UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
JOANA DE SÃO PEDRO
LÍNGUA INGLESA, TRANSCULTURALIDADE E
TRANSDISCIPLINARIDADE NO ENSINO FUNDAMENTAL I:
PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES DOCENTES.
CAMPINAS,
2016
JOANA DE SÃO PEDRO
LÍNGUA INGLESA, TRANSCULTURALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE NO ENSINO FUNDAMENTAL I: PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES DOCENTES.
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de doutora em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Sociedade.
Orientadora: Professora Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha
Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Joana de São Pedro e orientada pela Profa. Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha. CAMPINAS, 2016
Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
São Pedro, Joana de,
Sa63L S_eLíngua inglesa, transculturalidade e transdisciplinaridade no ensino
fundamental I : percursos e representações docentes / Joana de São Pedro. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.
S_eOrientador: Cláudia Hilsdorf Rocha.
S_eTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
S_e1. Língua inglesa - Estudo e ensino (Ensino fundamental) - Falantes de português. 2. Professores de inglês- Formação. 3. Estudos interculturais. 4. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. I. Rocha, Claudia Hilsdorf,1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: English language, transculturality and transdisciplinarity in early elementary school: : teaching routes and representations
Palavras-chave em inglês:
English language - Study and teaching (Elementary) - Portuguese speakers English teachers - In-service training
Cross-cultural studies
Interdisciplinary approach to knowledge
Área de concentração: Linguagem e Sociedade Titulação: Doutora em Linguística Aplicada Banca examinadora:
Cláudia Hilsdorf Rocha [Orientador] Denise Bértoli Braga
Fernanda Coelho Liberali Guilherme Jotto Kawachi
Sandra Regina Bruttos Gattolin de Paula Data de defesa: 19-12-2016
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada
Denise Bértoli Braga
Guilherme Jotto Kawachi
Sandra Regina Buttros Gattolin de Paula
Fernanda Coelho Liberali
Cyntia Belgini Andretta
Érica Luciene Alves de Lima
Maria Rita Salzano Moraes
IEL/UNICAMP 2016
Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a Deus, fonte inesgotável de vida, força, esperança, vitória, coragem e, principalmente, amor durante os anos deste trabalho.
Agradeço aos meus pais, Manuel e Márcia, por terem me encorajado em todos os momentos, terem me inspirado, terem me levantado nos momentos de desânimo, terem rezado sempre por mim.
Agradeço ao meu irmão, Tobias, pelas conversas virtuais de todos os dias, filosofando sobre a vida e sobre quem somos.
Agradeço ao meu companheiro, Daniel, pela admiração, por acreditar em mim, por sempre me fazer rir e ter renunciado ao tempo em que gostaria de estar comigo para que esta tese se tornasse realidade.
Agradeço à minha orientadora professora Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha pela sua presença marcante ao longo de meu processo, pela sua constante disponibilidade para orientar, por me mostrar o caminho da profundidade das leituras e análises e por acolher meu trabalho em meio a tantos deslocamentos de um olhar teórico para outro.
Agradeço à professora Dra. Maria Rita Salzano por ter sido minha primeira orientadora de doutorado, ter me conduzido nos primeiros passos no programa e, especialmente, ter me ajudado a perceber a pesquisa que realmente estava no meu âmago.
Agradeço imensamente à professora-participante deste estudo pela sua generosidade, pela sua prontidão em ajudar e pelos olhares que pude ressignificar a partir de suas aulas e das conversas que tivemos nas entrevistas semiestruturadas.
Agradeço às queridas amigas com quem tenho certeza de que posso contar sempre pelos encontros restauradores, presenciais, virtuais e com café.
Agradeço aos meus padrinhos Toninho e Lídia e meu primo Daniel por marcarem presença nessa trajetória.
Agradeço à tia Ema por ser um presente que nos ensina tanto sobre a vida.
Agradeço à existência do Scott e da Mel, nossos poodles, pela presença que sempre acalma e reconstrói a infância.
Agradeço às crianças pela força restauradora de vida que me transmitem.
Agradeço às professoras Dra Fernanda Coelho Liberali e Dra. Sandra Regina Bruttos Gattolin de Paula pelas contribuições inestimáveis na banca de qualificação da tese.
Agradeço à professora Dra. Elisabete Matallo Marchesini de Pádua pela leitura atenta e avaliação de meu artigo de qualificação fora de área.
Agradeço à professora Me. Karina Vicentin pela leitura da análise dos dados e suas contribuições.
Agradeço aos professores Dra. Fernada Coelho Liberali, Dra. Sandra Regina Bruttos Gattolin de Paula, Dra Denise Bértoli Braga e Dr. Guilherme Jotto Kawachi, que participaram da banca de defesa, pelas contribuições extremamente relevantes.
Agradeço às professoras Dra. Cyntia Belgini Andretta, Dra. Érica Luciene Alves de Lima e Dra. Maria Rita Salzano Moraes, que generosamente aceitaram compor a banca suplente.
Agradeço aos meus superiores e aos meus colegas de trabalho pela constante colaboração.
Agradeço aos meus queridos alunos por serem grande inspiração para minha caminhada.
RESUMO: O presente estudo de doutorado tem por objetivo investigar as bases e
oportunidades para um trabalho de natureza transdisciplinar, bem como as visões acerca de língua inglesa e cultura que circulam nas aulas de uma professora de inglês no ensino fundamental I (EFI) e a relação dessas visões diante de uma orientação formativa e crítica no ensino de línguas. Este trabalho se justifica no contexto atual de ensino, visto que há uma lacuna na formação de professores de inglês para o EFI não contemplada pelos cursos de Letras ou de Pedagogia (GIMENEZ, 2013). Em termos de teorização, apoio-me em Bakhtin/Volochinov (2014[1929]) para pensar uma visão de língua a partir do dialogismo;; na prática translíngue proposta por Canagarajah (2013) para questionar visões monolíticas de língua inglesa e na pedagogia do translinguismo para a prática de sala de aula (GARCÍA;; WEI, 2014);; em Bhaba (1994), Kostogriz (2005), Kramsch (2009), Widin e Yasukawa (2013), Cox;; Assis-Peterson (2007) e Maher (2007) para pensar a inter/transculturalidade. Com relação ao perfil da criança do fundamental I, recorro a Vygotsky (1978), trazendo uma visão sócio-histórico cultural, a qual condiz com o dialogismo bakhtiniano, na leitura de Mateus (2006), Magalhães (2009), Newman;; Holzman (2002), entre outros. No que diz respeito à transdisciplinaridade, trago as definições de Nicolescu (1999);; Moraes (2015);; Libâneo (2010) e Santos (2010). A fim de que o ensino de inglês para o fundamental I seja pensado sobre bases de formação crítica, ética e cidadã, apoio-me em Winograd (2015), Rocha (2012), Liberali (2012);; Menezes de Souza (2011) e Monte Mór;; Menezes de Souza (2006). Quanto à metodologia, configura-se como um estudo de caso (YIN, 2010) de uma única professora de uma escola particular do interior do estado de São Paulo. Para a geração de dados, foram observadas vinte e cinco aulas de segundo a quinto ano de EFI, as quais não foram gravadas a pedido da instituição em que ocorreu a pesquisa. Ao longo desse processo, houve seis momentos de entrevistas semiestruturadas (LÜDKE;; ANDRÉ, 1986) com a professora-participante, fonte secundária de dados para apoiar a análise das aulas. A análise propriamente dita se deu por meio da recontextualização das propostas de Smyth (1989, 1992) e de Liberali (2004, 2012) de descrever as aulas, informar em quais bases teóricas se constituíram, confrontar com os valores veiculados pela professora-participante nas entrevistas, com as teorias defendidas nesse estudo e reconstruir perspectivas e minha própria prática de formadora de professores. Durante e após a análise das aulas observadas em interlocução com as entrevistas semiestruturadas, procurei propor olhares plurais para as práticas. Desse modo, exemplos concretos para a sala de aula vão sendo construídos ao longo das análises. E, em seguida, apresento propostas embasadas na transdisciplinaridade, no translinguismo e na transculturalidade, para o ensino e a aprendizagem de inglês no EFI. Tais propostas configuram-se como roteiros abertos e não modelos engessados e podem vir a ganhar vida em minha própria prática de formadora ou na sala de aula de outros professores de língua inglesa no contexto de EFI.
Palavras-chave: língua inglesa;; transculturalidade;; transdisciplinaridade;; ensino
ABSTRACT: This doctoral research aims at investigating grounds and opportunities
for transdisciplinarity as well as views towards language and culture in English teaching in early elementary school as well as the relations of those views towards critical language education. This work is justified by the demand for English teacher education for early elementary school not contemplated by undergraduate language courses nor by pedagogy courses (GIMENEZ, 2013). Concerning theoretical background, Bakhtin/Volochinov (2014[1929]) is brought to think about language from the dialogism perspective;; this work also presents translingual practice studied by Canagarajah (2013) to question monolithic views towards English and translanguaging as pedagogical practice (GARCÍA;; WEI, 2014). In respect of children’s profile understanding about Young Learnes, it is based on Vygotsky’s (1978) social-historical cultural approach which complies with Bakhtinian dialogism as it is explained by Mateus (2006), Magalhães (2009), Newman;; Holzman (2002), among others. In terms of interculturality and transculturality, it gathers ideas from Bhaba (1994), Kostogriz (2005), Kramsch (2009), Widin;; Yasukawa (2013), Cox;; Assis-Peterson (2007) and Maher (2007). In regard to transdisciplinarity, concepts are presented by Nicolescu (1999);; Moraes (2015);; Libâneo (2010) and Santos (2010). To think about English teaching in early elementary school from a critical, ethical and citzen-oriented perspective, Winograd (2015), Rocha (2012), Liberali (2012);; Menezes de Souza (2011) and Monte Mór;; Menezes de Souza (2006) provide support. Hence, this is a case study (YIN, 2010) of a single teacher in a private school in the countryside of São Paulo state. In order to collect data, twenty- five classes from second to fifth year of early elementary school were observed, but not recorded in response to the school’s request. Later on, there were six moments for semi-structured interviews with the teacher (LÜDKE;; ANDRÉ, 1986), used as a secondary source of data to support the analysis of the classes. Data analysis happened through recontextualization of Smyth’s (1989, 1992) and Liberali’s proposals (LIBERALI, 2004, 2012) to describe the lessons, to inform their theoretical basis, to confront them with teacher’s values from interviews and theories adopted in this study and to reconstruct this researcher’s perspectives as a teacher educator for English teaching in early elementary school. During and after analysis of observed lessons, interconnected with semi-structured interviews, plural ways to conduct practice are proposed. Thus, concrete examples for the language classroom are constructed throughout the analysis. Later, proposals based on transdisciplinarity, translanguaging and transculturality are presented for English teaching and learning in early elementary school. Those proposals intend to be open guidelines so they are not strict models to be followed. They are meant to become alive in this researcher’s teacher education practice and also in other English teachers’ practice in the context of early elementary school.
Key words: English;; transculturality;; transdisciplinarity;; early elementary school.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Matriz geradora de finalidades educativas ... 100
Figura 2: Lousa da professora-participante – ingredientes da salada de frutas. .... 134
Figura 3: Rio e cidade ... 211
Figura 4: Fauna artística ... 215
Figura 5: Veselé Vánoce! ... 219
Figura 6: Hungry Princesses ... 222
Figura 7: Exemplo de um livro-objeto ... 225
Figura 8: Notas musicais - coleção ... 227
Figura 9: Exemplo de poesia de blecaute ... 229
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Língua e cultura ... 80
Quadro 2: Participação cívica da criança do EFI por meio da língua inglesa ... 82
Quadro 3: Características da nova aprendizagem ... 87
Quadro 4: Visões de ensino e aprendizagem ... 101
Quadro 5: Panorama das aulas observadas e entrevistas semiestruturadas ... 115
Quadro 6: Resumo das aulas selecionadas para análise ... 117
Quadro 7: Categorias de análise de dados ... 123
Quadro 8: Esquema de macro-categorias e categorias para análise dos dados .... 129
Quadro 9: Conteúdos da aula analisada do segundo ano ... 131
Quadro 10: Conteúdos da aula analisada do terceiro ano ... 156
Quadro 11: Conteúdos da aula analisada do quarto ano ... 172
Quadro 12: Conteúdos da aula analisada do quinto ano ... 189
Quadro 13: Elementos da proposta 1 ... 211
Quadro 14: Aspectos culturais e transdisciplinares integrados à aprendizagem de língua inglesa para crianças referentes à proposta 1 ... 214
Quadro 15: Elementos da proposta 2 ... 214
Quadro 16: Aspectos culturais e transdisciplinares integrados à aprendizagem de língua inglesa para crianças referentes à proposta 2 ... 218
Quadro 17: Elementos da proposta 3 ... 219
Quadro 18: Aspectos culturais e transdisciplinares integrados à aprendizagem de língua inglesa para crianças referentes à proposta 3 ... 221
Quadro 19: Elementos da proposta 4 ... 222
Quadro 20: Aspectos culturais e transdisciplinares integrados à aprendizagem de língua inglesa para crianças referentes à proposta 4 ... 226
Quadro 21: Elementos da proposta 5 ... 226
Quadro 22: Aspectos culturais e transdisciplinares integrados à aprendizagem de língua inglesa para crianças referentes à proposta 5 ... 230
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ... 14
1. Expandindo reflexões sobre as motivações da pesquisa ... 23
2. Organização da Tese ... 27
CAPÍTULO I - TRANSLINGUISMO E TRANSCULTURALIDADE: ARTICULAÇÕES PARA PENSAR A FORMAÇÃO DA CRIANÇA POR MEIO DA LÍNGUA INGLESA NO EFI ... 29
1. Um breve panorama de diferentes orientações teóricas sobre o ensino/aprendizagem de LE ... 30
2. O olhar bakhtiniano para língua e suas implicações para o ensino de LI no EFI ... 38
2.1 Interlocuções entre Bakhtin e Vygotsky: uma perspectiva sócio-histórico- cultural de língua/linguagem ... 45
2.1.1 Uma perspectiva sócio-histórico-cultural para olhar a criança no EFI .. 48
2.1.1.1 Integração entre língua materna e estrangeira em uma perspectiva sócio-histórico-cultural ... 56
3. Problematizando perspectivas sobre língua inglesa e cultura: rumo ao translinguismo ... 59
4. Língua, cultura e relações de transculturalidade ... 68
CAPÍTULO II - A FORMAÇÃO DA CRIANÇA: UMA VISÃO CRÍTICA DA APRENDIZAGEM DE LI NO EFI E A TRANSDISCIPLINARIDADE ... 81
1. A formação da criança: contribuições do letramento crítico e dos multiletramentos ... 82
2. A formação da criança sob a visão transdisciplinar ... 91
CAPÍTULO III - METODOLOGIA ... 103
1. Uma pesquisa qualitativa de referencial crítico ... 103
1.1 Estudo de Caso ... 106
1.1.1 Observação de Aulas ... 108
1.1.2 Entrevistas semiestruturadas ... 109
1.2 Contexto de pesquisa e procedimentos de geração de dados ... 110
1.2.1 Quem é a professora e como é a escola? ... 110
1.2.2 Geração de dados: Observação de aulas e entrevistas semiestruturadas ... 111
1.3 Procedimentos para interpretação dos dados ... 117
CAPÍTULO IV - FOCALIZANDO LÍNGUA INGLESA, CULTURA E TRANSDISCIPLINARIDADE E FORMAÇÃO CRÍTICA E CIDADÃ NA SALA DE AULA DE EFI ... 126
1. Análise da aula do segundo ano em interlocução com as entrevistas ... 131
2. Análise da aula do terceiro ano em interlocução com as entrevistas ... 155
3. Análise da aula do quarto ano em interlocução com as entrevistas ... 171
CAPÍTULO V - DESEJÁVEL É. É POSSÍVEL? ... 202
Proposta 1 - Tema: Natureza e Cultura Local ... 211
Proposta 2 - Tema: Meio ambiente e vida cotidiana ... 214
Proposta 3 - Tema: Alimentação e cultura ... 219
Proposta 4 - Tema: O mundo das histórias e o consumo ... 222
Proposta 5 - Tema: Cultura musical e artes do corpo ... 226
CONSIDERAÇÕES FINAIS E ENCAMINHAMENTOS FUTUROS ... 239
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 247
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE APOIO ... 262
WEBLIOGRAFIA DE APOIO ... 262
ANEXO I ... 263 ANEXO II ... 265 ANEXO III ... 266 ANEXO IV ... 272 ANEXO V ... 281
INTRODUÇÃO
A língua não se transmite;; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada;; eles penetram na corrente da comunicação verbal;; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que a sua consciência desperta e começa a operar. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2014[1929], p.111).
1 Inicio com a nuvem de palavras encabeçada pelo nome de Bakhtin e trazendo as ideias em inglês, pois meu trabalho dá-se na área de ensino e aprendizagem dessa língua, olhando-a a partir da perspectiva discursiva bakhtiniana de que a língua evolui em várias direções, assumindo cores diferentes, como representa a figura. A visão de língua/linguagem de Bakhtin cativa-me fortemente porque questiona a possibilidade de uma única forma de enunciação, de “uma língua única e singular, indiscutível e incontestável” (BAKHTIN, 2015[1975], p. 71). Defende, portanto, a pluralidade como marca característica da língua enquanto prática social, logo, repleta de vozes históricas e sociais (BAKHTIN, 2015[1975]). Desse modo, observa-se que, ao pensarmos a língua em uma perspectiva enunciativo-discursiva, voltamos nosso olhar, na verdade, para uma multiplicidade de línguas sociais distintas, as quais não se chocam, mas também nunca se fundem por completo, havendo um diálogo (tenso) de linguagens (BAKHTIN, 2015[1975]).
Portanto, essa perspectiva encanta-me por sua visão dialógica, a qual mostra que vamos nos constituindo como sujeitos a partir de nossas relações com o
1 Nuvem de palavras criada em http://www.abcya.com/word_clouds.htm
outro. De modo bastante sucinto, o dialogismo diz respeito às relações entre o sujeito e a alteridade por meio de uma diversidade de linguagens de tal forma que trazem pontos de vista sobre o mundo que podem ser confrontados, complementares e até mesmo conflitantes (BAKHTIN, 2015[1975]), trazendo à tona a ideia de cruzamento de fronteiras.
Nesse sentido, o olhar de Bakhtin sobre a língua/linguagem está, a meu ver, relacionado à transdisciplinaridade, ao translinguismo e à transculturalidade, perspectivas que também questionam a existência de uma verdade única e buscam visões complexas da construção de conhecimento, bem como visões plurais das línguas, das culturas e da alteridade, portanto, trazendo a possibilidade de vivenciar, ainda que com conflito, o colorido das diferenças e da diversidade. Nessa linha, a educação de línguas, sob o prisma das teorias bakhtinianas, segundo autores como Rocha (2012), Landay (2004), Hall, Vitanova, Marchenkova (2005) e Rojo (2012), volta-se para o sujeito aprendiz em sua forma plural de pensar, de ver o mundo, de relacionar-se com o conhecimento, marcado por sua ideologia, sua história, sua cultura, suas línguas/linguagens sociais em toda sua complexidade. Logo, nesse enfoque, podemos ver a sala de aula como “um lugar [...] onde muitas línguas estabelecem contato e reconhecimento mútuo entre si mesmas, a fim de criar o diálogo das linguagens” (LANDAY, 2004, p. 123, tradução nossa).
Ao pensar mais profundamente a respeito dessas questões e buscando refletir sobre as razões que me levaram a abordar língua e cultura nesta pesquisa, observo que as relações entre ambas sempre me fascinaram, acredito que por um aspecto importante da minha história de vida – o fato de meu pai ser português e minha mãe brasileira. Nesse sentido, tive espaço de convívio com a diversidade e o hibridismo dessas culturas. Hoje, depois de toda minha trajetória acadêmica, da busca pela minha cidadania portuguesa e da visita ao local em que meu pai nasceu, penso que, na minha criação, estive em um espaço inter/transcultural2 e, nessa experiência, fui crescendo marcada por uma consciência maior da força e beleza da pluralidade de línguas / linguagens e culturas.
Também me observei dentre os múltiplos olhares advindos desses espaços na escolha da língua inglesa, estudando-a por motivação pessoal desde
2 Deste ponto em diante, passo a usar o termo transcultural como intercambiável com intercultural com base em Maher (2007).
pequena e, como foco de minha profissão, articulando significados extremamente importantes para minha formação como sujeito, nas mais diversas posições que ocupo. Essas vivências conduziram-me à escolha da minha universidade – graduação em Linguística. Ao retornar no tempo, percebo, no entanto, que essa opção não estava marcada pela consciência dessa trajetória familiar e da paixão pelo inglês e, acrescento neste ponto, pela língua portuguesa. Foi sim marcada por uma ânsia interna pela comunicação e pela linguagem, pela expressão de mim mesma no contato com o outro. A graduação em si lembrou-me que, ainda como estudante de ensino médio, eu havia tido a tímida experiência da docência na obra social do colégio que frequentava. Lembrou-me de uma professora que havia enxergado em mim a inclinação para a sala de aula e me disse assertivamente que essa seria minha carreira profissional. E logo no primeiro ano da universidade procurei uma escola de idiomas e passei a ministrar aulas de inglês. Dentre as matérias eletivas de meu curso, optei pelas da área de Linguística Aplicada que se relacionavam a ensino e aprendizagem, tanto de língua estrangeira (doravante LE) quanto de língua materna (doravante LM).
Hoje penso ter sido esta uma escolha feliz porque ampliou meus horizontes linguísticos e, por ser um curso de graduação essencialmente acadêmico, despertou-me o desejo de atuar na universidade com a formação de professores. Portanto, o caminho subsequente foi naturalmente o mestrado e, após, três anos da finalização deste último, percebi a necessidade da licenciatura em minha formação e decidi cursar Letras – licenciatura inglês/português. Terminada essa segunda graduação, as circunstâncias finalmente me permitiram o início do doutorado. No entanto, esse tempo, aparentemente longo, entre a dissertação e a tese, foi essencial e fruto de uma decisão pessoal, pautada pela necessidade interna que eu tinha de viver mais intensamente a docência, um pouco distante da academia. Carregava, então, uma certeza de que a prática iluminaria outras questões de pesquisa e esclareceria essa trajetória ainda bastante incipiente naquela época e diria, jovem, atualmente.
O tempo passou e encontrava-me lecionando língua inglesa (doravante LI) para diversas idades e perfis em um instituto de idiomas e também em um curso de letras de uma universidade do interior paulista. No que se refere mais especificamente ao primeiro contexto mencionado, penso ser importante destacar
que exerci por alguns anos a função de “coach/mentor” e, assim, principalmente por meio das observações de aulas e discussão a respeito destas, trabalhei cooperativamente com professores na elaboração de seus planos de aulas e em seus percursos junto a seus alunos. Como docente, por aproximadamente dois anos, ministrei aulas no Ensino Fundamental I (doravante EFI) em escolas regulares particulares que eram parceiras desse instituto.
Ao rever essa experiência, percebo que tive oportunidades únicas de aprender junto a esses professores, que me ofereceram subsídios enriquecedores para teorizar a prática e para lançar um olhar mais aprofundado para a pluralidade de modos de pensar que podem se fazer presentes nos encontros e desencontros da sala de aula de EFI, especialmente a partir do que hoje percebo como o diálogo
bakhtiniano das linguagens (LANDAY, 2004).
Nesse sentido, a partir de Rocha (2012), concordo que o ensino nesse segmento seja orientado por um enfoque plurilíngue, para que a diversidade de línguas/linguagens sociais se faça presente. Também por uma ótica transcultural, para que a diversidade de culturas seja fortalecida. E, por fim, por um viés crítico, para que se ampliem modos de ser, fazer e dizer, bem como possa ser construída uma pluralidade de letramentos mediados pela LE e em LE e que estes, por sua vez, contribuam para que o mundo seja um lugar mais justo para todos.
Assim sendo, continuando a pensar em questões que me instigavam para uma pesquisa de doutorado, estava claro para mim que língua inglesa e cultura estavam no meu âmago, juntamente com a formação de professores e a experiência de docência no fundamental I.
Havia uma questão a ser explorada e tinha, pois, interesse em investigá- la em uma perspectiva transdisciplinar. Isso porque partia do pressuposto de que um ensino de bases plurilíngues, transculturais e críticas poderia ser enriquecido se o processo fosse pautado pelo enfoque transdisciplinar. E a primeira semente em direção à minha pesquisa de doutorado foi assim plantada.
Nesse sentido, como professora-formadora no curso de Letras, aos poucos fui dando-me conta de que, embora não oferecêssemos uma formação específica para esse segmento, os alunos de Letras acabavam atuando como professores ou monitores de inglês no EFI. Não eram poucas as vezes que esses alunos me traziam questionamentos a respeito desses contextos, ainda que em
conversas informais, buscando subsídios para suas aulas. Essa situação levou-me a olhar para um problema de pesquisa que se colocava. Como tem sido debatido em inúmeros trabalhos na área (ROCHA, 2012;; GIMENEZ, 2013, VICENTIN, 2013), o ensino de línguas estrangeiras não está integrado à matriz curricular do EFI, acarretando um desequilíbrio tanto em escolas particulares quanto públicas e, consequentemente, sérias limitações para a formação docente.
No que diz respeito às motivações teórico-científicas relacionadas ao contexto desta pesquisa, constato ainda, juntamente com Rocha (2006) e Gimenez (2013), que, embora haja estudos, mencionados adiante, que abordem o ensino e aprendizagem de inglês para o EFI, existe ainda uma reconhecida carência de pesquisas e um fértil espaço para desenvolvê-las. Uma das razões para a existência dessa lacuna é o fato de o ensino de inglês nesse segmento possuir um caráter facultativo na matriz curricular da educação básica em nosso país, como já mencionado brevemente. No entanto, a implantação da disciplina em escolas regulares particulares e também públicas evidencia-se crescente3. Vale ressaltar, nesse sentido, o modo bastante desordenado e fragmentado, baseado em ações individuais de escolas ou prefeituras, com que essa expansão vem ocorrendo, devido à ausência de regulamentações e orientações curriculares específicas para esse ensino em nível nacional. Rocha (2006) já defendia a necessidade de embasamento teórico para tal nos parâmetros curriculares nacionais e seguiu com reflexões a esse respeito em Rocha (2010, 2012).
Entre outros aspectos, essa lacuna fragiliza de forma bastante acentuada o processo de formação inicial de professores, permitindo que seja pouco ou quase nada explorada a didática voltada ao ensino de línguas para crianças nos cursos de Letras. Além disso, nota-se ainda que os jovens em idade de escolha de sua profissão se interessam por inglês, mas são poucos o que estão buscando a
3 Ao pesquisar as grades curriculares em páginas de escolas particulares na internet, pode-se encontrar a inserção do ensino de inglês no EFI na grande maioria das escolas. Quanto às escolas públicas, tenho conhecimento de escolas municipais que inseriram a disciplina no EFI, tais como, as de Campinas – SP vide http://www.campinas.sp.gov.br/noticias-integra.php?id=16374. Na prefeitura de São Paulo, foi uma disciplina introduzida nos anos iniciais em 2012, vide http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=07112 013P%20063402013SME. O mesmo já ocorreu em Rolândia, vide http://www.rolandia.pr.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1710:prefeitura-institui- aulas-de-ingles-no-ensino-fundamental-de-rolandia&catid=1:ultimas-noticias, entre outros municípios.
formação acadêmica adequada. Ao mesmo tempo, vê-se a necessidade que as escolas apresentam de terem professores de inglês bem formados na sala de aula de EFI, logo há uma demanda profissional contínua e acentuada.
Encontrava-me, então, diante de um problema social que acabou por fazer florescer aquela semente inicialmente plantada, fazendo surgir este trabalho. A partir de minha posição de professora-formadora, em curso de Letras, por meio das disciplinas de língua inglesa, preocupava-me em estar preparada para oferecer uma formação aos alunos, futuros professores, também de EFI, que fosse criticamente orientada sob bases transculturais e transdisciplinares.
Desenvolver uma pesquisa que buscasse observar a prática docente no cenário do EFI revelou-se, então, extremamente relevante para minhas reflexões enquanto formadora, porque poderia possibilitar que eu olhasse a sala de aula para pensar aspectos práticos e teóricos, o que não aconteceria com a mesma profundidade se eu apenas buscasse um curso de formação continuada, por exemplo. Além disso, anteriormente, quando observava aulas de EFI como coach, não tinha a experiência da abrangência das leituras que tenho hoje, o que também marca um outro olhar que a pesquisa acadêmica proporciona. A observação da prática de uma professora de inglês do EFI poderia, portanto, levar-me a repensar e a refletir sobre minha própria prática e acerca dos valores e modelos que vêm me acompanhando ao longo dos anos, o que realmente ocorreu por meio desta pesquisa. E, nesse sentido, é importante colocar que acredito que a visão que carrego ao ministrar minhas aulas influencia diretamente a prática que meus alunos vão constituindo para si, ainda que tais valores sejam transmitidos implicitamente por meio das atividades escolhidas para minhas aulas. Portanto, deslocamentos eram e são realmente necessários em minha trajetória de formadora para que possa refletir sobre a formação desses alunos e trazer uma reorientação para as aulas de inglês que ministro na universidade ou para atuações futuras que, espero, venha a ter enquanto formadora de professores de inglês para o EFI.
Finalmente, ainda problematizando o estudo que desenvolvi, como já mencionado brevemente, ao pensar no contexto de formação de crianças como foco de minha pesquisa de doutorado, e ao seguir com minhas leituras e reflexões, acabei cruzando com a ideia de transdisciplinaridade, a qual passou a me instigar tanto quanto ou até mais que as relações entre língua inglesa e cultura. Isso porque
me trouxe uma nova percepção sobre a construção de conhecimento, alinhada a questões que me despertavam interesse em relação a um enfoque plurilíngue e transcultural (ROCHA, 2012) no ensino de língua inglesa no fundamental I. Nessa direção, juntamente com Moraes (2015), defendo a extrema importância de se trabalhar com a transdisciplinaridade nesse segmento a partir de uma justificativa que vem fortemente ao encontro das buscas que aqui descrevo:
Porque, como educadores, necessitamos começar a praticar a ética da e para a vida capaz de reintegrar o cosmo, a matéria, o ser humano e a vida, no sentido de resgatar o espírito de solidariedade, de respeito, de gratidão e de reverência pela vida e por todos aqueles seres que compartilham nosso destino comum (MORAES, 2015, p. 30).
Conforme já discutido, defendo um ensino-aprendizagem de língua inglesa no EFI de caráter formativo e crítico, também definido como um ensino voltado para a a formação cidadã (ROCHA, 2012), cujas bases transculturais e plurilíngues ou translíngues (GARCÍA;; WEI, 2014), possam estar aliadas às transdisciplinares, já que a Carta da Transdisciplinaridade (1994) aponta que “o movimento transdisciplinar é em si transcultural” (artigo 10). Ao acatar tais premissas, entendo que o ensino-aprendizagem de língua inglesa nos anos iniciais da escolaridade possa favorecer o fortalecimento de uma postura transcultural em meio às diferenças, tornando também mais forte o papel crítico, ético e cidadão do aprendiz (ROCHA, 2012, LIBERALI et Al, 2006).
Diante de todo o exposto, com vistas a construir bases mais informadas para refletir teórico-praticamente sobre o ensino-aprendizagem de língua inglesa no EFI, que possibilitem que eu ressignifique o meu saber docente e também o meu fazer como professora-formadora, coloco como proposta central para este estudo:
• Observar e avaliar as bases e oportunidades para um trabalho orientado pela ideia de transdisciplinaridade e de formação cidadã no processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa no EFI em uma escola do interior paulista, a partir das aulas ministradas por uma professora nesse contexto.
Com base nessa proposta central, seguem os objetivos específicos delineados para esta pesquisa:
• Descrever e analisar se e como a transdisciplinaridade se evidencia nas aulas de língua inglesa dessa professora, que atua no contexto mencionado;;
• Investigar as visões de língua inglesa e cultura que circulam a partir das práticas propostas em sala de aula, tendo como parâmetro um ensino e aprendizagem crítico e cidadão.
A fim de operacionalizar os objetivos supramencionados, foram estabelecidas as seguintes perguntas de pesquisa:
1) Quais bases e oportunidades para um trabalho de princípios transdisciplinares podem ser observadas no contexto da pesquisa? Como isso é articulado pedagogicamente?
2) Quais visões de língua e cultura, bem como acerca da língua inglesa, podem ser depreendidas a partir das práticas propostas pela professora-participante? Qual a relação dessas visões diante de uma orientação formativa e crítica no ensino de línguas?
Tais perguntas foram respondidas por meio da análise dos dados coletados em uma escola particular do interior do estado de São Paulo, observando a prática de uma única professora ao longo de um semestre do ano letivo, ao ministrar aulas de inglês para segundo, terceiro, quarto e quinto anos do EFI. A partir da prática dessa professora, ao longo do processo de geração de dados, foram feitas entrevistas semiestruturadas com ela para que fosse possível entender melhor as teorias que embasavam suas aulas, bem como para compreender suas visões sobre língua inglesa e cultura e sobre transdisciplinaridade.
Reitero que, a partir dos objetivos e das perguntas de pesquisa, estabelecidas para este trabalho, meu desejo e alcance principal, com esta pesquisa, é observar a prática de outrem para enxergar minha própria prática enquanto professora de futuros professores de inglês para EFI e, então, refletir sobre valores e modelos que norteiam meu olhar e meu fazer docente e como formadora. Assim sendo, ao analisar as aulas ministradas, com base no referencial
teórico privilegiado neste estudo, busco explicar quais teorias sustentam as práticas observadas e procuro também continuamente confrontar tudo o que observo com minhas visões e práticas, buscando ressignificações.
Nesse sentido, o estudo empírico, mais que um espaço para ilustrar teorias mais inovadoras em uso, é, na realidade, um momento de reflexão sobre uma cultura de ensinar línguas que se encontra cristalizada/estabilizada. Do mesmo modo, é uma reflexão sobre os desafios e dificuldades que se colocam para a criação de práticas novas, mais em linha com as orientações teóricas adotadas neste estudo.
Espero, também, que este trabalho seja oportunidade para seus leitores reconstruírem e ressignificarem suas visões e valores, na experiência do dialogismo bakhtiniano, nos entremeios de suas vivências, leituras, visões de mundo e vozes plurais que aqui se fazem presentes. Quiçá os leitores possam viver deslocamentos em suas perspectivas e em sua prática enquanto professores, assim como os vivi ao longo desses anos de pesquisa. E indo mais adiante, pensando no escopo indireto deste trabalho e de outros que contemplam temas similares, desejo que as crianças, vislumbradas pelas experiências de língua inglesa, cultura e transdisciplinaridade, sejam sujeitos cidadãos atuantes e críticos em nossa sociedade.
Logo, penso que o retorno social desta pesquisa pode se dar, inicialmente, a partir de minhas próprias aulas de língua inglesa, ainda que a formação voltada para o EFI não seja parte dos currículos de Letras, simplesmente pelo fato de poder incorporar essa visão alargada à minha prática. Futuramente, penso em criar projetos de extensão que possam contemplar essa formação crítica e contribuir mais amplamente com a comunidade de professores de inglês de EFI.
Nessa direção, ao final do texto da tese, trago reflexões com um teor mais propositivo, que nasceram desse processo analítico-reflexivo realizado ao longo deste trabalho. As propostas que apresento respondem à minha vontade de repensar minha prática, conforme já explicado, também a partir da criação de exemplos concretos de possíveis atividades para as aulas de inglês no EFI, sob bases transculturais e transdisciplinares. Ressalto, no entanto, que meu intuito com essas propostas é apresentar um roteiro em aberto e não oferecer receitas ou modelos, logo, é um caminho que não deve ser interpretado como prescrição. Primeiramente, porque me distanciaria da visão do dialogismo bakhtiniano, o qual,
recontextualizado para o processo educativo (SHIELDS, 2007;; ROCHA, 2012), propõe que, como sujeitos professores ou aprendizes, somos sempre inacabados e estamos continuamente vivendo o processo e não o produto. Em segundo lugar, enfatizo que qualquer proposta didática só se torna significativa em contexto. Espero, então, que elas possam servir para a reflexão de outros professores sem estarem ligadas a um caráter prescritivo. Buscarei também dar vida e sentido a elas, trazendo-as para serem objetos de análise em minhas aulas futuras, seja em cursos de extensão, seja em cursos de formação, quando possível.
1. Expandindo reflexões sobre as motivações da pesquisa
Após apresentar os objetivos e as questões que orientam esta pesquisa, entendo que seja importante tecer aqui mais algumas considerações sobre a transdiciplinaridade, pela posição central que ocupa neste trabalho. Ao fazer isso, avançarei um pouco mais no que se refere a aspectos que evidenciam a relevância científica e teórica desta pesquisa.
Nesse sentido, defendo que “a vida, em si, nunca foi um simples saber objetivo sem sujeitos para vivê-la” (PAUL, apud MORAES, 2015, p. 8), ou seja, a transdisciplinaridade pressupõe a integração entre o sujeito e seu objeto de conhecimento.
Penso, assim, que o olhar transdisciplinar acolhe as relações plurais entre língua e cultura das quais falarei mais adiante, na fundamentação teórica deste trabalho. Por isso, considero elucidativo refletir sobre a educação enquanto pluralismo e transculturalidade, defendida por Rocha (2010) ao trazer a importância do convívio e, muitas vezes, conflito com o diferente. Desse modo:
O inglês nos anos iniciais da escolarização, portanto, deve transcender a mera celebração das diferenças para buscar fazer o aluno refletir sobre o mundo, sobre o que está a sua volta e sobre si mesmo, ampliando suas visões e reconstruindo suas percepções e valores, na medida em que cria zonas de contato entre línguas, linguagens e culturas (ROCHA, 2010, p.103).
Ou seja, tanto a perspectiva transdisciplinar quanto o olhar bakhtiniano diante da língua e cultura nos permitem reconhecer nossa natureza enquanto seres inacabados. Essa perspectiva também nos convida a olhar para o outro e ressignificar quem somos a partir de novas línguas/linguagens e culturas, sem, no
entanto, desvalorizar nossos repertórios. Nesse momento, julgo importante atrelar a essas teorizações, o pensamento vygotskyano. Para o autor, a língua/linguagem tem uma natureza tanto individual quanto social, e o processo de constituição do sujeito e de construção do conhecimento ocorrem em um movimento de ruptura e complementaridade entre o eu e o outro, entre o indivíduo e o mundo sob forte influência da cultura (VYGOTSKY, 1978). As teorias vygotskyanas nos dão bases para reconhecer a natureza sócio-histórico cultural do processo de ensino e aprendizagem (MAGALHÃES, 2009;; MATEUS, 2006), dando-nos sustentação, portanto, para pensar a transdisciplinaridade.
Nessa busca, calcada na visão plural de língua e cultura e em seus entrecruzamentos, a pedagogia do transliguismo traz uma visão complementar ao ensino em uma perspectiva plurilíngue, transcultural e transdisciplinar.
A este respeito, é importante brevemente esclarecer que a ideia do translinguismo rompe com visões monolíticas de língua e cultura, ao confrontar a noção de língua como um todo acabado e auto-suficiente em favor de um enfoque que compreende a pluralidade de recursos semióticos e meios de representação e significação, percebendo a mistura como algo natural e positivo (CANAGARAJAH, 2013;; GARCÍA;; WEI, 2014). Nesse sentido, entendo que García e Wei (2014) estejam alinhados a uma visão bakhtiniana de linguagem ao citarem García e Cano no prelo, defendendo que “translinguar” é um processo de uma prática discursiva complexa, no qual está envolvida uma grande variedade de práticas linguísticas dos alunos em uma sala de aula de forma a desenvolver outras práticas e permitir a apropriação e comunicação do conhecimento, dando voz às mais variadas realidades sócio-políticas, inclusive oferecendo possibilidades de superação de desigualdades. Essa perspectiva pressupõe o heterodiscurso bakhtiniano como marca constitutiva das práticas de linguagem (BAKHTIN, 2015[1975]). Nesse contexto, a pedagogia do translinguismo, como defendem García e Wei (2014), parte do pressuposto de que os sentidos nas aulas de línguas são produzidos em meio ao cruzamento de uma pluralidade de línguas, linguagens e também em meio a um embate de visões, identidades e repertórios culturais.
Além disso, tais visões são encorajamento para a defesa da educação de línguas para crianças pautada na criticidade, ou seja, ir além do senso comum (MENEZES DE SOUSA, 2011) e possibilitar a problematização de conteúdos
(ROCHA, 2013), procurando olhar o mundo sob as lentes de outrem (MENEZES DE SOUSA, 2011), o que entendo e defendo como uma orientação ética no ensino/aprendizagem de línguas no EFI. Também alicerçada na cidadania, a saber, a atuação crítica da criança e seu fortalecimento como pessoa no convívio com as diferenças (ROCHA, 2010, 2012) ou ainda uma ação social cuja construção é um processo ativo (LIBERALI et al, 2006). E tal processo alia-se, então, à visão transdisciplinar, a qual, como preconiza Moraes (2015), prioriza a formação integral ou a inteireiza4 da criança enquanto ser humano em todas as suas nuances por considerar o pensar, o sentir, o agir, o criar e também o processo do aluno de conhecer como inseparável do ser, fazer, viver e conviver. Desse modo, mobiliza-se o sujeito como um todo e suas relações com o outro e com o mundo e o levam a atuar de forma mais engajada na sociedade. Portanto, acredito que as dimensões da transdisciplinaridade acolhem as ações éticas, críticas e cidadãs no processo de aprendizagem da criança.
Sabemos que, nesse contexto, o processo de formação e, assim, de aprendizagem, para a criança é algo complexo, sendo a infância um período de intensas transformações em nível linguístico, social, cultural e identitário. Como se verá adiante, em cada fase da infância, a criança estabelece relações sociais diferentes no meio em que vive segundo a perspectiva sócio-histórico-cultural de Vygotsky (2001) e essas fases e o contexto em que estão carecem de estudo mais aprofundado para ensino e aprendizagem de inglês. Desse modo, uma formação mais específica bem como políticas pertinentes ao ensino de inglês para o segmento do EFI mostram-se fundamentais para uma atuação docente apropriada (GIMENEZ, 2013).
Sigo, pois, buscando evidenciar outros aspectos que também atestam a relevância científica e social desta pesquisa. No que diz respeito à importância de estudos acadêmico-científicos voltados ao contexto de EFI, é relevante mencionar que temos observado, ao longo dos últimos anos, a crescente preocupação com o estudo de inglês como língua estrangeira para crianças, como se detalha abaixo:
A idade na qual as crianças começam a aprender inglês tem se tornado menor ao redor do mundo. O inglês se moveu do lugar das ‘línguas
4 A ideia de integral ou inteireza não se refere à completude. Moraes (2015) defende uma formação que mobilize a criança como um todo e não somente o seu intelecto.
estrangeiras’ tradicionais nos anos iniciais da escola secundária para a escola primária – até mesmo pré-escola. (GRADDOL, 2006, p. 88, tradução nossa).
Publicações que abordam ensino e aprendizagem de inglês para crianças no EFI marcam presença no Brasil (ROCHA, 2008, 2012;; ROCHA;; BASSO, 2008;; TONELLI;; CHAGURI, 2013;; MAGALHÃES, V.B., 2011, entre outros) e fora dele (COPLAND;; GARTON, 2014) devido ao número crescente de crianças que globalmente aprendem inglês nessa faixa etária. Sendo este assunto relevante para a pesquisa, traz-se à baila a necessidade de desenvolvimento profissional em todo o mundo. Portanto, em 2014, o periódico ELT Journal se concentrou, em uma edição especial exclusiva para essa área que, por muito tempo, esteve relegada.
Nesse contexto, Gimenez (2013) afirma que a preocupação com a língua inglesa se espalha pelo globo e essa língua assume as cores locais, ou seja, há um hibridismo de culturas e a língua inglesa deixa de ter um território bem demarcado, trazendo inclusive questionamentos a respeito de sua posição no mundo. Essa visão nos aponta que é desejável que tal conjuntura seja pensada dentro da criticidade e não de pensamentos impostos por visões hegemônicas (ROCHA, 2012) e também sob uma perspectiva transdisciplinar (MORAES, 2015).
Nesse sentido, a realidade brasileira é pensada por Copland e Garton (2014) ao afirmar que, no México e em países da América do Sul, o reconhecimento de que o ensino de inglês traz tanto desvantagens quanto benefícios em termos sociais levou a uma abordagem crítica para o ensino de inglês, até mesmo no caso das crianças, fazendo emergir, segundo as mesmas autoras, um dos fatores sociais que pode afetar a aprendizagem das crianças, ou seja, o papel que a língua inglesa tem no contexto social no qual aquela criança está inserida.
Ressalto ainda que muitas pesquisas têm sido feitas no Brasil a fim de investigar o ensino e aprendizagem de inglês no segmento do fundamental I, portanto, são várias as teses e as dissertações que tratam do tema (ROCHA, 2006, 2010;; DIAS, 2015;; VICENTIN, 2013;; CARVALHO, 2013;; SANTOS, L., 2009, entre outros).
Por fim, tendo exposto todo o percurso prático e teórico que levou ao desenvolvimento desta pesquisa, passo, na seção seguinte, à organização da tese.
2. Organização da Tese
Feita a contextualização de meu estudo, sigo a redação da tese, dividindo-a em cinco capítulos. No capítulo I, faço um percurso histórico pelas variadas abordagens de ensino e aprendizagem de língua estrangeira, enfatizando suas visões de língua/linguagem. Nesse sentido, assumo a visão discursiva bakhtiniana de língua, atrelada à prática translíngue (CANAGARAJAH, 2013) e ao translinguismo (GARCÍA;; WEI, 2014). Além disso, trago o olhar de Vygotsky para a criança, apropriando-me de uma perspectiva sócio-histórico-cultural (MATEUS, 2006;; MAGALHÃES, 2009), em consonância com o olhar bakhtiniano para língua/linguagem. Também articulo as discussões a respeito de língua/linguagem e cultura e transculturalidade (COX;; ASSIS-PETERSON, 2007).
No capítulo II, discorro sobre a visão crítica para o ensino e aprendizagem de língua inglesa para crianças e o desenvolvimento da cidadania, buscando embasamento no letramento crítico, multiletramentos (MENEZES DE SOUZA, 2011;; MONTE MÓR;; MENEZES DE SOUZA, 2006, ROCHA, 2012;; WINOGRAD, 2015;; KALANTZIS;; COPE 2012[2008]) e transdisciplinaridade (NICOLESCU, 1999;; LIBÂNEO, 2010;; MORAES, 2015).
Já no capítulo III, apresento a metodologia desta tese que é um estudo de caso (YIN, 2010), no qual dados primários foram gerados a partir de aulas observadas e secundários a partir de entrevistas semiestruturadas (LÜDKE;; ANDRÉ, 1986).
No capítulo IV, passo a fazer a análise dos dados, valendo-me de uma adaptação das propostas de Smyth (1989,1992) e Liberali (2012) de descrever as aulas observadas, informar as observações teoricamente e confrontar a prática da professora-participante em sala de aula com seus próprios valores a partir das entrevistas, com minha prática de professora-formadora e com as teorias e reconstruir alguns aspectos com vistas a (re)avaliar e (re)pensar minha própria prática. Busco, nesse sentido, responder às minhas perguntas de pesquisa por meio de categorias que se baseiam na visão de língua/linguagem, de cultura e de ensino e aprendizagem partindo da transdisciplinaridade.
No capítulo V, trago mais consistentemente a reconstrução, também adaptada da proposta de Smyth (1989;;1992) e Liberali (2012), trazendo exemplos
concretos para a sala de aula a fim de fomentar reflexões. Aproprio-me, nesse sentido, dessa dinâmica para reconstruir minha prática de formadora de professores que podem vir a atuar no segmento de EFI, ensinando língua inglesa.
Finalmente, na seção das considerações finais e encaminhamentos futuros, retomo os objetivos da tese e suas justificativas, buscando fechar este trabalho, ao menos enquanto texto, pois há muitos desdobramentos e questionamentos para outras pesquisas. Desse modo, sugiro, então, possíveis áreas de pesquisa.