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UMA HISTÓRIA DA EUROPA

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Academic year: 2021

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UMA HISTÓRIA DA EUROPA

POR ERIC HOBSBAWM No século 18, um historiador e geógrafo russo, V.N. Tatichtchev, traçou a linha divisória entre Europa e Ásia que todos nós conhecemos: dos Urais ao mar Cáspio e ao Cáucaso. Para banir o estereótipo de uma Rússia "asiática" - logo, atrasada – era preciso destacar seu pertencimento à Europa [1].

Os continentes são tanto – ou mais? – construções históricas quanto entidades geográficas. A Europa cartográfica é uma construção moderna [2]. Foi apenas no século 17 que ela saiu do limbo. A ideia atual de uma União Europeia (UE) [3] é ainda mais jovem, e os projetos práticos para sua unificação só nasceram no século 20, filhos das guerras mundiais. Países antes hostis se uniram para formar uma zona de paz, avalista dos interesses

comuns [4].

Trata-se de uma Europa historicamente jovem. A Europa ideológica, porém, é bem mais antiga. É a Europa, terra da civilização, versus a não-Europa dos bárbaros. (…)

A etiqueta "Ásia" como sinônimo de um "outro" que reúne a ameaça e a inferioridade foi colada nas costas da Rússia desde sempre. Da política aos mitos é apenas um passo. O mito europeu por excelência é o da identidade primordial. O que temos em comum é essencial; o que nos diferencia é secundário ou insignificante. Ocorre que a presunção de unidade, em se tratando da Europa, é ainda mais absurda pelo fato de que é precisamente a divisão que caracteriza sua história. Uma história da Europa é impensável antes do fim do Império Romano Ocidental e mesmo antes da ruptura permanente entre as duas margens do Mediterrâneo, que se seguiu à conquista muçulmana do norte da África [5].

Terra fragmentada

O Império Romano nunca conseguiu estabelecer-se solidamente além do Reno e do Danúbio [6]. Roma foi um

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império pan-mediterrâneo [7] , mais que europeu, e o que conta para o destino da Europa não é o império que triunfa, mas o império que desaparece. A história da Europa pós-romana é a história de um continente fragmentado, presa constante de invasores [8].

Hunos, abares, magiares, tártaros, mongóis e pequenas tribos turcas chegam do leste, os vikings, do norte, os conquistadores muçulmanos, do sul. Essa época só termina em 1683, quando os turcos são derrotados às portas de Viena[9]. Afirmou-se que a Europa descobriu sua identidade ao longo dessa luta milenar. É um anacronismo[10]. Nenhuma resistência coletiva ou coordenada, mesmo em nome do cristianismo, cimentou o continente e a unidade cristã desaparecidos no meio da época das invasões. Desde então, houve uma Europa católica e outra ortodoxa. Entre a queda de Bizâncio[11] em 1453 e o cerco de Viena de 1683, os últimos conquistadores vindos do Oriente, os turcos otomanos, ocupam todo o sudeste europeu.

Eles descobrem não apenas as Américas, mas a Europa, pois é em contraposição aos povos indígenas do Novo Mundo que espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses, franceses e italianos, que se precipitam sobre as Américas, vão reconhecer seu caráter europeu. Eles têm a pele branca, impossível de confundir com a dos "índios". Nasce uma diferenciação racial que, nos séculos 19 e 20, se converterá na certeza de que os brancos detêm o monopólio da civilização. Mesmo assim, a palavra "Europa" ainda não faz parte do discurso político -para isso é preciso esperar o século 17 [12].

O nome remete ao jogo militar e político dominado pela França, o Reino Unido, o império dos Habsburgos e a Rússia, a que vem se juntar mais tarde uma quinta "grande potência", a Prússia -transformada em Alemanha unida. Mas foram também as transformações da paisagem política que, no século 17, tornaram possível o nascimento dessa Europa consciente dela mesma. (…) [Trata-se] da comunidade cosmopolita dotada dos

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valores universais da cultura do século 18, que se amplia após a Revolução Francesa. No decorrer do século 19, a Europa se torna viveiro de um conjunto de instituições educativas e culturais e de todas as ideologias do mundo contemporâneo.

Esse sobrevoo da história da identidade europeia nos permite identificar o anacronismo cometido quando se procura um conjunto coerente de supostos "valores europeus". É ilegítimo supor que os "valores" nos quais se inspiram hoje a democracia liberal e a União Europeia tenham sido uma corrente subjacente à história de nosso continente. Os valores que fundaram os Estados modernos antes da era das revoluções foram os das monarquias absolutas e mono-ideológicas. Os valores que dominaram a história da Europa no século 20 – nacionalismos, fascismos, marxismos-leninismos- são de origem tão puramente europeia quanto o liberalismo e o "laissez-faire"[13].

Inversamente, outras civilizações praticaram certos valores ditos "europeus" antes da Europa: o império chinês e o império otomano praticaram a tolerância religiosa – para a sorte dos judeus expulsos pela Espanha. Foi apenas no final do século 20 que as instituições e os valores em questão se difundiram por toda a Europa, pelo menos teoricamente.[14]

Os "valores europeus" são uma palavra de ordem da segunda metade do século 20. De 1492 a 1914, a Europa esteve no coração da história do mundo. Primeiro por sua conquista do Hemisfério Ocidental do globo e, de maneira mais ampla, a partir de 1750, por sua superioridade militar, marítima, econômica e tecnológica. O "momento" europeu da história mundial se encerra com a Segunda Guerra, embora ainda nos beneficiemos do rico legado econômico e, em menor medida, intelectual e cultural dessa supremacia perdida [15].

A hegemonia dessa região levanta problemas que continuam a dividir os historiadores. Lembremos apenas que, depois da queda de Roma, a Europa não conheceu nenhum outro quadro de

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autoridade comum nem qualquer outro centro de gravidade permanente [16].

Continente das guerras

Mas essa heterogeneidade do continente oculta uma divisão de funções entre dois centros dinâmicos sucessivos e suas periferias. O primeiro foi o Mediterrâneo ocidental, lugar de contato com as civilizações do Oriente Médio e distante, lugar da civilização urbana e da sobrevivência do legado romano.

Mas, entre 1000 e 1300, uma zona cada vez mais orientada ao Atlântico foi tomando a dianteira como eixo central da evolução urbana, comercial e cultural do continente.

O grande desenvolvimento da Europa teria sido difícil sem a contribuição das "periferias" exportadoras de matérias-primas[17]. O desnível entre essas zonas, cujas estruturas sociais divergem em razão da divisão de trabalho e de suas experiências históricas, foi profundo.

Ainda temos consciência da linha de fratura que existe, embora tenha diminuído, entre as duas europas, como entre Itália do norte e Itália do sul ou entre Catalunha e Castela . No século 19, uma elite restrita conseguiu superar essas divisões, enquanto a massa dos europeus continuava a viver no universo

oral dos dialetos locais.

O progresso das línguas do Estado perpetuou essa pluralidade agrária, que perdurou com a chegada dos Estados nacionais: a partir daí, o cidadão se identifica com uma "pátria" contra outras. A Europa das nações tornou-se o continente das guerras. (…)

No mundo da cultura, entre as classes instruídas e abastadas, é a herança europeia que se globalizou [18]. Desde o desaparecimento dos regimes autoritários e o fim dos regimes comunistas, as divisões político-ideológicas da Europa desapareceram, embora as sobrevivências da Guerra Fria ainda lancem abismos entre a Rússia e seus vizinhos[19]. Mas um paradoxo se faz notar: apesar desse processo de

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homogeneização, os europeus não se identificam com seu continente. Mesmo para aqueles que levam uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional.

A Europa está mais presente na vida prática dos europeus que em sua vida afetiva. Apesar de tudo, porém, ela conseguiu encontrar um lugar permanente no mundo, como coletividade – permanente, mas incompleta, enquanto a Rússia não encontrar seu lugar em seu seio.

ERIC HOBSBAWM (1917) é historiador inglês e professor emérito da Universidade de Londres, autor de "A Era dos Impérios" (Paz e Terra). A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .

Referências

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