador/leitor. Temos aí uma ideia de uma suposta transparência textual, um tipo de mediação que deveria assegurar a objetividade jornalística. E isso está, como vimos, no cerne da narratividade crítica

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promovida por Barcelona e The Daily show, índices contemporâneos de um tipo de publicação que desdenha dos procedimentos e convenções jornalísticas em suas empreitadas autorreflexivas. Isso porque esse tipo de agente midiático oferece um desnudamento que releva e explicita os procedimentos operacionais existentes do jornalismo, seu ato configurar, seu por-em-intriga, seu “como se” (RICOEUR, 1994). E o fazem utilizando-se de elementos dos jornais de referência, suas convenções jornalísticas, seus formatos consagrados, tornando-os opacos pela inversão dos mesmos elementos que lhe garantiriam transparência. Ao direcionar seus esforços à mídia de referência, eles constrangem a suposta realidade objetiva, mas não para enganar os leitores/espectadores; ao contrário, eles são chamados a participar ativamente do jogo irônico proposto. Barcelona e The Daily show, portanto, turvam a ilusão referencial, sugerindo que suas narrativas funcionam como máscaras metafóricas para entender as outras mídias.

Por isso, esse tipo de empreendimento nos oferece importantes questões sobre o papel do jornalismo como um “ismo” nas sociedades contemporâneas. Afinal, chamam a atenção para aspectos ainda pouco problematizados pelas pesquisas acadêmicas: o papel configurador das narrativas, a importância das convenções e aspectos de sua historicidade. Talvez a existência de fenômenos como Barcelona e The Daily

Show não nos permitam intuir sobre o jornalismo que virá, mas

certamente nos dá contornos de um jornalismo que, felizmente, parece perder hegemonia.

Agradecimentos

O autor agradece à Capes, que financiou seu doutorado-sanduíche na University of Illinois at Urbana-Champaign. Também ao professor Matt Ehrlich e aos colegas da disciplina “Freedom of Expression” no Institute of Communication Research (ICR), especialmente a Claudia Lagos Lira (doutoranda na UIUC). Agradece ainda à Julieta Kabalin (doutoranda na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina) e aos professores John Nerone e Bruno Souza Leal. As sugestões deles contribuíram no avanço de versões preliminares deste artigo.

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NOTAS

1 O relatório pode ser consultado em: http://www.mecon.gov.ar/ba-sehome/pdf/papel_prensa_informe_final.pdf Acesso em: 16 jun, 2016

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Phellipy Pereira Jácome é jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG e cursa o doutorado na mesma instituição (bolsista Capes). Além disso, é pesquisador do núcleo de estudos

Tramas Comunicacionais. phellipy@ufmg.br

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