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Osistemaalemãodetransmissãonegocialdedireitosreais

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Academic year: 2021

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[Extraído, com ligeiras alterações, de Ainda sobre “Um „caso

exem-plar‟ ou um „exemplo casual‟”. Onde se fala da “teoria da alusão” em matéria de forma, de alguns aspectos do regime da simulação e dos “sistemas” de transferência da propriedade, RCEJ, 11 (2007), págs.

271 e ss.]

No direito português vale, consabidamente, o “princípio da transfe-rência consensual” dos direitos reais (ou “princípio do consenso trans-lativo” ou “da consensualidade”; esta última designação usa-se toda-via também noutras acepções: como equivalente a liberdade de for-ma; e para demarcar a generalidade dos contratos, concluídos mediante o mero consenso das partes, dos contratos reais, quoad

constitutionem, que exigem a entrega da coisa como elemento da sua

formação). Tal princípio encontra-se consagrado no art. 408.º. E é confirmado, para o direito de propriedade, na al. a) do art. 1317.º, e, no âmbito da compra e venda, na al. a) do art. 879.º (de fora da nossa atenção ficam as normas respeitantes à constituição do penhor, que requer a entrega da coisa empenhada ou de documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, e a hipoteca, cujo registo é condição de eficácia).

A escolha do legislador de 1966 era já a do Código de Seabra (resul-tando aí dos art. 715.º e 1549.º). Mas, até ao Código de 1867, exi-gia-se a tradição da coisa para a transmissão da propriedade. Numa matéria onde persiste uma marcada divergência nos vários sistemas jurídicos, o nosso ordenamento actual apresenta um íntimo parentes-co parentes-com o Code Civil de 1804 (e, na sua sequência, os direitos belga e luxemburguês, por exemplo; cum grano salis sistema algo semelhan-te vigora ainda o direito inglês, para os móveis, não se tratando de um coisa genérica, não se considerando aí, por regra, separadamente o executory agreement da disposition, e não sendo imprescindível a

delivery), onde a propriedade se transmite “par l‟effet des

obliga-tions” (cfr. aí arts. 711, 1183, 1583 e 938), na recepção que este fez, também nesse aspecto, da primazia concedida à vontade como fonte da vinculação e dos efeitos contratuais, defendida pelo jusnaturalismo racionalista (mormente na obra de Hugo Grotius) e logo acolhida pelo liberalismo económico (mas anteriormente o direito francês, quer nos “pays de droit coutumiers”, quer nos “pays de droits écrits”, requeria a transferência da posse da coisa, embora tal regra estivesse já em erosão pela admissão de uma “transferência fictícia” – “tradition fein-te”; o Code Civil não terá até, na opinião dos autores coevos, aban-donado tal exigência mas antes ter-lhe-á atribuído um conteúdo meramente “simbólico”). Na mesma linha (nalguns aspectos indo até porventura mais longe) está o Codice Civile italiano (cfr. arts. 1376 e 1470), igualmente sob a influência do Code Napoléon. De um modo geral, em todos eles se considera o simples consenso suficiente ou

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idóneo para operar ipso iure a transferência da propriedade (ou de outro direito real de gozo; pelo menos quando incida sobre móveis). Nomeadamente, o contrato de compra e venda é fonte de efeitos obrigacionais (obrigação de entrega da coisa e obrigação de paga-mento do preço) e de efeitos reais (transferência da propriedade), que ocorrem imediata e independentemente de qualquer acto mate-rial (para a doação ver todavia o disposto no art. 947.º, n.º 2, segunda parte). A constituição ou modificação do direito real fica, cla-ro, dependente, directa e somente, da “eficácia” (“validade”) do negócio de compra e venda. Recorrendo à terminologia do ius

com-mune (que mantinha aliás necessidade de ambos, como causa remo-ta e causa proxima), o titulus por si só mostra-se suficiente para

ope-rar a transferência do direito real, não sendo o modus necessário (ou, eventualmente, aquele absorve este). Temos, então, o denominado “sistema do título”.

Dentro desta lógica, logo se percebe que a venda de coisa alheia seja considerada nula, nos termos do art. 892.º (pelo menos como “con-trato real” – de resto, se os bens forem considerados na qualidade de bens futuros a venda é válida, mas aí a transferência da propriedade apenas se dará eventual e posteriormente; ver todavia o n.º 2 do art. 467.º CCom). E que o comprador possa, em princípio, reivindicar o bem vendido se este está na posse de um terceiro. Operada a trans-missão da propriedade, o comprador tem o direito de exigir a entrega da coisa, inclusive se o vendedor entretanto se tornou insolvente, como dispõe a al. a) do n.º 1 do art. 105.º CIRE (em harmonia com o disposto no art. 5.º do Regulamento (CE), n.º 1346/2000 do Conse-lho de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência). Porém, no caso de insolvência do comprador, admite-se a recusa de cumprimento pelo administrador da massa insolvência, pelo que a propriedade sobre a coisa “reverterá” para o vendedor, por efeito da resolução assim verificada.

O “princípio da consensualidade” integra-se no “princípio da unidade” (ou “unitário”, por oposição ao “princípio da separação” ou “dualista”, a que aludiremos adiante; que na ideia de unidade ainda se escon-dam dois negócios – um obrigacional, que funde um ius ad rem, e outro real, que estabelece o ius in rem – mas tratados em todos os aspectos como um único, não parece um ponto de vista especialmen-te profícuo, nem mesmo necessário para explicar que eventualmenespecialmen-te a rei vindicatio esteja excluída em favor da condictio, perante a falta de uma “relação causal”).

Porém, tomado num certo sentido, o “princípio da unidade” deixa-se também combinar com o “princípio da tradição” (ou com o “princípio da inscrição”), ao exigir-se, para a transmissão da propriedade, (meramente) um “ulterior acto material (ou real)” ainda filiado de modo directo no acordo anterior e pressupondo a sua validade (como ocorre por exemplo, segundo certo entendimento, no direito espa-nhol, atendendo ao disposto nos arts. 609 2, 1445, 1450 e 1461 e ss. do Código Civil, devendo porém atentar-se na crescente

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zação” da traditio e na vigência aí da regra “posse vale título”, segundo o art. 464 e o art. 1473 – conquanto haja quem entenda o disposto neste último preceito como a consagração de um requisito autónomo, a par da tradição da coisa, para que se opere a transfe-rência da propriedade). Pensável seria ainda que a transmissão da propriedade, sobretudo quanto aos bens móveis (e excluindo as regras próprias quanto ao dinheiro e aos títulos de crédito), ficasse dependente (legalmente) da realização da contraprestação, mormen-te do pagamento do preço (sismormen-tema, porém, que não foi adoptado em qualquer ordem jurídica, embora em França se tenha discutido a sua introdução).

Por sua banda, o “princípio da consensualidade” dificilmente se impõe na prática na sua puridade. Sempre carece de certas restrições ou “concessões”, no sentido, quando menos, da distinção entre efeitos reais e efeitos obrigacionais (as quais são apresentadas muitas vezes, acentuando-se o seu carácter fragmentário ou assistemático e a con-sequente perda da original simplicidade do sistema, agora “um ninho de dificuldades”, como um argumento a favor do concorrente “princí-pio da separação”, senão do da “abstracção”). Tais excepções, como indica Vincent Sagaert, poderão em geral dizer respeito: à oponibili-dade da transferência da proprieoponibili-dade a terceiros (como acontece no direito francês segundo o art. 1141 do Code Civil); à natureza dos bens cuja propriedade se transfere (assim, em quase todas as legis-lações, quanto aos bens genéricos e futuros; cfr., no Code Civil, os arts. 1585 e 1130); à natureza do acordo ou consenso (como sucede, em vários sistemas, quanto á doação de bens móveis, a qual, na ausência de forma, tem de ser acompanhada da tradição); à natureza das partes envolvidas (ou seja, existência de regras específicas para as transacções comerciais).

Antes de entrarmos nalguns desses aspectos, assinalar-se-á não ser por acaso que se propende num tal sistema para que a invalidade dos negócios se tenha de fazer valer judicialmente (cfr. entre nós, arts. 286.º e ss.); e que surjam regras especiais no âmbito do direito de resolução (cfr., no direito português, a ressalva dos direitos adquiri-dos por terceiros, nos termos do art. 435.º, e, em especial, na com-pra e venda, quanto à própria faculdade de resolução, o disposto no art. 886.º; note-se que já na venda com reserva de propriedade o vendedor continua a poder resolver o contrato, visto a transmissão da propriedade não ter ocorrido, havendo todavia que ter em conta que, na venda a prestações, o art. 934.º exclui imperativamente a possibilidade de resolução se o comprador apenas não proceder ao pagamento de uma única prestação, não excedendo esta a oitava parte do preço). Demais, importa frisar que a exigência da entrega da coisa, propriedade do adquirente após a conclusão do contrato, está sujeita à exceptio non adimpleti contractus, invocável inclusive perante terceiros.

Como “excepções” (cfr. art. 408.º, n.º 1, parte final) ao “princípio da consensualidade” deparamos com as regras (suplementares)

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tamente previstas em matéria de transferência da propriedade res-peitante a coisas futuras, indeterminadas ou genéricas. No direito português, haja em vista as expressamente consagradas no n.º 2 do art. 408.º: no caso de venda de coisa futura ou indeterminada (aqui se compreendendo a venda de coisa genérica; cfr. ainda arts. 539.º e ss.) e frutos naturais ou partes componentes, a transmissão da pro-priedade supõe ainda, respectivamente, a aquisição da coisa adquiri-da pelo alienante ou a sua determinação com conhecimento de ambas as partes, ou a colheita ou separação. Terá também de se levar em conta as disposições especiais no contexto do contrato de empreitada (cfr. art. 1212.º).

Por outro lado, as várias legislações que enveredam pelo caminho da transmissão solo consensu não deixam de permitir às partes (trata-se, claro, de uma decorrência do princípio da autonomia privada) condicionar a transferência da propriedade a um evento futuro, mor-mente à tradição da coisa. Na nossa lei, a transmissão da proprieda-de poproprieda-de ser diferida por vontaproprieda-de dos intervenientes (não tem, por-tanto, natureza imperativa o art. 408.º), sendo o momento da transmissão susceptível de ser fixado, quase sem restrições, pelas partes, seja nos termos do art. 409.º, n.º 1 (reserva de propriedade; contudo tenha-se em conta, quanto a terceiros, o disposto no n.º 2 do mesmo preceito), ou, mais em geral, pela estipulação de uma condição ou termo (poderá mesmo a transmissão ficar dependente da entrega da coisa). A transferência imediata da propriedade constitui assim um elemento natural, mas não essencial, da compra e venda (sistema semelhante é o recebido no Código civil polaco, como resul-ta aí dos Arts. 155 e 535; na Inglaterra, o Sale of Goods Act 1979, Sec. 2(1-6) e Sec. 16 e 17, distingue entre um absolute e um

condi-tional contract of sale, consoante, segundo a intenção das partes, a

propriedade se transfira imediatamente ou apenas se deva transferir no futuro, sendo que segundo a Sec. 18, Rule 1: “Unless a different intention appears, the following are rules for ascertaining the inten-tion of the parties as to the time at which the property in the goods is to pass to the buyer. Rule 1.–Where there is an unconditional con-tract for the sale of specific goods in a deliverable state the property in the goods passes to the buyer when the contract is made, and it is immaterial whether the time of payment or the time of delivery, or both, be postponed”). Mas, no nosso direito, cabe adverti-lo, isso não implica a celebração de um novo contrato ou um acto ad hoc dirigido à transmissão do direito real. Por isso, inexiste nas situações anterio-res (a que se juntará a convalidação da venda de bens alheios, nos termos do art. 895.º) uma obrigação de dare em sentido técnico. O efeito translativo tem ainda a sua “fonte” no contrato anteriormente celebrado (onde já se pode identificar uma atribuição patrimonial, embora não actual), conquanto dependente de factos ou actos poste-riores. Nestes termos, não parece correcto, como destaca a doutrina mais esclarecida, identificar entre nós a figura da venda obrigatória

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em moldes semelhantes aos do direito romano ou do actual direito alemão.

Além disso, haverá que contar, vis-à-vis terceiros, com as regras da publicidade registal (cfr., no direito português, os arts. 2.º, al. a), 5.º e 17.º, n.º 2, do CRegP e arts. 3.º, 11.º, n.º 1, al. a), e 38.º do Código do Registo de Bens Móveis, sem que, porém, este último diploma tenha entrado em vigor; prescindindo de aprofundar a ques-tão, e como noutro lugar, Da relevância jurídica do conhecimento…,

cit., pág 81 e ss., nota 101, expusemos com mais detalhe,

parece-nos que a transferência do direito de propriedade se dá em tais hipó-teses de modo pleno, não só, portanto, nas relações inter partes, mas a transcrição de uma eventual segunda aquisição constituirá uma condictio iuris resolutiva da anterior não registada, e, embora num primeiro tempo, aquela se possa configurar como a non domino, logo se converte numa transmissão a domino, atribuindo-se ao titulo aquisitivo, conquanto susceptível inicialmente de ser considerado nulo por se tratar de uma venda de bens alheios, idoneidade para operar a transferência patrimonial, para todos os efeitos, ab origene, não cabendo ao registo, no mecanismo aquisitivo, mais do que a função de tornar retroactivamente inoperante a primeira aquisição: “elimina-da” esta, a segunda transmissão decorre tão-só do título aquisitivo do adquirente – solução consequente com a ideia de que o registo tem, aqui, valor meramente declarativo).

E conexão com a nossa problemática apresentam ainda as normas predispostas à tutela da boa fé de terceiros (nomeadamente em face da invalidade de um negócio precedente na cadeia de transmissões – conforme se costuma notar num sistema consensualista existem uma forte interpenetração e interacção entre as regras do direito do negó-cio jurídico e das obrigações e as do direito das coisas –, sendo no ordenamento nacional, como se sabe, tal função sobretudo preenchi-da pelo disposto no art. 291.º, onde, de resto, a protecção do tercei-ro está sujeita a requisitos apertados, a que adiante aludiremos; bem mais lata é, por exemplo, a protecção concedida no direito inglês no caso de sale under voidable title, onde, de modo geral e para as coi-sas móveis, é suficiente a boa fé do adquirente – cfr. Sec. 23 do Sale

of Goods Act). Regras essas que tenderão a assumir uma importância

muito especial dentro da economia do “princípio da consensualidade”. Em todo o caso, circunscritas às coisas imóveis e aos móveis sujeitos a registo, e só, claro, para a aquisição de direito reais ou congéneres. Tendo em vista a generalidade das coisas móveis, sublinhar-se-á que, entre nós, não vigora o princípio “posse vale título”. Isto, ao contrário do que sucede (aproximando-os nesse domínio, pelo menos em ter-mos práticos, do “princípio da abstracção”) noutros “sistemas cau-sais”, onde a aquisição a non domino de coisa móvel torna o adqui-rente proprietário, no momento da entrega, desde que ele esteja de boa fé e exista um título idóneo para operar a transferência.

É o caso do direito francês, nos termos do art. 2279 do Code Civil: “en fait de meubles, la possession vaut titre” (repare-se que, segundo

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a opinião dominante, no âmbito das relações do actual com o prévio possuidor, tal regra assume meramente uma fonction probatoire – por oposição à fonction acquisitive, atrás descrita –, instituindo uma presunção de que o novo possuidor é também proprietário, presun-ção porém ilidível, admitindo prova em contrário, por exemplo, atra-vés da mostração da ineficácia ou invalidade do título aquisitivo). Terá todavia de se tratar de uma “possession réelle”, e a lei ressalva expressamente a situação em que o proprietário tenha perdido a pos-se pos-sem ter sido por vontade sua. Como uma especial aplicação do art. 2279, no caso de dupla alienação pelo titular, é hoje em dia vista a norma do art. 1141. Por fim, registar-se-á que a idoneidade do título aquisitivo é, correntemente, entendida em termos muito pouco exi-gentes, não se chegando a requerer a validade do negócio translati-vo. Demais, embora tal entendimento não tenha prevalecido, já hou-ve quem sustentasse não ser a boa fé condição necessária da aquisi-ção do adquirente.

Também no direito italiano rege a regra “posse vale título”, plasmada no art. 1153 do Codice Civile. Por comparação com o direito francês, ocorrerá observar que o título idóneo requerido (ao lado da consegna e da boa fé) se traduz num negócio em abstracto capaz de produzir o efeito de transferência do direito real e eficaz, ou seja, sem estar “contaminado” por vícios que impeçam a sua existência ou conduzam à invalidade. Por outro lado, não se consagra no direito italiano qual-quer excepção para as situações em que a coisa foi furtada ou perdi-da pelo anterior proprietário. Quanto à dupla alienação pelo mesmo sujeito, rege o art. 1155, que prefere aquele dos adquirentes que, de boa fé, haja obtido a posse do bem móvel, mesmo sendo o seu título posterior.

E no direito inglês haverá que referir neste contexto as regras cons-tantes das Secs. 25 e 24 do Sale of Goods Act 1979.

De modo diferente, como já se disse, o sistema português, seguindo o direito romano (a máxima “posse vale título” é de origem germâni-ca, onde valia a regra “Hand wahre Hand”), mantém incólume, neste domínio (da aquisição derivada de bens móveis não sujeitos a regis-to), o princípio “nemo plus iuris tranferre potest quam ipse habet” ou “nemo dat quod non habet”. Daqui, da muito limitada possibilidade (para a compra de boa fé a comerciante, valerá aliás o disposto no art. 1301.º; para a aquisição ao herdeiro aparente, cfr. n.º 2 do art. 2076.º) de aquisição bona fide (o direito português estará mesmo numa das extremidades – na oposta encontra-se o direito italiano – do espectro das soluções presentes nos ordenamentos europeus, mas não se deverá esquecer que a protecção da aquisição a non domino se dá em detrimento do verdadeiro titular – como se diz no direito civil ou privado as “contas têm de dar certo”, o que se dá a alguém tira-se ou supõe um sacrifício de outrem –, carecendo de uma espe-cial justificação; sobre isto merece ainda hoje atenção o estudo de Karl Binding, Die Ungerechtigkeit des Eigentums-Erwerbs vom

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7 kleinstmögliche Mass. Kritische Betrachtungen eines Kriminalisten,

Leipzig, 1908), resulta uma relevante “contrariedade” para o adqui-rente (mesmo entrando na posse da coisa), o qual muito dificilmente se pode certificar que adquire realmente, pois, para isso, teria de ter a certeza de estar a adquirir a domino, quer dizer, de quem, por sua vez, adquiriu do verdadeiro proprietário (abstraindo de uma eventual aquisição originária) e não alienou entretanto a um terceiro. Tal difi-culdade (e a incerteza para o tráfico jurídico que daí deriva) está porém nalguma medida atenuada pela previsão de prazos relativa-mente curtos para a aquisição por usucapião e pela possibilidade de acessão na posse anterior (e eventualmente pelas regras de restitui-ção das prestações de um negócio inválido).

Além disso, a inexigência de tradição para a aquisição de propriedade de coisas móveis e a colimação da transferência do risco de pereci-mento ou deterioração da coisa à transferência da propriedade – res

perit domino ou casum sentit creditor (como se indica, dentro do

“sis-tema da unidade”, a regra “res perit domino” vem a coincidir com a regra “res perit creditori”) –, nos termos do n.º 1 do art. 796.º (ver todavia o n.º 2 do mesmo preceito, e, de resto, excepções a tal regra são comuns a outros ordenamentos que adoptam o mesmo princípio – no direito francês, estabelecida no art. 1138 do Code Civil; demais, trata-se de matéria dispositiva), implicam que, muitas vezes, o adquirente suporte tal risco (da contraprestação) conquanto ainda não tenha obtido a coisa.

Ocorre, por último, mencionar que a grande relevância prática do contrato-promessa, tendo por objecto um negócio que importe a transferência de direitos reais, se explica em parte, num semelhante sistema, pela possibilidade que assim se abre de dissociar os efeitos obrigacionais dos efeitos reais (em termos comparatísticos, obser-var-se-á que o mesmo não sucede na Alemanha).

Descrito isto, de maneira porventura demasiado sintética, há agora que indicar terem outras legislações permanecido fiéis à tradição do direito romano em matéria de “transferência” de direitos reais (no direito romano, a modificação subjectiva não se coadunava todavia com a perduração da identidade do direito). Como se sabe, naquele existia uma marcante diversidade entre o contrato, onde se estabele-cia a vontade de atribuir ou adquirir a propriedade, constituindo o título para obter a “transferência”, e os modos pelos quais em con-creto podia ser “transferido” ou atribuído tal direito: a mancipatio, a

in iure cessio e a traditio, acabando esta última por substituir as

pri-meiras no direito justinianeu (a in iure cessio terá desaparecido por desuetudo, a mancipatio foi abolida em 531 – C. 7,31,1,5). Exigindo-se para a “transferência” de direitos reais o título e o modo, a saber: um contrato obrigacional (designadamente, a emptio venditio) con-sensual e um acto ulterior solene (a traditio), que representava o “negócio real” (cfr. C. 2,3,20; I. 2,1,40 e 41; e D. 41,1,36)

Temos assim, por exemplo, para além do caso do direito espanhol que já ficou referido, o direito austríaco (cfr. §§ 423 e ss. ABGB;

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assim também acontecia no Landrecht prussiano, cfr. ALR I, 9, §§ 1, 2 e I, 10 §§ 1,2), onde vigora o “princípio da separação” (note-se que este se combina quase de modo necessário com o “princípio da tradi-ção”, para que os dois negócios se mostrem distintos para o exterior; porém, como se disse, o inverso não é sempre verdade: o princípio da tradição não supõe necessariamente o princípio da separação, entendido este como referido a dois negócios distintos). Requer-se então aí o titulus (negócio obrigacional) e o modus adquirendi

(Über-gabe) para a transferência de direitos reais (“sistema do título e do

modo”, o qual – na formulação corrente e que corresponde àquela que se consolidou com o usus modernus pandectarum, embora pre-nunciada por alguns jurisconsultos humanistas – requer o cúmulo do título e do modo e suporá eventualmente a “sincronia” entre eles). Os efeitos do negócio real (a Übergabe foi inicialmente concebida como um mero “acto real”, mas entretanto impôs-se a concepção, mesmo perante a omissão do ABGB a esse propósito, de que aquela pressu-põe um contrato real ou um acordo dirigido à transmissão da proprie-dade, embora por vezes este seja ficcionado ou presumido e referido a um momento temporal anterior, visto porventura como contempo-râneo do negócio obrigacional ou, no limite, neste contido) pressu-põem todavia a validade do negócio obrigacional (cfr. § 380 ABGB; de maneira semelhante, no direito romano a cisão entre o título e o modo não implicava, pelo menos na traditio, que se prescindisse do título para obter o efeito real: para este era necessário o modo, mas também o título, visto como “justa causa” da atribuição). Falar-se-á então de um “princípio causal” ou “da causalidade” (ou da teoria da “causa subjectiva”).

Princípio que igualmente vigora no actual direito neerlandês (evoluin-do porém (evoluin-do sistema consensual consagra(evoluin-do no Código de 1838), onde, em termos semelhantes, o contrato de compra e venda apenas acarreta efeitos obrigacionais (cfr. Arts. 7:9 I, 1 e 7:26 I BW), ope-rando-se a transferência da propriedade através da levering, com-preendendo esta um ulterior contrato e um “acto material” (de entre-ga), a qual porém se há-de basear num “título eficaz” – “een geldige titel” (cfr. Art. 3:84 I BW).

Recentemente, também o Código Civil brasileiro adoptou tal sistema (melhor, manteve-se fiel à solução do Código de 1916, que aliás vinha já de 1864; de resto, essa é a orientação da generalidade dos países da América do Sul), conferindo-se aí, no Art. 481, à compra e venda efeitos meramente obrigacionais. A aquisição derivada do direito in rem dá-se pela tradição (Arts. 1226 e 1267), para as coisas móveis, ou pelo registo do título translativo (Arts. 1227 e 1245), para os imóveis. Demais, a tradição não transfere a propriedade se tiver por título um negócio nulo (Art. 1268, § 2.º); e também a aquisição pelo registo soçobra se não existir um título “idóneo” ou “válido” (Arts. 1245 e ss.).

Notar-se-á que na generalidade dos sistemas que adoptam o “princí-pio da tradição” (a que sobretudo se assinala a vantagem de tornar

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mais transparente para terceiros a titularidade do bem) se admitem formas da chamada traditio ficta (seja a traditio brevi manu, seja o

constitutum possesorio, seja a traditio longa manu, seja a traditio sine manu) que em boa parte retiram algo do significado prático a tal

sistema (e permitem, afinal, contornar a regra, quase sempre tida por inderrogável, de que a transferência da propriedade supõe a tra-dição). E vale também a pena observar que o risco da insolvência do vendedor (que ainda entregou a coisa) cai em pura lógica, dentro de tal sistema, no comprador, mas por vezes tal regra é atenuada na prática. Por outro lado, como mencionado, dentro do sistema da con-sensualidade tende, em certas circunstâncias, a preservar o vendedor do risco de insolvência do comprador, o que no “sistema da tradição” logo ocorre se a coisa ainda não foi entregue. Serve isto sobretudo para constatar que, em termos de resultado, os dois sistemas apre-sentam assinaláveis convergências.

É todavia concebível que, distinguindo-se entre título e modo (abra-çando-se portanto o “princípio da separação”; dentro do “princípio da unidade” isso não será muito pensável – cfr. porém o que atrás se disse; e o “princípio da abstracção” não é evidentemente aplicável em puros sistemas consensualista), se torne o efeito real ou, mais em geral, a disposição do direito independente do título (da “causa da atribuição” ou “causa traditionis”). Surge-nos agora o “princípio da abstracção” (“em sentido estrito”, na terminologia de K. Larenz). Onde, pode dizer-se, é suficiente o modo – suficiente e necessário (mas viável seria também que bastasse ou o modo ou o título).

Mais em pormenor, será aliás possível distinguir uma “abstracção exterior”, sinónimo da independência do negócio de disposição em relação ao negócio obrigacional, e uma “abstracção interna ou mate-rial” (suscitando esta algumas dúvidas, embora a sua relevância prá-tica seja diminuta) que dispensa as partes de acordarem sobre a fina-lidade ou causa do negócio de atribuição – v.g., o negócio seria válido ainda que uma das partes tenha entregado o dinheiro a “título” de empréstimo e a outra o haja recebido a “título” de doação. Ora, assim se passam as coisas no sistema alemão, sob este aspecto idiossincrá-tico Com efeito, nele a produção do efeito real não depende da exis-tência de um título (válido), mas apenas do acto atributivo e de aqui-sição. Sistema que irradiou porém para o Código grego de 1940, mas apenas quanto às coisas móveis, porquanto a transferência da pro-priedade sobre imóveis supõe um contrato causal – cfr. Arts. 513, 1034 e 1033. No direito civil suíço – que adoptou o princípio da tradi-ção, exigindo a transferência da posse (paralelamente, para as coisas imóveis, requer-se a inscrição no registo, nos termos do 656 ZGB) no Art. 200 aOR, embora, numa “solução de compromisso”, se impuses-se, nos termos do Art. 204, o risco do perecimento da coisa ao adqui-rente logo com a conclusão do contrato, tendo tais soluções transita-do para o Art. 713 ZGB e para o Art. 185 OR – a questão era debati-da quanto às coisas móveis (havendo, de resto, quem negasse e negue a necessidade de um “contrato real” concebido

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autonomamen-10

te em relação à transferência da posse), mas hoje é entendimento quase pacífico que também nesse domínio vale o princípio da causali-dade.

Vejamos com um pouco mais de detalhe o sistema tudesco. Tome-mos um exemplo muito simples: a compra e venda de um jornal e o respectivo cumprimento, envolvendo a transmissão da propriedade. Isto requer, no direito alemão, mesmo que disso normalmente não esteja consciente um leigo (o que, porventura, já não será o caso na transferência de imóveis), três contratos, a que haverá que juntar a entrega do objecto e do preço: a compra e venda (§ 433 BGB), a

Einigung (§ 929 BGB) sobre a transferência da propriedade do jornal

e a Einigung (§ 929 BGB) sobre a transferência da propriedade do dinheiro que constitui o preço.

A compra e venda só produz efeitos ou deveres obrigacionais (cfr. especialmente § 433 I, 1, BGB). Diz-se, por isso, um contrato obriga-cional (Verpflichtungsvertrag) e encontra-se regulada no direito das obrigações (“Buch 2. Recht der Schuldverhältnisse”). E a sua validade não pressupõe, de resto, o “poder de disposição” do vendedor sobre a coisa: a venda de coisa alheia ou futura mostra-se, portanto, válida (como, entre nós, acontece com a promessa de um contrato de transferência de uma coisa não pertencente ao promitente ou ainda não existente). Correspondentemente, a conclusão do contrato de compra e venda não afecta o “poder de disposição” do titular do direi-to (que conserva tal qualidade), podendo este, perfeitamente, trans-mitir a propriedade a terceiro (independentemente, claro, de este último saber do prévio contrato: não há, com efeito, nenhum direito absoluto do primeiro comprador que possa prevalecer).

Já os efeitos reais decorrem da Einigung (cfr. §§ 873 e 929), um segundo acordo, um contrato real (“dingliche Vertrag”), cujo conteú-do é exclusivamente o de que a propriedade se transfira conteú-do vendeconteú-dor para o comprador (de “Minimalkonsens” se fala, por isso). A sua dis-ciplina encontra-se, por consequência, no direito das coisas, Livro III do BGB (o direito das coisas é, como se assinala repetidamente, no direito alemão dominado, para além do princípio da abstracção –

Abs-traktionprinzip –, pelo “princípio da tipicidade” – Typuszwang –, pelo

“princípio da publicidade” – Publizitätsprinzip –, e eventualmente pelo “princípio da determinação” – Bestimmtheitsprinzip), embora também a ela se apliquem os preceitos da Parte Geral, Livro I do BGB (haverá que ter presente que as eventuais exigências de forma são distintas para a compra e venda e para a Einigung, como resulta do confronto do § 311 b I, com os §§ 873, 925, quanto às coisas imóveis, e do §§ 433 e ss. com o § 929 BGB).

Constitui a Einigung um Verfügungsgeschäft, isto é, na definição tra-dicional e consolidada, um negócio através do qual, directamente, se transmite, extingue, onera, ou modifica um direito (note-se que ape-nas a alteração da posição jurídica do inicial titular do direito constitui uma Verfügung; na categoria dos negócios de disposição inclui-se ainda, por exemplo, a cessão de um crédito; note-se ainda que não

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tem forçosamente que se tratar de um contrato, como sucede no caso da derelictio, § 959). Simultaneamente, traduz ela o cumpri-mento (um Erfüllungsgeschäft) da compra e venda. E pressuporá, por princípio, o “poder de disposição” do alienante sobre a coisa (o qual, em regra, mas não de modo necessário, caberá ao titular do direito) e a existência desta (devendo referir-se a um ou vários objectos ou coisas determinados, nos moldes do Bestimmheitsgrundsatz – cfr. § 929 1).

Estando em causa coisas móveis, nos termos do Traditionsprinzip, a

Einigung terá de ser acompanhada da transferência da posse (Über-gabe, § 929, 1; há-de tratar-se da transferência da unmittelbaren Besitz, trata-se por regra de um acto real, como já se assinalou).

Segundo o melhor entendimento, não é imprescindível uma coinci-dência temporal entre a Einigung e a Übergabe, e dever-se-á aceitar a revogação daquela pelas partes até à realização da entrega. Por seu turno, a Übergabe poderá ser substituída por um seu “sucedâneo”, possibilidade que significa, amiúde, uma importante simplificação e agilização do processo de transferência de propriedade.

Assim, a Übereignung terá lugar apenas pela Einigung, quando o adquirente já esteja na posse da coisa, através traditio brevi manu (§ 929 II).

Ou, com mais relevância prática, a aquisição resultará do constitutum

possessorium (§ 930), se se pretende que o antigo proprietário

conti-nue a possuir “directa” ou, porventura, “indirectamente” a coisa. O

Besitzkonstitut constitui uma importante excepção ao “princípio da

publicidade” em matéria de direitos reais, cujos inconvenientes aliás se documentam na Sicherungsübereignung (onde – para fins de garantia, sobretudo no caso de um empréstimo, e na impossibilidade de se recorrer ao penhor, o qual requer a entrega da coisa empenha-da – o devedor, conservando a unmittelbare Besitz, procede à

Übe-reignung de uma coisa ao credor, que se torna “formalmente”

pro-prietário, conquanto apenas mittelbare Besitzer nos termos da

Besitzmittlungsverhältnis convencionada, sendo o “vínculo” entre o

crédito assim garantido e o “negócio real” estabelecido por um “autó-nomo” contrato que regula os direitos e deveres das partes, mormen-te quanto aos mormen-termos da utilização da coisa e ao modo do credor se pagar no caso de incumprimento; é fácil de ver que tal “expediente”, que está nas “franjas” da “fraude à lei” – mas que a jurisprudência tolera dentro dos limites dos “bons costumes”, os quais serão ultra-passados quando exista colusão para prejuízo de terceiros –, implica uma diminuição, não reconhecível, da garantia patrimonial dos futu-ros credores do mesmo devedor). Assim (apontar-se-á ainda que através de um simples constituto possesório não é possível uma aquisição de boa fé, § 833), o Besitzkonstitut não se presume e pre-cisa de corresponder, tomada a lei estritamente, a uma específica

causa detentionis (cfr. contudo § 868, onde se fala também de

“ähn-lichen Verhältnisse”). Porém, tanto ele, como o negócio abstracto sobre a transferência da propriedade, podem ser antecipados.

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Uma outra forma de Übereignung consistirá na cessão da acção de restituição, quando a coisa se encontre na posse de terceiro (§ 931 –

Abtretung des Herausgabeanspruchs). Convém advertir que não está

aqui em causa a cessão da acção real de reivindicação prevista no § 985 (e que não pode ser dissociada da titularidade do direito), mas uma acção de restituição (de carácter obrigacional) dirigida contra o terceiro. A este respeito, assinale-se que o BGB não regula a

Übe-reignung de uma besitzlose Sache, que no entanto se tem

actualmen-te por viável, embora concorram na sua explicação sobretudo duas teorias: segundo uma delas bastaria, nessa hipótese, a Einigung; para outra, tratar-se-ia de uma cessão da futura acção de restituição. Quando respeite a imóveis, a Einigung (o acordo material sobre a transmissão da propriedade) é denominada no § 925 Auflassung e deve ser declarada, na presença simultânea de ambas as partes, perante uma entidade competente – o conservador, o notário ou o juiz (cfr. § 925 e § 873).

A esta há-de associar-se a inscrição (Eintragung) no registo ou livro fundiário (Grundbuch). A Eintragung há-de ser precedida da autoriza-ção do alienante para o efeito (Eintragungsbewilligung – pode aqui falar-se de acordo formal por contraposição à Einigung) preenche agora uma função de publicidade ou notoriedade equivalente, con-quanto mais “forte”, à que a posse realiza para as coisas móveis (e tenha-se em conta a aquisição a non domino de boa fé de quando o alienante está inscrito no registo como titular, valendo a presunção da correcção do conteúdo do registo a favor do adquirente nos ter-mos do § 892 I 1; não importa aqui a Übergabe, na falta de um pre-ceito equivalente ao § 935). Convém notar que a Einigung e a inscri-ção registal têm de coincidir no seu conteúdo – mas não no tempo, sendo até muito frequente um grande desfasamento, sobretudo se houver necessidade de obtenção de uma licença administrativa –, só assim se dando o efeito aquisitivo nos termos do § 873 (o que assu-me importância quando, excepcionalassu-mente, a Einigung seja poste-rior).

O efeito atributivo ou de aquisição não decorre apenas da tradição para as coisas móveis ou da inscrição no registo para as coisas imó-veis, mas supõe ainda a Einigung, o acordo sobre a atribuição e aqui-sição do direito real. Concretamente, sem ter tido lugar a Einigung, uma Eintragung não altera a situação jurídica material (mas produz, claro, uma desconformidade ou inexactidão do registo, rectificável nos termos do § 894), carecendo nesse sentido de efeitos constituti-vos, não conduzindo nomeadamente ao surgimento do direito regis-tado (conquanto assuma significado para a “graduação” de um direito inscrito, cfr. § 879, e sobretudo para a “caracterização” da boa fé, §§ 892 e s.).

Em termos gerais, vê-se pois que o pressuposto da atribuição do direito real consiste (exclusivamente) num Doppeltatbestand: a

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Já atrás se advertiu que a distinção ou separação entre

Verpflich-tungsvertrag e Verfügungsgeschäft (“princípio da separação”) não

significa que, para a produção do efeito real (por virtude deste últi-mo), não seja relevante aquele enquanto título da aquisição do direi-to (e assim sucede, como se referiu, nos sistemas de título e modo, onde vigora o “princípio da causalidade”). De resto, no normal dos casos, a Verfügung ocorre precisamente como cumprimento da sub-jacente, eficaz e válida Verpflichtung (que representa a sua causa, o

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Todavia, o “sistema da abstracção”, levando o “princípio da separa-ção” às últimas consequências, apenas faz depender o efeito real do acto atributivo ou de aquisição. Concretamente, o negócio obrigacio-nal não constitui um pressuposto (de eficácia) da atribuição, revelan-do-se para esse efeito irrelevante. A “insubsistência” (seja inicial, seja adveniente) daquele não afecta o negócio real. Mas, é óbvio, este considerar-se-á nulo ou anulável se padecer, no seu conteúdo e elementos próprios, de uma causa de invalidade (advirta-se porém que, por exemplo, a sua anulação com base num Eigenschaftsirrtum, segundo o § 119 II, não se conceberá). Demais, o facto de o “negócio real” ser inválido ou ineficaz configurará a não realização da obriga-ção de transferir a propriedade e, por essa via, um incumprimento do negócio obrigacional, pelo que imporá, por regra, nova “tentativa” de transmissão da propriedade.

O Abstraktionsprinzip, nos moldes descritos, foi elaborado em primei-ra linha (mas já na sequência da Glosa, sobretudo na interpretação de Donellus; sendo de resto seguido por Pothier, cuja autoridade explicará a relutância inicial ao sistema do Code Civil) por F. C. Savigny (cfr., por exemplo, System…, cit., III, págs. 312 e ss. e 356, e Das Obligationenrecht…, cit., II, págs. 3 e ss. e 256 e ss.). Isso, com base no direito romano. Mas conseguindo-se assim – embora tal não fosse a motivação ou explicação apresentada por Savigny, o qual insistia antes, para além de outras considerações baseadas na sua concepção geral de relação jurídica e de contrato, na ideia de que o erro subjacente à tradito baseada numa causa ineficaz constitui um erro sobre os motivos, tido por irrelevante de acordo com os princí-pios gerais, ditados sobretudo para protecção da contraparte – miti-gar a regra do direito romano antigo nemo dat quod non habet, e portanto a desprotecção do adquirente a non domino de boa fé, adoptada no jus commune germânico (a qual contudo vigora em extensa medida ainda hoje no direito inglês, sem ter aí levado ao afastamento de um sistema no essencial “consensualista”). A influên-cia de Savigny revelar-se-á aliás decisiva na sua adopção no BGB. Criticamente, porém, já Joseph Kohler, Gesammelte Abhandlungen, Mannheim, 1873, págs. 19 e ss.; assinale-se ainda que as tentativas, empreendidas no séc. XIX, por exemplo por J. Unger e F. Hofmann, de “reinterpretar” o sistema do AGBG à luz da construção de Savigny não conheceram à la longue êxito.

Algo ironicamente, mostra-se mais do que incerto que o princípio fos-se, pelo menos na forma em que o apresenta Savigny, conhecido do direito romano clássico (talvez com a excepção da delegatio e, em geral, da admissão de uma causa putativa). Como curioso é que, no direito alemão, a sua vigência ou consagração – bem cimentada, mau grado as muitas críticas de que foi e é alvo – se infira (para além do argumento histórico) do silêncio da lei no § 929 (e nos §§ 398, 873), disposição onde não se alude à compra e venda ou a qualquer outro título para que se dê a transferência da propriedade.

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Num tal sistema, a aquisição independe da boa fé, dando-se, assim, “um passo adicional” em relação à protecção daquela. Inclusive quando o adquirente conhecia a insubsistência do negócio obrigacio-nal (e nessa medida porventura não merecia protecção), a aquisição mantém-se eficaz, e dela se podem prevalecer também os subadqui-rentes (independentemente, claro, da sua boa ou má fé) e os credo-res (por exemplo, no caso de execução forçada ou falência). Isso permite que o adquirente não tenha de se envolver em qualquer indagação sobre a “causa” da aquisição dos anteriores titulares, ao invés do que sucede se se protege “meramente” a boa fé (e ainda que apenas se faça relevar o conhecimento efectivo).

Dito isto, interessa assinalar que, nulo ou anulado o contrato de com-pra e venda (o que, de resto, desencadeia, como entre nós, efeitos retroactivos, mas não interferirá com a validade do negócio de dispo-sição; abstrai-se aqui dos casos de “Doppemangel”), a transferência do direito real permanece incólume, mas o tradens tem à sua disposi-ção a condictio indebiti, uma acdisposi-ção de repetidisposi-ção do indevido (segundo o § 812 I 1 Alt. 1 BGB), com a qual obterá eventualmente a restitui-ção da coisa (e da propriedade sobre esta através de uma “inversa”

Übereignung). Só que, e não é de somenos, tal pretensão tem

natu-reza (meramente) obrigacional, confinada portanto às partes. Mas com uma importante excepção, prevista no § 822, quando o terceiro tenha adquirido a título gratuito título gratuito (a protecção, do subadquirente, quando de boa fé, poderá todavia decorrer das regras da aquisição a non domino), sendo por isso considerado menos digno de protecção – um “eco” de tal disposição encontra-se no n.º 2 do art. 289.º, preceito aliás de difícil compreensão na economia do nos-so sistema. Devendo ainda registar-se a eventual responsabilidade civil em que incorrerá o terceiro adquirente de má fé, nos termos do § 826 BGB.

Assim, o alienante não dispõe da acção de reivindicação prevista no § 985 (note-se que também entre nós se afigura duvidoso se a acção de reivindicação coexiste com a acção de declaração de nulidade ou de anulação com os consequentes efeitos restitutórios, nos termos dos arts. 289.º e s.; demais, em termos funcionais, e porventura no seu fundamento, a norma do art. 289.º não deixa de se aproximar do enriquecimento sem causa, ou até de neste se filiar). Nem lhe é atri-buído – e este aspecto avulta especialmente – um “direito de separa-ção” ou um tratamento privilegiado no processo de falência.

Certo é, porém, que não se prescinde totalmente da consideração do negócio obrigacional (da causa de atribuição): a sua ineficácia não deixa de se repercutir nos efeitos do negócio de aquisição. Ou seja, se este último não tem aquele a sustentá-lo, então entram em jogo as normas do enriquecimento sem causa, impondo uma obrigação de restituição da coisa ou coisas adquiridas e “repondo o equilíbrio jurí-dico-económico”. O significado do “princípio da abstracção” é, assim, obtemperado, nas relações entre as partes, pela aplicação das regras do enriquecimento indevido, nos termos descritos. Nas pitorescas

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palavras de Heinrich Dernburg, Die Schuldverhältnisse nach dem

Rechte des Deutschen Reichs und Preußens, II, Einzelne Obligatio-nen, Halle a.d.S., 1915, pág. 722, o Direito vem desse modo sarar as

feridas por ele próprio infligidas. Todavia, aqui devem ser tidas em conta as “limitações” resultantes das regras do enriquecimento sem causa (mormente, a restituição estará excluída se o alienante conhe-ce a inexistência ou invalidade da causa ou se cumpre uma obrigação natural, segundo o § 814 BGB, se a causa for imoral ou contrária aos bons costumes e o fim assim em vista comum a ambos, adquirente e alienante, nos termos do § 817 2 BGB, e no caso da “Leistung auf Anweisung” apenas pode ser feita valer em relação ao parceiro con-tratual; por outro lado, haverá ainda que tomar em conta as conse-quências – especialmente importantes se o alienante se tornou insol-vente – que decorrem da “Saldotheorie”).

De resto, o significado do princípio da abstracção em relação a “ante-riores” titulares também não deve ser exagerado. Pois, em muitos casos (mas ele não se torna por isso uma superfetação perante as normas da protecção da boa fé), já interviriam as regras da aquisição

a non domino (de não proprietário e, eventualmente, de quem não

tem o poder de disposição sobre a coisa) de boa fé, ou seja, os §§ 932 e ss. (respeitantes, respectivamente, à aquisição de boa fé na “Einigung und Übergabe” – § 932 I, que se refere às hipótese do § 929 I –, no caso de “Übergabe „kurz Hand‟ ” – § 929 I 2 –, na hipóte-se de “Besitzkonstituts” – § 933 – e na circunstância de “Abtretung der Herausgabeanspruch” – § 934). Aí, inclusive, a boa fé presume-se. E só o desconhecimento com culpa grosseira da não titularidade do tradens afasta a aquisição (a aquisição a non domino está ainda arredada se o proprietário foi privado da posse da coisa, excepto tra-tando-se de dinheiro ou títulos ao portador, contra a sua vontade ou conhecimento, cfr. § 935; por outro lado, note-se, há-de tratar-se, embora a lei não faça directamente tal exigência, de um

Verkehrs-geschäft, o que não é nomeadamente o caso quando existe uma

“identidade” entre o alienante e o adquirente). Já nos termos dos §§ 892 e s. e § 2366, só o conhecimento efectivo da inexactidão do registo ou do “Erbschein” preclude a aquisição, em consonância com o “princípio da fé pública” registal e da situação do aparente herdeiro. Note-se que ao titular inicial do direito caberá, também aqui, o recur-so às regras do enriquecimento sem causa, estando o não legitimado obrigado a restituir aquilo que tenha obtido por virtude da disposição (cfr. § 816; preceito que aliás estende tal obrigação de restituição ao adquirente a título gratuito, intervindo aqui, enquanto a aquisição boa fé não tem afinal precedência sobre o verdadeira titularidade, igual-mente a ideia do menor “merecimento” de tal tipo de aquisição). Assinalar-se-á ainda, a latere, que difíceis problemas de coordenação entre o princípio da abstracção e a aquisição a non domino se colo-cam no caso de “reaquisição” pelo Nichtberechtigten.

Do que antecede resulta que o princípio da abstracção conhece um campo de aplicação privilegiado onde não existem (de todo ou quase)

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normas de protecção da aquisição a non domino. Como sucede para os direitos de crédito (aqui, contudo, não se deparará com muita fre-quência com uma “cadeia de cessões”) e das aquisições não-negociais. Mas, neste contexto, deve ainda salientar-se a protec-ção geral, por seu intermédio, concedida aos credores do adquirente (e dos subadquirentes), a qual não se alcança com as disposições de protecção da boa fé.

O princípio da abstracção experimenta porém desvios ou quebras. Desde logo, se os dois negócios, o obrigacional e o de disposição, enfermam do mesmo vício (“Fehleridentität”). Mais precisamente, o que está em causa são hipóteses como a da contrariedade do negócio obrigacional a uma disposição legal imperativa, nos termos do § 134, e aos “bons costumes”, segundo o § 138 (onde se inclui, de resto, o negócio usurário). Perguntando-se se isso se repercute no negócio de disposição, sendo então este por igual razão nulo. Conquanto muitas vezes se enfatize o carácter “neutro” (“sittlich-, wert- oder motivneu-tral”) da Verfügung, e se aponte na doutrina a insegurança que pode advir da extensão a esta do juízo de contrariedade aos “bons costu-mes” (a Verfügung só se deveria ter por ineficaz se desse modo se evitasse um prejuízo “reprovável” de terceiro, por exemplo um credor do alienante; cfr., a este propósito, o caso de alienação sucessiva de um imóvel onde funcionava um bordel, decidido – embora ainda segundo o ALR e não o BGB, conquanto o tribunal tenha transposto para aquele o princípio da abstracção – pelo RG, RGZ, 75, págs. 63 e ss.). Mesmo assim, embora porventura em função das especiais cir-cunstâncias, a “doutrina da identidade dos vícios” foi acolhida pelo BGH (BGHZ, 36, págs. 395 e ss.) num caso cuja factualidade era a seguinte: o Conselho Municipal de Colónia tinha oferecido ilegalmen-te, durante o período nazi, um quadro de Lucas Cranach a uma filha de Hermann Göring; esta recusou-se, finda a guerra, a devolver o quadro, invocando que a transmissão da propriedade era válida ape-sar da nulidade do negócio causal; o doador não podia aqui lançar mão do enriquecimento sem causa, pois também ele próprio tinha violado a lei (cfr. § 817, 2, BGB).

Por outro lado, em certas situações, aceita-se que a invalidade do negócio obrigacional se projecte no negócio de disposição pela consi-deração da unidade (material) que ambos possam constituir nos ter-mos do § 139 (com base numa objecktive Sinnzusammenhang, ou, de modo mais exigente, requerendo-se uma Einheitswille das partes; tenha-se em conta que, tal como no direito português, como regra, um negócio só não será reduzido se se mostrar que não seria con-cluído sem a “parte” viciada). Mas a jurisprudência e a doutrina são aqui extremamente circunspectas (ou mesmo adversas à “fusão” do negócio obrigacional com o de disposição), temendo estarem a pôr em causa o próprio “princípio da separação”. Conquanto, de iure

con-dendo, há quem proponha a “repercussão”, invariavelmente, dos

vícios do negócio obrigacional no negócio de disposição (assim, van Vliet, numa solução de compromisso entre o “sistema causal” e o

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“sistema da abstracção, numa concepção que denomina teoria do

animus).

Finalmente, aluda-se à possibilidade de as partes condicionarem de modo expresso ou tácito a eficácia do negócio real à do negócio obri-gacional. Aliás, o próprio BGB estabelece uma tal conexão, através de uma condição, na venda de coisa móvel com reserva de propriedade para garantia do pagamento do preço: aí, segundo o § 449 I BGB (antigo § 455), na dúvida, como regra interpretativa, admitir-se-á que a coisa foi “übereignet” sob condição suspensiva do pagamento integral do preço (mas já não, no entendimento mais generalizado, da eficácia ou validade da obrigação de o pagar). Através da estipula-ção (ou determinaestipula-ção legal) de uma tal condiestipula-ção (há porém “negó-cios reais” que não consentem a aposição de uma condição – cfr., por exemplo, § 925 II BGB), o “princípio da abstracção” convola-se no “princípio causal”, quando menos institui-se uma “causalidade exter-na”.

Contudo, uma parcela da doutrina só aceita, sobretudo tratando-se de uma estipulação tácita da condição (um exemplo, muitas vezes dado, é o do vendedor que transfere os bens perante o pagamento em contado, onde se pressuporia que o dinheiro entregue não é fal-so) – de resto, estamos agora perante uma “condição imprópria” –, a possibilidade de as partes fazerem depender a eficácia do negócio de disposição da eficácia do negócio obrigacional quando elas estiverem em dúvida sobre a validade deste último. No entanto, aí a realização do Verfügungsgeschäft, sem a aposição expressa de uma tal condi-ção, representará por regra uma confirmacondi-ção, nos termos do § 144 BGB, do negócio obrigacional.

O “princípio da abstracção” tem sido submetido a várias críticas (des-de sempre – já durante os trabalhos preparatórios do BGB, bastando recordar as duras observações de um autor da estatura de Otto von Gierke –, mas mais recentemente a discussão reacendeu-se, quer aquando da reunificação da Alemanha, pois a DDR abandonara o “princípio da abstracção” – cfr. §§ 25, 26 e 139 ZGB –, quer à volta dos propósitos unificadores do direito privado europeu). Desde logo, aponta-se ser a protecção de terceiros adquirentes (a expensas do alienante primitivo) levada longe de mais, porque se desinteressa do merecimento da respectiva posição: eles serão protegidos se adquiri-ram a título oneroso, independentemente da sua boa fé (porventura nos limites do dolo, que permitirá ao transmitente anular a

Übereig-nung com base no § 123 BGB). Claro que, se apenas se quer

estrita-mente proteger a boa fé, a via para alcançar tal desiderato não pas-sará pelo “princípio da abstracção”.

Por outro lado, como já se fez notar, revelando-se o negócio obriga-cional inválido, o alienante só pode socorrer-se do enriquecimento sem causa para se fazer restituir da coisa alienada. E assim concorre com os (demais) credores do adquirente (mormente no caso de insolvência do devedor; mas mesmo nos sistemas causais a possibili-dade de “separação” da coisa, inválido o negócio, conhece muitas

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vezes limitações, e poderá não parecer justificado um tratamento pri-vilegiado daqueles credores que prestaram “sem causa” uma coisa que agora têm “a sorte” de ainda encontrarem na massa falida). Em todo o caso, o transmitente, quando tenha recebido o preço (ou em geral a contraprestação; e, por norma, não estará ele obrigado a cumprir antecipadamente), poderá invocar a Saldotheorie, se a resti-tuição daquele lhe for exigida (entre nós, cfr. o art. 290.º, regendo-se as obrigações de restituição que incumbam às partes por virtude da invalidação do negócio pelas normas relativas à excepção do não cumprimento (a qual será mesmo invocável perante terceiros). Deve-rá ainda ponderar-se que os (demais) credores do adquirente confia-rão muitas vezes justificadamente em que o bem em causa ingressou no património daquele.

E argumentar-se-á que à dificuldade experimentada pelo alienante (vendedor) está, inclusive nos sistemas que não seguem o “princípio da abstracção”, igualmente sujeito o comprador quanto ao dinheiro pago. Tal “argumento de simetria” claudicará porém quando o ven-dedor aliena a coisa a crédito (mas aí ele poderá reservar-se a pro-priedade).

Também se sustenta representar o “princípio da abstracção” um “objecto estranho”, “um corpo espúrio”, distante da concepção cor-rente e própria da vida de todos os dias, só acessível a juristas e incompreensível para os “leigos”, decompondo um fenómeno unitário numa pluralidade de actos. Houve mesmo quem o tenha apodado de um “blutlose Gebilde”, e uma “doktrinäre Vergewältigung des Lebens”. E faz-se valer que ele contraria a vontade hipotética das partes, as quais geralmente quererão fazer depender a transferência da propriedade da validade e eficácia da obrigação com esse conteú-do previamente constituída (mas, por outro laconteú-do, não se deixa de apontar que normalmente o vendedor só quererá transmitir a pro-priedade sobre a coisa quando receba o correspondente preço). Seja como for, conforme já se fez notar, a decisão da lei cede perante uma expressa vontade nesse sentido.

Mas não faltam vozes mantendo a valia da “ideia da abstracção”. Como se deu a entender, esta tem por trás de si a ideia da protecção do tráfico jurídico, ao possibilitar que os terceiros se possam desinte-ressar (em absoluto) das contingências atinentes ao negócio obriga-cional (o que de algum modo corresponderá ao princípio da relativi-dade das relações obrigacionais), tendo apenas que se preocupar com o negócio de disposição. Na intenção do legislador alemão, quer-se proteger (para além da protecção concedida pela tutela da boa fé), numa cadeia de aquisições derivadas, os subadquirentes (e os credo-res do primeiro adquirente). Os quais estarão eximidos de qualquer indagação sobre a validade do contrato (obrigacional, mormente de compra e venda) ou, em geral, sobre o facto jurídico com base no qual aquele adquiriu (derivadamente) a coisa (em rigor, está até em causa toda a cadeia de transmissões que sustenta a titularidade do alienante; entre nós, como se sabe, a “prova definitiva” da

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dade supõe o estabelecimento de tal cadeia e da validade dos vários elos, ou a verificação de uma aquisição originária, como muitas vezes na prática sucede, dada precisamente a dificuldade de tal prova). Acresce que, desse modo, também se evitará, de raiz, que o adqui-rente se veja envolvido numa discussão ou litígio – suscitado por um “terceiro”, nomeadamente o primitivo titular – sobre a sua relação obrigacional (sobre a “consistência” desta, que num sistema causal se repercutiria na aquisição do direito real) com o “transmitente”.

Nesta medida, repete-se, o carácter abstracto do negócio de atribui-ção serve a segurança e a clareza do tráfico jurídico (negocial), tor-nando-o simples e fluído (propósito claro no caso da consagração, indisputada na generalidade das ordens jurídicas, da abstracção no domínio dos títulos de crédito).

Demais, no domínio dos bens sujeitos a registo, a “asseveração” da titularidade do direito a favor da pessoa em cujo nome o bem está inscrito assume um significado muito mais “forte” (não o de uma mera presunção ilidível de titularidade, susceptível de ser destruída pela invalidade, por exemplo, de uma das compras e vendas anterio-res na cadeia aquisitiva do actual alienante, como entre nós sucede; assinale-se todavia que, na nossa opinião, o nosso sistema registal não consente uma “discussão” sobre a boa ou má fé do adquirente, perante factos não registados). O que propiciará em maior medida a “mobilização do valor do imóvel”, designadamente da sua função como garantia real.

Porventura, o “princípio da abstracção” favorece ainda o próprio alie-nante, enquanto este até à realização do negócio de disposição e do correspondente “acto material” (entrega da coisa ou inscrição no registo) permanecerá proprietário (evitando uma eventual “distorção” do sinalagma funcional se o preço não tiver ainda sido pago).

Aparece também referida a vantagem, assim conseguida, de mais facilmente se conceber a “reserva de propriedade” (na transferência de bens móveis, pois a Auflassung não pode ser sujeita a condição ou termo, segundo o § 925 II BGB, conquanto se adopte a prática de o notário, como mandatário das partes, apenas requerer o registo da aquisição quando o adquirente, por regra protegido por uma

Vorbe-merkung, deposita o preço da venda numa “conta cativa”). O negócio

obrigacional não seria condicionado, mas apenas o estaria (suspensi-vamente, dependendo do pagamento integral do preço) o negócio real (conforme decorre do § 449 I BGB; no texto, por simplicidade, não consideramos, nem para o direito alemão, nem para os outros ordenamentos, senão a “reserva simples de propriedade”, deixando de lado a “verlängerter Eigentumsvorbehalt” e a “erweiterter Eigen-tumsvorbehalt”).

Muitas vezes, toma-se como termo de comparação o direito francês, aduzindo-se o facto de, em 1980 (L. 80-335, 12/5/1980; a solução aí consagrada foi retomada em 1985 e, generalizada, em 2006 – cfr. actual art. 2367 do Code Civil: “La propriété d'un bien peut être rete-nue en garantie par l'effet d'une clause de réserve de propriété qui

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suspend l'effet translatif d'un contrat jusqu'au complet paiement de l'obligation qui en constitue la contrepartie”), o legislador ter sentido necessidade de intervir, prevendo a reserva de propriedade na com-pra e venda de bens móveis (não sujeitos a registo) para subtrair estes ao alcance da execução dos credores do comprador no processo de insolvência (notar-se-á todavia que entre nós, no domínio do Código de Seabra, onde a figura da reserva de propriedade não tinha consagração jurídico-positiva, ela foi admitida sem dificuldades). Mas trata-se em rigor da questão da “projecção para o exterior” da cláu-sula de reserva de propriedade, cuja validade era de há muito reco-nhecida (de resto, parece aqui estar em causa mais o “princípio da separação” do que o “princípio da abstracção”; a separação entre os dois negócios, obrigacional e real, também ressalta no caso em que a transferência de propriedade não assenta numa relação causal entre o transmitente e o adquirente – por exemplo, A vende a B uma coisa, este vende-a depois a C, e convenciona com A que transfira a pro-priedade sobre ela directamente para C –, e no caso da “treuhände-rieschen Rechtsübertragung”).

Entre nós, ressalta até, embora em consonância com a não adopção do princípio “posse vale título”, que o pactum reservati dominii (inci-dindo sobre coisas móveis não sujeitas a registo, sem necessidade de qualquer formalidade especial; já no caso de imóveis ou móveis sujeitos a registo, o pacto carece, claro, de ser registado) não encon-tra, segundo a opinião de longe maioritária, qualquer limitação na protecção de terceiros (no que se pode ver uma excepção ao disposto do art. 435.º, n.º 1), credores ou mesmo subadquirentes do compra-dor (de modo diferente do que se passa no direito alemão, mas aí por força do § 932 BGB, embora o entendimento da boa fé requerida para o efeito seja particularmente rigoroso). Exceptue-se todavia, no caso de declaração de insolvência do comprador, a exigência da esti-pulação por escrito da cláusula de reserva de propriedade, anterior à entrega da coisa, segundo o art. 104.º, n.º 4, do CIRE. O direito do vendedor à separação da coisa, no caso da recusa de cumprimento pelo administrador, está expressamente ressalvado no art. 102.º, n.º 3, CIRE, para o qual remete o art. 104.º, n.º 5, do mesmo diploma. Quanto à oponibilidade da posição do comprador aos credores e adquirentes do vendedor, e apesar de este continuar a ser proprietá-rio do bem, aqueles ver-se-ão preteridos a favor do (futuro) adqui-rente (na Alemanha, a protecção de terceiros alcança-se pelo regime da condição suspensiva resultante do § 161 BGB – e mesmo desa-tendendo ao disposto no § 161 III, por via da aplicação do § 936 – e da protecção da sua posse segundo o § 986 II). Mas, no caso de insolvência do vendedor, somente se a coisa houver sido entregue à outra parte, como resulta do art. 104.º, n.º 1, CIRE; doutro modo, poderá o administrador recusar o cumprimento, tendo o comprador um mero direito de crédito sobre a massa insolvente, nos termos do art. 104.º, n.º 5, CIRE.

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O que, em termos teóricos, poderá levantar alguma dificuldade (e leva mesmo certos autores a ver na compra e venda com reserva de propriedade como um tipo especial de compra e venda ou a entender a regra do art. 408.º, n.º 1, como meramente supletiva) é o facto de, nos sistemas que seguem o “princípio da consensualidade”, a condi-ção (suspensiva; ou mesmo termo) aposta ao negócio de transferên-cia – para referir a posição tradicional, mas não unânime, da nossa doutrina quanto à configuração dogmática da reserva de propriedade – não implicar a subordinação global dos efeitos do negócio ao evento condicionante, mas apenas de um singular ou parcial efeito, o da transferência da propriedade (sem querer ocultar as hesitações que também se podem colocar quanto a saber, no caso em que os efeitos do negócio no seu todo estão condicionados, se a ocorrência da con-dição suspensiva pertence à própria facti species do negócio, a este enquanto acto, ou se ao invés o negócio já se deve considerar perfei-to), sendo, ademais, o evento condicionante aí o cumprimento de uma obrigação principal do contrato, a obrigação de pagamento do preço. A qualificação da reserva de propriedade como uma condição suspensiva depara ainda com o inconveniente de porventura sugerir a aplicação do regime do art. 796.º, n.º 3, parte final, que parece aqui pouco adequado (menos peso terá o reparo de que a verificação da condição não desenvolverá porventura efeitos retroactivos, pois o próprio art. 276.º permite que as partes derroguem a regra da “retroactividade da condição”). Seja como for, a posição do compra-dor é, entre nós, quase pacificamente vista como uma “expectativa com eficácia real”, ou “uma propriedade condicional” ou mesmo um direito real (eventualmente susceptível de ser objecto de penhora; e oponível portanto a terceiros, como já disse, sendo ainda que – mas trata-se, claro, de um aspecto diferente, aliás também relativamente pacífico entre nós, como se aludiu – o direito do vendedor considera-se oponível, no caso de resolução do contrato, mormente pelo não pagamento do preço, a terceiros “adquirentes” ou credores do com-prador).

Repare-se, todavia, que tão-pouco na Alemanha, e apesar da disposi-ção do § 449 I (antigo § 455) BGB, a natureza jurídica da venda com reserva de propriedade se mostra absolutamente incontroversa, encontrando-se autores que perfilham a tese da condição resolutiva (como, por exemplo, logo B. Windscheid, embora a sua posição remonte a momento anterior à entrada em vigor do BGB; indique-se, mais recentemente, A. Blomeyer), outros que defendem uma eficácia translativa imediata, acoplada (onerada) ao reconhecimento ao ven-dedor de uma posição, com eficácia real, uma espécie de

(Ver-falls)Pfandrechts, um penhor sem posse, que lhe permite reaver o

bem no caso de não pagamento do preço (assim Blomeyer; que o efeito económico equivale ao de um penhor sem posse com intuito de garantia não é hoje posto em dúvida, persistindo a discussão porém se desse modo se pode enquadrar dogmática tal situação sem forçar os dados legais, nomeadamente os §§ 449 I e 158, e a

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