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Vista do A TRANSFUSÃO DE SANGUE E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: LIBERDADE RELIGIOSA E FUNDAMENTOS ECONÔMICOS PARA AS DECISÕES JUDICIAIS | Acta Científica. Ciências Humanas

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TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: LIBERDADE RELIGIOSA E

FUNDAMENTOS ECONÔMICOS PARA AS DECISÕES JUDICIAIS

André de Carvalho Okano1 Igor Emanuel de Souza Marques2 Valdinea de Souza Gomes Caetano3 Resumo: Este trabalho apresenta o desafio enfrentado pelas Testemunhas de Jeová no que diz respeito à recusa da transfusão sanguínea como tratamento sob prescrição médica diante da liberdade religiosa garantida na Carta Magna de 1988. Tal situação causa insegurança aos profissionais de saúde que têm o dever legal de zelar pela manutenção da vida humana, bem como aos membros desse grupo religioso, de ter suas crenças e convicções religiosas respeitadas integralmente. Como o ordenamento jurídico contempla os dois direitos como fundamentais, é importante verificar como o Poder Judiciário tem decidido nos casos relacionados ao tema da pesquisa que lhe são submetidos. Para tanto, uti-lizou-se o método lógico dedutivo, partiu de uma premissa maior, a liberdade de consciência, para se chegar à premissa menor, o limite de tal direito perante 1 Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Advogado, mediador e conciliador judicial na Comarca de Artur Nogueira (SP). Professor do curso de Direito do Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho (Unasp). E-mail: andre.okano@unasp.edu.br

2 Doutorando em Direito na Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp). Advogado, mediador e conciliador judicial na Comarca de Artur Nogueira (SP). Professor do curso de Di-reito no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: igor.marques@unasp. edu.br

3 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: neia_caetano@hotmail.com

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situações em que a vida corre risco. Perante essa discussão, espera-se que haja uma melhor definição dos limites e alcance da liberdade religiosa, e quais as formas possíveis de efetivação das mesmas.

Palavras-chave: Liberdade religiosa; Direito à vida; Transfusão de sangue; Tes-temunhas de Jeová.

THE TRANSFUSION OF BLOOD AND

JEHOVAH’S WITNESSES: RELIGIOUS LIBERTY AND

ECONOMIC FOUNDATIONS FOR JUDICIAL DECISIONS

Abstract: This paper presents the challenge faced by Jehovah’s Witnesses regar-ding the refusal of blood transfusion as a prescription treatment in the face of religious freedom guaranteed in the 1988 Constitution. Such a situation causes insecurity for health professionals who have a legal duty to care for the main-tenance of human life, as well as for the members of this religious group, to have their religious beliefs and convictions fully respected. As the legal system contemplates the two rights as fundamental, it is important to verify how the Judiciary has decided in the cases related to the subject of the research that are submitted to it. For that, the deductive logic method was used, it started from a bigger premise, the freedom of conscience to arrive at the minor premise, the limit of this right before situations in which life is at risk. Faced with this dis-cussion, it is hoped that there will be a better definition of the limits and scope of religious freedom, and the possible ways of effecting them.

Keywords: Religious freedom; Right to life; Blood transfusion; Jehovah’s Wit-nesses.

Introdução

A presente pesquisa foi desenvolvida a partir do problema enfrentado pelo grupo religioso conhecido como “Testemunhas de Jeová” e sua recusa pela transfusão de sangue como manifestação de convicção religiosa. A problemática

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desta pesquisa é identificada pela busca em como garantir o direito à liberdade religiosa quando outro direito fundamental, a vida, está em perigo.

A temática esposada aqui é muito relevante, visto que o princípio da digni-dade humana é o principal vetor constitucional envolvido nessa questão, con-sistindo esta orientação constitucional em “um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar” (MORAES, 2004, p. 128). Interessante destacar que a dignidade hu-mana é o fundamento de todas as liberdades, inclusive a liberdade religiosa.

A produção sobre o tema é razoável, embora poucos tenham sido os dou-trinadores que se debruçaram com profundidade ao estudo deste assunto. Mui-tos escriMui-tos estão em artigos periódicos publicados em revistas especializadas no ramo do direito constitucional e do direito civil, mas em sua maioria não estudam diretamente o tema, de modo que esta pesquisa tem por propósito enriquecer o conteúdo já existente quanto ao assunto e, para tanto, está estru-turada em três bases a seguir apresentadas.

Noções conceituais e históricas da liberdade religiosa

Tratar o tema liberdade humana é tarefa árdua e imprescindível na socie-dade atual, tendo em vista o intenso anseio pela efetivação de seus direitos de liberdade, o que gera grandes discussões e se torna objeto de reflexão de estu-diosos das mais diversas áreas das ciências humanas. O tema é tão inerente-mente humano que, de acordo com Rousseau (2002, p. 10), o homem já nasceu livre, independentemente de reconhecimento legislativo.

E variadas são as definições de liberdade dadas pelas diversas áreas da ciência. Mas, segundo Teixeira (2013, p. 35), o Direito exerce um papel impor-tante, ao contribuir na tarefa de atribuir mais materialidade e concretude ao conceito de liberdade, visto que, em sua maioria, as outras áreas atribuem con-ceitos com alto grau de abstração.

Ainda nesse contexto, pode-se facilmente relacionar que o tema da liber-dade está intimamente ligado em sua essência jurídico-filosófica à ideia de dig-nidade, sendo a dignidade “o fundamento mais essencial” que justifica a liber-dade. Assim, pode-se perceber que, na ordem jurídica brasileira, a “liberdade foi estabelecida como um princípio-meio de afirmação do valor-fim da digni-dade humana, passando a ser, desta forma, um meio de efetivação dos valores fundantes” (TEIXEIRA, 2013, p. 53).

Diante desse esboço conceitual, é possível perceber que as ideias de tais autores se apresentam como eco do texto constitucional, que tem como um de seus fundamentos a dignidade humana (artigo 1º, inciso III) com vistas, entre outras coisas, à construção de uma sociedade livre (artigo 3º, inciso I). Enfim,

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é a liberdade que nos permite viver na condição de indivíduos, na acepção da palavra, e é essa característica que torna os seres eminentemente humanos.

A liberdade foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 enquanto princípio e assegurada constitucionalmente como se vê em seu artigo 5º caput, conforme se transcreve:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabi-lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […] (BRASIL, 1988, p. 13).

Embora o legislador tenha estabelecido, no caput do mencionado artigo, a liberdade enquanto direito-gênero, nos incisos ele demonstrou a preocupação em destacar as espécies de liberdade, bem como suas esferas de aplicação, compreen-dendo: liberdade de autodeterminação (inciso II), liberdade de pensamento (in-ciso IV), liberdade de expressão (in(in-ciso IX), liberdade profissional (in(in-ciso XIII), liberdade de informação (incisos XIV e XXXIII), de locomoção (incisos XV, LIV e LXI), de reunião (inciso XVI) e, entre outras, a liberdade de religião (incisos VI, VII e VIII) que inclui Associação religiosa, culto, crença e consciência.

As espécies de liberdades acima mencionadas demonstram que a preocu-pação do Constituinte consistia em “garantir um ambiente normativo e instru-mental capaz de possibilitar o exercício efetivo da liberdade enquanto gênero, reconhecendo-a como meio essencial para se alcançar a dignidade humana”

(TEIXEIRA, 2013, p. 35).

Nesse sentido, vale destacar que, mais importante do que ter direitos de-clarados, é ter a garantia de que esses direitos serão concretizados e efetivados. Nesse contexto, importa então o estudo da liberdade ligada às crenças religiosas e o papel desempenhado pelo Estado na garantia dessa liberdade, com expressa previsão textual, mas sua concretização no plano prático por vezes ameaçada.

Nery Junior (2009, p. 15) observa que, em um Estado Democrático de Di-reito, a liberdade influencia, de modo positivo, pois retira do Estado a possibli-dade de somente mediar e restringir as liberpossibli-dades civis, devendo atuar de modo oposto sendo um realizador, prestador, garantidor, e criador de liberdades. Tal caracterização leva a concluir que o Estado Democrático de Direito não somen-te favorece a atuação positiva estatal consissomen-tensomen-te em regulamentar e assegurar a liberdade religiosa, mas cabe também a ele propiciar ao indivíduo a possibili-dade de praticar sua fé.

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Conceituação de liberdade religiosa

Segundo Ponte de Miranda (1979, p. 89), a liberdade na área religiosa e de crenças é tão fundamental que, na opinião de Georg Jellinek, a liberdade de re-ligião, que nasceu nas colônias anglo-americanas, teria sido a verdadeira causa da declaração dos direitos do homem (ONU, 1948).4

E na ordem jurídica brasileira, tal perspectiva fica clara já no preâmbulo do texto constitucional, quando a proteção de Deus5 é invocada na promulgação da Constituição de 1988, fato que demonstra a compreensão da fundamentalidade do elemento religioso à vida humana. Tal assertiva preambular, todavia, não desqualifica a laicidade estatal anunciada no artigo 19 do texto constitucional, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal.6

Para Martel (2007, p. 13), a liberdade religiosa é o “direito, que envolve o de crer e o de não crer, de manifestar o credo (culto) e de formar grupamentos religiosos”. Ou seja, seria a livre disposição dos seres humanos em crerem ou não em algo, não sendo obrigados a seguirem os paradigmas impostos pelo meio social que estejam inseridos.

A Constituição Federal garante que, independentemente de credo religioso ou até mesmo da falta dele, isso não será motivo para tratamento diferenciado entre os brasileiros, como vemos em seus artigos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (BRASIL, 1988, p. 13).

4 Disponível em: <https://bit.ly/1CVqinH>. Acesso em: 17 mai. 2015.

5 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e in-dividuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚ-BLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988, ênfase acrescentada).

6 “Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força norma-tiva” [ADI 2.076, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003].

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No entendimento de Weingartner Neto (2007, p. 85), a Constituição bra-sileira trata a liberdade religiosa como um direito fundamental, que é abor-dado em diversos dispositivos capazes de abranger e acolher a multiplicidade de religiões do Brasil com flexibilidade ao fundamentalismo-crença e inibir o fundamentalismo-militante. No mesmo sentido, porém de modo mais incisivo, Miranda (2000, p. 409) afirma que:

A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinar crença. Con-siste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir de-terminada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres.

Ao lado da liberdade religiosa, o texto constitucional apresenta caracterís-ticas de um estado laico, o qual não prejudica nem privilegia nenhuma repre-sentação religiosa, ainda que minoritária, nos termos do artigo 19, inciso I.7

Como decorrência natural de tal proteção, surgem situações em que o Estado, não obstante reconhecer a inviolabilidade da liberdade de consciência, “impõe conduta ao indivíduo que desafia o sistema de vida que as suas

con-vicções construíram” (MENDES; BRANCO, 2009, p. 313), ocasião que se abre espaço para os efeitos da objeção de consciência, nos termos do artigo 5º, inciso VIII da Constituição:

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obriga-ção legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestaobriga-ção alternativa, fixada em lei; (BRASIL, 1988, p. 13).

Objetar ou escusar significa, portanto, recusar-se a fazer algo. A expressão objeção (ou escusa) de consciência tem sido aplicada aos casos em que o indi-víduo, por alguma convicção essencial do seu próprio ser, recusa-se a praticar ou aceitar determinado ato por ofender convicção íntima protegida constitu-cionalmente, de modo que o Estado deverá oferecer prestações alternativas em determinados casos para que a igualdade de tratamento não seja prejudicada.

7 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na for-ma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988, p. 25).

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A objeção de consciência é um dos fenômenos mais interessantes do direi-to e a escusa às transfusões de sangue é um dos temas mais instigantes, pois o grande desafio é garantir o direito do objetor de consciência a cuidados médicos de qualidade, mas que, por outro lado, sejam empregados tratamentos que pre-servem seu direito à vida sem violar a sua liberdade de consciência e de crença. O Estado, sendo laico como o Brasil, não deve embaraçar ou criar empecilhos ao exercício ou prática de qualquer fé ou crença.

Quem são as testemunhas de Jeová?

O grupo religioso conhecido como “Testemunhas de Jeová” teve sua ori-gem nos Estados Unidos da América, na década de 1870,8 e teve como seu prin-cipal promotor Charles Taze Russel que foi sucedido após sua morte em 1916 por Joseph F. Rutherford.9

Testemunhas de Jeová é um nome descritivo, indicando que dão testemu-nho a respeito de Jeová, usando como referência o relato bíblico apresentado no livro de Isaías 43:10:10

Vocês são as minhas testemunhas, diz Jeová, Sim, meu servo a quem es-colhi, para que vocês me conheçam e tenham fé em mim, e entendam que eu sou o mesmo. Antes de mim não foi formado nenhum Deus e depois de mim continuou a não haver nenhum.

A sede mundial das Testemunhas de Jeová tem sua localização nos Es-tados Unidos da América e, através da Sociedade Torre de Vigia, a instituição responsável por confeccionar todo material de estudo como bíblias, livros, fo-lhetos, revistas e tratados acerca das doutrinas e ensinos, os fiéis distribuem gra-tuitamente para a população em diferentes países tudo em suas línguas locais.

Suas revistas mais conhecidas são Despertai e Sentinela,11 ambas com tira-gem mensal, e distribuição gratuita nas visitas realizadas pelos seus membros. Tais práticas de visitação certamente viabilizam crescimento em número de membros e, consequentemente, o investimento em treinamentos para os an-ciãos congregacionais, responsáveis pelas congregações locais, são constantes a

8 Disponível em: <https://bit.ly/2wQUHbS>. Acesso em: 20 ago. 2015.

9 Rutherford faleceu em 1942 e assumiu então N.H. Knorr, que dividiu as responsabilidades administrativas a diversas comissões pouco antes de seu falecimento em 1977.

10 Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. Watchtower Bible and Tract Society of New York. Isaías 43: 10-11. Edição de outubro de 2014.

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fim de manter um padrão comum a seus associados (termo que utilizam para se identificar).

Atualmente, a denominação religiosa possui adeptos espalhados pelo mundo, que atualmente somam pouco mais de seis milhões de seguidores dis-tribuídos em quase cento e vinte mil congregações, em mais de 230 países.12 Sua doutrina está apresentada nas obras Estudos das Escrituras e Tradução do

Novo Mundo das Escrituras, sendo esta última uma versão da bíblia escrita pela

própria instituição.

O Brasil possui relevante presença dessa confissão religiosa em seu terri-tório. De acordo com dados do último censo demográfico realizado no Brasil, existem 1.393.208 Testemunhas de Jeová em território nacional, que se distri-buem em 11.802 congregações (IBGE, 2012).13 Vale ressaltar que tais números se tornam significativos, tendo em vista que tal confissão religiosa chegou ao Brasil em 1922, pouco mais de meio século após a fundação nos Estados Unidos da América. Tais números colocam o Brasil como terceiro país do mundo em número de adeptos, ficando atrás apenas dos Estados Unidos da América e do México.14

Importante observar que este grupo religioso, embora se autodeclare cris-tão, possui algumas crenças e práticas peculiares. Dentre as crenças mais desta-cadas, chama a atenção a restrição a que os membros se submetam a tratamen-tos que envolvam transfusão de sangue.

A crença sobre a transfusão de sangue

O ser humano é um complexo de alguns sistemas que se correlacionam en-tre si, proporcionando ao corpo humano intensos processos onde a vida acon-tece. Nesse ínterim, o sistema circulatório é responsável por irrigar todos os órgãos com o sangue, mantendo a “máquina” em funcionamento.

Ao tramitar pelo sistema circulatório, o sangue faz a liberação de nutrien-tes, dentre eles está o oxigênio, que além de levar nutrientes para as células, capta as substâncias tóxicas do organismo. “O sangue recebe os alimentos já assimilados e os transporta para as células. Recolhe também todos os resíduos

12 Disponível em: <https://bit.ly/2zUXDtz>. Acesso em: 23 ago. 2015.

13 Censo Demográfico 2010 – características gerais da população. Resultados da amostra. Dis-ponível em: <https://bit.ly/2wuqyyp>. Acesso em: 10 set. 2015.

14 Esse crescimento persiste. Segundo dados da denominação religiosa, em 2015, foram incor-porados 28.349 novos membros no Brasil, por meio do batismo. Disponível em: <https://bit. ly/2LawTdD>. Acesso em: 13 set. 2015.

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que se formam nos órgãos e os leva até os rins para serem eliminados através da urina” (USP, 2005).15

Precipuamente, o sistema circulatório se faz de sangue que circula nos vasos sanguíneos ejetados pelo coração, sendo constituído dos seguintes ele-mentos: “uma fase sólida, que compreende os elementos celulares, e uma fase líquida, que corresponde ao plasma. Os elementos celulares do sangue são as hemácias, os leucócitos e as plaquetas” (USP, 2005).

Nesse sentido, o procedimento de transfusão sanguínea pode ser traduzido como a introdução de sangue no corpo humano por meio de uma veia. Durante o processo, o paciente transfundido poderá receber todos os componentes do sangue ou apenas parte dele. Para exemplificar: glóbulos vermelhos, hemácias, plaquetas, leucócitos, fatores de coagulação ou plasma fresco congelado.

Com o intuito de restabelecer ou estabilizar o quadro clínico do paciente, a transfusão de sangue se faz necessária por diversos motivos, como perda ma-ciça de sangue em uma hemorragia, em cirurgias, traumatismos e hemorragias digestivas, ou em outras condições, como na hemofilia (USP, 2005).

Quanto à transfusão de sangue, como já indicado, uma das mais destacadas doutrinas das Testemunhas de Jeová é a proibição de se receber transfusão de san-gue total, de papas de hemácias e de plasma, bem como de leucócitos e plaquetas. Cabe aqui ressalvar que a proibição não é absoluta, pois alguns compo-nentes como albumina, imunoglobulinas e preparados hemofílicos podem ser transfundidos, cabendo nesses casos a cada Testemunha decidir individual-mente se deve ou não os aceitar.16 Porém, é vedado ao membro do grupo religio-so que estoque o seu próprio sangue para, então, alguns dias depois, submeter--se à cirurgia eletiva.

Tais crenças se baseiam no fato de que, de acordo com essa compreensão religiosa, a vida do ser humano estaria no sangue, logo ela não poderá ser re-passada. Desse modo, caso isso aconteça, as Testemunhas de Jeová estariam em desobediência quanto ao mandamento de amar a Deus com toda a alma (Mt 22:37) e isso as impediria de herdar a terra transformada em paraíso, segundo as crenças do grupo religioso.

Segundo informações da própria denominação, algumas passagens bíbli-cas são consideradas como fundamento para a proibição de transfusão de san-gue por parte de seus membros, sendo a primeira delas encontrada no livro do Gênesis, onde afirma que “Todo animal movente que está vivo pode servi-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com a sua alma – seu sangue- não deveis comer” (Gn 9:3-4).

15 Disponível em: <https://bit.ly/2ND11et>. Acesso em: 06 set. 2015. 16 Disponível em: <https://bit.ly/2NDZ01A>. Acesso em: 06 set. 2015.

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Outro texto que fundamenta tal proibição se encontra no capítulo 17 do livro Levítico, ao prescrever: “Quando qualquer homem da casa de Israel ou al-gum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo” (Lv 17:10). A terceira passagem bíblica é encontrada no livro Atos dos Apóstolos, quando determina a abstinência de diversas práticas, entre as quais, “do estrangulado e do sangue” (At 15:19,20).

Baseados nessa interpretação onde o sangue é tido como a vida e que Deus abomina a ingestão desse material, as Testemunhas de Jeová encontram inúme-ras dificuldades quando se deparam com a necessidade de alguns tratamentos de saúde que necessitem de transfusão sanguínea, tratamento muito comum hodiernamente. Soma-se a isto o argumento da segurança à sua vida, pelos ine-gáveis riscos de contração de vírus, bactérias, protozoários e de doenças graves e até incuráveis, que somente fariam agravar o quadro clínico do paciente.

Logo, é perfeitamente perceptível e não significa que os membros de tal grupo desejem a morte, nem física nem espiritual, mas a observação e preserva-ção do princípio norteador de todos, o da prevalência da dignidade humana e do respeito à sua crença religiosa. Por isso, quando uma Testemunha de Jeová se depara com a possibilidade de receber a transfusão sanguínea e não aceita, em sua perspectiva, ela não está negando o direito à vida, mas fazendo uso de sua autonomia e liberdade quanto à opção de tratamento médico que não ofenda sua convicção religiosa (AZEVEDO, 2010, p.13).

Alguns fiéis da religião Testemunhas de Jeová aceitam a autotransfusão, quando o equipamento é preparado num circuito fechado, constantemente ligado ao sistema circulatório do paciente, e em que não há armazenamento de sangue do paciente. Os seguidores dessa crença não aceitam coleta pré-operatória, armazenamento e reinfusão posterior de sangue. E segundo as nor-mas da instituição, a hemodiálise e a hemodiluição, por sua vez, são assuntos para cada Testemunha de Jeová decidir de maneira individual, mas sempre com a certeza que tais equipamentos não façam armazenamento de sangue.17

Além de não fazerem uso de sangue por convicções religiosas, as Testemu-nhas de Jeová têm o entendimento de que a transfusão de sangue se trata de um procedimento ultrapassado, portanto, o fundamento bioético está assentado no avanço da medicina, já que existem tratamentos terapêuticos alternativos.

No entanto, os tratamentos alternativos ainda são pouco acessíveis pela maioria da população devido ao elevado custo financeiro se comparado com o procedimento já há tempos praticado pela medicina, a transfusão.

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As comissões de ligação com hospitais

As Testemunhas de Jeová contam com grupos organizados em cada con-gregação, um grupo de pessoas bem preparadas e informadas chamados de “Comissões de Ligação com Hospitais” que são responsáveis por buscar soluções

e apresentá-las aos fiéis com o intuito de proteger sua crença não permitindo que fiquem sem alternativas nos tratamentos de saúde que envolvam transfusão de sangue e também serem mediadores entre fiéis e a comunidade médica local, visitando hospitais e intermediando o diálogo em ocasiões onde o tratamento com sangue seja declarado necessário.

Com o intuito de se evitar que a liberdade de escolha do paciente seja cer-ceada pelos profissionais da medicina, os membros são instruídos a portarem consigo um documento no qual declaram que independente da circunstância, não aceitam transfusão sanguínea.18

Destarte, existem 1700 Comissões de Ligação com Hospitais,19 que atuam em mais de 110 países, incentivando a comunicação aberta e contínua entre paciente e médico a fim de garantir que a vontade do paciente Testemunha de Jeová prevaleça. Banja (2009, p. 878) esclarece sobre sua estrutura e função:

Os membros dessas comissões são Testemunhas de Jeová especialmente trei-nadas para deixar os médicos mais informados sobre as crenças das Teste-munhas de Jeová. Em alguns casos, as comissões identificaram grupos de médicos que concordam em tratar as Testemunhas de Jeová sem transfusões de sangue. Assim, quando um profissional da área de saúde prefere, por mo-tivo de consciência, não aceitar a posição do paciente Testemunhas de Jeová de recusar transfusões de sangue, ele pode encaminhar esse paciente a um profissional que está disposto a respeitar a posição dele.

Tratamentos médicos alternativos à

transfusão de sangue: avanços da medicina

Atualmente há profissionais da área médica, especialmente hematologistas, que se dedicam em buscar alternativas para a transfusão de sangue e as ciências mé-dicas asseguram a existência e viabilidade de alternativas à transfusão. Já existem vários procedimentos médicos que tornam a transfusão de sangue desnecessária. 18 Disponível em: < https://bit.ly/2Obdc3f>. Acesso em: 10 set. 2015.

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Com leis que protegem cada vez mais a liberdade do paciente, e a crescente demanda no número de adeptos Testemunhas de Jeová, existem inúmeros hos-pitais no mundo que se prepararam para oferecer procedimentos médicos sem a utilização da transfusão sanguínea. Somente nos Estados Unidos da América existem mais de 100 programas médicos que realizam tratamento terapêutico alternativo à transfusão sanguínea (CFM, 2014).20

A comunidade médica envolta nesse grande dilema – de recusa à trans-fusão de sangue pelos adeptos da religião Testemunhas de Jeová – se viu na urgente necessidade de buscar alternativas nos tratamentos que precisem suprir o sangue ou substituí-lo.

O desenvolvimento de técnicas, como o uso de eletrocautério ao invés de bisturi, coagulador por feixe de argônio, eritropoietina recombinante e hemodiluição foram criadas visando tratar justamente esses pacientes que se opõem a receberem sangue. Esses tratamentos criados têm-se revelado eficazes, mesmo em situações de emergência. Em muitos casos, eles representam a van-guarda da prática médica, porém nem todos os médicos estão familiarizados com esses procedimentos alternativos (CFM, 2014).

Com base nessas alternativas, observou-se que em pacientes não submetidos à transfusão sanguínea obtiveram-se resultados melhores em relação àqueles que fizeram a hemotransfusão. Além disso, o índice de internação e a taxa de morta-lidade foram menores nos pacientes que não realizaram a transfusão sanguínea.

O Brasil ainda conta com poucos hospitais que realizam esse tipo de tra-tamento. Visto que a saúde pública carece de investimentos para oferecer tais alternativas aos pacientes, os existentes estão situados nas cidades de São Paulo, Jundiaí e Belo Horizonte, porém, são mais de 4.500 médicos “conhecedores de terapias e técnicas de gerenciamento e conservação do sangue dispostos a tratar as Testemunhas de Jeová sem hemotransfusão” (CFM, 2014).

Deveres profissionais do médico e liberdade religiosa

É interessante notar que, desde 1980, o Conselho Federal de Medicina já se posicionava diante da questão através da Resolução 1021, dizendo que:

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obe-decendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º – Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do

paciente ou de seus responsáveis.

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2º – Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus res-ponsáveis.

Na Resolução Nº 1931/2009 do Código de Ética Médica, no capítulo I, de-nominado Princípios Fundamentais, declara os seguintes termos:

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coleti-vidade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. […]

VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimen-to físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e aco-bertar tentativa contra sua dignidade e integridade. […]

XVII - As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente. […]

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas

de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reco-nhecidas.

XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a reali-zação de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propicia-rá aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados […].21

Ainda na Resolução 1931/2009, vê-se que o Código de Ética conceitua que é vedado ao médico:

Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco imi-nente de morte. […]

Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

E no artigo 31 da referida Resolução, quando trata da relação com o pa-ciente, fica expresso que ao médico é vedado:

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Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina, nº 1.995/2012, faz conside-ração às diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante em seu artigo 2º, parágrafo 2º, isso trata de quando o paciente se encontrava capaz e deixou de maneira documentada a sua vontade:

Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. […]

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica (CFM, 2012, 269-270).22

O Ministério da Saúde editou a Portaria 1820/200923 assegurando ao pa-ciente a recusa a determinado tratamento, de forma a não colocar a saúde públi-ca em risco. Essa é a exata situação em que se encontra o paciente Testemunha de Jeová que não expõe a vida de terceiros a riscos quando recusa a transfusão sanguínea:

Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

V - o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimen-tos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que acarretem risco à saúde pública […].

Em decorrência dos grandes avanços da medicina desde 1980, a Resolu-ção 1021/1980 do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostra-se superada hodiernamente. Sendo assim, a Associação das Testemunhas de Jeová fez re-comendações ao referido Conselho. A título de exemplo, destaca-se que entre as reinvindicações deve-se esclarecer de maneira precisa o significado da ex-pressão “iminente perigo de vida” presente na Resolução, em razão da nítida subjetividade do termo, que não se apoia em elementos técnicos precisos.

22 Disponível em: <https://bit.ly/207VBbw>. Acesso em: 10 set. 2015. 23 Disponível em: <https://bit.ly/1To3om7>. Acesso em: 10 set. 2015.

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Diante da incompatibilidade da Resolução 1021/1980 do Conselho Fe-deral de Medicina, com normas superiores como a Constituição FeFe-deral

 de

1988

, o CFM reconheceu posteriormente, por meio de seu Parecer nº 12/2014, que:

[…] os ditames da Resolução CFM nº 1021/80, editada na vigência da CF de 1967 e do CEM de 1965, por seu pragmatismo decorrente, à época, de limites mais estreitos dos conceitos éticos e morais e da ciência médica, são despro-vidos de maiores evidências e deixam, pela amplitude de interpretação, no campo da subjetividade o critério científico do termo “iminente perigo de vida”, ou seja, do risco iminente de morte, bem como, não dispõe elementos técnicos precisos para os limites e parâmetros de indicação da transfusão de sangue e seus componentes, que possam orientar a terapêutica em casos es-pecíficos e individuais como os das Testemunhas de Jeová. Assim, tornou-se temerária aos conceitos morais e éticos contemporâneos e inconsistente com o progresso científico da medicina.

Não obstante o importante reconhecimento do necessário avanço nas de-cisões do Conselho Federal de Medicina sobre o tema tangente às Testemunhas de Jeová, pequeno foi o avanço, considerando que não foi estabelecida nova resolução em substituição à Resolução 1021/1980, o que demonstra um vazio normativo que causa insegurança dos profissionais da medicina quanto aos de-veres éticos.

A omissão das normas no sentido de delimitar quais os tratamentos a que o paciente tem direito legal de recusar, coloca esse grupo minoritário numa posição de desconforto, já que não há garantia na vida prática que seu direito constitucional será efetivado quando invocá-lo. E por isso, a busca pelo pro-vimento jurisdicional é constante para dirimir conflitos surgidos a partir da recusa de transfusão sanguínea.

Soluções jurídicas e real motivação das

decisões judiciais para a controvérsia em questão

Destarte, se por um lado, o paciente invoca seus direitos constitucionais de liberdade religiosa e de consciência, de outro, o médico tenta cumprir seu dever legal de salvar a vida, e de se proteger contra possíveis sanções dos con-selhos médicos.

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A doutrina não é unânime nesse sentido. No tocante ao papel do Estado, Soriano (2002, p. 168) entende que a liberdade religiosa não é absoluta, mas que ao Estado “não cabe […] dizer o que é verdadeiro ou falso no campo religioso”. Reservando-se assim à figura estatal apenas “coibir as ilicitudes praticadas em nome da religião, desde que prevista em lei”.

De acordo com o autor, deve-se analisar o caso em concreto quando a li-berdade religiosa se choca com outro princípio fundamental. Sob uma análise histórica, Moraes (2011, p. 61) ressalta que o direito à vida é tido como inviolável e indisponível, visto que, embora possa ser titularizado por todos, ninguém tem direito sobre ele. No mesmo sentido Diniz (2001, p. 22-24) expõe que:

[…] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se cons-titui em pré-requisito a existência e o exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina integralidade existencial, consequentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. Se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou di-reitos correlatos decorre de um dever absoluto ‘erga omnes’, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer […]. Garantido está o direi-to à vida pela norma constitucional em cláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem mesmo há o poder de emendar […] tem eficácia positiva e negativa […]. A vida, um bem jurídico de tal grandeza que se deve protegê-lo contra a insânia coletiva, que preconiza a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra, criando-se normas impeditivas da prática de crueldades inúteis e degradantes […]. Estamos no limiar de um grande desafio do século XXI, qual seja, manter o respeito à dignidade humana.

No entanto, apesar de ser um direito inviolável, o direito à vida pode não ser absoluto, como nos casos em que convicções religiosas limitem acessos a tratamentos mesmo sob risco de se perder a vida. Barroso (2010, p. 19) diz que, nessas situações, não se pode retirar do paciente religioso seu poder de definir o que lhe é preferível, sendo tal decisão de caráter individual. Estes são os termos que esposam o pensamento:

A proteção à dignidade exige que o próprio interessado seja o principal res-ponsável pela definição do seu conteúdo, sob pena de se abrir espaço para uma espécie de totalitarismo dos direitos humanos. A indisponibilidade dos

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direitos fundamentais, portanto, não resulta de um mandamento constitu-cional. Como consequência, a validade ou não de um ato de disposição terá de ser verificada caso a caso, tendo em vista a natureza do direito em questão, a natureza de eventuais direitos contrapostos e os valores sociais relevantes que possam ser legitimamente impostos na situação.24

Nesse sentido, é cada vez mais frequente a abordagem de autores que apontam que o conceito da vida no texto constitucional vai além do sentido biológico, da sua atividade funcional. Envolve elementos físicos, mas também espirituais, e no conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade hu-mana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, 2005, p. 197). A jurisprudência dos tribunais brasileiros é farta no que diz respeito ao as-sunto, todavia, as decisões são controversas ainda, tanto que algumas decisões apontam para a preponderância do direito à vida, desconsiderando a proteção à liberdade religiosa e a oferta de tratamentos alternativos.25

Mas o tema é tão importante que será julgado pelo Supremo Tribunal Fe-deral,26 que já reconheceu por unanimidade a Repercussão Geral (RE 979.742-AM) do tema, e delimitou que o cerne da questão consiste em decidir se o

24 Trecho retirado do texto “Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová”, de Luís Roberto Barroso, de 2010. Disponível em: <https://bit.ly/2O7LynM>. Acesso em: 10 set. 2015.

25 AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA. DEFERIMENTO DE LIMINAR. AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE TRANSFUSÃO DE SANGUE. MANUTENÇÃO. Agravo de Instrumento interposto contra decisão que deferiu liminar para o fim de autorizar ao nosocômio autor, caso haja necessidade, a proceder a hemotransfusão, devendo apresentar, no prazo de 5 (cinco) dias, relatório da cirurgia. Norma constitucional garante a inviolabilidade do direito fundamental à vida e prestigia a saúde, como direito de todos e dever do Estado, conforme teor dos artigos 5º, caput e 196. A inclusão da garantia do direito à vida no texto constitucional evidencia a incumbência do dever positivo do Estado de agir para o fim de preservá-la, dever este estendido para o fim de alcançar o direito à saúde. Obtenção da garantia a vida e a saúde, no caso, somente pode ser alcançada com a realização de tratamento eficiente e adequado, prescrito por aqueles que possuem formação profissional para tanto e não com o tratamento que entende o paciente conveniente. Médico que asseverou que diante da cirurgia a ser realizada no paciente poderá haver a necessidade de hemotransfusão para o fim de preservar a sua vida. Manutenção da decisão. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO (TJRJ, Ag. Inst. 0056515-70.2011.8.19.0000. Des. Rel. Elisabete Filizzola As-sunção, DJ 27/10/2011).

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exercício de liberdade religiosa pode justificar o custeio de tratamento de saúde pelo Estado.

Com fundamento no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, o acór-dão recorrido foi proferido pelo Turma Recursal do Juizado Especial Federal do Amazonas e de Roraima, e estabelece que o Poder Público deve garantir o direito à saúde de maneira compatível com as convicções religiosas do cidadão, “uma vez que não basta garantir a sua sobrevivência, mas uma existência digna,

com respeito às crenças de cada um”.

Mas enquanto o Supremo Tribunal Federal não decide a questão delimi-tada acima, é possível analisar alguns exemplos de decisões em diversos Tribu-nais do país, que apontam um caminho a ser trilhado pelo STF.

No primeiro julgado relacionado, é possível denotar que o poder estatal precisa demonstrar no caso concreto a impossibilidade do referido procedi-mento sem transfusão de sangue, mas não pode se limitar objeções abstratas, o que seria equivalente a uma omissão do Estado não possuir serviço de saúde adequado às convicções do paciente. E o ponto central consiste na rejeição do argumento de falta de dotação orçamentária para não cumprir com o ideal de proteção à liberdade religiosa:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA? REJEITADA. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. EXIS-TÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA. TRATAMENTO FORA DE DOMICÍLIO. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. 1. A obrigação constitucional de prestar assistência à Saúde funda-se no princípio da co-gestão, que significa dizer uma participação simultânea dos entes estatais nos três níveis (Federal, Estadual e Municipal), existindo, em decorrência, responsabilidade solidária entre si pelo cumprimento do dever de fornecer tratamento médico e medicamentos, bem ainda, não havendo que se falar em competência exclusiva dos Municípios para arcar com as despesas de tratamento médico, como quer fazer crer o Agravante. 2. Sendo o direito à

liberdade religiosa, direito fundamental, deve o Estado assegurar o tra-tamento de saúde resultante de escolha religiosa ou crença. 3 – Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como única via que vai ao encontro da crença religiosa da paciente. 4 – A falta de dotação orçamentária, não serve para afastar o cumprimento das obrigações constitucionais do Estado, que é salvaguardar a vida de todo e qualquer ser humano, máxime quando inexistirem provas robustas

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acerca da falta de orçamento. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ. Agravo n.º 0041659-07.2014.8.14.0301 (ênfase acrescentada).27

Outro importante fundamento para decisões judiciais consiste na questão da autonomia da vontade de um paciente maior e capaz, desfrutando de plenas capacidades mentais que deve ser respeitada, pois sua decisão não causa prejuí-zos a terceiros:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICA-DO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PES-SOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está

lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de

san-gue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força poli-cial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela

retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a exis-tência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexisexis-tência do direito estatal de “salvar a pessoa dela própria”, quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas.

AGRAVO PROVIDO. (TJRS - Agravo de Instrumento Nº 70032799041, Dé-cima Segunda Câmara Cível, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010) (ênfase acrescentada).28

É preciso frisar que esta também é uma tendência doutrinária29 – em re-conhecer que a recusa de transfusão sanguínea em pacientes capazes é válida.

27 Caso julgado Tribunal de Justiça do Pará. Agravo nº 0041659-07.2014.8.14.0301. Julgado em 03/11/2016.

28 Caso julgado pelo Tribunal da Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70032799041 – 12ª Câmara Cível. Relator: Cláudio Baldino Maciel, julgado em 06/05/2010. 29 Willeman (2010, p. 162, ênfase acrescentada) entende que “os médicos, sobretudo aqueles

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Quando comprovado que essa vontade é livre, consciente e autônoma, o profis-sional de saúde não pode agir contra a vontade do paciente.

Sendo assim, desde que adulto, capaz e consciente, deve ser respeitada a vontade do paciente em recusar, por razões religiosas, tratamento médico, ain-da que haja risco de morte. Se, toain-davia, o paciente for maior, mas estiver incons-ciente, ensinam Sá e Teixeira (2005, p. 132) que se deve verificar se “há prova acerca da crença adotada pelo paciente, seja através de documento de identifica-ção religioso, seja através de declaraidentifica-ção firmada pela pessoa, registrada em car-tório, ou declaração que tenha a assinatura de duas testemunhas, onde rechaça qualquer tratamento que tenha por finalidade a transfusão sanguínea”. Con-cluem as autoras que, nessas situações, não haveria alternativa que não fosse a de privilegiar a vontade do paciente religioso.

O referido respeito à vontade e à consciência só estaria dispensado para o caso em que não exista provas desse elemento da vontade humana, ocasião que entendem a prática do tratamento médico como um dever. E a eventual atuação profissional contrária à vontade claramente manifestada do paciente capaz po-deria, inclusive, configurar um ato ilícito, punível nas esferas civil, penal e ética (DADALTO, 2015).30

Barroso (2010, p. 42), antes de ser nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, já se manifestou nesse sentido:

É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por par-te das par-tespar-temunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo per-mitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve

dizem Testemunhas de Jeová e por isso recusam tratamento médico que envolva transfusão de sangue (ou de seus derivados), devem procurar atender à manifestação de crença e religião dos pacientes, empreendendo, para tanto, todos os esforços e conhecimentos técnicos, salientando, porém, que se não houver alternativa para salvar a vida humana, deve a transfusão de sangue ser realizada, ainda que contra o consentimento do doente, expressado de forma verbal e/ou por escrito”.

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estar cercada de cautelas. Para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada.

Corroborando, Bastos (2001, p.493-507) afirma não haver no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma lei que proíba a ação individual de recusar uma transfusão, nem que obrigue os médicos a desconsiderar a opção do paciente, além de não haver punição para o suicídio no ordenamento brasileiro.

Importa considerar que, mesmo que tais leis existissem, seriam elas consi-deradas inconstitucionais, pois não caberia à lei determinar tal tipo de conduta. Assim, para que a transfusão fosse obrigatória, seria preciso que a busca de

tra-tamento médico também o fosse. E, claramente, não há tal obrigatoriedade na ordem jurídica brasileira.

O Código Penal também não traz nenhum dispositivo específico sobre a questão. A única menção que se aproxima consta do artigo 146.31 Mas é inte-ressante que o dispositivo que criminaliza o constrangimento ilegal, ressalva a conduta do médico que realiza procedimento sem obter o consentimento do paciente em casos de iminente risco de vida.

Na verdade, porém, é perfeitamente possível dar ao referido artigo uma interpretação conforme a Constituição, limitando sua aplicação aos casos em que, havendo iminente risco de morte, não seja possível a obtenção do consen-timento. Tal leitura se harmoniza com as conclusões obtidas no presente estudo, em que se assentou a necessidade de consentimento personalíssimo, livre e in-formado para a recusa de tratamento por motivação religiosa.

Assim, obedecidos esses requisitos, a manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médi-co médi-como homicídio ou omissão de somédi-corro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese possível (BARROSO, 2010, p. 35).

Analisando ainda esse parecer ora encomendado pela Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, Barroso faz menção aos principais pontos da im-bricada questão:

31 Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. […]

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

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(i) o item n. 2 da Resolução CFM n. 1.021/80 deve ser visto como “expressão

atávica do paternalismo ou beneficência médica”, na medida em que deixa de respeitar a vontade do paciente quando há risco de morte; (ii) a objeção de consciência das testemunhas de Jeová corresponde ao exercício da autono-mia privada do indivíduo, materializada nos direitos fundamentais à privaci-dade – autodeterminação no plano das escolhas privadas –, ao próprio corpo e à liberdade religiosa; (iii) não cabe ao médico substituir-se a um paciente maior, capaz e informado para reavaliar sua escolha existencial; (iv) o direito à diferença exige do Estado que tolere e proteja posições jurídicas, ainda que consideradas exóticas pelos demais; (v) a decisão do paciente, que se recusa a receber tratamento, é autoexecutória em relação ao médico, na medida em que se funda diretamente nos direitos fundamentais envolvidos, de modo que não se exige a judicialização do tema; e, a despeito de a consulta não abranger o ponto, (vi) no caso de a recusa dizer respeito à saúde de menor de idade, sua manifestação de vontade poderia ser submetida ao Poder Judiciá-rio, a fim de se aferir sua maturidade para tomar essa decisão.32

Portanto, as recomendações para o caso de um profissional de saúde es-tar diante de um paciente adulto e capaz que recuse transfusão sanguínea por razões religiosas, é que respeite a decisão do paciente lúcido e que tenha com-preensão das consequências de sua recusa. Cabe ao médico utilizar vocabulário compreensível ao paciente e ser o mais claro possível a fim de evitar futuras reclamações, tudo isso deve ser registrado no prontuário do paciente.

A título de exemplo, Sá e Teixeira (2005, p. 134) informam que “a juris-prudência italiana sustenta, em sua maioria, que deve ser reconhecido o desejo expresso de paciente adulto que se recusa a receber transfusão de sangue, ainda que esse ato determine o falecimento da pessoa”.

Casos que envolvam menor de idade e incapazes, é importante que o mé-dico repasse aos responsáveis os valores éticos perseguidos pela sua classe e as normas que regulam a relação médico-paciente. Se for necessária intervenção que contrarie a vontade destes, e não houver tempo hábil para levar a questão ao Poder Judiciário, deve o médico agir e de igual modo registrar o ocorrido em prontuário e, logo que disponível, comunicar ao Ministério Público, órgão que age como fiscal daqueles que civilmente estão ou são incapazes de tomar decisões para que evite punições indevidas (DADALTO, 2015).

32 Caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ag. Inst. 0056515-70.2011.8.19.0000. Des. Rel. Elisabete Filizzola Assunção, DJ 27/10/2011.

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Enfim, a tendência doutrinária e jurisprudencial é de que a autonomia da vontade seja preservada e que o Estado assegure a concretização da liberdade religiosa protegida constitucionalmente.

Análise da questão sob critérios econômicos

O direito à liberdade religiosa encontra-se enraizado na ideia de dignidade humana, e na busca por estabelecer uma sociedade livre e igualitária,33 onde todos os cidadãos possam conviver harmonicamente.

A questão, no caso da presente pesquisa, é definir se impactos econômicos sobre os cofres públicos podem limitar direitos e garantias conferidas aos ci-dadãos, o que parece duvidoso pela dificuldade de se reconduzir o argumento econômico a um princípio jurídico previsto na Constituição (DUTRA, 2015).

Em pesquisa realizada pela revista eletrônica Consultor Jurídico, e apre-sentada no Anuário da Justiça de 2010, indagados se, “ao julgar, o juiz deve levar em conta o impacto de sua decisão em termos sociais, econômicos e de governabilidade”, 46% (quarenta e seis por cento) dos membros do Supre-mo Tribunal Federal e dos tribunais superiores responderam positivamente (CNJ, 2010, p. 8-9).

Vale notar também que o Código de Ética da Magistratura Nacional (CNJ, 2008, p. 4), em seu artigo 25, inclui como um dos efeitos do mandamen-to de prudência judicial o dever de que “especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar”.

Nesse sentido, os casos que são submetidos à apreciação do Poder Judi-ciário, envolvendo pedidos de tratamento alternativos à transfusão de sangue, em muitas vezes são negados, ofendendo a consciência religiosa dos pacientes, em regra tendo como fundamento o alto custo de um tratamento alternativo. Como exemplo, destaca-se acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que assim decidiu:

SAÚDE. CIRURGIA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. LIBERDADE DE RELI-GIÃO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. Distinções, na prestação do serviço pú-blico de saúde, para atender às convicções religiosas ferem o direito à igual-dade na repartição dos encargos públicos. Daí que a liberigual-dade de religião

garantida a todos pela Constituição da República não assegura o direito à pessoa humana de exigir do Estado prestação diferenciada no serviço público para atender às regras e as práticas da fé que professa. Recurso 33 O texto constitucional de 1988 estabelece como um dos objetivos fundamentais da República

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desprovido. (TJRS. Agravo de Instrumento nº 70058469362 – 22ª Câmara Cível. Relatora: Desª Maria Isabel de Azevedo Souza. j. 24.04.2014) (ênfase acrescentada).34

Nota-se que, em determinadas situações, é requerido do Estado o gasto de recursos públicos com tratamentos que deem suporte a fiéis pertencentes a mi-norias religiosas. E assim deveria proceder. Mas não é comum de se encontrar na atualidade, pois, em regra, privilegia-se a economia dos cofres públicos, pro-porcionada pela decisão judicial que relega às minorias religiosas um papel pe-riférico na estrutura social brasileira, ainda mais em tempos de crise econômica. Ademais, é perceptível que tais situações de difícil solução em essência acometem especialmente pessoas de baixo poder financeiro, posto que se o re-ligioso que possui objeções de consciência tem potencial econômico, não pre-cisará buscar no Poder Judiciário a solução para tratamentos alternativos que não violem sua fé. Simplesmente buscará instituição médica que tenha conduta procedimental condizente com seus princípios religiosos.

Todavia, muitos são das classes sociais mais baixas, dificilmente a liber-dade religiosa será respeitada. E basicamente, por privilegiar a economia dos cofres públicos. Richard Posner é um dos principais representantes da Análise Econômica do Direito.

Dentre vários pressupostos desta escola, está justamente a ideia de as regras da common law – tradição na qual as decisões judiciais possuem pre-ponderância na constituição do direito – são melhor explicadas como esforços, conscientes ou não, para se atingir resultados da eficiência econômica (POS-NER, 2010). Nesse aspecto, é possível trazer tal reflexão – da Análise Econômi-ca do Direito – para a realidade brasileira que, desde de 2004 (após a Emenda Constitucional nº 45), tem adotado diversas mudanças que privilegiam as deci-sões judiciais e a jurisprudência.

Para Posner (2007, p. 472), portanto, não existe um princípio moral que anteceda a formulação de políticas públicas ou funde uma teoria da decisão judicial. Ou seja, a decisão judicial não é considerada correta quando simples-mente gera uma economia aos cofres públicos.

Posner (2007, p. 278) propõe uma análise não mercadológica quando, es-pecificamente em relação à liberdade religiosa, entende que as decisões pre-cisam elevar a “quantidade de produtos religiosos” oferecidos à população, aumentando o pluralismo. Isso aponta, então, para duas atitudes por parte

34 Caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70058469362 – 22ª Câmara Cível. Relatora: Desª Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 24/04/2014.

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dos tribunais: 1) o Estado não deve estabelecer uma religião oficial nem dar suporte financeiro para grupos religiosos majoritários; e 2) em determinadas situações, o Estado deve investir recursos públicos para dar suporte aos fiéis pertencentes às minorias religiosas.

Para Posner, não há um argumento puramente mercadológico capaz de definir qual é a decisão mais viável em relação à liberdade religiosa. No Brasil, as Testemunhas de Jeová são uma minoria religiosa, e na questão da oposição à transfusão de sangue em favor de um tratamento alternativo, resta evidente que uma decisão que promova mais pluralismo é aquela aonde não há um entrave para o acesso das minorias. Aqui fica notória a premissa levantada por Posner de que é necessário que se gaste recursos públicos para o aumento da pluralida-de, o que ainda não é plenamente garantido na realidade brasileira.

Considerações finais

Ante todo o exposto, verificou-se que no Brasil, muitas vezes, as Testemu-nhas de Jeová precisam se socorrer do Poder Judiciário para salvaguardar seu direito à recusa de tratamento que envolva transfusão de sangue. Isso porque há divergência de entendimento das limitações do direito à liberdade religiosa quando a vida está em perigo, e das obrigações médicas.

Fato é que ficou demonstrado que há diversas alternativas de tratamentos que possibilitam garantir a vida sem violar preceitos morais consequentes de crença religiosa, mas isso demanda vontade dos envolvidos em garantir que o direito do outro seja respeitado. E essa vontade está especialmente ligada à formação moral e ética que cada indivíduo traz consigo. O médico que age dentro de um regulamento de sua entidade de classe, o paciente a partir de suas convicções religiosas e, por fim, quando um terceiro é chamado para dirimir o conflito, representando o Estado e as leis, o juiz, que de igual modo também pauta suas decisões fundamentadas nas normas jurídicas, influenciado por toda formação moral que carrega.

Desse modo, a quem couber a decisão, fica exposto no estudo que deveria ponderar as consequências, pois o indivíduo que tem sua vontade desprezada, tem o princípio da dignidade ferido, e não há como quantificar ou deduzir os efeitos que causará, mesmo sendo por um pedido baseado em crença religiosa.

Um objeto para discussão futura pode ser a omissão do Estado ao não au-xiliar financeiramente para atender os direitos de uma minoria. Já foram apre-sentadas possíveis alternativas de tratamento que poderiam ser oferecidas na rede pública de saúde brasileira aos pacientes Testemunhas de Jeová, mas que ainda são feitas de maneira restrita devido ao custo econômico.

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O Estado, aquele constitucionalmente responsável pela garantia de uma vida digna dos seus cidadãos, não pode restringir a liberdade religiosa de um grupo, mesmo sendo essa minoria, em razão de não onerar os cofres públicos, sendo laico não pode embaraçar as manifestações religiosas, mas deve promo-ver ações que permitam aos cidadãos a efetivação dos direitos constitucional-mente garantidos.

Ora, proporcionar tratamentos alternativos evitaria a demanda judicial, diminuindo a morosidade e permitindo que outros casos fossem apreciados, acabando assim com a insegurança dos pacientes Testemunhas de Jeová.

Referências

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sem transfusão de sangue mediante os atuais preceitos civis e constitucionais brasileiros. São Paulo: [s.n.], 2010.

BANJA, J. D. Overriding the Jehovah’s witness patient’s refusal of blood: a reply to Cahana, Weibel, and Hurst. Pain Medicine, v. 10, n. 5, p. 878–882, 2009. Disponível em: <https://bit.ly/2O87xv7>. Acesso em: 14 set. 2015.

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Referências

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