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Cultura escrita feminina no século XVI: formato, publicidade e seu arquivo no estabelecimento de um estado "das letras"

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Academic year: 2021

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Luiane Soares Motta

CULTURA ESCRITA FEMININA NO SÉCULO XVI: FORMATO, PUBLICIDADE E SEU ARQUIVO NO ESTABELECIMENTO DE UM ESTADO “DAS LETRAS”

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutora em História Global.

Orientador: Prof. Dr.Rogério Luiz de Souza

Florianópolis 2019

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Dedicado à Odilaine, Joceane e Ana Luiza.

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer à CAPES que financiou este estudo e é imprescindível para que exista pesquisa neste país, onde há tantas vulnerabilidades e temores. Sem o financiamento público à pesquisa, muito dificilmente brasileiras e brasileiros conseguiriam pesquisar história em seu país.

Ao Programa de Pós-Graduação, pela sua ética e às(os) suas(eus) professoras(es) por todos os seus ensinamentos e disciplinas, que, apesar de difíceis, e até dolorosos, foram de extrema importância, em especial: ao professor Rogério, por ter aceitado me orientar nesta empreitada, por suas observações, conversas literárias, sabedoria, compreensão e paciência; à professora Aline, por suas discussões, sugestões, motivação, conhecimento e generosidade ao compartilhá-lo. Ainda, à professora Sílvia, que participou da qualificação, pela sua presença, indicações, incentivo, bibliografias e empréstimos, que foram inspiradores para este trabalho.

Aos colegas do GEFEM, nosso grupo de estudos, em especial ao Léo, desde o início, um grande parceiro, assim como Rodolpho. Esse grupo foi valioso demais e oportunizou tantas trocas, discussões, ideias e ações, e isto se reflete, com certeza, nesta pesquisa.

À minha família, amigas e amigos. Em especial, uma gratidão eterna à minha mãe, Odilaine, minha deusa e a ausência mais presente, e que, junto com a minha irmã, Joceane, são exemplos de mulheres para mim e um dos motivos pelo qual eu segui por esse caminho. Aos meninos da minha vida que me ajudaram tanto e de tantas formas: meu companheiro, Felipe, meu pai, Salustiano, meu irmão, Cezar. Eles me animaram, torceram, cobraram, financiaram (por vezes, rsrs) e leram este texto, e, junto com Ana Luiza, Henrique e Vitor, fazem a alegria da minha existência. Ainda, às minhas amigas do coração, minhas irmãs, que me aguentam há tanto tempo: Lidi, Clarinha e Luísa.

Grata, ainda, a todas as mulheres e homens que passaram por este mundo pelo que disseram, escreveram ou fizeram pela igualdade na humanidade, e que fazem com que seu discurso ecoe em nós e ressoe através de nós.

Há tantas lutas, vozes e vivências que possibilitaram a experiência de construção deste texto, que a minha voz, o meu “eu” pesquisadora, só pode existir por causa destas(es) outras(os). Sem a amizade, companheirismo, trocas, auxílios e alguma saúde para suportar

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percalços conjunturais e pessoais, este trabalho não teria sido possível: muito obrigada!

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RESUMO

Este trabalho apresenta as relações entre cultura escrita e mulheres durante o século XVI, em que, justamente, com o engendramento do Estado Moderno centralizado, a prensa e os lugares de conservação da memória passam a ser reforçados como de interesse “público” na organização social. As mulheres são partícipes e, em parte, convidadas no letramento, porém, nesses convites, constam prescrições tácitas a serem respeitadas, não podendo adentrar inteiramente, mesmo as de grupos sociais privilegiados, no “resultado” da construção da literatura francesa desse período, ocorrendo um processo de invisibilização. Isso levou-nos a refletir sobre a relação entre materialidade e escrita, a partir de Roger Chartier, e sobre como essa relação se processa para as mulheres, não só naquela narrativa, como na sua construção a partir do arquivo, no qual as diversas temporalidades se entrelaçam, mas selecionam e descartam o que lhes convenha (Jacques Derrida) e sobrecarrega-se sendo atravessado pelas relações de poderes desiguais quanto ao gênero, como lembra-nos Joan Scott. Para tal estudo, utilizamos as duas bibliotecas dos autores François de la Croix du Maine (p.1584) e Antoine du Verdier (p.1585), bem como os textos e a observação dos suportes adotados pelas autoras Anne de Graville (o.~1520-~1540), Hélisenne de Crenne (p.~1530 a 1541), Louise Labé (p. 1555), Madeleine e Catherine des Roches (p. ~1570-1586), Marie de Romieu (p.~1570-1581) e Nicole Estienne (p.~1570-~1610). Analisamos, através dessas fontes, a relação entre materialidade, discurso e arquivo, tomando-se a ligação desses aspectos com as possibilidades de circulação e inserção dessas mulheres, através dos manuscritos e livros impressos literários, percebendo uma cultura escrita diferenciada, bem como dinâmica, em que as autoras produzem uma heterogeneidade de formações, produções e enunciados, competindo, excluindo e/ou infiltrando-se nas porosidades da esfera erudita. Essas autoras, que não são nem cânones, nem submissas, utilizaram-se das vias tradicionais, mas formularam desvios nas argumentações, nos ritos e nos exercícios do pensar, nos meios teológico, erudito ou político e os transformaram, ainda que sua contribuição tenha sido dissipada ou soterrada pelos arcontes e historiadores, sejam antigos, sejam atuais. Com a prensa houve uma dinamização do letramento e uma visibilidade maior de algumas autoras, mas outras tantas sofreram uma difração de sua “luz” pelo impresso, dado que as relações políticas que são promovidas entre arquivos, suportes e discursos balizam-se em saberes culturalmente construídos sobre a categoria gênero, percebendo-se que

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as trajetórias sinuosas de alguns de seus materiais sofreram, justamente por se manterem manuscritos ou outros suportes.

Palavras-chave: Cultura escrita. Relações de gênero. Século XVI.

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RESUMÉ

Cet ouvrage présente les rapports entre la culture écrite et les femmes au 16ème siècle, dans lesquelles, précisément avec la création de l’État moderne centralisé, la presse et les lieux de conservation de la mémoire sont renforcent comme étant de l’intérêt « public ». Les femmes sont des participantes et, en partie, invitées, mais dans ces invitations, il existe des prescriptions tacites à respecter, et elles ne peuvent pas entrer pleinement, même celles de groupes sociaux privilégiés, dans le « résultat » de la construction de la littérature française de cette période, produisant un processus d'invisibilité. Cela nous a conduit à réfléchir sur la relation entre la matérialité et l'écriture, avec Roger Chartier, et sur la manière dont cette relation est traitée pour les femmes, non seulement dans l’histoire, mais aussi dans sa construction à partir de l'archive, dans laquelle les différentes temporalités entrelacez-les (Jacques Derrida) et c’est surchargé en étant traversé par des rapports de pouvoirs inégaux en que concerne le genre, comme nous le rappelle Joan Scott. Pour cette étude, nous utilisons les deux bibliothèques des auteurs François de la Croix du Maine (p.1584) et Antoine du Verdier (p.1585), ainsi que les textes et l'observation des supports adoptés par les autrices Anne de Graville (o. 1520-1540), Helisenne de Crenne (p. 1530-1541), Louise Labé (1555), Madeleine et Catherine des Roches (p.1570-1586), Marie de Romieu (p.1570-1581) et Nicole Estienne (p. 1570-1610). À travers ces sources, nous analysons la relation entre la matérialité, le discours et les archives, en reliant ces aspects aux possibilités de circulation et d’insertion de ces femmes, à travers des manuscrits et des livres imprimés, dans lesquels ont promu une culture écrite différenciée, ainsi que dynamique, dans lequel les autrices produisent une hétérogénéité de formations, de productions et de déclarations en concurrence, exclusion et / ou infiltration dans les porosités de la sphère érudite. Ces autrices, qui ne sont ni canons ni soumis, ont utilisé les méthodes traditionnelles, mais ont formulé des déviations dans les arguments, dans les rites et dans les exercices de pensée, ce soit dans des moyens théologiques, universitaires ou politiques et les ont transformés, même si leur contribution a été apportée, dissipée ou enterrée par les archontes et les historiens, anciens ou actuels. Avec la presse, il y avait une dynamisation de la culture écrite et une plus grande visibilité de certaines autrices, mais beaucoup d’autres ont subi une diffraction de leur "lumière" par les imprimés, pour les relations politiques qui sont promus entre archives, supports et discours marqués pour le genre et pour les trajectoires sinueuses de

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certains matériaux, qui sont rejetés précisément parce qu'ils ont continué dans manuscrits et autres médias.

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ABSTRACT

This work presents the relations between written culture and women during the 16th century, in which, precisely with the creation of the centralized Modern State, the press and places of memory conservation are reinforced as of “public” interest in social organization. Women are participants and, in part, invited, but in these invitations there are tacit prescriptions to be respected, and they cannot fully enter, even those of privileged social groups, in the “result” of the construction of French literature of this period, occurring a process of invisibility. This led us to reflect on the relationship between materiality and writing, with Roger Chartier, and about how this relationship is processed for women, not only in the historic narrative, but also in its construction from the archive, in which the various temporalities intertwine (Jacques Derrida) and it is overloaded by unequal gender relations, as Joan Scott reminds us. For this study, we use the two libraries of the authors François de la Croix du Maine (p.1584) and Antoine du Verdier (p.1585), as well as the texts and the observation of the supports adopted by the female authors Anne de Graville (o. 1520-1540), Hélisenne de Crenne (pp. 1530-1541), Louise Labé (p.1555), Madeleine and Catherine des Roches (p.1570-1586), Marie de Romieu (p.1570-1581) and Nicole Estienne (p. 1570-1610). Through these sources, we analyze the relationship between materiality, discourse and archive, taking the connection of these aspects with the possibilities of circulation and insertion of these women, through manuscripts and printed books, realizing a differentiated written culture, as well as dynamics, in which the female authors produce a heterogeneity of formations, productions and statements, competing, excluding and / or infiltrating in the porosities of the erudite sphere. These female authors, who are neither canons nor submissives, used the traditional ways, but formulated deviations in the arguments, rites and exercises of thinking, in theological, scholarly or political means and transformed them, even though their contribution was made dispelled or buried by archons and historians, whether ancient or current. With the press, there was a dynamization of written culture and greater visibility of some female authors, but many others suffered a diffraction of their "light" by the print, given that the political relations that are promoted between archives, medias and speeches are based on the genre category, and on the consequent of their materials choices. Keywords: Written Culture. Gender Relations. Century XVI.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Frontispício da segunda edição da primeira obra publicada das damas des Roches ... 129

Figura 2 - Claude da França recebendo o presente de Anne de Graville ... 237 Figura 3 - O lema na cortina vermelha com flores douradas .... 242 Figura 4 - Philippe de Commynes apresentando seu livro a Angelo Cato... 243 Figura 5 - Carimbo marca nº62... 248

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Relação suporte e transmissão em François du Maine ... 60 Tabela 2 – Relação suporte e transmissão em Antoine du Verdier ... 63

Tabela 3 – Relação do período de “Florescimento” das autoras reunidas por François du Maine ... 65 Tabela 4 – Relação do período de “Florescimento” das autoras reunidas por Antoine du Verdier ... 66 Tabela 5 – Relação das autoras trazidas nas bibliotecas e seus grupos sociais: ... 117

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 23

CAPÍTULO 1: RELAÇÕES ENTRE SUPORTES E VESTÍGIOS: CULTURA ESCRITA NUMA SOCIEDADE GENERIFICADA (CIRCULAÇÃO E TRANSMISSÃO) ... 47

1.1 AS BIBLIOTECAS, SEUS ERUDITOS E A POSTERIDADE 53 1.1.1 As bibliotecas ... 54

1.1.2 Distanciamentos e categorias das bibliotecas ... 56

1.2 APROXIMAÇÕES DAS CATALOGAÇÕES E SEUS VESTÍGIOS ... 59

1.2.1 Mídias plurais, preservações ausentes ... 68

1.2.2 Estabelecendo categorias à diversidade de mídias ... 77

1.2.3 Manuscritos ... 79

1.3 ACERTOS DA PUBLICIZAÇÃO E A QUERELLE PELA APROVAÇÃO DO “DIZER” ... 86

1.4 ESCRITAS DE MULHERES: RASTROS, ROTAS E ESPAÇOS ... 92

CAPÍTULO 2: A PRODUÇÃO DA IMPRESSÃO FEMININA: CONVITES, TRANSMISSÃO E AMBIÇÃO NA CULTURA ESCRITA ... 95

2.1 HUMANISMO, PRENSA, QUERELA E RETÓRICAS (NÃO) CALCULADAS ... 95

2.2 PRENSA E REDES PARA PUBLICAÇÃO E PATRONATO 111 2.3 A REALIZAÇÃO QUE VEM DO ATO DE PUBLICAR - AS QUERELANTES ORDENAM: “ESCREVAM, MULHERES, ESCREVAM!” ... 115

2.4 MEMÓRIAS ENTRE ROCAS E PENAS: APRENDIZADO, POSTERIDADE, RECONHECIMENTO E AMBIÇÕES DAS DAMAS DES ROCHES... 125

2.4.1 Partilhas, intervalos e interditos: escritos de mãe e filha mergulhados em conflitos ... 127

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2.4.1.2 Ressentimento, perdas e indenizações ... 131

2.4.2 Rivalidades, Diálogos e Poemas: dicotomias e alegorias que propõem a penetração e a harmonização de um contexto ... 136

2.4.3 Memórias: entre aprendizado, posteridade e reconhecimento... 150

CAPÍTULO 3: AS “ARTIMANHAS” NA IMPRESSÃO FEMININA: AS ASSINATURAS, OS ENUNCIADOS E AS ESCRITORAS OBLÍQUAS A APONTAR AS CONTINUIDADES DAS RESTRIÇÕES ... 173

3.1 INVENTANDO UM “EU”: A NARRATIVA DAS EPÍSTOLAS DE HÉLISENNE DE CRENNE E O CONFLITO EM (COM)TEXTO ... 175

3.2 A SENHORA LIÉBAUT E A TRAGÉDIA DAS MULHERES CASADAS ... 189

3.3 INVEJA, CIÚME E ORGULHO MASCULINO: AS ESCRITORAS TOMAM AS PENAS E RETRATAM O BAIXO .... 200

CAPÍTULO 4: ADENTRAR NÃO SIGNIFICA FICAR: MANUSCRITOS, HISTÓRIA E O ARQUIVO FEMININO ... 219

4.1 A CORTE E O MUNDO LETRADO ... 220

4.2 PRODUÇÃO E O LUGAR DE ANNE DE GRAVILLE ... 226

4.2.1 As imitações de Graville ... 226

4.2.1.1 Le Roman e sua ambição ... 227

4.2.1.2 A polêmica e a adaptação da(s) dama(s) ... 229

4.2.2 A adaptação de uma dama ... 231

4.3 O VALOR DO PRESENTE: A MULHER ÚTIL À POLÍTICA E O LUGAR DO MANUSCRITO FEMININO NO ARQUIVO ... 237

4.3.1 Le Roman na política do arquivamento: os manuscritos nº 25.441 e nº 5.116 ... 240

4.3.2 A Belle reencontrada: o manuscrito nº 2.253 ... 246

4.4 TRILHAS DO GÊNERO ATRAVÉS DOS PASSOS DE UM MANUSCRITO: O QUE NOS DIZ SOBRE SUA CIRCULAÇÃO E TRANSMISSÃO? ... 251

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REFERÊNCIAS ... 273

5.1 Fontes Primárias: ... 273

5.2 Fontes Secundárias: ... 274

5.3 Sites e coleções consultadas: ... 275

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INTRODUÇÃO

Basta que façamos preces à mãe das Musas, para que nos seja propícia, e me ajude a recuperar a história.

(Plutarco, 2009, p.45)

Acima, Plutarco apela à mãe das musas, a Mnemosyne, para que a criação literária construa sua história e permita recuperar (lembrar, idealmente) sua narrativa. Mas apesar de uma alegoria feminina, nem sempre a narrativa constitui-se atribuindo visibilidade e virtuosidade ao que é feminino.

O público feminino está implicado nas falas de escritores antigos, medievais, modernos, mas não era ao ato da criação que as ligavam. Longe disso. Mormente, depunham contra elas, temiam-nas, tentavam controlá-las1, e, quando as pensavam dóceis, tomavam-nas como objeto

que instigava seu gênio.

As Musas estiveram no feminino, mas as mulheres, geralmente nos relatos deslocadas daquela idealização (apontando mesmo essas relações complexas de gênero), eram apenas público passivo, as eternas crianças, as quais se deve impor limites, mas que, na sua pureza intocada e enclausurada, inspiravam aqueles que delas “dispunham”. Estas, então, musas infantilizadas, figuras divinizadas, cuja ingenuidade ora é imputada, ora é suspeitada. Enquanto o mundo material assombra-as pelos modelos de seres divinos que projetam nelassombra-as, em que, através da atmosfera literária e poética, reproduzem a etérea ordem da obediência.

Os Renascimentos2 buscaram e ecoaram tais espectros da Antiguidade e usaram de seus sentidos na presença objetificadora e

1 Conforme Ovídio (2001,p.47): “ ‘Se você é realmente uma mulher

culta, leia estes versos em que nosso mestre ensina aos dois sexos [sobre seu

próprio livro], ou ainda nos três livros, em que ele faz invocação aos Amores, escolha qualquer poesia que você lerá com uma voz flexível e terna, ou então declame com arte uma de suas cartas: é de um gênero desconhecido antes e que foi criado por ele’. Que essa seja sua vontade, Febo, e as suas, divindades sagradas que protejam os poetas, Baco potente deus cornudo, e vocês, grupo das nove Musas.”[grifos meus]

2 Embora Goody (2011) perceba dois momentos anteriores ao

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divinal da Musa, para apagar o traço e as ações das mulheres reais. O termo foi, assim, retomado para ensinar às mulheres o lugar de objeto que constitui apenas ignição da genialidade. Mas essa relação se desloca.

Na sua estreia na produção escrita Catherine des Roches, em 1579, desdenha a postura de suas contemporâneas sobre ainda se colocarem a se enfeitar, se arrumarem, para serem objetos de cortejos e fonte para poetas que se utilizarão das suas virtudes e sua inspiração, para se imortalizarem. Pergunta-se o porquê dessa atitude, quando elas mesmas deviam se utilizar de tais atributos para conquistarem sua glória, já que estes pertencem a elas (e não aos homens) “pela virtude das quais eles tornam-se ainda poetas melhores, do que se bebessem na sagrada fonte das Musas”3 (1579, p.53). Des Roches conclui: se as

musas inspiradoras são tomadas como aquelas que dão o dom, esse dom não cabe ao masculino, ele não o possui. Nada impede, portanto, que as mulheres se utilizem do dom e usufruam da glória que dele provém.

Catherine des Roches toma as Musas para si, além de fazer-se inspiração de si mesma, reconhecendo o valor daquelas como tradição, mas não como função impeditiva do sexo feminino, por ser aquém da capacidade de suas damas, perto da possibilidade de adquirirem a fama por sua própria ação de escrever, de tornarem-se, elas mesmas, autoras. Dentro de sua provocação, o convite está feito para que deixem de ser objeto de desejo e fonte da qual se retira a bebida, a essência, e tornem-se elas agentes da produção por suas próprias mãos e esforço diante da pena e do papel.

Dessa forma, o lugar da Musa e da alegoria feminina direcionam as mulheres a esse lugar mítico, ideal e imóvel, mas inalcançável. Mas as mulheres não se abstêm de lutar de alguma forma para se deslocar desse direcionamento inviável. Foi o caso das mulheres renascentistas italianas, a serem chamadas “musas escritoras”, e elevarem por isso a

movimentos e para o capitalismo), como o Renascimento Carolíngio e o Renascimento do século XII, o autor percebe que esse termo deve ser amplificado em termos sociológicos, já que não diz respeito, quanto à sua essência, somente essa relação etnocêntrica quanto à modernidade, mas relaciona-se aos efeitos que uma cultura letrada tem ao olhar para o passado, demonstrando que não só esse movimento de “olhar para trás” foi múltiplo no tempo, quanto também se realizou em diversos espaços, os quais, inclusive, imbricaram-se e tiveram influência sobre aquele afamado movimento do Ocidente.

3 Fonte : « […] par la vertu desquelles ils deuiennent Poëtes mieux que

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representação da cidade, em relação as da Antiguidade e da época de Petrarca, em que se “refrata” para, obviamente, o espaço na escrita da literatura, na história e de como são representadas nos textos – embora às vezes o elogio se tenha dado para o propósito de autoelevação masculina e não para uma modificação do quadro de valorização da inserção das mulheres. As musas modernas não só vão encarnar esse significado de inspiração da criação4, mas irão buscar ser a própria criadora, realizando sua mitose, muito embora haja um jogo a despistar essas suas ambiciosas ações.

No entanto, as normas prescritas não são tão fáceis de se desembaraçar. A escrita da história, e da história literária particularmente, nos mostrou até pouco tempo atrás, o lugar restrito, e recatado, silencioso, indicado às mulheres. Já a “verdadeira história”, “a importante”, era a que era definida por uma visão masculina, voltada para guerra e a história política. Tornavam as mulheres, mesmo em academias oitocentistas, personagens acessórios, já que as enxergavam (e, por muitos discursos institucionais, eram) apartadas desses lugares. Entre eles, a exaltada Antiguidade Clássica Ocidental, que é retomada e justifica práticas no tardo-medievo, com os textos aristotélicos, bem como a invocação da lei sálica na monarquia francesa, entre outros “interesses” que buscariam argumentações para validar suas intenções de subordinação das mulheres aos homens e da comunidade ao seu poder político simbólico. Nessas relações, a ausência das mulheres no discurso da tradição clássica, ou nos que se tornaram cânones, talvez até por esse desejo de justificativa para as práticas tardo-medievais em relação ao poder real5, tornar-se-iam referência da história no fim do

século XV, até virarem uma convenção da escrita historiográfica6.

Então, hoje, ao depararmo-nos com uma história literária a nós ensinada, e celebrada nas instituições escolares (e para além destas), reprodutora dessas formações disciplinares, silenciando ou silenciosa

4 As quais muitas vezes são assim elogiadas e defendidas por se

tornarem um importante canal dos jovens homens que visavam ao reconhecimento e espaço dentro dos círculos das elites (COX, 2008, p.3).

5 A invocação da lei sálica é trazida dentro de um contexto de elevação

da prática dos antigos e é um bom exemplo da clara intenção de exaltar o discurso e de tomar como cânone aquilo que interessou aos partidários do rei naquele momento.

6 Para Tucídides, a boa mulher é aquela cujo nome não se fala, aquela

que não possui um alcance público (Ver: SPONGBERG, 2002. p.21). Esse discurso ecoaria na esfera a que vou me dedicar justamente porque sustenta um temor do arquivar-se e do publicar-se.

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quanto às personagens femininas, torna-se necessário, até óbvio, o questionamento: o que interditou essa participação – que vem sendo trabalhado mais profusamente pela historiografia, mas de forma ainda recente, a partir do último terço do século XX –, e, mais propriamente, por que esses discursos quanto à ausência ou quanto à irregularidade de personagens femininas no universo da escrita continuam a reverberar?

Como já problematizamos, e embora a categoria “mulheres” esteja parecendo antiquada7, e deva ser objeto de questionamentos, não devemos esquecer que, ainda assim, quando se trata do discurso institucional, foi utilizada para dar coerência aos seus instrumentos, em diversos momentos (SCOTT, 1995; PEDRO, 2005, p.81). Isso não quer dizer, que haja uma essência, ou uma experiência extremamente comum8 (SCOTT, 1999), contudo, esses discursos atravessam-nos

enquanto sujeitos e permeiam processos de subjetivação, influenciando as formas de nos “autoidentificarmos” e de nos identificarem, produzindo, por vezes, menor instabilidade quanto a essa categoria de identidade.

Autores como Georges Duby e Michelle Perrot, precursores na historiografia francesa da história das mulheres (e um dos trabalhos mais conhecidos dentro da historiografia brasileira sobre o tema), buscaram narrar mecanismos de repressão das mulheres e os discursos sobre/delas em sua coleção “História das Mulheres no Ocidente”. Além disso, o artigo de Georges Duby denominado “Depoimentos, testemunhos, confissões” incita algumas reflexões não só do movimento da história, mas da narrativa histórica, apresentando também, de forma incipiente, a função nada neutra do ato de arquivar. Isso é importante já que constitui a própria fonte da narrativa, o ponto de partida ou referência do discurso histórico.

A referência do arquivo, sua função, sua produção e seus silêncios, são notadas e elucidadas mais detidamente por Jacques Derrida. Segundo ele, o arquivo e o arquivamento são marcados pela

7 A postura de desqualificar a história das mulheres pode muito bem

relacionar-se com esse esforço de continuar marginalizando essas personagens na história, ainda que a perspectiva de relações de gênero traga seus ganhos, não substitui o esforço de perceber as mulheres como agentes históricos, que mobilizam a identidade e desconstroem um significado naturalizante sobre o feminino.

8 Na verdade, as diferentes categorias (mulheres não brancas, não cis,

não Norte, não classe média) vêm deslocando a categoria mulher pluralizando-a e protagonizando diferentes pautas dentro do próprio movimento feminista que excluía ou, ao menos, invisibilizava outras marcas (PEDRO, 2005, p.82).

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ação do arconte e pela promoção do poder, sendo uma relação entre três presentes (o presente passado, o presente atual e o presente futuro), que compõem seu mal e a sua finitude, pela sua relação sempre aquém para com a memória “viva”, em nosso próprio momento. Ou seja, o arquivo corta, censura, dispensa e descarta muitos elementos envolvidos nestes presentes, e essas relações vão se amalgamando e se relacionando com outras temporalidades.

No entanto, é através dos enunciados finitos do arquivo, que advêm das manipulações daqueles presentes – e que nunca permitiriam que tudo se tornasse vestígio – que a nossa leitura/narrativa atual se faz. O arquivo não está morto, e esses seus fluxos, apesar de não constar tudo que gostaríamos, ampliam reinterpretações de um vir-a-ser produzidas justamente pelo deslocamento de seus enunciados e pelas lacunas que no arquivo existem (DERRIDA, 2001). Ou seja, perspectiva é de que no arquivo não está tudo que ocorreu, mas há em sua finitude (ligadas à sua produção de discurso e à sua técnica para estruturação), latências que disseminam e alargam a produção de sentidos relacionados a ele. Não há nada fora do arquivo, no entanto, seus silêncios, para além do que nele consta materialmente, podem colaborar para alargar seus usos.

Tendo isso em mente, exploraremos um corpus limitado que ora amplia-se (mas utiliza e impõe largamente discursos similares sobre os corpos femininos), que são os catálogos e outras referências às autoras, ora diminui seu volume, mas nos abastece de algumas formulações sobre vivências e ambições, que são as fontes contadas e criadas pelas próprias mulheres, textos, literários ou não, de que delas temos acesso, que aumentam a nossa percepção sobre como se deu a inserção na ação produtora/autoral feminina dentro de uma conjuntura que lhes impõe limites e como transitam e encontram um lugar para agir, expressar seus desejos.

Os documentos desse corpus são fontes digitalizadas, e podem ser acessadas gratuitamente na Biblioteca Digital Gallica (gallica.bnf.fr). Os acervos dessa biblioteca fazem parte de um empreendimento da Bibliothèque Nationale de France (BnF), junto a outras parceiras, que digitalizam e divulgam documentos produzidos, traduzidos ou escritos em francês, mas também, com menor dedicação, em outras línguas ou de outros lugares do mundo, o que amplia e facilita consideravelmente o acesso a fontes de períodos anteriores à nossa contemporaneidade. Trata-se de uma plataforma que contém mais de 2 milhões de digitalizações, e que disponibiliza também, através de outros sites, ligados a BnF, catálogos e, inclusive, pequenos dossiês que resumem

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alguns fundos ou documentos que compõem esse vasto empreendimento, constantemente ampliado.

A BnF foi antecipada por outras bibliotecas, como a Imperial, a do Rei, a Real, que possuíam uma preocupação com o traço nacional, pelo poder de seu arconte, ou no caso de seu colecionador, e foi abastecida por essa marca – que coloca-se numa perspectiva centralizadora e patrimonialista – desde a proposta de dépôt légal, assinada por Francisco I9.

Além, das marcas óbvias da francofonia, é possível que as temporalidades que perpassaram o acúmulo de suas coleções também nutram ou reforcem os processos de colonização, das desigualdades de gênero, classe, etnia, entre outros elementos, na relação com o arquivamento, nas quais forjam lacunas tanto pelos privilégios de quem a ela doava ou inseria cânones, quanto pelos silenciamentos de quem não a alcançou ou foi desqualificado. O caráter de conservação pode, então, produzir documentos que tendem a reforçar aquelas narrativas do Mesmo ao desconsiderarmos o que dizem as ausências.

O acervo atual, contudo, detém fontes importantes disponibilizadas virtualmente. Entre elas, duas coleções “transcritas” – e imaginadas - que nos intrigaram, pois guardam similaridades com a função de um arquivo, tanto pelo seu aspecto função social, quanto por relatar-nos, enquanto narrativa, as conexões e descontinuidades entre as culturas do escrito. São as bibliotecas quinhentistas produzidas por dois aristocratas, no fim do século XVI, Antoine du Verdier (1544-1600) e François Grudé (1552-1592), que nos permitem estabelecer os critérios de arquivamento e produção dos textos, sendo fontes que buscam “salvaguardar” a totalidade da cultura escrita francesa, embora obviamente lacunares, dada a limitação do que conseguem coletar, tanto pela constante produção de escritos, quanto por ligações políticas (ou falta delas).

Na análise dessas obras, exploraremos os inventariamentos dos escritos que circulam, embebidos e motivados pela prática de letramento associada ainda a um projeto de centralização da língua e ampliação da

9 Coleções reais já existiam na França antes da instituição dessa

centralização, como a de Carlos V, que contava com mais de 900 livros, o que parece pouco já que os califados islâmicos preservaram (ainda que intermitentemente) coleções muito mais volumosas (GOODY,2011), no entanto, é uma iniciativa importante, dado que outras estavam dispersas em palácios e guardadas por particulares, não sendo acessível e sendo constantemente extraviadas por conflitos, depredações e incêndios.

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produção, observando os temas, as representações e as formas dos escritos e a relação que guardam com o suporte, que nos lega alguns dos rastros dos manuscritos e outras textualidades, além de apontar para o universo dos livros impressos e a formação da autoria. Aliás, vamos usar o termo autores e escritores da França não é pra insinuar a figura do escritor do século XVIII que vive da própria escrita, do autor-proprietário (CHARTIER, 2014, p.51-2), mas para diferenciar aqueles que escrevem, daqueles que concebem algo, no entanto, o termo autor é instável e aparece em referências a traduções e comentários, ao mesmo tempo que visa designar responsabilidade e originalidade, já no século XVI com a própria ideia de composição “de sua própria mão”.

Dessa forma, veremos que a formação das autoras não é linear e nem toma como necessária a relação entre prensa e autoria, já que Anne de Graville, a qual é pertencente ao início do século XVI, é retratada em sua obra manuscrita (ainda que ajoelhada diante de sua rainha, ao entregar seu livro), enquanto nem todas as autoras da prensa, que analisaremos aqui, mesmo posteriores, trazidas por du Maine e du Verdier, aparecem com seus nomes verdadeiros em destaque na página de rosto (apresentando ocultamentos ou pseudônimos). Chartier diz que, no fim do século XIV e início do século XV, já está começando a se delinear o livro no sentido de obra, como conhecemos, e com isso passa-se a expressar a figura do autor entrelaçado ao produto de sua escrita (um nome próprio que dá certa identidade ao conjunto dos textos), um fenômeno anterior à prensa e que começa a esboçar a importância do autor (2014, p. 59-60). No século XVI, essas relações ainda são complexas e apontam algumas continuidades e descontinuidades como coletâneas (quase “miscelâneas”), mas cujas autoras já ganham destaque, ainda que a figura da(o) mecenas como corresponsável pela produção do manuscrito (e, por outro lado, a do editor, responsável pela materialidade no impresso), também estejam entre as marcas.

Daí passarmos pelas formas de interação e transmissão da cultura escrita feminina e o que nos parece tratar-se de uma forma de expressar-se que ora conexpressar-serva-expressar-se dentro das prescrições, dependendo do meio a que se ligam, ora subvertem as regras, relacionando-se, estas constatações, ao suporte e aos termos que invertem.

Os dados que coletamos a partir das bibliotecas permitem-nos “quantificar” a participação no letramento, para dali estabelecer alguns pontos de encontro das formas pelas quais as mulheres estabeleceram-se no universo letrado, bem como analisar a sua inserção, seus deslocamentos e distanciamentos no quadro de afirmação da “letra” e as perdas e ganhos quanto aos suportes e arquivamentos.

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Em “Inscrever e apagar”, Roger Chartier procura trazer-nos a questão da materialidade não dissociada da hermenêutica do texto. Segundo ele, “a análise das significações simbólicas [não está dissociada] daquela das formas que as transmitem”, pois, preservação, valor e circulação se colocam também como parte da problematização da cultura escrita (CHARTIER, 2007). Seja pela leitura, observada por Chartier, seja em termos de escritura, circulação e obtenção desses artefatos, que constituem elementos da cultura escrita e se imbricam: “as práticas do escrito, que fixam ou produzem a fala, cimentam as sociabilidades ou prescrevem comportamentos, atravessam tanto o foro privado como a praça pública, levam a crer, a realizar ou a sonhar”(CHARTIER, 2004, p.18), onde simultaneamente impressos, textos orais e manuscritos permeiam a sociedade letrada e não letrada, fraturam e registram seus valores. O que vai na direção do que Foucault problematiza quanto à materialidade e o discurso, considerando aquela parte constituinte do poder que o discurso institui (FOUCAULT, 2010, p.112).

Mas num sentido mais geral, poderiam os séculos XV, XVI e XVII terem sidos marcados no Ocidente como “Renascimento”10 pelos

modernos, ou mesmo a existência da querelle de grande visibilidade para nós, sem a ocorrência da produção de um novo suporte, o impresso? Como Eisenstein, em “Print Revolution in Early Modern Europe” lembra-nos:

Do ponto de vista da maioria dos estudiosos renascentistas, o advento da prensa vem muito tarde para ser tomado como um ponto de partida para a transição para os tempos modernos. Desse ponto de vista, essa transição começa com as gerações de Giotto e Petrarca e com uma retomada clássica que estava já sob o caminho pelo início do quattrocento – bem antes de Gutenberg começar a trabalhar (2005, p.124)11.

10 Termo utilizado pelos modernos e ainda utilizado, mas não sem

crítica. A problematização da relação das mulheres com esse movimento é também criticada por estudos feministas. (Ver: DAVIS & FARGE, 1991; KELLY-GADOL, 1977).

11 Referência: “From the viewpoint of most Renaissance scholars, the

advent of printing comes too late to be taken as a point of departure for the transition to modern times. From their viewpoint, this transition begins with the generations of Giotto and Petrarch and with a classical revival that was already under way by the early quattrocento - well before Gutenberg had set to work”.

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Acima, Eisenstein apresenta algumas percepções que já situam o Renascimento como um movimento que já ocorrera antes. Esse termo, no entanto, é questionado, por ela, no que ele produz como efeito:

[...] uma coisa é mostrar que o renascimento petrarquista estava florescendo na Itália na idade das cópias de livros à mão. Outra é mostrar por que Petrarca e seus sucessores deveriam ser tomados como agentes de uma mudança de época [...]. “Renascença” é usada por ambos os pesquisadores para designar um específico renascimento clássico e estilo estético. A confusão decorrente da extensão do rótulo para abranger uma época de transição provoca disputa adicional. A questão básica é se o período, no entanto rotulado, contém uma grande transformação

histórica e, portanto, deve ser separado ou se é um construto espúrio e deve ser descartado. [...]

Podemos direcionar a atenção para algo que realmente aconteceu, que foi obviamente de importância crucial, que ocorreu na segunda metade do século XV e em nenhum outro momento na história do Ocidente. […] Quando se considera o que estava acontecendo em outras partes do continente entre 1350 e 1450, pode-se perguntar se um encontro com condições locais peculiares não foi confundido com o advento de uma nova era. Mas pode-se mover livremente através de todos os tipos de fronteiras europeias - do Monte Etna a regiões ao norte de Estocolmo, das costas atlânticas às montanhas do leste de Montenegro - durante a última metade do século XV e descobriremos que o mesmo tipo de novas

oficinas nos principais centros urbanos estavam produzindo livros em quase todas as línguas da

Europa Ocidental12 (2005, p.127).

12 Referência: “It is one thing to show that the Petrarchan revival was

flourishing in Italy in the age of hand-copied books. It is another to show why Petrarch and his successors should be taken as agents of epochal change. […]"Renaissance" is used by both schools to designate a specific classical revival and esthetic style. Confusion arising over the extension of the label to encompass a transitional epoch provokes additional dispute. The basic issue is whether the period, however labeled, contains a major historical transformation and hence should be set apart or whether it is a spurious construct and should be

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Ou seja, segundo Eisenstein, embora a prensa não seja o único fator relevante para essa difusão dos saberes clássicos ou contemporâneos, tornou-se um fator indispensável para a extensão do conhecimento que produz a Primeira Modernidade. Aponta, ainda, que não foi um fator meramente local, conhecido apenas dentro de suas fronteiras, mas essa revolução tecnológica, embora posteriormente atenuada por Eisenstein, foi quase onipresente, e tornou a ideia de uma República das Letras mais plausível e a ideia de um “Renascimento” vigoroso possível.

Mas o termo Renascimento usado para designar o movimento que vai do início do século XV ao fim do XVI continua objeto de disputa, pois a sua longevidade acaba por situar mais facilmente o leitor e, muitas vezes, justificar determinados arranjos atuais (GOODY, 2011).

Delumeau (1994, p.19) provoca ao dizer da inexatidão entre os termos “Idade Média” e “Renascimento”, até nisso solidários, e que ao suprimi-los ficar-se-ia livre dos preconceitos, entre eles, a ideia de um corte brusco. Contudo, não se dispensa de o utilizar, fazendo as devidas ressalvas que misturam uma ideia de período com a ideia de um movimento cultural, tomando, tal termo, no sentido de “promoção do Ocidente numa época em que a civilização da Europa ultrapassou, de modo decisivo, as civilizações que lhe eram paralelas”(1994, p.20). Rejeitando-se o etnocentrismo e o progressismo teleológico, a sua reflexão é de que existem diversos eventos a expandirem-se e difundirem-se pelo Ocidente nesse momento, embora não necessariamente conectados, mas que gerariam uma intensa e complexa interconexão, atravessando um modo de ser que modificaria o que estava por vir.

A noção de movimento é levantada e essa relação entre movimento e período se apresenta e se mescla na obra desse clássico: “Tudo que se mostrasse como elemento de progresso seria chamado a

discarded. […] We can direct attention to something that really did happen, that was obviously of crucial importance, that occurred in the second half of the fifteenth century and at no other time in the history of the West. […]When one considers what was happening elsewhere on the Continent between 1350 and 1450, one may wonder if an encounter with peculiar local conditions has not been mistaken for the advent of a new age. But one may move freely across all sorts of European frontiers - from Mount Etna to regions north of Stockholm, from Atlantic coasts to the mountains of eastern Montenegro - during the last half of the fifteenth century and one will find that the same sorts of new workshops in major urban centers are producing books in almost all the languages of Western Europe”.

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figurar numa vasta paisagem que se estende do fim do século XIII até à aurora do século XVII e que vai da Bretanha à Moscóvia”, determinando assim um tempo e um espaço para esse termo Renascimento. Ou seja, não se desfaz dessa aclamação de um corte temporal (século XIII ao XVII), mas pinça os eventos que designariam um movimento histórico (elementos de progresso – como se fosse dado a priori – que cita desembocarem na crítica do pensamento clerical da Idade Média, a recuperação demográfica, os progressos técnicos, a aventura marítima, uma estética nova, um cristianismo reelaborado e rejuvenescido13), diferentes pontos para promover diferentes

desenvolvimentos/“avanços na marcha”, embora admita ser esse movimento entrecortado por paragens e por desagregações (mesmo que “apenas provisórias”, diante desse fluxo progressivo da história). E, por isso, retrocede e diz apresentar um período que não é em tudo belo e exitoso, mas no qual se apresenta um aumento do obscurantismo, surgindo como um cenário cheio de contradições, em que há progresso técnico e progresso material, mas que produz efeitos e disputas que levam a massacres, a abismos sociais. Essa contradição, parece-nos, dá-se pela ambição de tentar ver o todo de um “período”, que é composto de partes em movimentos distintos.

Nesse sentido, não defende apenas um movimento, mas há um entendimento de que o Renascimento é “a promoção do quantitativo e a elevação do espírito de abstração e de organização” (1994, p.24) [grifos meus], e ao mencionar promoção e elevação está falando também que os fenômenos em si não são necessariamente novidades14, mas a sua

13 Muito similar aos elementos que Goody (2011) irá atribuir também ao

Renascimento Italiano, embora, na última parte das afirmações de Delumeau, Goody aponte a Reforma como, em parte, descolada em essência do Renascimento, já que esse olhar pra trás do cristianismo, embora crie frestas, possui objetivos conservadores.

14 “Na verdade, o aparente regresso às fontes da beleza, do saber e da

religião foi apenas um meio de progredir. Alegremente se ‘pilhou os templos de Atenas e de Roma’ para ornamentar os de França, de Espanha e de Inglaterra. A partir do século XVI identificou-se em Miguel Ângelo o ‘maior artista de todos os tempos. Demoliu-se Aristóteles com base em Platão e Arquimedes. Colombo descobriu as Antilhas graças aos erros de cálculo de Ptolomeu. Lutero e Calvino, julgando restaurar a Igreja primitiva, deram uma face nova ao cristianismo. O Renascimento, que se comprazia com os ‘emblemas’ e os criptogramas, dissimilou a sua profunda originalidade e o seu desejo de novidade por trás de um hieróglifo que ainda causa enganos: a falsa imagem de um regresso ao passado” (DELUMEAU, 1994, p.23). Essa percepção de

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difusão e aumento sim15. Nesse sentido, é acertado vê-lo como descrevendo um movimento, termo que penso estar mais ligado no sentido de um conjunto de ações que reverberam entre si e no devir, um deslocamento dessas mônadas de tempos (o qual só pode se relacionar com a própria transformação simbólica e do espaço, numa espécie de tautologia do próprio conceito de tempo histórico), mas a qual, às vezes, é preciso definir já que se cria uma expectativa de ação autoconsciente de seus membros e de coerência, aproximando-se da ideia de “escola”. Por isso o termo período para designá-lo ou movimento, observadas mais as relações complexas com o tempo, parece ir progredindo para uma melhor análise do que seria esse “Renascimento” (o da Europa do século XV, a partir das cidades italianas, mas que chega à França no século XVI), já que abrange não contradições, como o diz Delumeau (1994), mas eventos que interagem e geram reações ambivalentes, parte e contraparte da disputa entre discursos e modos de ser no mundo e cujas rachaduras promovem diversas relações entre os mais variados aspectos e que não podem ser monocausais.

Contudo, dado que quando buscamos nos situar no século XVI, ambicionamos fazer referência à comoção de escritos que a prensa gerou – e, também, soterrou. Eisenstein é retomada por sua ênfase:

Eu argumentaria então que “uma visão totalmente racionalizada” de antiguidade começa a aparecer somente depois do primeiro século da prensa mais do que no tempo de Petrarca e que o poder de durabilidade da prensa era um pré-requisito para essa nova visão. Não é “desde a Renascença”, mas desde o advento da prensa e estampagem que “o antigo tem estado continuamente conosco”16

(2005, p.135).

mundo, interligada a uma lógica que “não queria” conceber o novo, mas o fez apropriando-se do passado glorioso, também estará ligada à produção de autoria gradual e “bricolada” que se constrói ao longo desse período.

15 No entanto, embora levante uma pluralidade temporal, não traz os

elementos de diferentes florescências e renascenças (como usa Goody (2011)) também em outros espaços.

16 Referência: “I would argue then, that "a total rationalized view" of

antiquity began to appear only after the first century of printing rather than in Petrarch's lifetime and that the preservative powers of print were a prerequisite for this new view. It is not "since the Renaissance," but since the advent of printing and engraving, that "the antique has been continuously with us”.

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Se, por um lado, Einsenstein parece cair no erro de acabar contrariando sua perspectiva de não atribuir a um só fenômeno as relações desenvolvidas na Primeira Modernidade, esquecendo-se de todas as relações que vão sendo trabalhadas, as comunicações trocadas e as informações que levam a essa nova era da informação, por outro, o Renascimento europeu parece dar um passo adiante mais constante justamente pela prensa e sua difusão, pois não teria sido tão secular e amplo (Goody, 2011) sem a proliferação que “democratizou” a construção do saber. Mas é claro que tanto os contatos com os vizinhos, como com o passado, como a mudança de pergaminho para papel – e, antes disso, a revolução dos caracteres17 – colaboraram para a efetivação

da prensa como instrumento útil que possibilitou a difusão do escrito. Com isso, o “Renascimento” italiano foi um incitador, mas sua difusão e seu grau de alcance não seriam o mesmo sem essa mudança de tecnologia do suporte.

Ao mesmo tempo, a prensa é responsável por um deslumbramento que tem aspectos negativos. Um fenômeno que os autores das bibliotecas algumas vezes chamaram de “pôr a luz”, e que reflete quase instantaneamente a ideia de que houve uma iluminação que possibilitou visualizar algumas obras, e direcionou o olhar impressionado dos autores quinhentistas, mas também gerou, pelo contraste da luz, uma sombra em outros textos que continuavam a circular sob outros formatos. Em meados do séc. XVI, esse deslumbramento em relação ao impresso vai gerando uma difração dessa luz que se põe sobre outros escritos e que se relaciona com seu descarte ou a sua manutenção e interpretação nos arquivos.

A relação entre arquivamento, suporte e narrativa também vai colocar-nos a questionar a disposição, aqui e ali, a dispersão de textos e a produção de deslocamento entre os enunciados, devido justamente a esse preço das técnicas de escrita, produção e impressão, que visibilizam alguns produtores de um determinado suporte e soterram outros.

17 Jack Goody (2011) contrapõe essa naturalização dos caracteres e do

sistema fonético como revolucionário à escrita chinesa que acaba podendo se tornar mais universal. No entanto, de que maneira uma escrita que parece não ter tanta relação com a fala pode facilitar o letramento? De certa forma, a representação fonética, por ser atrelada ao instrumento da fala, torna esse tipo de escrita mais “acessível”, embora menos universal. Mal comparando, podemos lembrar o desuso do latim como língua falada tornando-se um impedimento para muitos leigos adentrarem no universo da escrita, já que seu aprendizado estava muito mais restrito.

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Culturas de compartilhamento dos escritos na sociedade leiga atravessam grupos desiguais em diversos aspectos, mas dinâmicos em suas formas de apropriarem-se e fazer circular. No entanto, é a partir do século XII e XIII, com a cultura de leitura, explosão de universidades e mudanças no mundo educacional, que acontece uma primeira ampliação ao se recolocar um valor individualizante18 na figura do mestre19 e, igualmente, na do autor, a valorização de sua fama. Conforme Assmann, diante da cultura do escrito,

Fama, aos olhos dos humanistas renascentistas, deixa de ser uma figura marginalizada para tornar-se a aspiração mais nobre do tornar-ser humano. [...] Essa mudança de valores está intimamente ligada à secularização do tempo e da memória. [...] Para os humanistas da Renascença o instrumento mais importante para a construção dessa dimensão secular de tempo e memória é a escrita (2011, p.50).

O vislumbre da fama e da “autoeternização” através da escrita, faz com que se enfoque não só o homenageado pelo texto, ou o texto, mas quem o produz (o que nos parece uma obviedade, pois naturalizamos a figura do autor, mas essas relações estavam a se modificar na época medieval):

Na era da imprensa, a instituição da autoria foi redefinida pelo fato de o peso do conceito tradicional de fama passar da pessoa retratada no poema à própria pessoa que a retrata – o poeta. A escrita é um meio de eternização não somente para os heróis cantados nos poemas, mas também para o próprio autor (ASSMANN, 2011, p.51).

A virtude nomeada e assinada torna-se um meio de reconhecimento entre os que circulam pela Corte, ao menos no espaço francês, ainda que seja parte da ambição daqueles que não estavam tão

18 Segundo Le Goff, pode-se perceber o indivíduo do medievo preso

numa rede de obediências, de submissões, de solidariedades. Porém, é preciso atenuar essa visão da instituição Igreja sobre seu poder de submeter e homogeneizar os indivíduos, que, embora se vejam diante de uma instituição dominante, tem práticas que estão sempre a deslocar os limites impostos, ainda que não se tornem a regra.

19 Coincide com essa explosão, o investimento em Córdoba por parte da

florescência islâmica, o que também gera trocas ainda mais próximas com a Europa Cristã (Goody, 2011).

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bem posicionados e necessitavam do aval do rei, tanto quanto este precisava das promoções de seu nome para além das armas.

O desenvolvimento simultaneamente lançado pela e divulgado na produção em língua vulgar escrita, buscado pela tematização do poder da mátria – língua – e seu filho rei, faz com que as mulheres possam ter um acesso maior à escrita, no meio secular. Podemos dizer, conforme Cox (2008, p.40), que as mulheres leigas têm uma participação mais significativa, inclusive como patronas, com a produção de poesia vernácula, e passam a ser consideradas como o público ideal da poesia. Porém, Chartier menciona uma revolução bem anterior, que irá tornar a tipografia a explosão cultural que foi no Ocidente, que é sua relação com os caracteres da língua, utilizando-se do repertório de Vico, que dividiu-as na língua dos deuses, na dos heróis e na dos homens, só isso explicaria a diferença que esse resultado da invenção da prensa produziu no Ocidente, e a opção do Oriente pela xilografia20. Assim a situação da mudança da linguagem do sagrado escrito, para aquela que se fala, a vulgar, aumenta a acessibilidade dos marginalizados da sociedade. Desviando-se do monopólio do trato sagrado do escrito, o aprendizado e a propagação do texto vão se tornar plurais. Ainda, como lembra-nos Assmann, “a impressão de livros quebrou o antigo monopólio da

20 Conforme Vico apud Chartier:« Chacun de ces trois âges est

caractérisé par une langue et une écriture propres, étroitement dépendantes l’une de l’autre puisque la question de l’origine des langues et celle de l’origine des lettres « sont de la même nature ». À l’âge des dieux, « le premier langage a été mental et divin, formé d’actes tacites religieux, ou de cérémonies sacrées ». Les hiéroglyphes sont les caractères qui expriment cette langue muette, non articulée, sans capacité d’abstraction, qui recourt aux objets ou à leur représentation […]. Le second langage, celui du temps de héros, « serait, si nous en croyons les Égyptiens, celui parmi lesquels nous plaçons les symboles, les armoiries guerrières des temps héroïques. Il est composé à parts égales de langage muet et de langage articulé ; il utilise les signes et manie « les images, les métaphores et les comparaisons. […] Ce procès d’abstraction trouve son aboutissement avec le troisième langage, par mots articulés, et avec la troisième espèce de caractères, les lettres qui « devinrent comme des genres auxquels se rapportent toutes les paroles » (1996, p.18). Embora possamos reconhecer a soberba etnocêntrica dos iluministas europeus sendo gestada, Chartier ilustra através de Vico que devido a tais mudanças do interior da escrita, se permite uma proliferação de sentidos, uma aprendizagem mais fácil da língua escrita, enquanto se reduz o número de signos, com o alfabeto, por exemplo. Essa viagem pelos caracteres, permite que a impressão, nos termos de Eisenstein, se torne uma revolução para o Ocidente, mesmo que tenha sido inventada muito anteriormente no Oriente.

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recordação exercido pela Igreja e pela corte e possibilitou novos acessos à memória e à história”21, gerando novas lutas de poder em torno da

recordação (2011, p.51), ou, mesmo, conforme Condorcet, o surgimento de uma opinião pública (Chartier, 1996, p.22).

Contudo, o livro, artefato com valor de tesouro, acabava por dizer do status de seus possuidores e, por isso, sua circulação está mormente detida na aristocracia e na burguesia. Com a prensa, ainda que o papel permanecesse por muitos séculos um item caro, esse acesso se amplia conforme os pontos de impressão vão avançando e se instalando pela Europa.

Mas apesar da entusiasmada mudança e da provocação ocorrida com a prensa, outras formas de textos mantiveram-se. As canções e expressões orais, as cópias dos manuscritos e o compartilhamento entre círculos íntimos ou quebrando as fronteiras, textos próprios que permanecem em concomitância com a elogiada - e, entre alguns, polêmica - conquista do território bibliográfico da prensa. No século XVII, por exemplo, ainda há oficinas de copistas que realizam um trabalho ornamentado nos manuscritos, e na Inglaterra existem mulheres voltadas para a produção manuscrita de uma obra, num formato mais artístico, ocorrendo procura desse tipo de trabalho mais adornado para presentear ou homenagear alguém22.

A mudança tecnológica, no entanto, faz com que aquelas ou aqueles que continuaram a privilegiar outros suportes sejam soterrados, com exceção dos ornados suntuosamente, perante o entusiasmo e peso dos impressos, bem como a formação dos cânones, que se tornavam “autores” e mereciam ser preservados. Ou seja, preserva-se aqueles que são parte ou que se conformam aos grupos que detêm autoridade política e religiosa, homogeneizando e regulando o patrimônio cultural e

21 Ainda que se deva recordar que há algo anterior a isso que permite

esse interesse. Seguindo Goody (2011), nesse momento, acredito que isso está atrelado aos contatos constantes não só mercantis, mas como difusão e alteridade cultural que as populações eurasianas, assim como africanas, vivenciaram.

22 Laura Knoppers elucida a continuidade desse trabalho manual da

cópia de livros através de Ester Inglis (1571-1624). Esta artesã realiza cópia de livros impressos, transcrevendo-os ou traduzindo-os, e adorna ricamente suas cópias, sendo possível encarar os traços que deixa como assinaturas de seu trabalho artístico, além de produzir em latim, inglês e francês. Ainda, assinando-o como uma artista, procurava produzir um autorretrato dela exercendo sua profissão em algumas de suas cópias, registrando-se nos trabalhos que reproduziu (2009, p.4).

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linguístico, e produzindo, pelas suas narrativas e arquivamentos, textos e acervos abundantes do Mesmo, enquanto o discurso do Outro torna-se o diverso e, por isso, a irregularidade, as exceções que confirmam o Mesmo, sendo assegurado seu lugar apenas como uma cota, diante de um quadro em que masculino é a norma e que prossegue normatizando também o que é esteticamente interessante ou não - dado que a produção historiográfica literária se realiza a partir de uma aparente coesão da integralidade narrativa23 e de isenção, enquanto as mulheres permanecem, nessa esfera, como invasoras e, por isso, transgressoras.

Assim, seja por suas relações entre os poderes e as marcas que o promovem, seja as tecnicalidades do arquivamento, ou da estrutura do artefato, há tempos diferentes de durabilidade e eco. Por isso, tentando apresentar as relações que se traçam na cultura escrita, partimos então dessa percepção do armazenamento e do suporte, bem como os espectros do arquivo, para analisar a publicação feminina. Mas como surge? É possível pensar autoria feminina em uma sociedade patriarcal que desautoriza essas vozes e tem tais práticas tão arraigadas e enraizadas na longa duração? Ora autora e escritora são termos diferentes, como já dissemos, mas há entrecruzamentos pelos diferentes níveis e intenções podendo abrir um espaço para a formação da publicação e da autoria feminina.

O conceito de literatura menor, adaptado por Jane Chance, a partir de Guattari e Deleuze, sem deixar de manter a complexidade das vozes femininas que se comunicam de formas tão diferentes, estabelece um nexo interessante, a partir de uma análise mais interna do texto. Tal conceito presta-se a dar conta da escrita dessas mulheres com elementos que, se por um lado, apresentam essa assimetria nas relações de poder, por outro, desvia-se de uma perspectiva preestabelecida essencialista do que conseguiriam escrever as mulheres. A noção de “escrita feminina” dinamiza-se e distancia-se da naturalização das formas como as vozes femininas expressam-se.

23 Chama atenção que essa integralidade narrativa que caracteriza a

história literária, no sentido de amarração do enredo, junto à teorização do que seriam os elementos que possibilitam a construção do evento e a expressão vernácula do país, apontam um esforço para que o recorte que dê conta de sua arbitrariedade crítica, para além dos outros elementos narrativos que essas histórias excluem, tanto porque é impossível contar o tudo e o todo, o que é estar sempre fabricando silêncios, quanto porque é justamente pelos seus paradigmas estéticos que estabelece relações valorativas.

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Porém, essa construção não só do texto, mas da cultura escrita feminina desenvolve-se também numa intersecção complexa com o público, e por isso requer que observemos as formas como o discurso, através do suporte impresso, produz pela amplitude dos leitores, outras táticas para a inserção das mulheres e novas ambições femininas, num contexto que não impede diretamente com punições a presença dessas mulheres enquanto autoras de livros impressos, mas as estigmatiza de diversas formas, dificultando a visibilidade ou o desejo de produzir um artefato duradouro que é celebrado nesse momento, devido à novidade ocidental da prensa.

Entre alguns dos impressos analisados, como o de Nicole Estienne (~1542-~1584), burguesa, filha de um aclamado impressor, ou os das damas Madeleine (1520-1587) e Catherine (1542-1587) des Roches, pequenas aristocratas da região de Poitiers, percebe-se a apropriação e a adaptação feitas ao buscarem neles a forma de transmissão de suas produções, os ajustes, as perdas e os objetivos que tem com o formato, repercutindo e criando regras que justificam e positivam sua presença em “público”, ou percebendo-o como ferramenta útil à contestação.

Por esse motivo, investigaremos a própria produção das mulheres na “revolução” – adaptação24 – gutemberguiana e acompanharemos a

intersecção entre discurso, suporte e publicidade/publicização feminina25, num momento em que se exerce de diversas formas a

24 Como Chartier aponta em Culture écrite et societé é necessário

atenuar a afirmação de revolução tecnológica por dois motivos, primeiro porque simplesmente tal invenção já havia sido realizada no Oriente e, segundo, por consequência disto, a mesma tecnologia na China, Japão ou Coréia não levou aos mesmos efeitos de ampliação do acesso ao conhecimento, pois esse conhecimento está relacionado a outros fatores (conforme ele cita: língua escrita fonética e o aprendizado desta). Ainda, essa diferença em relação aos caracteres faz com que a indústria do livro no Oriente se dê mais com a xilografia, e que se mantenham correspondências entre manuscritos e impressão (1996, p. 28).

25 Utilizamos o termo publicização ou publicidade no lugar de

publicação, porque este termo acaba sendo, pela força do hábito, conectado à impressão e por isso coloca uma ideia de suporte diferenciado. Por outro lado, os termos publicidade ou publicização podem ser conectados a um grande público, mas também se reserva quanto ao veículo em que o texto circula, ou seja, é mais genérico, retratando as diferentes formas pelas quais um texto pode sair da esfera privada, circular, sem que necessariamente se dê nos termos da impressão.

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discussão e a participação das mulheres e em que disputam discursos sobre seus corpos e seus trânsitos.

Assim, a literatura menor a que nos referimos é próprio da invenção e produção de táticas que deslocam o discurso institucional ou do cânone literário, e é, por isso, política (DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.40). Por conta disso passaremos a atentar para uma descrição dos enunciados e as ligações com a materialidade que compõem os escritos femininos, pois além de serem minoria, há o elemento da autoridade, que segundo a análise de Jane Chance, constituiria esse ato revolucionário na literatura. Tal ato reapresenta as idas e vindas em suas prescrições, em uma sociedade dinâmica, que embora faça reverberar discursos patriarcais, não são uníssonos e uniformes, pois, conforme Chartier,

Todo dispositivo que visa criar repressão e controle provoca táticas que o amenizam ou subvertem e, inversamente, não existe produção cultural livre e inédita que não empregue materiais impostos pela tradição, pela autoridade ou pelo mercado e não esteja submetida à vigilância ou censura de quem tem poder sobre as palavras e as coisas (2004,p. 19).

Assim, com a prensa ganhando mais espaço no século XVI, mas, igualmente, as regulações dos corpos se dando de forma mais sistemática, e esses discursos se reproduzem abundantemente através da própria alteração de formato, o patriarcado não ressoará sozinho.

As autoras produzem uma heterogeneidade de formações, produções e enunciados competindo, excluindo e/ou infiltrando-se em suas porosidades. Através de seus usos, percebemos as múltiplas significações das “traduções/reapropriações” culturais e linguísticas dessas autoras, que não são nem cânones, nem submissas, mas que, utilizando-se de mecanismos ou vias tradicionais, formulam desvios nas argumentações, nos ritos e nos exercícios do pensar, nos meios teológico, erudito ou político.

Portanto, no primeiro capítulo, vamos perceber as formas como estão articuladas as produções femininas, através das coleções dos dois bibliógrafos do século XVI – du Verdier e du Maine –, que são bastante amplas. Ambos organizaram duas “bibliotecas” que tinham uma pequena ambição: a de tentar elencar todas as obras francesas, ou traduzidas para o francês – e aqui percebemos como esse elemento da língua já começa a se coadunar e indicar uma melhor comunicação ou até uma centralização que demarca o aparato da monarquia real

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