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Estrutura prisional brasileira: um panorama da ineficiência frente ao estado de coisas inconstitucional

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

JEFERSON RIBAS TAMIOZZO

ESTRUTURA PRISIONAL BRASILEIRA: UM PANORAMA DA INEFICIÊNCIA FRENTE AO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Ijuí (RS) 2017

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JEFERSON RIBAS TAMIOZZO

ESTRUTURA PRISIONAL BRASILEIRA: UM PANORAMA DA INEFICIÊNCIA FRENTE AO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso – TCC.

UNIJUI - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DCJS- Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

Orientador: Prof. Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Ijuí (RS) 2017

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Dedico este trabalho à minha família, e a todos que contribuíram de alguma forma para o sucesso desta jornada.

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AGRADECIMENTOS

À minha namorada Jordana Villanova, pelo apoio, incentivo e paciência desde sempre.

À minha prima Daiane Ribas Faoto, bacharel e mestra em Língua e Literatura Inglesa, pelo auxílio e disponibilidade mesmo à distância;

Ao meu orientador, professor Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, pela atenção e pelo minucioso e criterioso acompanhamento, bem como sua enriquecedora contribuição para o tema.

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“Cada coisa tem o seu valor; ser humano, porém tem dignidade”. Immanuel Kant

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RESUMO

A estrutura carcerária brasileira encontra-se em absoluta decadência frente à inércia do Estado. A pena privativa de liberdade no atual contexto produz efeitos opostos aos esperados, segregando o indivíduo, suspendendo suas garantias fundamentais e fomentando ainda mais a criminalidade. O presente estudo visa a traçar um panorama acerca das principais problemáticas referentes ao sistema carcerário brasileiro através da análise de dados históricos e estatísticas atualizadas, trazendo a declaração de Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) como um exemplo de ativismo judicial positivo, legítimo e necessário em face da atual conjuntura. O primeiro momento constrói as bases da discussão sobre a teoria punitiva focada na pena privativa de liberdade através de nomes e movimentos importantes da história penal. Busca revelar através de análise estatística atualizada as condições degradantes a que estão historicamente submetidos os apenados brasileiros e debater os demais pontos que contribuem para a ineficácia do sistema na contemporaneidade. O segundo momento busca elucidar o instituto advindo da jurisprudência colombiana chamado Estado de Coisas Inconstitucional, sua origem, construção e os efeitos de suas consequentes sentenças estruturais, bem como do controverso ativismo judicial frente ao atual sistema jurídico. Em um panorama de completa desordem do sistema carcerário, inércia do poder executivo e legislativo, e em um evidente quadro de desrespeito aos direitos fundamentais resguardados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o ECI mostra-se uma forma de possível intervenção na política de segurança e alocação de recursos públicos. A partir da análise da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, de 2015, busca-se averiguar legitimidade do instituto e a compreensão dos efeitos esperados diante do contexto caótico do sistema carcerário nacional. Empregou-se para a construção da pesquisa o método exploratório quantitativo, manifesto através de análise estatística e pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Ativismo Judicial; Direitos Humanos; Estado de Coisas Inconstitucional; Sistema Penitenciário.

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ABSTRACT

The Brazilian prison structure is in absolute decadence in front of the State’s inertia. The penalty of deprivation of liberty in the present context produces effects opposite to those expected, segregating the individual, suspending their fundamental guarantees and further fomenting criminality. The present study aims to provide an overview of the main issues regarding the Brazilian prison system through the analysis of updated historical data and statistics, bringing a statement from the State of Things Unconstitutional (STU) as an example of positive, legitimate and necessary judicial activation given the current situation. The first moment builds the discussion basis of the of punitive theory focused on the penalty of freedom through important names and movements of the criminal history. It seeks to reveal through updated statistical analysis the degrading conditions to which the distressed Brazilians are historically subjected, and to discuss the other points that contribute to the inefficiency of the system in the contemporaneity. The second moment seeks to elucidate the institute from Colombian jurisprudence called State of Things Unconstitutional, its origin, construction and the effects of its consequent structural sentences; as well as controversial judicial activism in relation to the current legal system. In an overview of the complete disorder of the prison system, the inertia of the executive and legislative branches, and in an evident disregard for fundamental rights protected by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, the STU is a form of possible intervention in politics security and allocation of public resources. From the analysis of the Action of Non-compliance with Basic Precept (ANCBP) nº 347, of 2015, it is sought to ascertain the legitimacy of the institute and the understanding of the expected effects in the chaotic context of the national prison system. The quantitative exploratory method was used for the construction of the research, manifested through statistical analysis and bibliographic research.

Keywords: Judicial Activism; Human Rights; State of Unconstitutional Things; Penitentiary system.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E A ESTRUTURA PRISIONAL ... 12

1.1 A pena aplicada na história ... 13

1.2 A Pena privativa de liberdade no Brasil ... 17

1.3 A prisão provisória ... 23

2 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) ... 26

2.1 Uma construção colombiana ... 27

2.1.1 O sistema carcerário colombiano ... 30

2.2 Pressupostos e características do ECI ... 32

2.2.1 O ativismo judicial estrutural ... 34

2.3 ADPF 347/DF e seus efeitos ... 36

CONCLUSÃO ... 42

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INTRODUÇÃO

É histórica a grande desídia do Estado com o sistema penitenciário brasileiro. Trata-se de uma situação que afeta muito além dos indivíduos para os quais fora projetada a estrutura carcerária, ultrapassando, desta forma, o seu objeto alvo. Em uma sociedade com falta de políticas sociais e investimentos adequados, na qual uma grande parte da população encontra-se marginalizada, seja pelo baixo nível econômico ou por questões de raça, crença ou gênero, torna-se evidente a enorme seletividade no sistema punitivo, bem como sua inadequação frente ao que dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988.

A demanda por vagas no sistema carcerário é crescente e desenfreada. Não há estrutura física nem recursos humanos adequados ao devido cumprimento da pena de reclusão, tampouco previsão de verbas e políticas públicas emergenciais na área de segurança, em especial no sistema penitenciário. As estatísticas demonstram a precariedade e a inefetividade quase absoluta das penas aplicadas e, além disso, o efeito contrário, altamente criminalizante e aliciador do próprio ambiente prisional.

A mesma situação observada no Brasil também se manifesta em outros países da América Latina e, em especial, na Colômbia, país este que deu origem ao instituto que será discutido nesse trabalho. Importante dizer que serão abordadas aqui medidas emergenciais, propiciadas pela declaração do chamado Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), a qual pode ser utilizada como ferramenta contra a desídia e abandono político de instituições e garantias fundamentais.

A declaração do ECI e suas sentenças estruturais decorrentes visam a corrigir as falhas destas instituições em mau funcionamento. Retoma-se, desta forma, o status quo de normalidade e de efetividade das garantias constitucionais.

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Nesse sentido, o problema que orienta a pesquisa permeia a negligência e inércia estatal frente ao completo desrespeito às garantias e direitos fundamentais oriundas dos tratados e convenções internacionais ratificados pelo direito brasileiro e o desenfreado processo de deterioração do sistema prisional o que retira qualquer possibilidade de ressocialização ou recuperação destes sujeitos.

O objetivo geral da pesquisa consiste em compreender a declaração de Estado de Coisas Inconstitucional e os efeitos do ativismo judicial gerado por suas consequentes sentenças estruturais através da análise de sua origem, pressupostos e críticas, observando de que forma afeta o direito brasileiro e o atual sistema punitivo. Especificamente visa a oferecer um panorama da estrutura física carcerária brasileira relevando a evidente seletividade do sistema punitivo, bem como analisar a possibilidade de efetivação de qualquer das garantias fundamentais frente a esta estrutura precária e ineficiente.

O primeiro capítulo busca os fundamentos da privação de liberdade e os modelos de pena e estrutura prisional historicamente construídos. Traz as estatísticas mais recentes do sistema carcerário brasileiro para demonstrar a ineficiência do modelo e a aplicação de penas de caráter medieval na contemporaneidade, reiterando a falta de infraestrutura adequada para a crescente demanda. Traz a discussão acerca da utilização da privação de liberdade como regra, demonstrando a excessiva aplicação da pena em caráter provisório.

No segundo capítulo aborda-se a construção jurisprudencial da Colômbia, berço da declaração de ECI e uma das Cortes Constitucionais mais ativistas do mundo, através de análise de dois de seus principais casos de inconstitucionalidade. Levanta-se, então, a discussão sobre a legitimidade do instituto e o protagonismo do poder judiciário frente ao seu recente reconhecimento em caráter liminar pelo Supremo Tribunal Federal.

A pesquisa foi desenvolvida através do método exploratório, composto por levantamento bibliográfico e análise das jurisprudências brasileira e colombiana.

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Primou-se ainda, pelo caráter quantitativo do estudo, manifesto pela análise e exposição de dados estatísticos atualizados.

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1 PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E A ESTRUTURA PRISIONAL

Impossível almejar o conhecimento do instituto do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) no presente trabalho sem traçar um caminho lógico que possui como seu ponto de partida a pena privativa de liberdade, a qual se pretende efetivar através de uma estrutura carcerária falida e deficiente.

A pena sofreu em toda sua história uma série de mudanças advindas dos diversos tipos de sociedades e principalmente das estruturas de governo de cada época com suas particularidades. As penas que eram imputadas aos sujeitos passaram por períodos de crueldade inquisitorial, exibições públicas de agonia e atrocidades inimagináveis para que, somente no início do século XX, a pena privativa de liberdade viesse a tomar o seu lugar de destaque no direito punitivo e substituir, em tese, as penas de caráter inquisitorial e desumanas.

No presente capítulo traremos o demonstrativo de que as penitenciárias brasileiras não foram pensadas como estrutura de ressocialização, nem sequer a pena cumpriu em momento algum de todo seu percurso histórico os papéis para os quais fora designada. No Brasil, historicamente, a prisão serviu como espaço de confinamento dos “indesejáveis” socialmente produzidos. O agravamento se dá pela crescente demanda gerada com o (suposto) aumento da criminalidade na contemporaneidade. As recentes estatísticas das penitenciárias brasileiras mostram que ainda são punidos os mesmos cidadãos do período colonial e que o preso possui, em regra, características específicas em uma condição social já presumida. Prendem-se, no Brasil, homens jovens, negros, pobres e acusados da prática de delitos patrimoniais e tráfico de drogas.

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Esbarra-se, ainda, nos limites da morosidade judicial e do acesso à justiça, problemas que tornam o inchaço de todo o sistema penitenciário insuportável, desencadeando danos irreversíveis aos sujeitos que ali se encontram e consequentemente a toda a sociedade brasileira. São esses os tópicos que serão abordados neste primeiro capítulo.

1.1 A pena aplicada na história

A pena para o delito criminal não nasceu da forma que conhecemos hoje. Antes da estruturação do Estado Moderno, na idade antiga1, a sociedade tratava o conflito penal com ações privadas. A forma de penalização delitiva encontrava guarida basicamente no fato de que o próprio ofendido ou alguém em seu nome poderia voltar-se contra o agressor voltar-sem qualquer pudor ou limitação, vigorando assim a retribuição através da vingança privada, basicamente.

Posteriormente, podemos verificar o surgimento da denominada pena de talião2, advinda também deste período, com indícios encontrados primeiramente no Código de Hamurabi. Apesar de ser inaceitável e promover da mesma forma a violência que visa a combater, a pena de talião serviu como um instituto regulador da aplicação da pena e, por mais que possa parecer absurda em um primeiro momento, promoveu um avanço na época, uma vez que limitava a proporção da retribuição, porém não a sua extensão, que era de fato danosa ao círculo familiar e social do penalizado.

Avançando no tempo, iniciou-se um movimento de mitificação penal. A legitimidade do poder punitivo encontrava-se não mais na justiça terrena, mas em seres superiores, os quais deteriam então todo o poder sobre os homens, como refere Teles (2006, p. 37):

1 Idade Antiga ou Antiguidade, na periodização das épocas históricas da humanidade, é o período que se estende desde a invenção da escrita (de 4 000 a.C. a 3 500 a.C.) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.).

2 [...] o que a expressão “olho por olho, dente por dente” nos revela, antes, a ideia da necessidade de se obter uma exata medida entre a negação e a restituição da justiça. A própria palavra Talião, que vem do latim talio, significa “tal” ou “igual” e reforça essa tese, ao menos teórica, de equilíbrio. O problema é que nós não encontramos na prática esta mesma clareza da teoria e, por isso, a Lei de Talião assumiu posições bem mais próximas de cada extremidade do que da exata medida que se buscava (DUARTE, 2009, p. 76).

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à medida que as sociedades primitivas se desenvolvem, instala-se um poder social, baseado nas religiões, que passa a controlar melhor as relações sociais, e vai modificando-se paulatinamente a natureza da sanção penal. Então, já não se trata da vingança do particular, do interesse individual, mas da vingança dos deuses, cuja ira há de ser aplacada com o castigo daquele que desatendeu a sua vontade.

Os líderes dos grupos de indivíduos, normalmente dotados de maior compreensão, utilizaram-se das crenças de suas sociedades como ferramenta de controle. Desta forma, buscavam delimitar as ações dos indivíduos e legitimar as suas próprias quando exerciam sanções.

Propunha Platão no livro nono de “As Leis”, o estabelecimento de três tipos possíveis de prisões: a primeira teria caráter custodial, transitório, e estaria localizado na praça do mercado, seu objetivo principal seria guardar o sujeito durante o estabelecimento de demais atos da justiça e aguardo da sentença; a segunda teria caráter punitivo propriamente dito, serviria de retribuição direta para o fato delituoso, ou seja, a pena privativa de liberdade como fim nela mesma, nos moldes aproximados ao que teríamos (teoricamente) nos dias de hoje; e em terceiro lugar deveria haver um local de difícil acesso, distante da civilização e sombrio, que causasse medo nos indivíduos, produzindo assim uma força preventiva, destinado aos que cometessem delitos mais graves para que fossem submetidos ao suplício3. Este local era denominado por ele como sofonisterium.

Na idade média4, derivando de uma maior complexidade social e sob forte influência do cristianismo, tivemos o direito canônico. A estrutura penal transforma-se em ferramenta do poder religioso, que neste período detinha também o poder Estatal moldando, assim, toda a estrutura social de maneira a satisfazer os anseios da igreja.

O poder punitivo começa desta forma a se concentrar nas mãos das mais altas esferas, onde permaneceria até os dias de hoje. A pena privativa de liberdade manifesta-se neste período principalmente em caráter processual, pois eram em masmorras, calabouços, torres e outras estruturas da época que os acusados das

3 Suplício: Tudo que provoca grande sofrimento físico ou moral; aflição intensa e prolongada.

4 A Idade Média é o período histórico que vai do século V ao XV. Tem início com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e termina em 1453 com a Tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos. 476 - Bárbaros germânicos invadem e derrubam Império Romano do Ocidente.

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chamadas heresias5 e outros crimes aguardavam suas posteriores punições e sofriam outras sanções no decorrer da espera.

A pena de prisão era utilizada então como meio, ou seja, tinha caráter transitório, de forma a servir como garantia de cumprimento de outra sanção, mantendo desta forma características do sistema grego. Segundo Bitencourt (2011, p 26), “neste período a pena em caráter custodial era aplicável aos que seriam submetidos aos mais diversos castigos e tormentos, sendo mutilações, torturas e até mesmo a morte.”

Com a idade moderna e o capitalismo, a estrutura e toda a visão que se tem de mundo começa a mudar, deixando-se de lado as questões puramente religiosas para buscar o interesse da recém-formada burguesia. As punições do período marcaram os Estados absolutistas. Apesar de não serem a regra, os castigos corporais, mutilações e exposições públicas através do chamado suplício demonstravam a mais pura crueldade. Sobre o tema discorre com propriedade Foucault (1987, p. 36):

Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação — que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento.

A pena, através do suplício, permanece ainda de maneira velada no atual sistema carcerário, produzindo as mesmas cenas de horror e crueldade que são disseminadas na sociedade como forma de entretenimento através dos mais diversos meios de comunicação.

5 Heresia significa escolha, opção, e é um termo com origem no termo grego haíresis. Heresia é quando alguém tem um pensamento diferente de um sistema ou de uma religião, sendo assim quem pratica heresia, é considerado um herege. Uma heresia é uma doutrina que se opõe frontalmente aos dogmas da Igreja.

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O sistema, com base no sofrimento do condenado através da pena que culminava muitas vezes na morte, começou a perder força, pois todos estes meios, embora rígidos, não surtiam mais efeito em uma criminalidade crescente. Com a publicação do livro Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria6, em 1764, no qual o autor buscou desenvolver um sistema penal mais humanizado, a sociedade da época iniciou um rompimento com os paradigmas punitivos. Sua intenção resta evidenciada na seguinte passagem, quando assevera que

se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a duração. Um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar. (BECCARIA, 1764, p. 39).

Beccaria deflagra, desta forma, o movimento iluminista, o qual mudaria a forma de pensar sobre a privação de liberdade, movimento este que traria muitos adeptos posteriormente.

Em 1795 discorre Jeremy Bentham7 sobre um modelo de prisão diferenciado e pensado racionalmente. Em sua obra Vigiar e Punir, originalmente publicada em 1975, Foucault8 cita tal modelo racionalizado de prisão. Batizado de Panóptico, foi inspirado em um zoológico construído em Versalhes. Discorre Foucault (1987, p. 224) sobre um modelo no qual, no centro, haveria uma torre com vista para todas as celas onde um único vigia poderia ter sob seu olhar todos os condenados, perfeitamente individualizados, de modo que estariam constantemente visíveis.

Segundo seu entendimento, o efeito mais importante do Panóptico seria o de

induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma

6 Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, um aristocrata milanês, é considerado o principal representante do Iluminismo Penal.

7 Jeremy Bentham foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um sistema de filosofia moral, não apenas formal e especulativa, mas com a preocupação radical de alcançar uma solução a prática exercida pela sociedade de sua época.

8 Michel Foucault; Poitiers, 15 de outubro de 1926 — Paris, 25 de junho de 1984 foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo e crítico literário.

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máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores (FOUCAULT, 1987, p. 225).

Com o decorrer do tempo, a pena privativa de liberdade foi tornando-se protagonista no sistema punitivo, sendo de fato a mais aplicada no mundo. Começam a surgir mais teorias e regulamentos, além de estabelecimentos prisionais específicos para sua aplicação.

1.2 A Pena privativa de liberdade no Brasil

Por muito tempo, no Brasil colonial, vigoraram as ordenações Filipinas9. Nelas estavam contidas punições extremamente severas como a pena de morte e inúmeras desigualdades de tratamento segundo o gênero ou posição social do indivíduo.

Em 1830, após a independência do país, houve uma importante e produtiva mudança na legislação penal brasileira com a promulgação do Código Criminal:

Nos anos imediatamente posteriores à Independência do Brasil, em 1822, juristas, políticos e intelectuais brasileiros já se orgulhavam dos avanços que o país havia alcançado na área da legislação criminal. O Código Criminal de 1830 e o Código do Processo Criminal de 1832 serviram de modelo para todo o hemisfério, e a Casa de Correção do Rio de Janeiro esteve entre as primeiras instituições penais modernas da América Latina. (MAIA et al., 2013, p. 5).

Com o advento de tal legislação o Brasil inicia o movimento de reforma em seu sistema punitivo, banindo as penas cruéis e degradantes para uma parcela da população, enquanto mantinha por outro lado as penas de açoites e até de morte para escravos. Era o início de um modelo que, de agora em diante, manteria a sua seletividade, evidente até os dias atuais.

O código criminal de 1830, sob influência do sistema filadélfico americano, também chamado de sistema celular, difundido por Benjamin Franklin10 e Willian

9 As Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, é uma compilação jurídica que resultou da reforma do código manuelino, por Filipe II de Espanha (Felipe I de Portugal), durante o domínio castelhano. Ao fim da União Ibérica (1580-1640), o Código Filipino foi confirmado para continuar vigendo em Portugal por D. João IV.

10 Benjamin foi um jornalista, editor, autor, filantropo, político, abolicionista, funcionário público, cientista, diplomata, inventor e enxadrista estadunidense.

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Bradford, introduziu a pena privativa de liberdade como prática punitiva de fato. A pena de trabalhos forçados, também chamada “galés”, dependia de regularização de espaços apropriados que, em não havendo, seriam substituídas pela pena de prisão simples, acrescidas de um sexto (como previa o código em seu art. 49), o que ocorria de fato na prática devido à falta de estrutura. Sobre as penas oriundas desta codificação discorre Teles (1998, p 47, grifo nosso):

As penas cominadas são: a morte na forca (para os crimes de insurreição de escravos, homicídio agravado e roubo com morte), a de galés – “trabalho forçado, levando os condenados calcetas aos pés e corrente de ferro, juntos ou separados” –, prisão simples e prisão com trabalhos, banimento, degredo e desterro, multa e suspensão de direitos. É óbvio, para os cidadãos livres. Os escravos, enquanto semoventes, podiam, é claro, ser açoitados.

Em relatórios apresentados no período, as instituições prisionais já se encontravam em desconformidade ao que prezava a lei da época, a qual presumia instalações arejadas, bem iluminadas e outros fatores estruturais adequados ao bom cumprimento da pena. Tal constatação reitera a histórica desídia com o sistema penitenciário brasileiro por parte do Estado, já nascendo, assim, deficiente, técnica e estruturalmente inadequado, o que só viria a se agravar no decorrer do período republicano, com a crescente criminalidade e se tornar inconcebível nos dias atuais.

Em cem anos o código penal veio gradativamente acompanhando as mudanças sociais e os movimentos humanistas, incorporando então, em 1940, nos seus fundamentos, o direito liberal através de um novo código penal o qual definia

a privação da liberdade como pena principal, a reclusão e detenção, para os crimes, e prisão simples para as contravenções penais, e as medidas de segurança para os incapazes e perigosos. O Código orienta-se para uma política criminal de transação e conciliação, abraçando princípios das duas escolas, clássica e positiva. (TELES, 1998, p. 49).

Desta forma a pena de prisão assumiu seu lugar de destaque no sistema punitivo brasileiro, recebendo posteriores reformas e garantias constitucionais advindas dos tratados e convenções internacionais.

As penas privativas de liberdade são aplicadas seguindo a Constituição Federal, o Código Penal e ainda a lei de Execuções Penais. O grande foco de tal lei é

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a proteção da sociedade frente a indivíduos considerados nocivos, que coloquem em risco a segurança e a vida em comunidade e, em um segundo momento, a reintrodução destes indivíduos em âmbito social.

Contudo observa-se uma enorme discrepância quanto ao disposto na legislação e as possibilidades encontradas dentro do sistema carcerário de fato. Em tese, o apenado conserva, segundo a legislação, todos os demais direitos não atingidos pela perda da liberdade, porém, quando tais direitos são oferecidos é de forma inapropriada e precária.

O trabalho no cárcere é uma das tentativas de ressocialização do apenado, porém opera em regra contrariando os objetivos para os quais foi destinado.

Os percentuais apontados pelas estatísticas de 2004, realizada pela FUNAP, Fundação Nacional de Amparo ao Preso, são reveladores desta realidade. Da população carcerária do Estado de São Paulo, considerada naquele período, 42% não trabalhavam. Dos que trabalhavam, a metade era remunerada com a importância de R$20,00 por mês. Apenas 5% recebiam salários entre R$81,00 e R$120,00. (DASSI, 2009, p. 7).

Os apenados sentem-se desmotivados, pois além dos pequenos valores que recebem, exercem muitas vezes trabalhos que não condizem com suas habilidades e que não garantem, em regra, uma realocação no mercado de trabalho. O único atrativo do trabalho no cárcere, nesse contexto, reside na possibilidade de remição de pena relativa aos dias que foram trabalhados.

Um dos fatores, senão talvez o principal, ensejador da criminalidade é o desemprego aliado ao mercado cada vez mais exigente. Em âmbito penitenciário, a possibilidade de melhora de escolaridade do apenado é pequena. Tanto professores quanto possíveis alunos são desestimulados devido ao material doutrinário ser deficiente e os locais não possuírem em sua grande maioria acomodação adequada para estudo, isso nas poucas penitenciárias com espaços reservados para tal.

A Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210/1984 – dispõe sobre a classificação dos presos segundo os seus crimes, personalidade e demais características que os tornem compatíveis entre si de forma adequada à individualização da pena.

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Considerada a superlotação das penitenciárias, tal classificação com a intenção de separar os presos para garantir um cumprimento de pena com dignidade e nenhuma interferência quanto à ressocialização torna-se completamente inviável na grande maioria das penitenciárias observando que, segundo Dassi (2009, p. 9),

esta classificação é essencial para o sucesso da prisão enquanto instrumento de controle da criminalidade, na medida em que evita o contato de infratores ocasionais, que praticam crimes menos graves, com aqueles que são “profissionais” na prática criminosa.

Sabendo que o controle de fato das galerias nas penitenciárias pertence às facções criminosas, e que mesmo dentro do sistema prisional o apenado possui acesso irrestrito aos meios de comunicação, fica evidente o total descrédito que o sistema enfrenta face à sociedade. As penas privativas de liberdade não põem fim aos atos criminosos ou representam qualquer dano ou interferência nas ações do crime organizado, apenas modificam o seu local de “trabalho”.

Com a vida no cárcere, sob influência da violência diária, má alimentação, péssimas condições de higiene, superlotação e tantos outros fatores em um ambiente hostil, torna-se praticamente impossível pensar em ressocialização ou em recuperação minimamente eficaz. O indivíduo acaba simplesmente sendo segregado em um local onde teoricamente seus atos não poderão atingir a sociedade e, quando a condição humana piora drasticamente, é de fato facilmente absorvido pela criminalidade, em muitos casos definitivamente, o que se reflete na alta taxa de reincidência criminal.

Segundo artigo publicado no site Carta Capital11, o país possuía no ano de 2015 a quarta maior população prisional do mundo que em comparativo com 2004 teve um crescimento de mais de 160% ocupando a segunda posição no ranking de países que mais prenderam nos últimos 15 anos. Esses dados impressionantes nos mostram que a segurança pública tem agido fortemente com medidas coercitivas e que o Estado pune ferozmente com base em uma legislação complexa e abrangente.

11 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-possui-a-quarta-maior-populacao-prisionaldo-mundo-7555.html>. Acesso em: 04 junho 2017.

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Analisando as estatísticas12 mais recentes divulgadas pelo Departamento Penitenciário Nacional no Sistema Integrado de Informações penitenciárias, a população carcerária brasileira, em 2014, chegava a 622.202 pessoas – dentre sujeitos presos em regime aberto, semiaberto, fechado e outros aguardando condenação. Isso equivale a 306,2 presos para cada 100.000 habitantes. Neste mesmo ano, o déficit prisional chegava a 231 mil vagas.

Observando no relatório estatístico de 2014 no que tange à estrutura carcerária propriamente dita, não existem celas específicas para pessoas indígenas ou estrangeiras. Apenas 6% dos estabelecimentos possui cela ou ala diferenciada para abrigar lésbicas, gays, bissexuais, travestis ou transexuais. Ainda, somam apenas 8% os estabelecimentos com cela ou ala exclusiva para idosos. Quanto à questão de acessibilidade, apenas 12% dos estabelecimentos possui algum tipo de investimento neste sentido, sendo que 88% deles não possui ala ou cela compatível. Fica visível a falta de interesse estatal devido ao fato de que mais de 58% dos estabelecimentos prisionais possuem terrenos ou espaços disponíveis para a construção de novos módulos que poderiam suprir tal demanda estrutural. Porém, não há investimentos visíveis nesta questão.

O perfil do apenado, por sua vez, demonstra uma herança histórica de segregação social e racial com uma evidente seletividade do sistema punitivo. Em 2014, dos 622 mil, mais de 310 mil declararam se negros ou pardos, em sua maioria jovens até 35 anos, solteiros ou em união estável. Estes dados nos mostram vestígios de criminalização da pobreza em uma sociedade classista em um período pós-abolicionista, deixando um legado monocromático nos cárceres brasileiros até os dias de hoje. Sobre o tema, com base no Mapa do Encarceramento13, discorrem com propriedade Wermuth e Assis (2016, p. 12):

Em relação à cor da pele, o estudo aponta que 60% do universo prisional é composto por pessoas negras. O documento revela que a

12 Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticasprisional/relatorios-estatisticos-analiticos-do-sistema-prisional>. Acesso em: 15 abril 2017.

13 Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil. Disponível em: <http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/pressreleases/2016/06/03/mapa-do-encarceramentoos-jovens-do-brasil.html>. Acesso em: 27 junho 2017.

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população branca do Brasil é nove vezes maior que a negra. No entanto, os negros abarrotam as prisões brasileiras com percentuais expressivos. A negritude vem acompanhada de situações de privação econômica e vulnerabilidade social, ou seja, o fato de ser negro e pobre desperta a atenção das agências incumbidas de manter a ordem.

A priori, o que encontramos neste modelo prisional é a busca pela segregação do indivíduo através de um sistema quantitativo em contramão da qualidade e adequação da penalização. Neste sentido,

o modelo de segurança pautado no eficientismo penal não prioriza a análise acerca dos fatores causais do crime. Prevalece a lógica da “tolerância zero” e a política do “pé na porta”. Enfim, é um modelo que busca a segregação dos segmentos hipossuficientes da sociedade, contribuindo com a limpeza e a higienização dos espaços sociais, de modo a satisfazer os desejos de uma elite burguesa que não consegue conviver com os dejetos que ela mesma produz. (WERMUTH; ASSIS, 2016, p. 16).

O grau de instrução dos presos demonstra, ainda, a deficiência latente nos programas de governo e garantias sociais, e os investimentos em educação possuem relação direta com a criminalidade, sendo que praticamente 50% de todos os apenados sequer possuem ensino fundamental completo. É ainda mais impressionante esta relação quando observamos que apenas 6.870 chegaram a ingressar em curso superior, sendo que pouco mais de 2.200 presos entre mais de 622 mil indivíduos possuem tal formação.

Os crimes primordialmente cometidos possuem cunho patrimonial, sendo que, por este tipo de delito, há mais de 215 mil apenados, seguido dos delitos de tráfico de drogas, com mais de 129 mil. Neste ponto podemos observar mais duas questões referentes a problemas sociais e correlacionadas muitas vezes entre si. A alta taxa de desemprego, precárias condições de trabalho ou valorização, aliadas ao baixo nível de instrução, elevam os níveis de criminalidade como efeito colateral da falta de oportunidades, combinada com as facilidades muitas vezes prometidas pela ilegalidade e alta rentabilidade da venda de entorpecentes.

Por sua vez, foram registrados neste período mais de 950 óbitos dentro do sistema penitenciário, em sua grande maioria por motivos de saúde relativos às condições insalubres a que são submetidos os detentos devido à superlotação e

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diversos outros fatores estruturais. Ainda, há óbitos criminais, suicídios, óbitos acidentais e de causa desconhecida, o que demonstra a falta de condições de segurança para cumprimento da pena a que apenados estão submetidos, além da total falta de apoio psicológico, que seria fundamental neste ambiente.

Dentre os órgãos que mais fiscalizam as penitenciárias encontram-se o Ministério Público, com 76% dos estabelecimentos, o Judiciário, com 67%, seguidos da Defensoria Pública, com 47%. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP fiscalizou apenas 3% das estruturas.

Podemos verificar nestes dados facilmente uma estrutura problemática, superlotada, deficiente e inapropriada para o que foi designada e com uma grande desídia por parte do Estado. Ainda vemos que, comparando com dados dos anos de 2010, houve um grande aumento populacional penitenciário, mas nenhuma mudança quanto às estatísticas demonstradas. Deste modo, o cárcere continua apenas segregando indivíduos específicos, os quais são fruto da mesma falta de investimentos verificada no passar dos anos nos mais diversos setores sociais.

1.3 A prisão provisória

Um dos dados mais preocupantes retirados do Sistema Integrado de Informações penitenciárias de 2014 é que 118.354 indivíduos aguardavam julgamento presos em caráter provisório, ou seja, ainda não haviam recebido sentença condenatória, o que condiz com praticamente 50% de todo o déficit de vagas que existia no sistema carcerário daquele ano.

Em 2012, o Conselho Nacional de Justiça publicou o relatório intitulado “Mutirão Carcerário: Raio-x do sistema penitenciário brasileiro14”, o qual através de quatro anos de pesquisas e levantamentos, produziu um panorama das penitenciárias brasileiras. Segundo os dados,

o Pará tem uma das mais altas taxas de presos provisórios do país. No Estado, seis em cada dez pessoas detidas nas delegacias, cadeias públicas e presídios ainda aguardam julgamento. Muitas delas

14 Disponível em:

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esperam a sentença dentro de uma cela-contêiner, um pequeno cômodo em que as paredes são chapas metálicas e o calor é infernal. O Mutirão Carcerário do CNJ encontrou celas metálicas em pelo menos oito unidades na Região Metropolitana de Belém e no interior do Estado.

A prisão em caráter provisório pode ser compreendida como o flagrante delito, prisão preventiva, prisão de sentença recorrível, prisão da decisão de pronúncia, e algumas outras modalidades. Deve ser tratada sempre como medida excepcional e não como regra, pois exige uma série de fatores que a legitimem, dentre eles a garantia da não obstrução do bom andamento do processo, contra a destruição de provas, como garantia a ordem pública ou o risco de evasão do acusado, todos estas questões pontuais não dando margem à discricionariedade judicial.

Observando o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, tratado internacional o qual o Brasil é signatário, podemos verificar uma das situações de ilegalidade quando o referido Pacto dispõe em seu art. 5º inciso 4º (grifo nosso) que “os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas”. Em Rondônia, por exemplo, situação também evidenciada pelos mutirões carcerários:

O magistrado Lima Neto encontrou 63 presos provisórios dividindo três celas sem ventilação no Presídio de Nova Mamoré, em uma região onde a temperatura beira os 40 graus durante o dia. Em Vilhena, a inspeção flagrou 35 homens ocupando cela própria para 15 pessoas. Segundo os presos, a alternativa era dormir em redes ou sobre colchões que praticamente boiavam no chão alagado, no dia da inspeção.15

Isso evidencia que, definitivamente, não há estrutura física para a separação de presos conforme determina a lei. Isso reflete diretamente no caráter ressocializador da pena.

A pena de prisão em caráter provisório afronta diretamente, além do dispositivo supracitado, quando não for estritamente necessária, e o princípio da presunção de

15 Mutirão Carcerário: Raio x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: <http://www.rcdh.es.gov.br/sites/default/files/2012%20CNJ%20Mutirao%20Carcerario%20-%20raio-x%20do%20sistema%20penitenciario%20brasileiro.pdf>. Acesso em: 02 junho 2017.

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inocência descrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em seu artigo XI, 1, o qual dispõe que: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Sendo assim, a pena de prisão antes de sentença condenatória transitada em julgado, ainda em fase de produção de inquérito ou a prisão provisória sem base sólida que a legitime ou eventualmente desnecessária, frente à estrutura penitenciária extremamente nociva, torna-se ato inconstitucional e atentatório não só ao direito de livre locomoção, mas também à dignidade e integridade física do sujeito. Nos termos descritos neste capítulo, aguardar o devido processo legal privado de liberdade caracteriza uma penalidade inapropriada, perversa e desproporcional. Além disso, a privação de liberdade aliada a condições de degradação e insalubridade, pode ser caracterizada como bis in idem, uma dupla penalidade pelo mesmo fato delituoso. Desta forma, a privação de liberdade frente a tais estruturas produz um dano potencialmente maior à sociedade do que o gerado pelo próprio delito praticado, uma vez que se transforma em um círculo vicioso de produção de violência.

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2 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI)

A nova Constituição na República da Colômbia, no ano de 1991, promulgada sob um olhar garantista internacional, buscou resguardar um grande rol de direitos humanos e fundamentais individuais. A nova Constituição instituiu uma Corte Constitucional com ampla competência para atuar sobre a administração do poder executivo, com o objetivo de resguardar e fazer cumprir o texto constitucional e seus preceitos. Também através das chamadas acciones públicas, as quais podem ser propostas por qualquer cidadão, poderia partir o controle de constitucionalidade e as demandas da corte.

Embasada nesta nova estrutura jurídica, a qual trazia grandes poderes de intervenção judiciária, para além das sentenças declaratórias, atingindo inclusive as políticas públicas do país, a corte constitucional iniciou uma construção jurisprudencial que culminaria na declaração do Estado de Coisas Inconstitucional como abordaremos adiante. A declaração de ECI atua nos quadros generalizados e reiterados de desrespeito aos preceitos fundamentais e os direitos humanos, buscando a reforma das instituições através de sentenças estruturais.

Neste capítulo abordaremos as principais decisões, referentes ao tema, proferidas pela supracitada corte, a qual é considerada paradigma do ativismo judicial na América Latina, além de ser uma das mais atuantes no mundo. Além disso, analisaremos a aplicação do instituto frente ao sistema carcerário brasileiro. Outrossim, observando a ADPF nº 347, veremos o que a declaração de ECI no direito brasileiro pode ocasionar, quais seus pressupostos, seus efeitos e controversas.

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2.1 Uma construção colombiana

A corte colombiana frente ao que previa a nova constituição, observando garantias que serviriam de ferramentas legítimas de sua atuação inicia o movimento que em muitas ocasiões primou pela atuação limitativa sobre o poder executivo, inclusive exercendo força sobre decisões emergenciais. É o que preza o art. 214, 6º da Carta magna Colombiana:

6. El Governo enviará à la Corte Constitucional al día siguiente de su expedición, los decretos legislativos que dicte en uso de las facultades a que se refieren los artículos anteriores, para que aquélla decida definitivamente sobre su constitucionalidad. Si el Gobierno no cumpliere con el deber de enviarlos, la Corte Constitucional aprehenderá de oficio y en forma inmediata su conocimiento16.

Sendo assim, podemos concluir que a corte não retira a discricionariedade dos atos do presidente, porém funciona como um “contrapeso” entre as esferas, agindo no controle material das razões políticas. Embora, na teoria, tais ações surtiriam efeitos positivos na efetivação das garantias fundamentais, em muitos dos casos estas não foram bem vistas pela base de governo:

Essas decisões resultaram em acusações de ”ditadura judicial”, de dificultarem o controle da ordem pública pelo governo ante o dramático contexto de violência pela atuação das Forças Armadas Revolucionárias (FARC), grande ameaça às instituições democráticas colombianas com sequestros e assassinatos de políticos e até de magistrados. (CAMPOS, 2016, p. 102).

O controle da corte também influiu como reconhecimento de inconstitucionalidade em outras duas declarações de estado de exceção entre 1994 e 1995 no país, e, de qualquer forma, apesar do ativismo judicial não agradar a estrutura de governo, acabou sendo legitimado através do grande apoio garantido pelos sindicatos, pelas organizações de direitos humanos e outras organizações políticas. Desta forma, veio ganhando simpatia e grande reconhecimento popular.

16 Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Colombia/colombia91.pdf>. Acesso em: 30 julho 2017.

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Com o passar do tempo, a corte fora ganhando mais espaço e as demandas levadas até ela cominaria na primeira declaração de ECI, como veremos em análise de duas das principais jurisprudências do período.

Em 1997, cerca de 45 professores de dois municípios colombianos, adentraram com ações de tutela afirmando que tais municípios estavam deixando de inscrevê-los no sistema de seguridade social. Apesar de haver a contribuição dos subsídios dos professores para o chamado Fundo de Prestación Social, eles não recebiam qualquer cobertura de saúde ou seguridade social por falha na inscrição, restando evidente a desídia da administração com suas obrigações e prejudicando diretamente direitos sociais básicos.

O magistrado, ao analisar a demanda, observou que o direito tutelado não era restrito apenas às partes vinculadas na demanda, e que a desídia por parte dos municípios era reiterada e abrangia 80% dos professores municipais de todo o território nacional, sendo prática recorrente e generalizada do executivo a não inscrição dos professores no sistema previdenciário. Desta forma, tratava-se da tutela de direito fundamental constitucional, para muito além de interesses particulares. Assim, a sentença teria que reformar o sistema administrativo para surtir os efeitos esperados.

Envolvidos neste conflito, ainda, se encontravam o direito à educação de crianças e jovens. A corte, em sua decisão, referiu ser prioridade o direito da criança sobre o dos demais. Porém, não deixou de manifestar-se sobre a questão pontual dos trabalhadores como podemos ver em trecho da decisão:

La disposición del Decreto 196 de 1995 es clara en el sentido de determinar que todos los educadores de los entes departamentales, distritales y municipales deben ser afiliados al Fondo Nacional de Prestaciones Sociales del Magisterio, obligación que no puede ser soslayada a través de la instauración en los municipios de mecanismos informales de seguridad social. El Fondo, al igual que las demás entidades de seguridad social, opera con base en el principio de la solidaridad.17

17 Sentencia SU.559 de 1997. Disponível em:

<http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/1997/SU559-97.htm> Acesso em: 15 setembro 2017.

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A corte verificou que a origem do problema não se encontrava nos municípios, e que mesmo querendo corrigir a situação eles não teriam condições pois a inconstitucionalidade partia do próprio programa nacional de distribuição dos recursos públicos. A Corte, então, procurou soluções para o problema original ao invés de apenas assegurar o direito dos professores demandantes.

Em trecho da sentença18 podemos observar claramente a abrangência da decisão e a intenção da corte na superação da inconstitucionalidade através de ações colaborativas:

La Corte Constitucional tiene el deber de colaborar de manera armónica con los restantes órganos del Estado para la realización de sus fines. Del mismo modo que debe comunicarse a la autoridad competente la noticia relativa a la comisión de un delito, no se ve por qué deba omitirse la notificación de que un determinado estado de cosas resulta violatorio de la Constitución Política. El deber de colaboración se torna imperativo si el remedio administrativo oportuno puede evitar la excesiva utilización de la acción de tutela. Los recursos con que cuenta la administración de justicia son escasos. Si instar al cumplimiento diligente de las obligaciones constitucionales que pesan sobre una determinada autoridad contribuye a reducir el número de causas constitucionales, que de otro modo inexorablemente se presentarían, dicha acción se erige también en medio legítimo a través del cual la Corte realiza su función de guardiana de la integridad de la Constitución y de la efectividad de sus mandatos. Si el estado de cosas que como tal no se compadece con la Constitución Política, tiene relación directa con la violación de derechos fundamentales, verificada en un proceso de tutela por parte de la Corte Constitucional, a la notificación de la regularidad existente podrá acompañarse un requerimiento específico o genérico dirigido a las autoridades en el sentido de realizar una acción o de abstenerse de hacerlo (grifo nosso).

Pode-se verificar, outrossim, ao fim da decisão a incidência de declaração do ECI e, na segunda parte, a abrangência do problema discutido em caso:

Primero.- DECLARAR que el estado de cosas que originó las acciones de tutela materia de esta revisión no se aviene a la Constitución Política, por las razones expuestas en esta providencia. Como, al parecer, la situación descrita se presenta en muchos

18 Sentencia SU.559 de 1997. Disponível em:

<http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/1997/SU559-97.htm> Acesso em: 15 setembro 2017

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municipios, se advierte a las autoridades competentes que tal estado de cosas deberá corregirse dentro del marco de las funciones que a ellas atribuye la ley, en un término que sea razonable.19 (grifo nosso)

Desta forma, além de declarar o ECI, a corte culminou em determinar que outros municípios em situação semelhante tomassem providências para a correção e adequação da inconstitucionalidade encontrada em prazo razoável. Além disso, ordenou o envio de cópias da sentença aos Ministros da Educação e da Fazenda e do Crédito Público, aos membros do CONPES, aos Governadores e Assembleias, aos Prefeitos e aos Conselhos Municipais para a tomada das demais providências.

2.1.1 O sistema carcerário colombiano

Em 28 de abril 1998, através de uma demanda que envolvia a superlotação e desrespeito de garantias fundamentais, a Corte Constitucional, apoiada em dados e estudos empíricos, constatou a violação generalizada e reiterada de direitos da população penitenciária frente a todo o sistema nacional. Observaram estarem constituídos todos os pressupostos justificadores da declaração do ECI e ausente a função ressocializadora como podemos observar na ementa20:

Las cárceles colombianas se caracterizan por el hacinamiento, las graves deficiencias en materia de servicios públicos y asistenciales, el imperio de la violencia, la extorsión y la corrupción, y la carencia de oportunidades y medios para la resocialización de los reclusos. Esta situación se ajusta plenamente a la definición del estado de cosas inconstitucional.

[…]

La labor de resocialización no consiste en imponer determinados valores a los reclusos, sino en brindarles los medios para que, haciendo uso de su autodeterminación, establezca cada interno el camino de su reinserción al conglomerado social. Precisamente

desde la perspectiva de la dignidad de los reclusos y de la obligación del Estado de brindarles los medios necesarios para su resocialización se deben interpretar distintos artículos del Código

Penitenciario que regulan las condiciones de albergue de los internos, y sus derechos al trabajo, a la educación y enseñanza, al servicio de sanidad, a la comunicación con el exterior y la recepción de visitas, a la atención social, etc. (grifo nosso)

19 Sentencia SU.559 de 1997. Disponível em:

<http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/1997/SU559-97.htm> Acesso em: 15 setembro 2017.

20 Sentencia T-153/98, abril de 1998. Disponível em:

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Conforme destaca Campos (2016, p. 129), a Corte identificou a omissão permanente do Estado e também da sociedade frente ao quadro de superlotação das penitenciárias, sendo que este quadro implicava a direta violação dos direitos à vida, dignidade humana, saúde, família, integridade física e tantos outros direitos fundamentais. Observa, ainda, que com a falta de representação política dos presos e a indiferença dos governantes, dificilmente se encontraria uma solução para tal violação por outra via que não a Corte Constitucional.

Por fim, a Corte determinou na Sentencia T-153 uma série de medidas ao poder público, dentre elas a elaboração de um plano de construção e reparação das unidades carcerárias, de modo a garantir condições adequadas à dignidade dos presos; ordenou que se tomassem medidas para sanar a carência de recursos humanos especializados nas penitenciárias e, por fim, ordenou ao Presidente da República, como autoridade máxima do país, e ao Ministro da Justiça que tomassem as medidas necessárias para garantir a ordem pública e o respeito pelos direitos fundamentais dos presos nos centros de detenção do país

Por mais qualificadas que tenham sido as ordens emanadas pela Corte Constitucional em 1998, o ECI persiste até os dias de hoje. Apesar de ter proferido sentença de comandos flexíveis, desta forma possibilitando que outros órgãos manifestassem suas capacidades administrativas e buscassem soluções dialéticas, a efetividade da decisão esbarrou na falta de fiscalização e novamente no interesse político.

Em 2013, apesar de afirmarem que a questão que deu origem à demanda anterior tenha sido superada, os juízes identificaram, na Sentencia T-38821, que o ECI ainda persistia. Em 2015, novamente, a Corte reitera a desídia com o sistema penitenciário através da sentença T-76222, reconhecendo as falhas na execução das anteriores e o grande problema institucional:

21Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2013/t-388-13.htm> Acesso em: 15

setembro 2017.

22Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2015/t-762-15.htm> Acesso em: 15

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Esta Corte se ha pronunciado mediante las Sentencias T-153 de 1998 y T-388 de 2013, en las cuales la Corte Constitucional declaró la existencia de un Estado de Cosas Inconstitucional (ECI) “en las prisiones” y en el “Sistema Penitenciario y Carcelario”, respectivamente. En dichas sentencias esta Corporación evidenció fallas de carácter estructural que requieren de la colaboración armónica de las entidades del Estado, para lograr su superación. Así mismo, estas dos sentencias son importantes referentes jurisprudenciales a partir de los cuales se ha diagnosticado y comprendido la problemática carcelaria y penitenciaria del país, en especial, por parte del juez constitucional. La Sentencia T-153 de 1998, después de realizar un análisis histórico del fenómeno de la ocupación carcelaria en el país, identificó como uno de los focos de acción contra la sobrepoblación, entre otros, la necesaria adecuación de la infraestructura física del sistema penitenciario y carcelario de la época. Casi 15 años después, la Sentencia T-388 de 2013, reconoció que los esfuerzos en la creación de una infraestructura penitenciaria que ampliara la cobertura fueron, en su mayoría, exitosos.

Sustenta, por fim, que deve ser dada maior ênfase à necessidade de adaptar a política criminal do país, de maneira ampla, aos padrões e marcos para a proteção dos direitos das pessoas privadas de liberdade, pois, dessa forma, podem ser alcançados resultados muito mais sustentáveis.

2.2 Pressupostos e características do ECI

Em 2004, durante discussão do caso do deslocamento de pessoas23, através da Sentencia T-025 com a qual se buscava garantias para as famílias forçadas a deixar suas casas devido à violência do narcotráfico e do crime organizado na Colômbia, a corte definiu seis parâmetros para caracterizar a existência de um ECI:

I - A violação maciça e generalizada de vários direitos;

II - A omissão prolongada das autoridades no cumprimento das suas obrigações de garantia dos direitos;

III - A adoção de práticas inconstitucionais, como a incorporação da ação de tutela como parte do procedimento para garantir o direito violado;

23A Colômbia superou a Síria como país com mais deslocamentos internos forçados em 2016, com 6,9

milhões de pessoas nas últimas três décadas que abandonaram seus lares por conta da violência. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br> Acesso em: 12 outubro 2017.

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IV - A não emissão de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos;

V - A existência de um problema social cuja solução envolve a intervenção de várias entidades, exija a adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e requeira um nível de recursos que exija um esforço orçamentário adicional importante.

E, por fim, completou o rol afirmando o caráter de necessidade: “se todas as pessoas afetadas pelo mesmo problema recorreram à ação da tutela para obter a proteção de seus direitos, haveria maior congestionamento judicial”.

Verificados os pressupostos do ECI, o Supremo pode interferir sobre a formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas, caracterizando o ativismo judicial em uma dimensão estrutural. A Corte pode, por meio de medidas estruturais, superar os bloqueios políticos e institucionais que servem para agravar a violação massiva e repetida dos direitos fundamentais dos presos. Pode mudar a opinião pública sobre o tema, despertar a atenção da sociedade sobre o quadro, colocando o problema na agenda política brasileira, promovendo ou aumentando a deliberação sobre o sistema carcerário. (CAMPOS, 2016. p. 276). No Brasil, podemos citar outros remédios constitucionais previstos pelo legislador, os quais objetivam à solução de descumprimento de preceitos fundamentais e também abrem margem para ações mais invasivas do judiciário:

A Constituição de 1988 também previu mecanismos institucionais que permitem ao supremo declarar o ECI e seguir com ordens estruturais dirigidas à superação deste estado. O mandado de injunção, destinado a superação de omissões legislativas e administrativas e sendo possível a atuação administrativa direta pelo juiz constitucional, é uma opção. Outro instrumento pode ser o recurso extraordinário quando reconhecida a repercussão geral da matéria envolvida. É possível, em extraordinários com repercussão geral, serem tomadas decisões que afetem a todos e, assim, versem litígios estruturais. (CAMPOS, 2016. p. 259).

Sobre a legitimidade da intervenção judiciária podemos destacar duas das frequentes críticas:

a) primeiramente destacamos a acusação de violação ao princípio da separação dos poderes, o qual serviria de impeditivo à atuação entre eles. A crítica diz que além de separados, os poderes são também distantes, ou seja, além de

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possuírem certa autonomia não podem se tocar. Contudo, a Constituição Federal de 1988 prevê um modelo dialógico, dinâmico e cooperativo de poderes. Campos (2016, pg. 307) refere tratar-se de “constitucionalismo cooperativo”, a partir do qual o bem comum sobressai à rigidez normativa, desta forma resguardando a legitimidade das ações conjuntas entre os poderes;

b) o segundo ponto importante a ser considerado é a acusação de ameaça à democracia. Os críticos abordam certas posturas judiciais como uma ameaça ao sistema democrático de direito. Pois bem. Compreendamos uma democracia pelo seu critério de representatividade popular. Partindo dessa premissa, se por um lado temos o poder judiciário formado por sujeitos que não adquiriram um mandato público por consequência do voto direto, de manifestação da soberania popular e nesse sentido não seria o sistema judiciário, em tese, uma instituição diretamente representativa do povo. Por outro lado, vemos através do ECI a proteção de direito de classes de pessoas, a representatividade das minorias. Deste modo, no caso do sistema penitenciário, onde não há qualquer participação politica dos apenados, ocorre de fato um abandono democrático onde não há vontade política nem voz ativa.

2.2.1 O ativismo judicial estrutural

Campos (2016, pg. 220) define ativismo judicial como “o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, por parte dos juízes e cortes em face dos demais atores políticos”. A ideia de ativismo judicial está vinculada a uma ampliação da atuação do poder judiciário, interferindo nas esferas dos demais poderes. Segundo Barroso (2008, pg. 06),

a postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

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O ECI pode ser visto como uma espécie de porta para atingir outras possibilidades e, de fato, sua declaração é um exemplo de ativismo judicial e traz consigo algumas possibilidades interessantes e também pontos controversos.

Com efeito, ao utilizar o instrumento da declaração do ECI, a Corte deixa de restringir-se à função de garantidora de direitos individuais em casos particulares e assume papel muito mais ativo, o de formular ou contribuir à formulação de políticas públicas e de assegurar sua implementação e o controle de sua execução. Em face de sistemática omissão estatal, incluída a omissão legislativa, a Corte busca estabelecer um modelo coordenado de ação, que alcança diferentes atores, voltado a reverter o quadro de massiva transgressão de direitos fundamentais. Desta forma, tanto interfere em escolhas políticas quanto procura assegurar que essas escolhas se concretizem e surtam efeitos reais. (CAMPOS, 2016. p. 97).

Em contraponto, acredita Streck (2015) que “em sendo factível/correta a tese do ECI, a palavra “estruturante” poderá ser um guarda-chuva debaixo do qual será colocado tudo o que o ativismo querer, desde os presídios ao salário mínimo”24. Nesse entendimento, podemos temer pela banalização da utilização do ECI, e por acabar sendo conduzido de forma distorcida como ferramenta de simples intervenção e violação da separação dos poderes.

Campos (2016, pg. 160) revela, na verdade, a prudência da Corte colombiana e sua delimitação no que se refere à utilização concreta do instituto no sentido de tutelar os preceitos constitucionais:

Sob a perspectiva da teoria constitucional, a Corte fundamenta-se em elementos essenciais do constitucionalismo contemporâneo, como a limitação do poder político majoritário em prol dos direitos das minorias e a proteção prioritária dos direitos fundamentais.

[...]

Nesse sentido, a descrição das sentenças, por meio das quais a Corte Constitucional declarou o ECI, revela que o juiz constitucional colombiano tem utilizado o instrumento para a tutela da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

Podemos observar na declaração de ECI de todas as sentenças proferidas pela Corte Constitucional colombiana que o magistrado prezou pela adequação aos

24 Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Disponível em: <

https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo> Acesso em: 20 setembro 2017.

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preceitos fundamentais. Ademais, o aspecto relevante para a atuação ou não do poder judiciário sob os demais entes federativos reside na análise do caso concreto. A inércia do poder legislativo ou executivo, desídia, descaso ou falta de interesse político, em tese, legitimam a ação intervencionista, pela qual se busca a retomada do status quo constitucional.

Ressaltamos, no entanto, que não podemos generalizar a maneira de pensar o ativismo judicial. Neste trabalho buscamos contextualizá-lo apenas como consequência da declaração do ECI, legitimando as sentenças estruturais da Corte constitucional colombiana e do Supremo Tribunal Federal por consequência, ou seja, o ativismo judicial é legítimo na medida em que se faz estritamente necessário, como última ratio, fazendo cumprir as garantias fundamentais constitucionais em um caso de robusto e inequívoco rol de elementos probatórios pré-constituídos.

2.3 ADPF 347/DF e seus efeitos

No ano de 2015, no Distrito Federal, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou no Supremo Tribunal Federal frente à União, com Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) conjuntamente com pedido de medida cautelar. A alegação fundava-se no fato de que, segundo o procurador do partido, entre as promessas generosas da Constituição e a realidade, a discrepância no sistema penitenciário era a maior, mais abissal25. Pediu providências urgentes, inclusive em caráter liminar, que produzam efeitos positivos sobre a superlotação do sistema carcerário e que melhorem as condições degradantes a que estão submetidos os apenados.

Destacou, que o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), o qual fora criado pela Lei Complementar 79/1994 com o objetivo de contribuir na adequação do sistema penitenciário brasileiro, estava sendo, ano após ano, contingenciado pelo Poder Executivo. Na época, havia R$ 2.2 bilhões disponíveis no Funpen.

25 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298600> Acesso em: 15 outubro 2017.

Referências

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