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A Pesquisa Etnoarqueológica

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Academic year: 2021

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ETNOARQUEOLOGIA: A SUA RELAÇÃO COM A TERRITORIALIDADE INDÍGENA E A CORRELAÇÃO DO SÍTIO LAGO RICO COM O GRUPO KARAJÁ

DE ARUANÃ

Daniela Dias Ortega1 Dra. Rosiclér Theodoro da Silva2 RESUMO: A Etnoarqueologia é uma das abordagens da Arqueologia. Tem por finalidade a ampliação das possibilidades de interpretação do registro arqueológico e das questões relacionadas ao contexto cultural, como técnicas de manufatura, uso e descarte de matéria-prima e objetos, entre outros, uma vez que se utiliza da pesquisa etnológica e etnográfica com comunidades contemporâneas, para a compreensão de elementos que nos possam dar subsídio na pesquisa sobre os povos do passado. Dessa forma, a Etnoarqueologia se propõe à discussão de modelos e analogias que possam nos levar à compreensão de elementos culturais das comunidades pretéritas, através do estudo das sociedades humanas do presente e suas relações cotidianas e/ou simbólicas. Entretanto, como nenhuma cultura é estanque no tempo, as sociedades atuais não refletem o passado necessariamente. Pretende-se assim, apresentar a pesquisa arqueológica em desenvolvimento no sítio arqueológico Lago Rico, localizado à margem esquerda do rio do Peixe, que apresenta características de uma grande aldeia; e as possibilidades de correlação com um outro sítio arqueológico, à margem direita do Rio Araguaia, que foi associado ao atual grupo Karajá de Aruanã. Tomando-se como eixo a Etnoarqueologia dos povos indígenas, faz-se importante a discussão de novas abordagens, como a Arqueologia Colaborativa, que visa o retorno da pesquisa arqueológica às comunidades com as quais trabalha. Nesse sentido, hoje no Brasil há uma forte relação entre a Arqueologia e a territorialidade indígena, sendo que a presença de sítios arqueológicos ancestrais ou até mesmo recentes em uma localidade, é uma das variáveis relevantes na demarcação das terras indígenas.

PALAVRAS-CHAVE: Etnoarqueologia, Arqueologia, Sociedades Indígenas, Territorialidade, Karajá de Aruaña.

A Pesquisa Etnoarqueológica

A cultura material é a principal e, muitas vezes, única fonte de pesquisa da arqueologia. Conforme Prous (1992), para a interpretação dessas fontes, muitas vezes fragmentárias e exclusivamente materiais, coletadas em campo, os arqueólogos “[...] lançam mão de outros métodos auxiliares que recebem geralmente a denominação de etnoarqueologia” (PROUS, 1992, p. 51). No caso da arqueologia pré-colonial, é preciso buscar elementos que nos ajudem a interpretar os sítios arqueológicos, para a compreensão desses grupos humanos: como era a sua dinâmica e mobilidade, como se alimentavam, que atividades técnicas artesanais e de

1 Acadêmica do 4º período em Arqueologia-PUC Goiás e do 4º período em História-UFG/Jataí. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: danielaortega9@hotmail.com.

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2 trabalho realizavam, e o que mais isso implicaria nas nossas interpretações acerca desses contextos sócio-culturais.

Em definição, “A etnoarqueologia trabalha com sociedades contemporâneas, buscando dados etnográficos para responder problemas de interesse arqueológico”, afirma Silva (et al. 2011, p. 28). Com esses dados, segundo a autora, será possível a construção de modelos, a proposição de hipóteses, e inferências culturais sobre a relação entre o comportamento humano e o mundo material.

Tendo sido desenvolvida a partir da década de 1960, a etnoarqueologia passou por diferentes fases de construção e refinamento de seus métodos, problematizando a sua prática:

Até os anos 1980, a etnoarqueologia foi dominada pelas abordagens processualistas e comportamentais, interessadas na compreensão dos sistemas de assentamento/subsistência, produção/utilização da cultura material e formação do registro arqueológico. A década seguinte foi marcada pelo pós-processualismo, que incorporou novos temas e problemas, dedicados a compreender os aspectos simbólicos da relação humana com o mundo material, enfatizando, por exemplo, estratégias de poder, cosmologia e vida ritual (David, 1992. In: SILVA, 2009, p. 28).

Uma dessas problematizações é o uso da analogia direta das sociedades vivas com a interpretação do registro arqueológico. Isso porque, para Binford (Silva et al. 2011, p. 28), tal procedimento provocaria uma compreensão simplificada, distorcida e etnocêntrica do registro arqueológico. Ainda mais importante do que isso, é considerarmos o fato de que as sociedades indígenas contemporâneas não são o reflexo do passado. E que mesmo os grupos pré-coloniais desenvolviam e transformavam a sua cultura constantemente, tomando em conta que todas as culturas são dinâmicas3. Porém, não temos acesso à imaterialidade desses grupos pretéritos, o que podemos afirmar, é que não era a mesma dos grupos indígenas de hoje.

Sendo assim, Silva (2009) defende que a etnoarqueologia não deve ser entendida como uma analogia propriamente dita, mas como um “[...] campo investigativo que visa trazer referenciais etnográficos como subsídio às interpretações arqueológicas sobre o passado e, ao mesmo tempo, como uma possibilidade de arqueologia do presente” (SILVA, 2009, p. 121).

3 Segundo Laraia (2003), a cultura não é estática, ela tende a se modificar com o tempo, algumas mais rápido devido a fatores mais instantâneos e outras mais lentamente. Sendo assim, o dinamismo da cultura é inevitável, o que é discutível é o ritmo em que ocorre, e os fatores que influenciam nessa mudança.

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3 Uma das posturas da etnoarqueologia, é a arqueologia colaborativa, como uma nova tendência, que vem sendo discutida em uma perspectiva interdisciplinar e multicultural. Conforme Fabíola Silva (et al. 2011), a natureza colonialista da arqueologia vem sendo criticada, no tocante à necessidade de relativização do direito da interpretação científica sobre o conhecimento do passado, em detrimento de outras interpretações sobre o mesmo. Dessa forma, a prática colaborativa se propõe mais inclusiva, menos colonizadora, e nos contextos indígenas, com uma “indigenização” da arqueologia:

Em contextos indígenas, esta abordagem pressupõe a perspectiva multicultural na construção do conhecimento e isto implica em contrapor diferentes modos de ver e conhecer o mundo, neste caso, dos arqueólogos/etnoarqueólogos e dos indígenas. É preciso compreender que as populações nativas têm uma relação dinâmica e dialética com o seu passado (SILVA, BESPALEZ, STUCHI, 2011, p. 37).

É partir das necessidades da comunidade que a arqueologia colaborativa vai agir, em conjunto com essas pessoas, respeitando suas restrições. A arqueologia colaborativa vai muito além de uma pesquisa convencional com “boas intenções”, na qual o pesquisador “dá voz” ao indígena, porque ela serve aos indígenas, eles designam o que será feito, ou o que não será publicado. A comunidade é quem guia todo o trabalho arqueológico, fazendo parte dele, desde o planejamento, não só com a sua voz e opinião anexas como fontes, mas sim como agentes da pesquisa, da memória sobre os sítios arqueológicos e sua relação com eles. Por isso possui um caráter militante e ativista, porque as necessidades de muitos povos indígenas estão relacionadas à questão da terra.

A Contribuição das Pesquisas Etnoarqueológicas no Sítio Arqueológico Lago Rico

A pesquisa no sítio arqueológico Lago Rico, localizado à margem esquerda do Rio do Peixe, no município de Aruaña, foi iniciada em 2014, tendo sido realizado o levantamento em superfície do sítio, que se caracteriza pela presença de vestígios cerâmicos. Posteriormente, no mês de julho do mesmo ano, uma unidade de escavação4 foi aberta por meio da metodologia de

4 “A escavação propriamente dita consiste no trabalho metódico de remoção controlada do solo ou do entulho que cobre o terreno do sítio com técnicas predeterminadas para recolher e acondicionar o material arqueológico retirado do(s) corte(s). Ela é a técnica pela qual se recupera os artefatos e outros tipos de vestígios sepultados e esquecidos há séculos ou milênios sob camadas de terra. [...] a escavação é apenas uma parte da pesquisa arqueológica. Ela é o ápice de um processo de coleta de informações que começa ainda durante o levantamento arqueológico da área. Tudo o que se retira do solo constitui um indício que serve de subsídio para o estudo das

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4 níveis naturais5 e artificiais6, com 25m². Essa pesquisa se insere no projeto acadêmico “Escavação do sítio arqueológico Lago Rico, interflúvio dos rios Araguaia e Peixe, Nova Crixás/Goiás”, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), sob a coordenação do Prof. Dr. Julio Cezar Rubin de Rubin, e apoio financeiro da FAPEG7 e do CNPq8. A inserção da abordagem etnoarqueológica neste projeto tem por finalidade a compreensão e contextualização de alguns processos ocupacionais pré-coloniais da região do médio Araguaia.

A problemática do projeto maior consiste em comprovar ou refutar a hipótese estabelecida por Marcos (2011), na qual o sítio Lago Rico pode estar relacionado a um outro sítio arqueológico da região, há aproximadamente cinquenta quilômetros de distância em linha reta, o sítio Cangas I9, à margem direita do rio Araguaia. Ambos os sítios são cerâmicos, e de acordo com a pesquisadora, o sítio Cangas I apresentaria características de um sítio de ocupação sazonal, com menor densidade de cultura material que o sítio Lago Rico, se comparados. Este, por sua vez, poderia ser uma aldeia de ocupação principal. A definição de sítio arqueológico adotada pelo projeto é a de Fagan, (1985, In: RUBIN et al. 2012, p. 3), na qual “sítios arqueológicos são lugares em que traços de atividade humana passada são encontrados”.

O trabalho etnográfico realizado por Wüst, em 1975, com a etnia indígena Karajá de Aruaña, foi a principal fonte utilizada na correlação do sítio arqueológico Cangas I com esse grupo. Esse povo se auto-denomina Iny10, e pertence ao tronco lingüístico Macro-Jê, que se divide em três línguas: Karajá (GO), Javaé e Xambioá (Ilha do Bananal - TO).

Segundo Melo (2009), a cultura material cerâmica do sítio Cangas I apresenta semelhanças com a cerâmica dos Karajá de Aruaña, descritas por Wüst, coincidindo com a

sociedades pretéritas. Como toda técnica científica, a escavação não é um fim em si mesma, e sim um instrumento para atingir esse fim, que é o resgate criterioso das evidências enterradas” (VIANA, 2010, p. 131). 5 Metodologia ou técnica de escavação na qual se “[...] estipula uma espessura – normalmente 10 cm – que servirá de medida para dividir o corte em faixas horizontais de igual tamanho e profundidade a serem escavadas uma de cada vez” (VIANA, 2010, p. 137).

6 Metodologia ou técnica de escavação na qual se “[...] procura seguir a espessura das camadas naturais de sedimentos arqueológicos, o que permite a recuperação de vestígios isócronos” (VIANA, 2010, p. 137).

7 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás.

8 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

9 O sítio Cangas I foi pesquisado e escavado de 2008 a 2011, sob a coordenação do Prof. Dr. Julio Cezar Rubin de Rubin, através do IGPA/PUC Goiás.

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5 fase11 Aruaña, da tradição12 Uru. Essas características se referem às formas dos vasilhames e aos modos de fazer ou técnicas de produção13, como o tipo dos antiplásticos14 utilizados, os tratamentos de superfície15 e as queimas16 realizadas.

A cerâmica do sítio Cangas I foi analisada por Pereira (2010), que, assim como Melo (2009), correlacionou essa cultura material com a cerâmica dos Karajá de Aruaña, tomando como base o trabalho etnográfico de Wüst, de 1975. Em resumo, foram identificados antiplásticos minerais, espículas silicosas17, cariapé A e B. Foi possível verificar, de acordo com Melo (2009), que as queimas apresentam variações entre redutoras e oxidantes, e tratamentos de superfície alisados e polidos em parte da amostragem. Como marcas de uso, há a presença de fuligem, como técnica de manufatura há a roletada e a modelada, os tipos de lábio são arredondados e planos, com relação às bases, são planas simples havendo outras com pedestal.

De acordo Melo (2009), “As análises dos aditivos e de alguns tipos de formas dos vasilhames identificados no sítio, corroboram com as formas descritas por Wüst (1975), em sua pesquisa etnoarqueológica realizada com o grupo Karajá da cidade de Aruaña, encaixada na fase Aruaña da tradição Uru” (MELO, 2009, p. 82). No tocante às tipologias ou formas dos vasilhames do sítio Cangas I, ressalta a autora:

Assim como o “boeti”, também outras formas de vasilhames cerâmicos do sítio arqueológico Cangas I se apresentam semelhantes à etnia Karajá, entre eles a “watiwi” [...], que serve para cozinhar e guardar alimento; “walu” [...], com forma globular, servindo para cozinhar e o “bace” [...], que são pratos de

11 Fase em arqueologia: “Qualquer complexo de cerâmica, lítico, padrões de habitação, etc., relacionado no tempo e no espaço, num ou mais sítios” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 131).

12 Tradição em arqueologia: “Grupo de elementos ou técnicas, com persistência temporal” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 145).

13 Há várias técnicas, dentre elas as principais no contexto brasileiro são por roletes, o modelado e o moldado. Rolete ou rolo: “Cilindro de pasta, de comprimento e diâmetro variáveis, empregado em algumas técnicas de confecção de vasilhames” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 142). Modelada: “Técnica de confecção de cerâmica, à mão livre, a partir de massa uniforme, até atingir a forma desejada” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 137). Moldada: “Técnica de confecção de cerâmica, com o auxílio de molde” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 137).

14 Antiplástico, tempero ou aditivo: “Matéria introduzida na pasta, para conseguir condições técnicas propícias à uma boa secagem e queima, como: cacos triturados, areia, quartzo, conchas e ossos moídos, cauixi, cariapé, etc” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 144).

15 Tratamento de superfície: “Processo de acabamento das superfícies” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 146). 16 Queima: “Processo físico-químico que consiste em transformar a pasta cerâmica, por meio de elevação de temperatura, durante o qual a maior ou menor presença de oxigênio determina a oxidação ou redução, evidenciada pela textura e cor da cerâmica” (Cadernos de Arqueologia, 1976, p. 141).

17 Segundo Melo (2009), sobre as espículas silicosas: “[...] não ficou claro se as mesmas são intencionais e se as mesmas são provenientes de espongiários de água doce (cauixi) ou veios silicosos de árvores queimadas e adicionadas a argila no momento do preparo dos vasilhames” (MELO, 2009, p. 65).

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6 diversos tamanhos, pequenos e grandes, que servem para colocar o alimento e comer [...] (MELO, 2009, p. 82).

Para o sítio Lago Rico, essas correlações são igualmente importantes, sendo que a análise da cultura material cerâmica em andamento, poderá indicar se há semelhanças com a cerâmica do sítio Cangas I. Caso essas equivalências sejam identificadas, o sítio Lago Rico também poderia estar relacionado às ocupações dos ancestrais dos grupos Karajá na região. Do contrário, se houver diferenças nas características das cerâmicas de ambos os sítios, se pode ainda buscar correlações com os demais grupos indígenas que viveram na região, buscando trabalhos etnográficos realizados e informações acerca das suas produções cerâmicas. Segundo o mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, e o relatório do Projeto Ilha do Bananal (Barbosa e Oliveira, 1988), - trabalho arqueológico e etnográfico – esses grupos são os Avá Canoeiro, Caiapó do Norte, Xerente, Xavante e Tapirapé.

A análise laboratorial18 da cerâmica arqueológica do síto Lago Rico ainda está em andamento. Portanto, as impressões acerca das características dessa cultura material são apenas preliminares, sendo possível afirmar a presença de antiplástico vegetal em boa parte da amostragem – constituída de 1865 fragmentos no total, havendo paredes, bordas e bases. Predominantemente não há decorações, com raras exceções que serão averiguadas. Dentre essas exceções, há um tipo de decoração plástica na borda, idêntica à documentada no Projeto Ilha do Bananal. Pelos indicadores prévios, esse conjunto cerâmico também apresentaria características semelhantes aos da fase Aruaña, tradição Uru, o que pode não se comprovar de fato, até o final da análise laboratorial, previsto para o ano de 2015, tendo em vista a realização de futuras escavações no sítio em outubro deste ano, e para o próximo ano, nas quais poderão ser coletados mais materiais arqueológicos cerâmicos.

A Contribuição da Etnoarqueologia na Territorialidade Indígena

18 Esta análise laboratorial está sendo realizada pelas autoras deste artigo, sendo parte de dois projetos de iniciação científica PIBIC/CNPq, da acadêmica-bolsista Daniela Dias Ortega, sob a orientação da Profª Dra. Rosiclér Theodoro da Silva, intitulados: “Análise Cerâmica do Sítio Lago Rico e sua Comparação com a Cerâmica do Sítio Cangas I - Compreensão da Relação entre Contextos Culturais (de 2013 a 2014)”; e “A Contribuição da Análise Cerâmica do Sítio Lago Rico para a sua Contextualização e Comparação com Outros Contextos Culturais” (de 2014 para 2015).

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7 Para além do uso de fontes etnográficas na pesquisa acadêmica, como no caso do síto arqueológico Lago Rio, a etnoarqueologia abrange maiores possiblidades, relevantes de serem mencionadas. Como etnoarqueólogo, Oliveira (2010) nos traz exemplos de como a arqueologia pode contribuir com a demarcação de territórios indígenas, em sua publicação intitulada “Parentesco, histórias de vida e sistema de assentamento: a aplicação de procedimentos da etnoarqueologia para a elaboração de laudos antropológicos sobre as terras indígenas Buriti (Terena) e Ñande Ru Marangatu (Kaiowa)”.

Dessa maneira, Oliveira (2010) apresenta como foi realizado o trabalho com essas comunidades, tendo em vista que a elaboração de laudos antropológicos sobre áreas identificadas como tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas está de acordo com os Artigos 23119 e 23220 da Carta Constitucional de 1988, sendo que no caso da arqueologia,

[...] sua contribuição se dá, especialmente, na apresentação de provas materiais sobre a ocupação tradicional de áreas reivindicadas por comunidades tradicionais. Tais provas não devem ser confundidas com evidências arqueológicas sobre um passado imemorial e pré-colombiano, exceto se as mesmas possuírem sentido de tradicional para as comunidades que reivindicam áreas onde elas ocorram, conforme tratado em outros estudos (OLIVEIRA, 2010, p. 6).

Isso significa que a arqueologia, ao identificar os sítios arqueológicos recentes ou ancestrais – como cemitérios, antigas aldeias – de um grupo, pode contribuir com informações que comprovem a relação de pertença dessas pessoas com determinada área, justificando a legalização de seu território. Ainda se os sítios arqueológicos forem ocupações ancestrais de outras etnias indígenas, a relação que o grupo atual possui com esses lugares é igualmente relevante. Como é o caso dos Krenak, na Serra da Onça, em Minas Gerais, sendo que, conforme Baeta e Mattos (2003):

Mediante toda sua história de resistência e em razão dos conflitos interétnicos cotidianamente vivenciados regionalmente pelos Krenak, a serra Takrukkrak e suas pinturas rupestres adquiriram significados dominantes em seu universo simbólico, que dizem respeito, inclusive, às suas lutas por afirmação étnica e pelos seus direitos territoriais (BAETA; MATTOS, 2003, p. 49).

19 Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

20 Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

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8 Ainda que as pinturas rupestres sejam parte da cultura dos Krenak, é provável, segundo os autores, que as pinturas existentes nos abrigos do médio vale do Rio Doce não tenham sido feitas pelos seus antepassados. De qualquer modo, os Krenak não atribuem às pinturas uma autoria humana, mas uma origem sobrenatural. Nesses lugares também são realizadas orações e danças sagradas; tendo se tornado pontos estratégicos da resistência indígena, utilizada como zona de refúgio e defesa, devido ao seu difícil acesso.

Referente aos Terena e Kaiowa, no trabalho de Oliveira (2010) foram localizados os antigos assentamentos existentes nas áreas onde suas famílias foram expulsas a partir da primeira metade do século XX, pela frente de expansão agropecuária21. “Tais lugares consistem em sítios arqueológicos recentes, onde às vezes é possível visualizar na superfície dos terrenos evidências materiais da presença indígena pretérita e, portanto, estão protegidos por legislação específica22” (OLIVEIRA, 2010, p. 7).

A cultura material assim como as paisagens antropizadas, como evidências constituintes dos sítios arqueológicos, “[...] foram apresentadas juntamente com descrições e análises de dados registrados por meio da observação direta e informações contidas em documentos textuais, oficiais ou não o que corroborou ainda mais às conclusões dos laudos apresentados à Justiça Federal.” (OLIVEIRA, 2010, p. 11). Segundo o autor, demonstrou-se que as áreas “[...] são realmente terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas que as reivindicam judicialmente” (OLIVEIRA, 2010, p. 11), tendo a etnoarqueologia contribuído para com interesses dessas etnias, dentro de suas possibilidades.

Considerações

O projeto Lago Rico, através das análises da cultura material cerâmica que estão sendo realizadas pelas autoras deste artigo, é um exemplo de quando as fontes etnográficas podem auxiliar em questões acadêmicas de pesquisa. Dessa maneira, ao se tentar buscar elementos na

21 Sobre as frentes de expansão extrativista, pastoril e agrícola, consultar o capítulo “As Fronteiras da Civilização”, do livro Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro.

22 Constituição Federal de 1988, Artigo 20; Lei Federal nº 3.924/1961, conhecida como Lei da Arqueologia; Lei Federal nº 7.542/1986; Resolução CONAMA nº 001/1986, Artigo 6, Alínea C; Lei Federal nº 9.605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, Capítulo 5, Seção 4; Recomendações Internacionais como a Carta de Nova Delhi (1956), Recomendação de Paris (1968), Carta de Lausanne (1990), Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico (1990) e Carta de Sofia (1996), todas aprovadas pela UNESCO/ONU; Resolução; Portaria IPHAN nº 230/2002.

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9 cultura material arqueológica das sociedades indígenas presentes hoje na região, ou das que sabemos que estavam ali no período colonial, através de registros documentais; não podemos automaticamente afirmar que se tratam do mesmo grupo, ou até mesmo que haveria uma relação de ancestralidade entre eles. O que podemos, é tentar compreender essas semelhanças, e apontar as possibilidades, que não são conclusivas nem absolutas.

Percebemos que a etnoarqueologia, para além de buscar responder às questões sobre a formação do registro arqueológico, técnicas de manufatura, uso e descarte dos artefatos; pode, através de abordagens colaborativas, até mesmo servir às próprias comunidades, trabalhando em favor das suas necessidades e contribuindo com os seus interesses.

Em suma, através das fontes etnográficas, é possível encontrar elementos nas comunidades contemporâneas, que nos ajudem a refletir sobre a cultura material encontrada nos sítios arqueológicos. Porém, com muita cautela, sendo que não significa que sejam o mesmo grupo. Ainda assim, essas “comparações” em busca de semelhanças e diferenças, nos permitem refletir também em como a identificação de sítios arqueológicos pode contribuir na questão política da demarcação legal dos territórios de sociedades indígenas, e na ressignificação de sítios arqueológicos por outros grupos contemporâneos, sendo essas relações culturais extremamente relevantes para a etnoarqueologia em sua abrangência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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10 MELO, Alexandrina de Sousa. Abordagem Etnoarqueológica na Sondagem S2 do Sítio Cangas I, Aruaña/GO. Monografia para a obtenção do grau de bacharel em Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2009.

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