C I S T I C E R C O R A C E M O S O I N T R A V E N T R I C U L A R . E X T I R P A Ç Â O C I R Ú R G I C A
J. LAMARTINE DE ASSIS * ROLANDO A. TENUTO **
Tivemos a oportunidade de observar um caso de cisticercose
ce-rebral, sob a forma de volumoso cisto na cavidade do ventrículo lateral
esquerdo, acompanhado de outra formação cística menor, livre, no mesmo
ventrículo, e que, por esse motivo, ocasionou obstruções totais e
repeti-das do buraco de Monro, com as conseqüências clínicas daí decorrentes.
Por outro lado, o diagnóstico etiológico e de localização foi logo
pos-sível, graças às alterações no liquor e no sangue, à ventriculografia,
e, principalmente, a um pneumocistocele. Finalmente, o tratamento
ci-rúrgico permitiu a extirpação total dos cistos, com remissão completa
dos sintomas clínicos.
O B S E R V A Ç Ã O •— L . S., branca, com 38 anos de idade, casada, brasileira, regis-trada sob o n.° 89.651 no Hospital das Clínicas de S. Paulo, Serviço do Prof. Adherbal Tolosa. A paciente foi internada no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, em novembro de 1947, em estado subcomatoso e sem poder prestar qual-quer informação; nestas mesmas condições, fora transferida, dias depois, para a enfermaria de Neurologia. N a história clínica fornecida pelo marido constava que a moléstia atual iniciara-se no dia 27 de julho, portanto 4 meses antes da internação, com sensações vertiginosas giratórias e dor de cabeça. A cefaléia continuou com fases de remissão e exacerbação até que, no dia 15 de agosto, apareceram vômitos violentos e distúrbios mentais: a paciente começou a falar sem nexo e tornou-se quase que inteiramente desorientada. Desde esse dia seu estado vem-se agravando, os vômitos tornaram-se muito freqüentes, a cefaléia persistiu, embora com surtos e remissões, e o estado confusional permaneceu inalterado. Cinco dias antes de ser internada neste Hospital, piorou extraordinariamente, entrou em estado sub-comatoso e apresentou vômitos contínuos. Os antecedentes, tanto hereditários como pessoais, nada revelaram de importante para o caso.
O exame clínico resultou normal. Pressão arterial: 12 de máxima e 8 de mí-nima (Tyoos). Pulso isócrono, rítmico, fino, com 90 batimentos por minuto. Tem-peratura: 36°,9C na axila. Os diferentes órgãos e aparelhos estavam normais.
Exame psíquico; Síndrome confusional com acentuada predominância do torpor.
A doente somente reagia ligeiramente quando muito solicitada. P o r vezes, princi-palmente durante a noite, tornava-se inquieta e era tomada de alucinaçôes visuais e auditivas, além de alucinoses freqüentes. Desorientação auto e alopsíquica par-cial. Exame neurológico: Havia duas síndromes principais: uma motora, pirâ-mido-extrapiramidal, com predominância do contingente extrapiramidal, e outra de hipertensão intracraniana. Tetraplegia espasmódica com intensa hipertonia do tipo
Trabalho apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Assoc. Paulista de Medicina em 5 março 1947.
* Assistente de Neurologia na Fac. Med. Univ. S. Paulo (Prof. A. Tolosa).
** Neurocirurgião do Hospital das Clinicas (Prof. Benedito Montenegro e Prof. A. Tolosa).
míxto, estando os membros inferiores em hiperextensão e os suoeriores em semi-flexão. Fácies hipomímica. Tremor lento e ritmado nas pálpebras e nos membros, por surtos, que às vezes sôbrevinham às tentativas para qualquer movimentação ativa no leito. Rotação do pé direito para fora. Sinal da tróclea de ambos os lados. Moderada rigidez de nuca. E x a g e r o dos reflexos axiais da face. Reflexos de postura normais. Hiporreflexia tendinosa geral. Não havia os sinais de Ba-binski, Mendel-Bechterew e Rossolimo. Reflexos de Magnus e Kleijn ausentes. Prejudicada a pesquisa da sensibilidade objetiva, de ataxias e apraxias. Reflexo de preensão forçada ausente. Constituindo a síndrome de hipertensão intracrania-na havia intensa cefaléia, vômitos de tipo cerebral e edema da papila bilateral. Pupilas normais, isocóricas e com refletividade normal. Motricidade extrinseca também normal. Exame de fala e linguagem comprometido pelo estado mental, porém, as poucas palavras pelas quais a doente se exprimia não apresentavam defeitos de articulação. Freqüente intoxicação pelo gesto. Troficidade normal.
Evolução: Pensando numa síndrome de hipertensão intracraniana de origem
tumoral, solicitamos os exames do liqüido cefalorraquidiano e neurocular. Com surpresa nossa, o liquor, retirado por punção suboccipital em decúbito lateral, apre-s e n t o u : preapre-sapre-são inicial 8 (Man. C l a u d e ) ; volume retirado 18 c c , liquor límpido e incolor; 0 células por m m3; r. Pandy e Nonne, negativas; 0,10 gr de proteínas
totais por l i t r o ; 7,40 gr. de cloretos e 0,65 grs. de glicose por litro; r. benjoim coloidal 00000.00000.00000.0; r. Takata-Ara, negativa; r. Wassermann negativa com 1 cc.; r. de Meinicke, negativa; r. Eagle negativa; reação de desvio de
com-plemento para cisticercose fortemente positiva ( J . M. Taques Bittencourt). Diante
deste resultado, pedimos a reação de desvio de complemento para cisticercose no sangue, a qual resultou fortemente positiva (A. Cunha). O exame
neuroftalmoló-gico evidenciou edema de papila e visão igual a 0,6, bilateralmente ( P a u l o Braga
Magalhães).
Com estes resultados relacionamos a síndrome de hipertensão intracraniana à cisticercose cerebral. O exame hematológico veio em apoio desta etiologia, pois mostrou eosinofilia acentuada, além de alterações do tipo da anemia hipocrômica (3.700.000 hemácias por mm3, 7.400 leucócitos por m m8; 74% de hemoglobina;
valor globular 1; eosinófilos 17,6%, linfócitos típicos 14,4% e leucocitóides 6.5%. monócitos 3,2, polimorfonucleares neutrófilos 58,4%). Entretanto, novo exame de
liquor, retirado por punção suboccipital poucos dias depois, foi inteiramente
nor-mal, tendo sido negativa a reação de desvio de complemento para cisticercose. A mesma reação no sangue, repetida, na mesma ocasião, também foi negativa. Pedi-mos então um craniograma, o qual Pedi-mostrou uma imagem voluPedi-mosa, arredondada, bem visível na radiografia de perfil, abrangendo as regiões parietoccipital e tem-poral.
Apesar de pairar cfúvida sôbre o diagnóstico etiológico, vínhamos mantendo a medicação anti-infeccicsa à base de sulfanilamida na veia, em doses moderadas, e soro glicosado hipertônico em altas doses, com o que a doente melhorou extraor-dinariamente, apresentando remissão quase total. N o entanto, ao fim de algumas semanas, houve piora dos sintomas clínicos, reaparecendo os sinais de hipertensão intracraniana e o estado subcomatoso. Decidimos fazer a ventriculografia, uma vez que persistiam o edema de papila e a baixa de visão. Após trepanação do occipital, foi puncionado o ventrículo lateral esquerdo e obtida a ventriculografia em condições satisfatórias. O ventriculograma permitiu localizar um tumor na região parieto-occípito-temporal esquerda (Fig. 1 ) .
Dez dias depois da ventriculografia, foi feita punção ventricular evacuadora, tendo a agulha, ocasionalmente, penetrado num cisto existente na cavidade do ventrículo lateral esquerdo, tendo sido retirados 15 cc. de liqüido levemente
xanto-crômico, cujo exame mostrou: 45,3 células por mm3 ( 7 1 % Hnfócitos, 12%
mononu-cleares médios, 7% grandes mononumononu-cleares, 2 % polinumononu-cleares e 8% de eosinófilos) ; 0,40 gr de proteínas totais por l i t r o ; 6,60 gr. de cloretos por l i t r o ; r. Pandy e Nonne, fortemente positivas; r. benjoim 01222.22221.00000.0; r. Takata-Ara posi-tiva, tipo m i x t o ; r. Wassermann anticomplementar; r. para cisticercose anticom-plementar ( J . M. Taques Bittencourt). Aproveitou-se a oportunidade para a
obtenção de um pneumocistocele, o que foi conseguido. Obteve-se a imagem de volumoso cisto intraventricular (Fig. 1 ) .
Com esta localização exata e o conhecimento da natureza cística do processo tumoral, a doente foi p r e p a r a d a para o a t o cirúrgico. A l g u n s dias antes da i n t e r v e n ç ã o sucedera mais u m surto agudo, grave, de h i p e r t e n s ã o intracrania-na, chegando a paciente a entrar em estado comatoso. A p u n ç ã o ventricular do lado esquerdo, com retirada de liquor, fêz desaparecer r a p i d a m e n t e os sintomas clínicos. A intervenção cirúrgica constou de ampla craniotomia pa-rietoccipital esquerda. O cérebro apresentava aspecto característico de
ede-m a e c o n g e s t ã o venosa intensa. A b e r t a a cavidade do ventrículo lateral, surgiu i m e d i a t a m e n t e u m v o l u m o s o cisto aderente às paredes ventriculares. Este cisto foi t o t a l m e n t e extirpado. O u t r o cisto menor, livre n o fundo do ventrículo, foi retirado por aspiração. N ã o existindo o u t r a s formações t u -m o r a l s dentro ou fora da cavidade ventricular, foi dada por t e r -m i n a d a a inter-venção, sendo o ventrículo lateral enchido com s o r o fisiológico m o r n o , a
d u r a - m á t e r s u t u r a d a com seda, e o retalho ósseo recolocado O s t u m o r e s císticos extirpados são os que se v ê e m na fig. 2. O exame histologic© m o s -trou tratar-se de cisticerco celuloso, variedade racemosa.
O e x a m e de liquor por p u n ç ã o suboccipital, após a craniotomia, deu o seguinte r e s u l t a d o : pressão inicial 12 ( M a n . C l a u d e ) ; liqüido límpido e incolor; 2 células por m m3 (Hnfócitos 1 0 0 % ) ; r. P a n d y e N o n n e p o s i t i v a s ; 0,15 g r s de
proteínas totais por litro; 7,40 gr. de cloretos e 0,67 gr. de glicose por litro; r. benjoim 00000.12221.00000.0; r.. Takata-Ara negativa; r. para cisticercose
for-temente positiva; r. Meinicke negativa; r. Eagle, negativa ( J . M. Taques
Bit-tencourt). Novo exame neurocular revelou edema de papila pouco acentuado em ambos os olhos; exames para acuidade e campo visual prejudicados ( P a u l o B. Magalhães). Outro exame hematológico indicou melhora do estado anêmico, pois o número de hemácias subiu para 3.700.000 e a taxa de hemoglobina elevou-se para 74%. N o entanto, a eosinofilia acentuou-se mais, chegando a 20%. A rea-ção do desvio de complemento para cisticercose no sangue tornou-se fortemente positiva.
COMENTÁRIOS
Como se depreende da leitura desta observação, a sintomatologia
clínica teve início agudo e evolução muito rápida. Depois de 4 meses
com fenômenos cerebrais hipertensivos moderados evoluindo por surtos
e remissões, a enferma entrou rapidamente em estado subcomatoso com
vômitos intensos e persistentes. Os exames subsidiários permitiram
logo o diagnóstico de cisticercose cerebral. O craniograma mostrou uma
imagem arredondada, extensa, de contornos regulares, abrangendo as
regiões parietotemporal e occipital, o que não é comum na cisticercose
encefáüca. O ventriculograma localizou um tumor volumoso na zona
posterior do hemisfério cerebral esquerdo. A punção do ventrículo
late-ral esquerdo atingiu um provável cisto, e permitiu, após retirada de
liqüido e injeção de ar, a visualização de um pneumocistocele.
Julga-mos de interesse assinalar que a reação de Weinberg fora negativa no
sangue e no liquor, poucos dias depois dos primeiros exames. Em
seguida à craniotomia estas reações novamente se positivaram.
Hemo-gramas sucessivos, antes e depois do ato cirúrgico, além de modificações
do tipo da anemia hipocrômica, mostraram sinais de infecção e eosinofilia
acentuada. Ao exame clínico geral não foram encontrados nódulos
cutâneos.
O exame neurológico mostrou um quadro de tetraplegia
espasmó-dica. Os quatro membros estavam em contratura, permanecendo em
extensão os inferiores e em semiflexão os superiores, o que se
aproxi-mava da rigidez decerebrada. Déficit piramidal à direita, bem
verificá-vel depois que desapareceu a contratura. Não havia reflexos
patológi-cos. Completavam a parte clínica as síndromes confusional e de
hipertensão intracraniana. Explicamos a evolução rápida e por surtos,
da moléstia, não pelo volume enorme atingido pelas formações císticas
ventriculares e sim pela situação inteiramente livre de uma delas, do
tamanho de uma cereja, encontrada em plena cavidade do ventrículo
lateral esquerdo. Este tumor menor, pela sua mobilidade, deveria ter
obliterado de modo transitório, várias vezes, o buraco de Monro esquerdo,
estabelecendo assim a hipertensão cerebral e engasgamento dos lobos
temporais, com compressão do tronco encefálico, ocasionando o quadro
hipertônico global, além dos sintomas e sinais de hipertensão
intracra-niana. Corroborando estas idéias, temos o fato de que o último surto de
hipertensão encefálica foi rápida e inteiramente debelado após punção
do ventrículo lateral esquerdo, quando a pressão inicial marcava 50 mm.
de água (Claude). A síndrome deficitária piramidal do lado direito
pode ser explicada pela compressão direta da massa tumoral mais
volu-mosa, sôbre a região motora do hemisfério cerebral esquerdo.
RESUMO
Os autores apresentam um caso de cisticercose cerebral em que pôde
ser localizado e extirpado, com sucesso, volumoso cisto fixo no
ven-trículo lateral esquerdo, e outro menor, livre na cavidade ventricular. O
tumor menor, graças à sua mobilidade, acarretava obstruções
transitó-rias do buraco de Monro esquerdo, dando como conseqüência surtos de
hipertensão intracraniana com engasgamento dos lobos temporais e
com-pressão do tronco encefálico. Além das manifestações da hipertensão,
houve confusão mental e tetraplegia espasmódica, explicadas, a primeira
pelo edema cerebral e a segunda, pela libertação tonígena determinada
pela compressão do tronco encefálico. Houve remissão total dos
sinto-mas clínicos após a intervenção.
SUMMARY