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Policiamento e relações raciais em perspectiva comparada SP e RS 1

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Academic year: 2021

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Policiamento e relações raciais em perspectiva comparada SP e

RS

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Jacqueline Sinhoretto (Doutora em Sociologia - Universidade Federal de São

Carlos. jacsin@ufscar.br)

Luiza Corrêa de Magalhães Dutra (Mestre em Ciências Criminais Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul. luiza.dutra15@gmail.com)

Henrique de Linica dos Santos Macedo (Doutorando em Sociologia

-Universidade Federal de São Carlos. henriquelinica@gmail.com)

André Sales dos Santos Cedro (Doutorando em Sociologia - Universidade

Federal de São Carlos. salescedro@gmail.com)

Introdução

Este paper apresenta resultados obtidos em pesquisa sobre o policiamento ostensivo e as relações raciais em São Paulo e Rio Grande do Sul. A pesquisa tem como objetivo investigar o modelo de policiamento ostensivo a partir dos efeitos de sua atuação na produção de desigualdades raciais e as representações dos policiais militares sobre estes efeitos2.

Os estudos de polícia são um tema importante para a sociologia da violência no Brasil. A discussão das concepções dos operadores da segurança sobre crime e criminosos e formas de controle do crime tem tido destaque no campo. Contudo, as discussões sobre desigualdade racial são menos numerosas, a despeito de serem mais disponíveis os dados com perfil racial de mortos pela polícia e encarcerados. No plano das lutas sociais por justiça e redução da violência, a denúncia da filtragem racial na ação policial e do racismo institucional na punição (SINHORETTO et al, 2014) tem sido um dos principais contrapontos aos discursos e práticas punitivistas, orientados pela penalidade neoliberal (HARCOURT, 2007). No plano epistemológico, também ganha força a interpretação sobre a necessidade de pensar o controle

1 Paper apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT 47 – Violência, Punição e Controle Social:

perspectivas de pesquisa e de análise, em dezembro de 2020.

2 Este paper é desdobramento da pesquisa “Policiamento Ostensivo e Relações Raciais: estudo comparado sobre

formas contemporâneas de controle do crime” (SINHORETTO et al, 2020), pesquisa em rede realizada por GEVAC UFSCar, GPESC - PUCRS, NESP - Fundação João Pinheiro e PPGSOL - UnB, com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Chamada Universal CNPq/MCT 01/2016

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social contemporâneo no continente americano como efeito dos dispositivos coloniais e do racismo (ALEXANDER, 2012; BYFIELD, 2019). O estudo contribui com o conhecimento das práticas de abordagem e dos saberes racializados que orientam o policiamento no nível da rua, como das concepções e saberes que organizam o policiamento ostensivo realizado pelas Polícias Militares.

Desta forma, a pesquisa investigou o modelo de policiamento ostensivo, as concepções a ele subjacentes, o desenho das formas mais usuais de policiamento, assim como as práticas dos policiais no cotidiano das operações. Os resultados apontam para enorme diferença, na prática cotidiana do policiamento ostensivo, no tratamento e no uso da força sobre negros em relação a não-negros. As diferenças estão evidenciadas, sobretudo, nos números de prisões em flagrante e letalidade policial. Apesar de negarem a existência de racismo institucional nas polícias militares, os policiais testemunharam sobre os mecanismos de racialização de suspeitos, os saberes que orientam o policiamento e sobre como enxergam o papel da polícia numa sociedade atravessada pela desigualdade racial.

1. Metodologia

A metodologia utilizada foi a análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas realizadas com oficiais e praças da Polícia Militar em São Paulo (PMESP) e a Brigada Militar no Rio Grande do Sul (BM-RS), contemplando diferenças de patente, gênero e identificação racial. O tópico-guia foi utilizado para subsidiar a abordagem discursiva em profundidade sobre os temas: trabalho de policiamento na rua, identificação de suspeitos, abordagem policial, planejamento do policiamento ostensivo e as acusações da sociedade civil sobre racismo institucional e filtragem racial por parte da polícia. A perspectiva comparada leva em conta os diferentes contextos empíricos, históricos institucionais, e diferenças nas políticas de segurança pública nos dois locais.

No Rio Grande do Sul (RS), a pesquisa qualitativa foi realizada a partir de 12 entrevistas semiestruturadas com oficiais da Brigada Militar de Porto Alegre. Em São Paulo (SP), foram realizadas 24 entrevistas com oficiais e sub-oficiais indicados pela PMESP, por meio do Departamento de Educação e Cultura, atendendo a perfis de experiência planejamento e execução, cor/raça e sexo.

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No RS, os entrevistados foram selecionados a partir da técnica conhecida como bola de neve ou cadeia de informantes (BIERNACKI E WALDORF, 1981). Esse método permite a definição de amostra por referência e cadeias de referência. A aproximação com os grupos de policiais entrevistados se deu pelo conhecimento pessoal entre a equipe e um interlocutor, considerado central. Após entrevistado, ele indicou um colega, repetindo-se o procedimento até o 12º entrevistado. A indicação de alguém conhecido para as entrevistas tornou os ambientes das conversas muito tranquilo e sem constrangimentos, salientando-se, porém, algumas dificuldades dos policiais de falarem da instituição em que trabalham. Constantemente, afirmavam os “lados positivos” da BM. Em relação ao perfil dos entrevistados, duas eram mulheres e o restante, homens; cinco fazem parte do quadro Major, quatro Capitães, dois Tenentes Coronéis e um Tenente. Dois entrevistados eram autodeclarados brancos, o restante se autodeclarava negro.

Contudo, não foi possível o acesso a dados quantitativos sobre prisões em flagrante e letalidade policial no RS. A Secretaria de Segurança transmitiu a existência de obstáculos intransponíveis para a pesquisa em bases de dados de ocorrências criminais e, sobretudo, a inexistência de dados de cor/raça dos acusados e vítimas. E, após diversos contatos com as mesmas respostas reiteradas, a equipe decidiu concentrar-se apenas na análise qualitativa das entrevistas.

Em SP, o clima foi diferente. A despeito do acesso aos dados quantitativos ter sido relativamente simples, realizado por meio de ofício com base na Lei de Acesso à Informação, as bases de dados requerem manipulação complexa e tiveram que ser reenviadas após verificadas inconsistências na quantidade de casos observadas pelos pesquisadores. No caso das entrevistas, o processo foi muito mais lento e com barreiras sucessivas a serem ultrapassadas. Em virtude de uma normativa interna, oficiais e praças não são autorizados a dar entrevistas a pesquisadores e jornalistas sem autorização dos superiores. Isto inviabilizou a utilização do método bola de neve a partir de contatos prévios. Mesmo tendo uma rede de relações com policiais, a equipe em SP precisou recorrer a uma autorização da Secretaria de Segurança Pública, que encaminhou a demanda ao Comando Geral da PMESP, que finalmente indicou a Diretoria de Ensino e Cultura (DEC) para atender às demandas da equipe. Nossos interlocutores afirmavam que esse percurso pela hierarquia era necessário e benéfico, pois com a autorização superior reduziam-se os riscos de negativas de colaboração nas instâncias

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intermediárias. A partir das indicações da DEC, foram entrevistados oficiais com experiência no policiamento ostensivo, entre homens (14) e mulheres (2), brancos (11) e negros (4).

Ainda que a maior parte das entrevistas tenha sido amistosa, alguns oficiais demarcaram sua desconfiança com relação à equipe do GEVAC UFSCar e aos resultados de pesquisas anteriores. Externaram desconfiança sobre a expertise da equipe no tratamento de dados e procuravam demonstram familiaridade com métodos de pesquisa. Reiteradamente foi citada pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz que teria constatado que não existe racismo institucional na abordagem policial. Oficiais mais graduados tentavam mostrar conhecimento de literatura de métodos de pesquisa social em inglês e citaram missões de intercâmbios em polícias de outros países.

Em relação às entrevistas com praças, a DEC direcionou a equipe para três batalhões. Foram selecionados o batalhão em área nobre na Zona Sul da cidade de São Paulo, um de área periférica da mesma região e outro no centro da capital. Essa distribuição atenderia, segundo a oficial que facilitava o acesso ao campo, a condições do fazer policial muito distintas. Nos batalhões, o ambiente das entrevistas foi diferente. Sem animosidades e disputas de expertise, as dificuldades foram relativas à pressão do tempo por parte de quem tinha que cumprir uma jornada atribulada e ao exíguo tempo para apresentar a pesquisa. Um dos selecionados pensou, por exemplo, que tinha sido chamado à presença da chefia para receber uma advertência. Certamente não há como dimensionar o efeito dessa tensão inicial sobre a qualidade da relação de (des)confiança entre entrevistado e entrevistador. Em termos de perfil, foram entrevistados 5 homens e 3 mulheres, os 8 negros.

Não obstante todos os dilemas relacionados a pesquisar uma instituição fechada ao olhar externo e muito hierarquizada internamente, é possível estabelecer, mediante a perspectiva comparada, que os dados obtidos são extremamente ricos para o conhecimento e a reflexão sobre a importância da suspeição para o trabalho policial, bem como sobre o impacto das relações raciais sobre o policiamento.

É sobre isso que se concentra a discussão apresentada a seguir, antecedida de breve contexto sobre as instituições policiais pesquisadas e elementos das políticas estaduais de segurança pública.

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5 2. A Brigada Militar - RS e a Polícia Militar - SP: breve histórico

No RS a instituição policial militar recebe o nome de Brigada Militar. Guardadas as peculiaridades e diferenças históricas, a BM é muito semelhante à Polícia Militar, partindo de uma estrutura fundada na hierarquia e na disciplina, atendendo às mesmas funções policiais.

É importante comentar as peculiaridades do seu surgimento. Em 1837, em meio à Revolução Farroupilha, foi criada a Força Policial da Província, como mantenedora da ordem e da segurança; em 1841 foi regulamentado o Corpo Policial. No ano de 1873, o Corpo Policial foi extinto, dando lugar à Força Policial, e em 1889, com a promulgação da primeira Constituição do Brasil republicano, foi chamada de Guarda Cívica do Estado.

Em meio às várias mudanças de nomenclatura durante os anos que se seguiram, em 1892 a Brigada Militar foi criada com o intuito de zelar pela segurança pública através do respeito da ordem e da lei. Assim, a Brigada se estrutura no Estado com a ideia de proteção territorial, o que, de certa forma, a torna uma instituição distante, neste ponto, de outras Polícias Militares. Aproxima-se do espírito guerreiro, combatente, da própria história do estado, uma região fronteiriça com grande circulação de pessoas e riquezas (RUDNICK, 2007).

Em SP a datação utilizada para os marcos de criação da instituição policial é 15 de dezembro de 1831, com lei aprovada pela assembleia da província, comandada pelo então Presidente da Província, Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, atendendo ao decreto do Regente Feijó. A criação do Corpo de Guardas Municipais Permanente, composto de 100 praças de serviço a pé e 30 a cavalo. Após algumas mudanças de nome e estrutura, duas instituições foram criadas, a Força Pública e a Guarda Civil.

A Força Pública de caráter militarizado, tinha como função assegurar a ordem territorial e o interesse do Estado, enquanto a Guarda Civil era eminentemente um corpo sem desenho militar e com missão de auxiliar no policiamento de áreas urbanas. A Força Pública de São Paulo sempre teve uma forte atuação no cenário político, como parte do braço armado do grupo dominante local e nacional. O histórico de participação da instituição inclui seu deslocamento para repressão de revoltas no território nacional, como o caso de Canudos. Além da repressão aos levantes, há sua participação na “revolução de 1932” e no golpe de 1964.

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A Guarda Civil tinha função de permanecer nas cidades, enquanto a Força Pública podia ser direcionada para atuações inclusive fora do estado de São Paulo. Durante a ditadura civil-militar, em 1970, ambas instituições foram fundidas e se tornaram a Polícia Militar do Estado de São Paulo, responsável pela manutenção da ordem social e pela segurança nacional, como força auxiliar do Exército.

Ainda que as histórias institucionais remontem aos primeiros anos da independência do país, as instituições foram reconfiguradas em 1969, subordinando essas forças à fiscalização do Exército, num movimento de centralização do poder e reorganização do campo da segurança. Com a constituição de 1988, promulgada como marco da democratização, as Polícias Militares (e a BM) passaram a ser designadas como responsáveis pelo policiamento ostensivo, incumbidas do policiamento preventivo e de pronto atendimento de ocorrências, integrando as instituições de segurança pública. A substituição do adjetivo público qualificando a segurança realizada pelo Estado, acabou não sendo suficiente para ressignificar as relações com a população. As marcas históricas continuam a influenciar as instituições, mesmo que mudanças tenham sido realizadas ao longo das três últimas décadas (LIMA e COSTA, 2014; LIMA e SINHORETTO, 2011).

PMESP e BM continuam a recontar sua história institucional vinculando-se aos interesses territoriais e políticos das elites estaduais, configurando-se como forças armadas dos Estados. Seu histórico militar é sempre reforçado pelas mitologias fundacionais. No período da democratização, novas concepções vinculadas ao policiamento comunitário e às doutrinas de segurança cidadã foram trazidas ao interior das instituições por pressões externas e também pela ação de novas gerações de oficiais. Sem desconsiderar a relevância dos movimentos internos, os resultados das pesquisas têm apontado muito mais permanências institucionais do que rupturas nas instituições influenciadas pela doutrina de segurança nacional e de seu corolário, o combate ao inimigo interno.

3. Policiamento ostensivo e relações raciais

Recentemente o tema das relações entre policiamento e racismo ganhou notoriedade no mundo. Ativa mobilização de movimento negro nos Estados Unidos denuncia a brutalidade de agentes policiais. Casos como o assassinato de George Floyd em Minneapolis, Trayvon Martine

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na Florida, Erick Ganer em Nova Iorque, mais recentes, e mais antigos como de Amadou Diallou, Rodney King, Abner Louima3 foram estopins para questionar o trabalho policial, alimentando uma onda de protestos por todo o país em que a mensagem “BlackLivesMatter” incentiva mudanças estruturais nas organizações policiais.

No Brasil, de forma similar, incontáveis casos recentes somam-se às críticas históricas dos movimento negro à atuação das polícias e às desigualdades de tratamento (RAMOS, 2014; SINHORETTO e MORAIS, 2018). Contudo, da parte das instituições policiais o tom geral das respostas é a negação da existência do racismo institucional.

O problema vem sendo debatido nos estudos sociológicos e criminológicos, especialmente em análises sobre o uso desmedido da força e letalidade por parte das polícias. O olhar tem focalizado a interação preferencial dos policiais com os jovens negros (RAMOS e MUSUMECI, 2005; SCHLITTLER, 2020; FLAUZINA, 2006), levando à pesquisa sobre as escolhas mobilizadas na abordagem policial de “suspeitos”.

A racialização do suspeito é um dado de estudos anteriores corroborado por nossa pesquisa. As noções de suspeição, ameaça, perigo e medo estão associadas, nas falas de nossos interlocutores a características procuradas pelos policiais nas atividades do policiamento ostensivo. Vestimenta, corte de cabelo, camiseta de time, uso de boné são informações reiteradas pelos policiais para afirmar que a cor da pele não é o único índice que baseia a suspeita. De toda forma, quase todos reiteram que o olhar sobre o corpo e a corporalidade é a principal ferramenta trabalho para a atividade do policiamento ostensivo.

O vínculo entre corpo e crime é um antigo lugar comum dos estudos da criminologia racista, especialmente profícua num país em que o “problema da raça” ocupou lugar de destaque na formação do pensamento social. Inicialmente, no século XIX, ainda na vigência da escravização das pessoas negras, apresenta-se o diagnóstico de que um país mestiço com forte

3 Amadou Diallou foi morto com 41 tiros sem uma motivação plausível em 1999 em Nova York. Rodney King foi

espancado até a morte em 1994 em Los Angeles, mesmo havendo uma gravação das ações abusivas dos policiais, eles foram inocentados por um júri branco, o que gerou uma grande revolta popular. Abner Louima foi torturado e sodomizado por 4 policiais em 2001 em Nova York, neste caso a New York Police Department teve que pagar uma indenização aos familiares (COSTA, 2004). Trayvon Martine, um adolescente de 17 que foi morto em 2012 por um vigilante voluntário que supôs que ele fosse um bandido. Erick Ganer, foi morto por métodos de estrangulamento em 2014 por policiais, enquanto estava imobilizado repetia constantemente “não consigo respirar” que mais se tornaria frase de ordem nas manifestações por reforma na polícia. O caso emblemático mais recente é de George Floyd que foi asfixiado até a morte durante uma abordagem policial na cidade de Minneapolis. Após cada um destes episódios, manifestações foram deflagradas contra da polícia e suas formas de atuação.

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presença negra estava fadado ao fracasso civilizacional. Em que pese os argumento biológicos trazidos na edificação de uma hierarquização racial, em um segundo momento, as novas teses passam a tematizar a superioridade cultural dos povos europeus. Influenciado por Nina Rodrigues, Arthur Ramos considerou que os hábitos herdados de culturas inferiores seriam empecilhos para a modernização e o progresso. A positivação da mestiçagem, em torno de argumentos culturais foi desenvolvida por Gilberto Freyre (1933). É de sua autoria o que viria a ser reconhecido, durante todo o século XX, como traço distintivo das relações raciais à brasileira – a democracia racial.

A doutrina da democracia racial, que contém a contradição de simultaneamente negar e afirmar a existência de raças, necessita explicar as desigualdades entre negros e brancos, para o que lança mão de conceitos peculiares como cor e status, construindo a diferença como marca biológica (a cor da pele) e a desigualdade como diferença de classe social (GUIMARÃES, 2010).

Estudos das relações raciais contemporâneos adotaram a perspectiva da racialização, como um conjunto de ordenações e sistematizações de dominação que resultam na diferença como desigualdade. Nesse entendimento, Silvério (2002) compreende que as desigualdades seriam efeito de cruzamentos e engajamentos entre os campos cultural, político e econômico, que permitem explicar a vida social e as dinâmicas das relações sociais.

A racialização produz tensões que constituem os diferentes grupos sociais (brancos, pardos, morenos, pretos, negros), indo além de um conflito objetivo de brancos e negros, produzindo identidades e subjetividades. Taylor (1994) entende que a identidade é moldada pela falta ou não de reconhecimento na representação de um grupo ou um indivíduo, afetando a autoimagem, em termos de privilégios e opressões, reduzindo o ser.

Assim, nossos interlocutores afirmam a ausência de discriminação racial no seu fazer cotidiano, ao mesmo tempo em que dirigem o olhar de suspeição aos corpos racializados dos jovens negros, utilizando com eles quantidades excessivas de força e aplicando punições em uma razão que varia de 2,5 a 4 vezes quando se trata de realizar uma prisão nas ruas. Enquanto o uso da força letal pode chegar a ser de 3 a 7 vezes mais aplicado contra pessoas negras do que contra as brancas. As variações apontadas indicam as diferenças de ação policial entre cidades do interior e da capital de São Paulo, entre os anos de 2014 a 2018, com base nos dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública à equipe de pesquisa. As razões são referentes

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às taxas de prisões em flagrante e mortos por ação policial em grupos de 100 mil brancos e 100 mil negros residentes no estado paulista.

4. Concepções dos policiais da BM RS

A construção e a entrada no campo, no RS, se deram a partir de questionamentos produzidos ao longo das densas leituras e debates acerca da Instituição Policial no Brasil: como os próprios policiais enxergavam suas práticas de agir diárias? Como entendem as formas de policiamento praticadas por seus agentes? Como as formas de policiamento guiam a interação com a sociedade? E, talvez, mais importante: o que essas percepções e construções de interações sociais podem dizer sobre as formações coletivas que temos na sociedade brasileira?

Assim, desenvolvemos um campo de estudo com base nas representações sociais acerca da abordagem policial e do policiamento ostensivo presentes nos discursos dos policiais militares referentes à cidade de Porto Alegre, como já mencionado anteriormente. Pois, mostra-se indispensável, como coloca Porto (2006), no andar de conhecimento do fenômeno da violência, a tentativa de entendimento desse fenômeno sem o conhecimento das corporações e instituições responsáveis por, dentro de um prisma edificado nos moldes democráticos, uma manutenção da ordem, observando os direitos humanos.

Desse modo, as entrevistas semiestruturadas se colocaram como a forma mais palpável para trilhar uma análise da relação polícia-comunidade, mais especificamente em se tratando dos orientadores da profissionalização policial que marcam a abordagem policial e o próprio policiamento ostensivo.

A percepção dos policiais militares do RS sobre a produção da desigualdade no trabalho policial foi trazida mais fortemente a partir da abordagem policial, atrelado ao que seria o policiamento, ou o fazer policial, para o entendimento desses.

Assim, aproximamo-nos aqui, através de suas falas, do mito do “verdadeiro trabalho policial”, como nos apresenta Muniz e Silva (2010), que se caracterizaria pelo enfrentamento do grande crime, entendimento da maioria dos policiais e da própria população, dramatizando

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os eventos que assim são notados como rodeados de medos e violência, trazendo novos tipos de legitimações de atuação.

A ostensividade do trabalho da Brigada Militar está nas tênues linhas entre o direito de si mesmos, dos outros e de todos, relacionando-se com a discricionariedade policial, que, em cada situação, desafia o entendimento de qual prática utilizar, qual a atuação adequada, e, ainda, o que seria o legal e legítimo, o ético e o tolerado socialmente (MUNIZ & SILVA, 2010). A polícia possui a capacidade discricionária que necessita, em inúmeros casos, do aval dos cidadãos. Seria o poder de polícia atrelado à decisão discricionária em relação aos modos e jeitos de fazer o seu fim de ser.

A construção de uma subjetividade do sujeito-policial impera novamente nesse contexto de entendimento das crenças do que é permitido fazer para uma melhor gestão das situações de conflito. Pois, como foi trazido, “quem não deve, não teme”. E a atuação do policial é agir a partir da crença de que ele possui o olfato para a realização da boa abordagem policial. Legitimado pela ideia do que ele pensa que a sociedade entende como correto.

Com relação ao marcador social raça, as entrevistas trazem a aproximação da racialização com o debate acerca do faro policial e da discricionariedade do agir policial que são permeados por crenças que delimitam o policiamento ostensivo a partir de alguns pontos centrais: depende de quem é o cidadão, da sua cooperação com o policial, do local onde se encontra, de sua identidade social, da roupagem que veste e do agir.

O entendimento dos valores e crenças que edificam a formação de determinado indivíduo como suspeito é visto, pelos entrevistados, como uma construção social trazida das interações em sociedade, e não uma diretriz institucional. A construção do suspeito caminha ao lado de imaginários sociais que são base da própria construção da sociedade brasileira, bem como da instituição policial. A subjetividade do pensamento dos atores sociais envolvidos nessa trama apenas demonstra um quadro caótico e brutal das estruturas envolvendo o campo de segurança pública.

As relações sociais, nesse campo, produzem violências a partir do medo e da busca pela construção identitária dos atores sociais, a partir do confronto e da ideia de inimigo e do “bandido”. Nessa perspectiva, o marcador social raça, em conjunto à área em que determinada pessoa se encontra e a indumentária que está usando, aproximando-se do debate acerca da ideia

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de racialização, são trazidos como influenciadores na construção do indivíduo suspeito pelo aparato policial, entendido como “do mal”.

As crenças acerca do policiamento trazidas pelos policiais militares carregam a noção de signos pertencentes à população negra e que influenciam nos seus modos de agir, explicitando características de uma suspeição racial permeada por atravessamentos dos chamados signos da suspeição onde território, vestimenta, faixa etária, mostram-se em aspectos que reivindicam uma “cultura da periferia”. Ressignificando a desigualdade racial na Segurança Pública, bem como demonstrando a vigilância racializada praticada por essa instituição.

5. Concepções dos policiais da PMESP

A acusação de racismo institucional emociona os oficiais da PMESP. Eles não ficam indiferentes à defesa da neutralidade e do caráter técnico da atuação policial. Para alguns, ser visto como racista é algo que ofende e magoa. Alguns policiais negros admitem que a polícia produz efeitos racistas nos resultados de suas práticas, mas ser um policial negro não é o mesmo que reconhecer a existência de racismo institucional no policiamento.

A negação dos efeitos discriminatórios racistas do policiamento é o tom geral das entrevistas realizadas com policiais em SP, exceto de um grupo minoritário de policiais negros. A eficácia do mito da democracia racial é forte entre os policiais. O que não é sem importância num contexto político em que afirmar a violência e negar o reconhecimento das diferenças tornou-se possível no espaço público, com a ascensão do bolsonarismo.

O tema da letalidade policial é o mais espinhoso de todos. Ninguém quer ser acusado de racista ou de violento. Assim, os policiais reiteram as justificativas institucionais para o crescimento de pessoas mortas pela polícia nos últimos anos. “Quem escolhe a reação policial é o criminoso”. “Quem escolhe a intensidade da força policial é quem opta pelo confronto”. Não houve qualquer espaço nas entrevistas para a discussão de situações de abuso da força. A defesa corporativa é unânime. Comentam as punições rigorosas aplicadas aos policiais nas situações em que se constata erro e abuso. E rememoram o assassinato de policiais. Presenciar a morte de um colega de trabalho é visto como a situação mais tensa que um policial pode passar. E não há como não se emocionar com os relatos e com as lágrimas que emergem.

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O racismo é visto como um mal, que “infelizmente” ainda está presente na sociedade brasileira, devendo ser combatida com educação e políticas sociais. O racismo é recriminado pelos policiais e, por isso mesmo, negado enquanto prática institucional da polícia. Reconhecem a desigualdade da população negra em relação à branca, o que é visto como injustiça. O que se nega é o papel da polícia ou das técnicas de policiamento para a produção do quadro de desigualdade e opressão da população negra.

“A sociedade é racista, não a polícia”. Em seu discurso oficial, os policiais tendem a opor racismo estrutural a racismo institucional. A polícia é vista majoritariamente como um corpo técnico que opera em condições dadas – uma sociedade racista - sobre as quais não têm poder de mudança. As condições de vida da população negra são vistas como injustas, mas essa injustiça estaria fora do alcance de ação da polícia, que lida apenas com as consequências desse quadro social.

Ao falar da dimensão estrutural do racismo é quando os policiais mais se emocionam. Atribuem a reprodução das condições de vida desiguais de negros e brancos ao mercado de trabalho, à configuração desigual da cidade, ao desemprego e aos bloqueios de acesso à educação. Contudo, reforçam a técnica como salvaguarda da igualdade de tratamento, pois ao realizar a abordagem dos “suspeitos” indicados pela população via telefone, os policiais podem liberar aqueles que nada devem. Mas se com eles houver drogas, armas ou produtos de roubo, então a suspeita se confirma. Este aspecto das representações merece um comentário, pois revela uma concepção de segurança marcada politicamente, ainda que o discurso afirme o caráter neutro da instituição.

Admitem que o racismo estrutural conforma a subjetividade dos próprios policiais: “existe racismo na sociedade. E de onde vem o policial?”. Por isso consideram importante abordar a desigualdade nos cursos de formação policial. É quando os oficiais exibem os currículos dos cursos preparatórios, com conteúdos de direitos humanos, igualdade e ações afirmativas. Mas se dividem sobre a efetividade dos cursos para formar uma consciência antirracista nos policiais. Alguns consideram que, diante da alta tecnificação do trabalho policial atual não há como sustentar vieses, pois a técnica assegura que as preferências pessoais dos operadores na rua sejam colocadas em segundo plano em nome da “objetividade” dos procedimentos.

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Os oficiais enfatizam que os investimentos em mecanismo e ferramentas tecnológicas tem produzido um distanciando de práticas arcaicas ao ponto de afirmarem que não existe mais policiamento ostensivo feito na “empiria”. Além disso, mencionam melhorias na segurança dos agentes da polícia, no controle do policiamento e suas ações, no modo de “enfrentar o crime”, educar e formar oficiais e praças.

Nas comparações com o policiamento realizado nas décadas de 1980 a 2000, os entrevistados mencionam que os investimentos em tecnologia são bastantes significativos para a transição de uma polícia que exercia um serviço artesanal para uma científica, e por conta disso, a PM se isentaria de práticas institucionais racistas. Contudo, quanto mais próximos da base da pirâmide hierárquica, mais os profissionais entrevistados revelaram a importância do saber empírico obtido no dia-a-dia, no conhecimento territorial. Muitos argumentavam que há um hiato grande entre as ordens de serviço passadas pelo planejamento estatístico e o que ocorre na prática. O foco estaria na “atitude” suspeita ou na ocorrência do delito e não na pessoa do suspeito, garantem. Neste caso, o alto número de prisões em flagrante comprovaria que não há viés, pois as pessoas foram presas no cometimento de crimes.

De acordo com os oficiais, o controle sobre a atividade policial está aumentado gradativamente através da implantação do policiamento inteligente e do Cartão de Prioridade de Policiamento na medida que adere aos sistemas de monitoramento das ações individuais e coletivas dos agentes. Entretanto, por mais que os interlocutores enfatizem a melhoria no controle e gerenciamento das operações, eles apontam que o comportamento pessoal do policial ainda é uma “barreira” a ser controlada. Desta forma, incentivam a implementação de mais técnicas de controle como, por exemplo, a implementação da câmera acoplada ao uniforme policial que seria uma solução para inibir as ações abusivas da polícia e fiscalizar os cidadãos abordados. De acordo com os interlocutores, isso permitiria uma maior visibilidade e transparência do trabalho exercido pela polícia além da obediência aos procedimentos operacionais. Por outro lado, a coleta de imagens funcionaria como inibidor de condutas ásperas de policiais e suspeitos, e serviria como uma possível prova tanto de abuso de autoridade e do crime policial quanto provas para uma possível incriminação de suspeitos.

O uso de câmeras fotográficas e filmadoras não é algo novo. Desde crimes que repercutiram na mídia nacional como a Chacina da Candelária em São Paulo, ou Vigário Geral no Rio de Janeiro, os aparelhos eletrônicos de captura de imagens surgem como inibidores de condutas violentas policiais. Com o avanço tecnológico e o surgimento de câmeras acopladas

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em celulares e smartphones, a vigilância popular tem aumentado. Isso, para alguns entrevistados é tido como algo negativo, pois permitiria que alguns suspeitos respondessem de forma ríspida e negativa às abordagens. Assim, essa vigilância se configura como um panóptico no qual policiais estão constantemente preocupados em serem gravados durante suas abordagens.

A técnica e a tecnologia usadas e manipuladas pela PMESP acabam servindo de base argumentativa para os policiais afirmarem que “a polícia não prende pessoas negras, a polícia prende criminosos”. Baseados nos dados estatísticos e análises criminológicas, chegam a uma inferência de que os negros praticam mais crimes, por causa de uma “questão social”, como verbalizaram a maioria dos entrevistados. Segundo eles, é a exclusão do mercado de trabalho que leva negros a serem maioria entre assaltantes e traficantes que são o alvo do seu trabalho. Mudar este quadro não estaria entre as responsabilidades da polícia, que se limita a tentar impedir o cometimento de crimes.

Os momentos mais emocionais das entrevistas trazem reflexões sobre a visão estereotipada dos negros como suspeitos. São os cidadãos que telefonam à polícia quando sentem medo ou ameaça e descrevem as características do suspeito. Quase todos admitem que os estereótipos sobre o negro podem, por essa via, influenciar a atividade policial. Especialmente os policiais negros se emocionam ao tocar no tema, sendo um dos poucos momentos das entrevistas em que falaram antes como negros do que como policiais, com olhos úmidos, mãos trêmulas, corpo em agitação.

Para os policiais negros que negam a existência do racismo institucional há um componente interessante na formação de seu ponto de vista. Na medida em que reconhecem que o racismo estrutural produz condições degradadas para a população negra, a polícia aparece como uma oportunidade de carreira promissora. Absorve muitos trabalhadores negros, dando-lhes a oportunidade de um emprego valorizado socialmente. A polícia assegura a formação de seus oficiais no interior da própria instituição, em horário de trabalho. Propicia a circulação dos oficiais por espaços de poder e privilégio onde são, muitas vezes, as únicas pessoas negras com direito a fala e prestígio.

Uma entrevistada negra, soldado da PMESP, moradora de uma região periférica de São Paulo disse que a entrada na corporação muda muito a mentalidade. Os relacionamentos interpessoais, as afetividades, os tópicos das conversas, os interesses em geral mudam, inclusive

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com afastamento de alguns familiares. Ela narrou a impossibilidade de manter um diálogo pela ausência de encontrar pontos em comum com pessoas de fora da corporação, até mesmo nas atividades de “bico”. O horário de folga e diversão é com a família mais próxima e com outros policiais em eventos, em grupos de whatsapp. Parte da sua família acredita que ela trabalha como cuidadora de idosos, pois tem medo de sofrer ameaça, o que também contribuir para um afastamento da rede social de origem.

O binômio medo e segredo aparece no discurso como fundamentais na construção da sua subjetividade, essenciais para composição de uma estratégia pessoal de seletividade de relações. Conta que, ao assistir a aulas do curso pré-vestibular da Educafro, sentiu-se incomodada com o conteúdo da formação divergente de lições recebidas no interior da corporação policial, então decidiu retirar-se do encontro. Como uma pessoa negra, atribui um peso grande à educação como fator de mudança na condição de vida, mas discorda da necessidade de cotas raciais.

Outro entrevistado, negro, cabo da PM, oriundo de um município da região metropolitana, argumenta que a PM reorganizou sua vida e o modo de ver a sociedade, sobretudo por ter sido ensinado sobre as leis. Ele considera ter aprendido coisas relevantes na escola de soldados. Tendo mudado de endereço, já não se reconhece na dinâmica em que cresceu. Graduou-se em direito, esperava passar na prova da OAB e dar um próximo passo na transformação de sua vida. Reconhece que a entrada na PM criou tensões com seus antigos vizinhos, o que considera como uma discriminação de suas escolhas.

Recém aposentada, a única coronel mulher negra no estado de São Paulo, contou de sua infância como filha de praça da PM, em um bairro pobre de uma cidade do interior, e como a corporação transformou a sua vida e lhe deu uma projeção social. À PM devia tudo, os acessos que ela teve a lugares e pessoas, oportunidades de exercício do poder. Considera que a farda faz toda a diferença, pois como policial militar teve um outro tipo de participação social e tratamento respeitoso. Enquanto que, sem a farda, o tratamento concedido a ela era outro, de invisibilidade e até discriminatório, seja em restaurantes ou em reuniões com autoridades públicas, em que sua corporalidade de mulher negra não correspondia às expectativas de uma gestora pública em cargo de responsabilidade. Neste sentido, reafirmou que a polícia militar teria lhe concedido uma outra identidade, por sua vez também discriminada.

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Na medida em que o policiamento ostensivo é o centro de todo policiamento – ainda que o discurso oficial obrigue a declarar que todo o policiamento paulista é “comunitário” – não se vê na descrição dos policiais sobre o seu trabalho preocupações com ações integradas de prevenção da violência ou do delito, integração com outras políticas públicas ou discussão interna sobre dilemas de operar numa sociedade que é reconhecidamente desigual. O trabalho de polícia é todo focado em dissuasão de crimes patrimoniais. Os exemplos espontâneos oferecidos em entrevistas sempre enfatizam estes crimes. A grande preocupação da polícia são os ladrões, especialmente os que andam armados. Não se fala em homicídios, não se fala em violência doméstica. Neste sentido, o racismo não aparece como um problema que deveria ser resolvido pela instituição que está preocupada com o crime, sendo que a questão social deveria ser cuidada pelos políticos.

A postura neutra e reativa é paradoxal para uma corporação que aumentou progressivamente seu peso político na gestão da segurança pública e que dispõe de representantes eleitos em seu nome nas casas legislativas. Oriundos da PMESP são bastante influentes na política convencional, mas os entrevistados se limitam a falar sobre uma corporação que é apenas receptora de influências políticas, das quais estaria tentando se proteger com o auxílio das técnicas.

Considerações finais

Os resultados indicam a desigualdade racial como produto de práticas do policiamento, incorporados desde o seu planejamento, na abordagem de suspeitos e na sua prisão. O tratamento desigual e a administração da violência, especialmente contra os negros, não constitui tema da reflexão dos policiais, sobretudo aqueles responsáveis pelo planejamento do policiamento. O racismo é visto pelos policiais como um traço negativo da sociedade brasileira cuja existência é exterior à instituição policial e suas práticas diárias, vistas como técnicas e científicas, não havendo responsabilidade institucional em sua produção. A prática de filtragem racial é negada, não constituindo uma questão a ser monitorada e discutida. Segundo o discurso dos oficiais, a progressiva utilização de meios e técnicas de controle do trabalho policial e o planejamento profissionalizado do policiamento seriam suficientes para assegurar a neutralidade do tratamento dos diferentes grupos sociais. Exatamente este ponto que é

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contestado pelas evidências quantitativas obtidas e pelo ponto de vista de policiais negros com visão crítica.

Embora reconhecendo que o racismo seja uma fonte de desigualdade prejudicial às chances de uma vida digna para a população negra, o senso comum entre os policiais paulistas e gaúchos é de que este é um problema “social” muito mais amplo do que os limites de atuação da polícia. Problema este para o qual o modelo de policiamento e as escolhas das políticas de segurança não teriam qualquer responsabilidade. Em sua maioria, não enxergam as técnicas de policiamento como fruto de escolhas.

Parece ser decisiva para a consolidação deste ponto de vista a importância que a entrada para a polícia adquire na reconfiguração da identidade desses sujeitos. A identidade policial passa a rivalizar com traços da experiência de vida anterior, e os ressignifica. O espectro de relações e expectativas se modifica quando a farda modifica a fachada pública com que passam a interagir. No lugar da invisibilidade e da discriminação que sofriam como negros e periféricos, o respeito, a admiração e o temor. Assim como as experiências de mobilidade social, o acesso à educação e a um emprego estável e dignamente remunerado. A ascensão social de trabalhadores negros nas corporações policiais militares parece um obstáculo cognitivo à aceitação da existência do racismo institucional nas polícias. Esse é um paradoxo que passa a fazer parte da vida de policiais negros: as identidades sociais de negro e de policial não são encaixam facilmente.

Com farda e sem farda as experiências sociais dos policiais negros alteram-se bruscamente. As experiências narradas ilustram a dificuldade de uma pessoa negra sustentar, sem a farda, a posição social que ocupa. Inclusive na relação com policiais em exercício no momento em que estão de folga. Ouvimos várias vezes sobre o receio e os cuidados que emergem quando os homens negros estão dirigindo seus carros, aquisições compatíveis com salários de oficiais das polícias, e se deparam com barreiras de fiscalização. Apesar de toda a negativa anterior sobre práticas racistas no policiamento, os oficiais negros temem as abordagens quando estão sem farda. Acionam a identidade policial para tentar reverter a expectativa de constrangimento e até de uma interação agressiva associada à identidade de homem negro abordado pela polícia.

Não obstante estarem sempre presentes os dilemas entre ser negro e ser policial, a socialização militar captura o desempenho crítico como uma violação à hierarquia e à

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disciplina, como se pensamentos inovadores e posturas de diferenciação não fossem condizentes com a identidade policial militar ou fossem uma recusa do pertencimento ao corpo homogêneo construído pelo militarismo.

Tanto em SP como no RS, o contexto interno das instituições encontra-se mais fechado a críticas. Ainda que a BM tenha sido mais marcada por projetos de inovação e por experiências de policiamento comunitário bem sucedidas, nos dois estados, a formação policial vem mudando, com menor peso atribuído à formação em direitos humanos, sociologia e psicologia. No caso de SP, a disciplina de Igualdade Racial teve nome e conteúdo alterados para tratar de amplo leque de diversidades, tendo sua carga horária reduzida.

A prática da filtragem racial não é ensinada nas formações das escolas. Também não é combatida. Mas ela é aprendida na socialização profissional necessária para o trabalho no policiamento ostensivo das ruas. A tecnologia de policiamento ostensivo utiliza-se da filtragem racial para desempenhar uma das suas principais ferramentas de trabalho, que é a suspeição.

Integrantes das duas polícias estudadas, com poucas exceções, relatam a visão predominante de seu trabalho como “guerra ao crime”. Nesta guerra, seu papel é identificar os inimigos da ordem social, direcionando seu olhar para o corpo, a vestimenta, as formas de comportamento e atitudes que caracterizam os tipos sociais que procuraram identificar e deter. Numa frequência assombrosa, esses tipos correspondem a jovens negros que se vestem com um estilo que os policiais aprendem rapidamente a estigmatizar. A filtragem racial é uma ferramenta para antecipar-se ao perigo e adiantar-se ao inimigo. O medo é uma componente cotidiana, o medo da morte, sempre presente, autoriza escalar o uso da força contra os suspeitos.

Os policiais costumam afirmar que é o abordado quem define o nível de uso da força que irão empregar. E essa definição aparece nos relatos relacionada à vestimenta numa frequência impressionante. São os signos do corpo que definem se uma abordagem será ou não agressiva. Os policiais afirmam que a cor da pele não é um fator relevante. Também afirmam que as ocorrências que recebem pelo rádio são transmitidas com a cor da pele significada.

O modelo de policiamento ostensivo ancorado em abordagens tem sido apontado internacionalmente como produtor de filtragem racial e outros elementos de racismo institucional. O tema é debatido em pesquisas nas grandes cidades do mundo todo, assim como o protesto negro incorpora cada vez mais a dimensão global das lutas contra a violência policial.

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Contudo, no Brasil, as instituições policiais e os agentes importam o modelo e as tecnologias deles decorrentes sem importar as críticas feitas por pesquisas científicas e pelo movimento negro nos países exportadores do saber sobre controle do crime. Selecionam do conhecimento internacional sobre polícia os elementos que desejam importar, ignorando outros igualmente disponíveis.

Enquanto isso, reiteram constantemente a crença no caráter neutro das tecnologias de policiamento. E acreditam que a neutralidade das técnicas os isenta da responsabilidade social na reprodução do racismo que reconhecem como estrutural da sociedade brasileira.

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Referências

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