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O DE MORTIBUS PERSECUTORUM E A IMAGEM DE DIOCLECIANO ENQUANTO PERSEGUIDOR. Ronaldo de Souza Woitechen Orientador: Renan Frighetto

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O DE MORTIBUS PERSECUTORUM E A IMAGEM DE DIOCLECIANO ENQUANTO PERSEGUIDOR

Ronaldo de Souza Woitechen Orientador: Renan Frighetto Palavras-chave: tetrarquia, perseguições aos cristãos, Lactâncio.

No que diz respeito aos embates entre cristãos e pagãos no período tardio do Império Romano, conhecido como Baixo Império, a apologia surge como uma forma de expressão caracteristicamente cristã e que tinha por finalidade preservar o cristianismo dos ataques vindos da parte dos pagãos, fossem eles físicos ou intelectuais. Isso na prática podia significar a sua sobrevivência enquanto grupo social distinto e minoritário. E como não podia deixar de ser esses contatos produzem trocas, que se traduzem nas tentativas de síntese, verdadeiro esforço de conciliação entre pontos divergentes que constitui a própria apologia enquanto gênero totalmente novo e cristão.

Embora tenha havido conflitos a iniciativa de conciliação grassou de ambos os lados, e da parte dos cristãos havia uma intenção de integração na sociedade, mas preservando as suas particularidades. Assim a apologia constituía um instrumento importante para a defesa de uma posição dentro dessa sociedade, para tal utiliza-se dos próprios recursos dos pagãos, em especial da filosofia e, sobretudo a corrente neoplatônica. Assumindo, pois, grande importância enquanto fusão entre a filosofia pagã e a doutrina cristã.

No plano político as relações entre cristianismo e paganismo assumem basicamente dois aspectos: ou hostilidade ou tolerância. Os momentos de hostilidade são relativamente raros nos períodos de prosperidade do Império como nos séculos I e II, sendo apenas resultado de situações esporádicas e/ou de alcance limitado localmente, como é o caso da perseguição subseqüente ao incêndio de Roma de 64 ou aos acontecimentos relativos a manifestações de hostilidade contra os cristãos na Bitínia e no Ponto, na época de Trajano. Somente quando o Império já está passando por momentos de crise, como é o caso do século III, é que se tomam medidas coibitivas no sentido de barrar o avanço do cristianismo, é o caso das perseguições de Décio (250-1), Valeriano (257-60) e Diocleciano (303-5/11).

Mas no período restante o cristianismo, se não é favorecido, ao menos goza de ampla tolerância. O que ocorre é que a longo prazo se dá uma progressiva ascensão do cristianismo até o momento em que Constantino torna o Império favorável aos cristãos unindo sua força mobilizadora ao cada vez mais fortalecido Estado Baixo-imperial. Nesse processo de fortalecimento estatal assumem significativa importância as medidas tomadas pelos grandes reformadores do século III, dos quais Diocleciano é apenas a culminação, sendo que até que ele pudesse ser bem sucedido, algumas décadas de tentativas foram feitas para se superar os efeitos da assim chamada crise do século III.

É importante ter presente essas mudanças, tomando como ponto de partida os caracteres básicos do Estado Imperial tal como surge das contradições do regime republicano na forma do Principado1. O Império, inicialmente sob a forma do Principado, surge como desdobramento natural desse processo de expansão que ocorre durante os últimos séculos da República. Na prática significava a concentração dos poderes, antes reunidos no tradicional conselho republicano, nas mãos de um único soberano e este reunia

1 AYMARD, A. & AUBOYER, J. História Geral das Civilizações (II, 2). Roma e seu Império. São Paulo:

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em si o mando (imperium) de todas as tropas e era considerado como o primeiro (princeps) entre os cidadãos. Assim o Império se constitui como um regime militar já por princípio, visto que a figura do imperator já tinha um lugar assegurado nos quadros do regime republicano em casos específicos.

O que Augusto, e em certa medida César, teve o mérito de fazer foi tornar permanente esse cargo. Contudo, advertido pelo exemplo seu predecessor, Augusto tenta conciliar o novo regime pessoal com as instituições republicanas e assim surge o modelo do Principado. Ao longo do século I e II o Principado vai sofrendo uma série de modificações, no sentido de se tornar cada vez mais próximo de um regime monárquico de fato. E nesse processo tiveram importante papel os imperadores que a tradição historiográfica pró-republicana imputa a imagem depreciativa de “maus imperadores”2 (ou tiranos), tal como o fará mais tarde Lactancio. Um exemplo significativo foi o do imperador Domiciano, a partir de quem o título dominus (“senhor”, e que, portanto soa próximo às tendências monárquicas orientais, opostas à idéia tradicional de liberdade romana), que tinha então um teor bastante negativo, passa a ser usado praticamente como sinônimo de imperator. Ao longo dos séculos III e IV essa tendência vai se exacerbando até que no tempo de Diocleciano esse regime centralizado denominado então de dominatus (em referência ao termo dominus), torna-se uma realidade concreta.3

Nesse sentido outro aspecto de suma importância é o culto imperial, instituído por Augusto para dar uma unidade ideológica ao novo regime por ele fundado, mas que dá uma idéia de teor religioso do poder imperial. Por esse motivo também é que foram gerados problemas com os cristãos, acusados de não prestarem o devido culto à figura do Imperador, servindo às vezes essa acusação apenas de pretexto para condenarem-se os cristãos. Um aspecto importante relacionado a isso é o caráter político da religião clássica, em Roma tal como na pólis clássica a religião acaba assumindo uma função significativa no próprio âmbito político, sendo como na pólis grega o culto aos deuses da cidade era um aspecto importante da atuação política do indivíduo.

Contudo, a partir do século III processa-se uma mudança na religiosidade imperial, refletindo as mudanças acontecidas no próprio regime imperial, que se dirige a uma tendência mais monárquica, como já foi notado. Não é mera coincidência que no século III aconteça uma revivescência filosófica, em que é resgatado o platonismo, culminando com a grande síntese filosófica helênica de Plotino. Observa-se a adoção gradativa de uma ideologia monoteísta, que tendia a concentrar-se na figura do imperador.

Ainda quanto ao caráter sacro do poder imperial, é importante notar que a noção de sagrado envolve profundamente o mundo nas sociedades “religiosas” (segundo denominação de Mircea Eliade), diferentemente do mundo dessacralizado atual. Talvez, por isso, seja tão difícil para o homem da atualidade, que vive num mundo no qual o sagrado já não tem mais lugar em que se manifestar, em compreender as atitudes mentais dos homens de outras sociedades e épocas, em que o sagrado impregnava a visão de mundo dos homens.

Para se ter uma fraca idéia da importância da religião na vida social e política basta lembrar que muitas decisões políticas não eram tomadas sem antes serem consultados os oráculos, não se podia iniciar uma guerra se os auspícios não fossem positivos, e mesmo depois com o cristianismo, as decisões políticas não abandonam essa recorrência ao sobrenatural. Soaria fantasioso atualmente dizer que o sobrenatural rege as coisas terrenas, mas se se considerar esse contexto, é a mais pura verdade, difícil de acreditar para quem

2 TEJA. Introdução. In: LACTANCIO. Sobre la Muerte de los Perseguidores. Madrid: Editorial Gredos,

1982, p.30.

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esse tipo de mentalidade já deixou há muito de ser a dominante. Mais ainda, o poder numa sociedade religiosa, seria inseparável do sagrado.4

Não que a religião condicionasse a política, mas que a dimensão religiosa na sociedade romana tinha uma importância que atualmente nossa sociedade atribui a outras dimensões (a científica, por exemplo). Já no século III ocorre uma crise e a antiga religiosidade vai se modificando perdendo a religião tradicional o papel de preponderância, e uma nova religiosidade vai ocupando seu lugar, como já se teve oportunidade de afirmar. Para o homem religioso (que se opõe ao homem moderno, na medida em que este vive num mundo dessacralizado) toda a sua existência está mergulhada no sagrado. Nem mesmo a filosofia escaparia disso e o neoplatonismo é um exemplo clássico disso, pois o que os filósofos criticavam no cristianismo era a crença (pistis) desprovida de fundamentos racionais5. Basta lembrar da máxima ciceroniana ratio docet esse deos, ou seja, é a razão que evidencia a existência das divindades, portanto a crença deve ser fundamentada pela razão, e não uma atribuição infundada.

Já Lactâncio responde que a razão rechaça o paganismo, ou seja, ele incorpora a exigência pagã de fundamentação racional para rechaçar o paganismo. A exigência de fundamentação racional para uma crença dada pela cultura helênica, obrigou os pensadores cristãos a fundamentarem sua doutrina na filosofia grega, principalmente se quisessem se manter nessa cultura que tanto prezava a racionalidade. Não que houvesse uma separação muito distinta entre pensamento filosófico e crenças religiosas ou superstições, nesse aspecto o exemplo de Plotino é significativo, mas sim que a razão deve ser usada a serviço da fé.

Nesse âmbito, assume significativa importância a questão do cerimonial de corte do regime baixo-imperial, modificando o culto imperial estabelecido por Augusto fundamentado num conteúdo monoteísta corresponde ao caráter político centralizador. Com Diocleciano, desenvolve-se toda uma ênfase no elemento sobrenatural que daria fundamento a um poder que excederia ao de todos e ao mesmo tempo ocorre um resgate das tradições nacionais, tentando restabelecer uma espécie de coesão ideológica de cunho nacional. Constantino, por sua vez, vem fundamentar seu poder numa base cristã (enquanto Aureliano, na divindade solar).

Esteja fundamentado sobre a figura de Júpiter, à divindade solar ou ao Deus dos cristãos, o que prevalece nelas é a tendência unificadora e centralizadora monoteísta, já não são mais os deuses pagãos, embora estes ainda permanecem com um status reduzido, que regem os assuntos, mas sim uma divindade suprema que se sobrepõe às outras, mesmo com Diocleciano tentando resgatar a religião pagã, Júpiter acaba assumindo esse papel de divindade suprema (embora já o fosse mas de um outro modo), mas num sentido agora mais carregado de uma ideologia monoteísta. O centralizado poder temporal se configura como um reflexo da estrutura celestial, enquanto uma emanação de seu poder. Constantino merece respeito como enviado de Deus, Aureliano, como uma espécie de encarnação da divindade solar que preside a toda a ordem cósmica, fonte de toda a vida no planeta, e Diocleciano se vincula diretamente, por uma filiação convencionada à suprema divindade pagã. Assim, a nova religiosidade Baixo-Imperial reflete a nova concepção de poder.

E nesse sentido o cristianismo vem corroborar as tendências reinantes, pois o que ele tinha além das outras religiões era que estas não foram capazes de oferecer era uma sólida coesão interna e organização centralizada (que postulava os preceitos de uma rígida obediência e disciplina) e toda a sua força social mobilizadora, elementos necessários para restabelecer a unidade em torno do poder imperial. Constantino, portanto, percebe esse

4 ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.18. 5 DODDS, E. R. Paganos y Cristianos en una época de angustia. Madrid, 1975, p.159.

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potencial do cristianismo, e é a partir dele que o cristianismo assume um papel importante como ideologia unificadora e que dá fundamento ao poder imperial centralizado.

A obra de Lactâncio representa, pois essa tentativa de síntese entre a cultura pagã e a religião cristã, não apenas no plano doutrinal como é o caso de suas Instituições Divinas, mas também no que diz respeito à política, com o seu De Mortibus Persecutorum. Lactâncio tinha origem africana, assim como Agostinho, e era formado na tradição retórica latina, pouco se sabendo sobre sua vida. Um fato que se destaca é que foi chamado por Diocleciano a Nicomedia, nova capital do Império, para ensinar retórica, e que provavelmente permaneceu lá durante todo o período de perseguição decretado por aquele imperador, mas parece não ter sofrido nenhum dano, o que não deixa de ser interessante. Outro fato conhecido de sua vida é que já na velhice foi chamado à corte de Constantino para ser preceptor de seu filho. Isso significa que fora testemunha ocular dos fatos, pois estava perto do cenário dos acontecimentos.

Fundamentado, portanto, também numa tradição literária pagã, visto que teve uma formação retórica e sua conversão se dará somente tardiamente, Lactâncio é um exemplo bastante significativo dessa tendência de conciliação entre cultura pagã e religião cristã, em sua obra, pois, se misturam os dois elementos, pagão e cristão. Ele tem seu paralelo na obra política de Constantino, o qual representa, visto que seu De Mortibus Persecutorum foi escrito por volta de 315, estando Lactâncio sob a proteção de Constantino, daí seu tom quase encomiástico com relação a esta personalidade, e também porque para Lactâncio Constantino representa o modelo de governante ideal, ao mesmo tempo cristão e pró-senatorial, pelo que satisfaz as duas condições propostas pelo autor ao mesmo tempo cristão e romano.

A partir desse modelo serão julgados todos os outros personagens, e é significativo que estes tenham de satisfazer as duas condições simultaneamente, visto que no caso de uma personagem como a de Maxêncio, que apesar de ser pró-cristão, mantinha uma política eminentemente anti-senatorial, o que faz prevalecer uma caracterização negativa, embora um tanto ambígua, como não podia deixar de ser dado o caráter duplo desse conceito estabelecido, às vezes impossível de satisfazer plenamente, como seria o caso mesmo de algumas medidas do próprio Constantino.

Lactâncio defende uma tese, na qual identifica a figura cristã do perseguidor à noção tradicional romana de mau imperador (ou seja, de tendências centralizadoras e, portanto, anti-senatoriais). O que significa que cada imperador terá política julgada em função de sua atitude com relação à religião. E que a visão de Lactâncio está condicionada às suas convicções políticas.

O De Mortibus é, assim, uma obra de difícil classificação6, mas pode ser definida simplificadamente como um misto de apologia e história, visto que congrega uma visão da história do ponto de vista da historiografia romana pró-senatorial, com uma visão caracteristicamente cristã, constituindo uma síntese entre a história pagã à história cristã. Da vertente cristã apresenta-se a noção de uma Providência divina ativamente atuante na história humana, capaz de vingar os seus fiéis pelas afrontas cometidas pelos que estão de posse do poder temporal.

Mas também não pode ser tida como simples apologia, mas não do modo como era praticada pelos padres gregos, pois era uma literatura basicamente defensiva. Já não é o caso com Lactâncio, pois ele está escrevendo em um contexto de favorecimento de cristianismo pelo governo imperial. Diferencia-se, ainda, das histórias de Roma por ser menos retórica que documental, há uma preocupação crescente por parte dos autores cristãos em fundamentar documentalmente o que afirmam.

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Lactâncio estrutura a obra em basicamente duas seções distintas. Os seis primeiros capítulos referem-se aos imperadores anteriores ao período da tetrarquia e que teriam perseguido os cristãos, e tal parte teria sido anexada à obra depois de prontos os subseqüentes apenas para dar maior veracidade à sua tese. A partir do capítulo sétimo ele passa a tratar do período da chamada tetrarquia de que foi testemunha direta e que se inicia com a ascensão de Diocleciano, e vai encerrar com o equilíbrio entre Licínio e Constantino e o pequeno período de relativa tranqüilidade.7

A obra foi escrita originalmente em latim, cuja única cópia restante data do século XI e foi encontrada no século XVII, na abadia beneditina de Moissac e conservada atualmente na Biblioteca Nacional de Paris. A versão aqui utilizada é uma tradução para o espanhol, publicada pela Editorial Gredos em 1982, realizada pelo historiador Ramon Teja8, que usou como base o texto latino fixado pelo historiador francês J. Moreau9.

O que é importante compreender é que a imagem concebida por Lactâncio de Diocleciano, enquanto perseguidor, não muito distante das representações negativas que os historiadores do século II imortalizaram acerca de alguns imperadores do século I, está relacionada não tanto com a sua posição religiosa quanto com a política por ele perpetrada. Se se tiver em conta que a perseguição de 303-305 teve uma dimensão muito limitada dentro do conjunto de reformas realizadas por Diocleciano, visto que se restringem aos dois últimos anos do governo deste, além do fato de que o próprio Lactâncio fora chamado pelo mesmo imperador para trabalhar como professor de retórica em sua nova capital, então se deve visualizar no seu conjunto a obra de Diocleciano para compreender que, no todo, suas tendências a tornar mais exacerbada o processo de fortalecimento do poder desagradavam as tendências pró-senatoriais de Lactâncio. E que este faz uma reapropriação de um conceito pagão redimensionando-o, de forma a dá-lo um conteúdo cristão.

7 ibid., p.15.

8 LACTANCIO. Sobre la Muerte de los Perseguidores. Madrid: Editorial Gredos, 1982. 9 MOREAU, J. Lactance, De la mort des persécuteurs. Paris, 1954.

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