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A vivência do tempo na Idade Média, no Livro das Posturas Antigas de Lisboa

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Academic year: 2021

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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A vivência do tempo na Idade Média,

no Livro das Posturas Antigas de Lisboa.

Maria Manuela Lima da Purificação

Porto

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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A vivência do tempo na Idade Média,

no Livro das Posturas Antigas de Lisboa.

Orientador: Dr. Luis Miguel Duarte

Mestranda: Maria Manuela Lima da Purificação

Tese de mestrado apresentada ao curso de História Medieval e do

Renascimento

Porto

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Ao meu pai,

por tudo.

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AGRADECIMENTOS

Sou uma pessoa de muita sorte. Isso implica ter muitos agradecimentos a fazer, pois sorte não cai do céu, envolta em papel celofane e acabamentos em fita de cetim rosa. O que chamamos de sorte se materializa em apoio, participação, ajuda efetiva.

Inicialmente, agradeço a Deus. Um Deus que não se inscreve nas trevas apavorantes do medievo. Um Deus a quem não responsabilizo pelos meus insucessos.Um Deus que eu sinto no meu dia a dia,que é o meu maior amigo. Enfim, um Deus que se funda,também, na minha necessidade de crer que, um dia, as luzes do progresso hão de iluminar “corações e mentes” na direção de uma sociedade verdadeiramente humana.

Agradeço a minha mãe pelo seu exemplo de honestidade;

Agradeço aos meus irmãos,pela força e ajuda concreta que me deram; Agradeço aos meus filhos que sempre aprovaram minhas atitudes; Agradeço aos meus sete netinhos pelo amor que tem por mim;

Agradeço aos meus adorados Paulinho e Nina Flor pela ajuda efetiva; Agradeço a Leda Paula e Silvania, por acreditarem tanto em mim; Agradeço ao meu marido pelas traduções;

Agradeço aos meus amigos: Wilson, Nirla ,Ana, Zenaida, Marisol, Helena, Paula, Luiza, Sofia, Vi, por todo oferecimento de ajuda;

Agradeço a Márcia,Clara, Angela e Laura (FLUP) pela boa vontade em me atender; Agradeço aos meus queridos colegas de turma: Antonio, Adriana, Carlos, Vasco e Hugo por toda ajuda e incentivo no curso;

Agradeço a minha adorada tia Tininha por todo imenso apoio que me deu; Agradeço a Edlaine pela sua incassável dedicação, força e fé em mim;

Agradeço especialmente a Renatinha que digitou,com eficiência, paciência, e, acima de tudo, com dedicação este trabalho;

Agradeço a Vera, minha amantíssima amiga, por sua insuperável ajuda, pelo ombro amigo a qualquer momento;

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Agradeço a minha querida amiga Guga, que me ajudou em tudo, mas

principalmente, em “vestir com roupa de festa” este trabalho que estava maltrapilho, sem ela teria sido impossivel;

Agradeço as minhas queridas professoras: Dra. Cristina e Dra.Paula que foram muito mais que professoras, amigas, apoiando-me de imediato, sempre;

Agradeço ao Dr.Luis Amaral e Dr.Carvalho Homem, pelo “socorro”que me deram; Agradeço ao meu orientador: Dr.Luís Miguel, que, além de me mostrar o caminho, me oportunizou conhecê-lo: pois ele é um ser “em extinção”, nos dias atuais.

À todos o meu sincero e, para sempre, muuuuuuito obrigada.

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RESUMO

Este trabalho busca conhecer o tempo histórico da Idade Média, através do livro das Posturas Antigas de Lisboa. A partir de regras, costumes e leis que consubstanciam a referida obra, questiona-se sobre o significado daquele tempo para a humanidade. Apesar de não se ter como objetivo um cotejamento entre a Idade Média e a Idade Moderna, determinações do próprio tempo conduzem a pensar no que há de comum entre ambas, especialmente no que se refere à divisão de classes, em diversas passagens. Observa-se, por exemplo, que na Idade Média o Cristianismo glorificava o fim do mundo, assim como os capitalistas glorificam o fim da história, ambos objetivando a manutenção do

status quo.

O estudo confirma a enorme influência do Cristianismo na conformação do tempo histórico medieval, sendo notável o entrelaçamento entre a fé cristã e a organização da economia. Sob o signo do medo e da esperança a igreja responde pela preservação do atraso e da ignorância que também caracterizam o medievo. Verifica-se que cada formação social tem uma estrutura distinta, mas pode-se afirmar a existência de um traço comum a todas as sociedades de classe, qual seja caminhar pari e passu com a desigualdade. Dentre outras constatações, o que de mais fundamental há nesta pesquisa é a (re)afirmação de que as relações entre os homens são históricas, sociais, transitórias.

(7)

ABSTRACT

This work seeks to perceive the historical period of the Middle Ages, through the Book of Secular Positions of Lisbon. Starting from rules, customs and laws which consubstantiate the aforementioned work, the significance of that period of time for humanity is called into question. In spite of the fact that no objective of comparison between the Middle Ages and the Modern Age is being made, decisions related to that period lead one to believe in the commonality between the two especially with respect to the division of class, in diverse events. For example, one observes that in the Middle Ages, Christianity glorified the end of the word, just as capitalists glorify the end of history, both having as an objective the maintenance of the status quo.

The study confirms the enormous influence of Christianity in the acknowledgement of the historical medieval period, there being notable the interlacing of the Christian faith and the organization of the economy. Under the sign of fear and hope the church responds to the preservation of backwardness and ignorance which characterize the Middle Ages. One verifies that each social arrangement has a distinct structure, but one can affirm the existence of a common trace in all social classes in society, which is in reality inequality. Among other confirmations, what is most fundamental in this research is the reaffirmation of relationships among men are historical social and transitory.

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OBJETIVOS

Geral:

Conhecer o tempo histórico da Idade Média, tendo em vista apreender as relações através das quais se movem os poderes medievais para preservarem a sua condição de dominantes e, por conseguinte, a desigualdade entre senhores e servos.

Específicos:

Demonstrar, através do Livro das Posturas Antigas que o quotidiano é um nível constitutivo da História.

Analisar as articulações existentes entre as instituições medievais e as relações sociais que tecem o quotidiano.

Demonstrar que as relações entre os homens são históricas, sociais, portanto, transitórias.

METODOLOGIA

Entendendo que a metodologia conforma investigação e exposição, o que ora se apresenta é o resultado desses dois momentos. Trata-se, é óbvio, de uma pesquisa documental e bibliográfica, dado que o objeto investigado é a Idade média. Neste sentido, o documento fundamental é o Livro das Posturas de Lisboa, cujas especificações e posturas analisadas constituem o segundo capítulo desta pesquisa.

Nossa tarefa inicial foi circunscrever o objeto, reunindo a documentação existente e a nosso alcance. Após algumas leituras, que permitiram uma maior aproximação ao tema e que, em parte, constituem o primeiro capítulo, lemos e fichamos o livro acima referenciado, na sua totalidade. Inicialmente, pretendíamos analisar todas as posturas, o que não foi possível, pelo limite de tempo. Em sendo assim, selecionamos as que têm determinação temporal, com exceção dos regulamentos e regimentos.1

1

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Concluído o fichamento, sentimos necessidade de outras leituras que nos ajudassem a fazer uma delimitação mais rigorosa do objeto e que possibilitassem uma análise das posturas à altura das exigências acadêmicas. Esse encaminhamento nos permitiu a apropriação das relações sociais à época, os nexos classistas existentes, as determinações fundantes daquele tempo histórico. Enfim, tornou-se possível fazer inferências, deduções, classificações e conclusões.

Essas possibilidades se tornam ato, aqui e agora, mediante a exposição dos resultados obtidos.

(10)

INTRODUÇÃO

O nosso interesse pelo estudo do tempo nasceu da leitura de um texto, escrito para comunicação oral pela Professora Maria Augusta Tavares2, que se intitula O tempo:

categoria central nos direitos trabalhistas. Ao dar os primeiros passos na aproximação ao

tempo na Idade Média, a primeira intenção era cotejar o tempo do trabalhador servil com o tempo do trabalhador assalariado. Mas, nossos limites pessoais aliados ao tempo definido para a realização do mestrado foram, pertinentemente, apontados pelo nosso orientador, que sugeriu analisássemos o Livro das Posturas Antigas3.

Como o objeto inicial foi abortado, a princípio não sabíamos onde queríamos ir nem onde a análise das posturas nos levaria. À medida que fomos nos aproximando da Historiografia da Idade Média, lendo e fazendo os fichamentos do Livro das Posturas, cada carta régia, cada provisão ou alvará, cada punição ou ordenação nos conduzia a uma nova associação de idéias. O objeto foi se encarregando de nos mostrar o caminho e nos fazendo entender a enorme importância que carrega cada momento histórico na totalidade que é o tempo histórico da humanidade.

Ainda assim, isso não demonstrava ser suficiente para que encontrássemos os nexos sobre os quais queríamos tratar, uma vez que ainda eram somente partes de um todo que não se mostrava na sua inteireza. Sabíamos ter em mãos um rico material, mas ali ainda não havia uma resposta e não havia porque a pergunta carecia de fundamentos teóricos para ser devidamente elaborada. Conversando com a professora acima citada, com a qual temos o privilégio de uma amizade de longa data, ela nos fez ver que o presente explica o passado - o que a princípio nos pareceu estranho, porque achávamos que era exatamente o contrário - e que se queríamos, de fato, ir adiante, precisávamos compreender minimamente a sociedade capitalista.

Seguindo essa trilha, lemos alguns textos contemporâneos, com especial atenção um livro intitulado O desafio e o fardo do tempo histórico4, que nos fez compreender onde

2

Professora Doutora em Serviço Social na Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora no CNPq, tendo diversas publicações sobre as formas de trabalho contemporâneo e sua intrínseca relação com a questão social.

3

CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA - Livro das Posturas Antigas, Leitura paleográfica e transcrição de Maria Teresa Campos Rodrigues, Lisboa: 1974.

4

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estava a chave da nossa pesquisa. Vimos que o tempo é histórico porque é mutável, desde que os homens o queiram. Vimos que as teses sobre o ser social que privilegiam o estático, o imutável, o natural são tão-somente expressões da defesa do status quo.

A partir dessa consciência, lamentamos não dispor de tempo para um maior aprofundamento na direção do que acabávamos de descobrir. Contudo, malgrado os limites impostos, estamos expondo os resultados da pesquisa que nos propomos realizar, apresentados a seguir em dois capítulos e conclusão.

Obviamente, primeiro e segundo capítulo são, entre si, complementares. Pode-se dizer que os dois juntos conformam a relação teoria-prática: o primeiro expressando o contexto histórico; o segundo, o material empírico que são as posturas, ambos interpretados à luz da perspectiva crítica, que conduz à conclusão de que as relações entre os homens são históricas, sociais, transitórias.

É importante salientar que ao afirmar o Livro das Posturas Antigas como o nosso material empírico, não estamos dizendo que o mesmo foi no seu todo contemplado nesta pesquisa. Na verdade, o livro foi inteiramente lido e fichado, mas ao terminar essa fase vimos que não havia tempo hábil para analisá-lo integralmente. Decidimos, então, que não seriam incluídos os regulamentos e regimentos. Com isso, não atribuimos aos mesmos uma importância menor. Seriam incluídos não fosse o tempo presente determinante e determinado para a conclusão deste trabalho. Em sendo assim, verificando que essa ausência não comprometia o que já era efetivamente o nosso objetivo, optamos por trabalhar as posturas cuja temporalidade está explícita nas ordenações ou punições. Temos certeza de não estar ferindo o rigor acadêmico, bem como de estar contribuindo com a discussão acerca do tempo na Idade Média e, por conseqüência, também com o aclaramento do tempo histórico da humanidade.

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SUMÁRIO Resumo...05 Abstract...06 Objetivos/Metodologia...07 Introdução...09 Capítulo 1...12

1. O tempo na Idade Média...12

1.1 A imagem do tempo...16

1.2 O tempo rural: leigo e clerical...18

1.3 O tempo dos mercadores: tempo urbano...26

1.4 O tempo religioso...34

1.5 A idade do mundo, das eras e dos estilos...36

1.6 O tempo do Oriente Medieval: Visão Ocidental...42

Capítulo 2...48

2. O tempo no Livro das Posturas Antigas de Lisboa...48

2.1 Sistematização das posturas...51

2.1.1 Comércio...51

2.1.2 Justiça...79

2.1.3 Administração e finanças públicas...96

2.1.4 Ordenamento urbanístico e habitação...108

2.1.5 Saneamento Básico e Saúde Pública...120

2.1.6 Agricultura...127

2.1.7 Indústria...128

2.1.8 Acontecimentos religiosos e sociais...132

Conclusão...138

Bibliografia...144

Anexo I...149

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CAPÍTULO 1

O TEMPO NA IDADE MÉDIA

Fôssemos infinitos Tudo mudaria Como somos finitos Muito permanece.

(Bertold Brecht)

Os seres humanos, em cada época, cumprem o desafio social e histórico do seu tempo. A passagem de uma ordem social para outra pode implicar contradições, mas também reincidências, sobretudo quando a dominação é preservada, mesmo que sob novas formas, como tem ocorrido ao longo da história da humanidade.

Conforme Mészáros, “a humanidade não age por si mesma, mas por meio da intervenção dos indivíduos particulares no processo histórico, inseparável dos grupos sociais aos quais os indivíduos permanecem como sujeitos sociais”.1 Para este autor, as potencialidades do indivíduo e da humanidade não são idênticas, mas ele destaca “que a diferença objetiva entre o tempo dos indivíduos e o tempo da humanidade constitui a fundação do valor e do contravalor”.2 Ou seja, o fato de não serem idênticos não invalida que, no intercâmbio entre ambos, as potencialidades não possam ser integralmente desdobradas de modo contínuo. “Pois os indivíduos podem adotar como suas aspirações próprias os valores que apontem em direção à realização das

potencialidades positivas da humanidade e, assim, também desenvolver a si

mesmas positivamente; ou, ao contrário, podem fazer escolhas que ajam contra as potencialidades positivas da humanidade e as conquistas historicamente alcançadas. No último caso, evidentemente, tornam-se os portadores mais ou menos conscientes do contravalor, ainda que suas ações sejam na realidade inteligíveis pelas determinações retrógradas de classe, e não por motivações

1 MÉSZÁROS, István - O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 35. 2 MÉSZÁROS, István - O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 35.

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puramente pessoais, como os discursos morais filosóficos abstratos e religiosos frequentemente as descrevem”.3

Deve-se deixar claro que ao tentar conhecer o tempo na Idade Média não faz parte dos objetivos desta pesquisa julgar se a humanidade vem constituindo a fundação objetiva do valor ou do contravalor. Também não se trata de um estudo comparativo. Nosso objetivo é tão-somente fazer uma releitura do Livro das Posturas de Lisboa e reinterpretá-las, através de uma linguagem acessível, inclusive aos não especialistas na temática, tendo em vista, além de uma singela contribuição ao conhecimento do medievo, a possibilidade uma reflexão sobre as ações humanas, ao longo do tempo. Esse resgate histórico é portador de muitas reincidências, tornando-se impossível não pensar que o tempo se reparte em passado, presente e futuro.

Ao se perscrutar a ambiência da Idade Média fica evidente que o tempo histórico da humanidade transcende o tempo dos indivíduos e que os problemas que envolvem aquelas relações sociais, por muito tempo se refletem na consciência social “como transcendentalismo religioso, assumindo ao mesmo tempo a forma de preceitos morais religiosamente articulados. A verdadeira consciência de que a determinação subjacente vital é a relação objetiva entre a humanidade e os indivíduos particulares aparece muito tarde na história”.4

Tem razão Marx: “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da Economia da Antiguidade etc. (...) Pode-se compreender o tributo, o dízimo, quando se compreende a renda da terra. Mas não se deve identificá-los”.5

É nessa perspectiva que, a partir da interpretação de historiadores medievalistas, traçaremos, neste capítulo, algumas notas sobre o caminhar da humanidade, à época da Idade Média, que o senso comum costuma entender como um período de trevas. Pretende-se demonstrar que essa idéia de

3 MÉSZÁROS,István - O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 35. 4 MÉSZÁROS,István - O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 35. 5 MARX, Karl - Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 17.

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escuridão, no sentido de ausência de fatos importantes na referida época, é um grande equívoco. Também se quer deixar claro que, apesar das semelhanças, sobretudo no que se refere às relações que envolvem leis e poder, não se entende que haja identidade entre feudalismo e capitalismo. Determinações que não cabem aqui serem abordadas distinguem fundamentalmente essas duas formações sociais. Conheçamos, portanto, o chão histórico do objeto analisado.

Ao sair do período identificado como Império Romano que, a nosso ver, é insuperável em grandiosidade, estratégias e superação de obstáculos, entra-se em outro momento histórico de grandes mudanças e retrocessos, até o surgimento de um novo império - o Carolíngio - com Carlos Magno (rei dos Francos de 768-814 e imperador de 800 a 814) do Sacro Império Romano, de onde iriam emergir as monarquias feudais familiares da Idade Média Central6, lançando as bases da Europa da Idade Média7. A consolidação desse Império trouxe alguma estabilidade ao Ocidente em formação das suas nacionalidades.

Para Jacques Le Goff, a Idade Média vai desde o século II ou III d.C., até morrer lentamente, sob os golpes da Revolução Industrial8. Franklin de Oliveira9 considera que a mesma começa no século V d.C., indo até ao século XVI.

Mil anos é um longo tempo, mesmo se levarmos em conta a diferença de ritmo daquela sociedade em relação à que vivemos. Os diferentes espaços desenvolveram-se de diferentes formas; os níveis sociais, se bem que muito mais estratificados do que atualmente, não foram, nem no tempo nem no espaço, imutáveis; as diversidades sócio-econômicas tiveram diversas gradações, desde a troca, muitas vezes sem a mediação da moeda, a um comportamento social caracteristicamente monetário. Enfim, foi um mundo extremamente rico no seu conjunto, flutuante no modus-vivendi, mas de forma alguma pode ser rotulado como ponte entre a antiguidade e o tempo moderno, sem ter a sua marca própria e inalienável na história.

6 LOYN, Henry R. - Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997, p. 75. 7 PIRENNE, Henri - As cidades da Idade Média. Coleção Saber, Mira - Sintra: Publicação Europa - América, p. 32.

8 GOFF, Jacques Le - Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 11.

9 OLIVEIRA, Franklin de - Breve panorama medieval, In Dicionário da Idade Média, organizado por Henry R. Loyn. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997, p. V.

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O que Le Goff coloca - com total concordância da nossa parte - é que o tempo medieval não pode ser estudado sem que se procure em todos os documentos e meios atuais possíveis do direito, da arte, das cartas, dos poemas, do solo, a visão de uma Idade Média total10. Julgamos procedente e sustentável a observação de Le Goff no que toca à visão de Michelet11, o qual reforça a idéia de que o quantitativo não basta e que, mesmo não se abrindo mão da quantidade, ela fica aquém da história.

Inicialmente, cabe aqui restringir o conceito de Idade Média ao mundo ocidental. Contudo, mais adiante, tornam-se imprescindíveis considerações sobre o Oriente, no sentido de um melhor entendimento da diversidade que constitui o Ocidente Medievo. Mister se faz compreender que o medievo ocidental estava impregnado pela Cristandade. Embora essa não fosse a única determinação, qualquer outra justificação religiosa era rechaçada. Ainda assim, seria muito simplista invalidar todas as civilizações que lhe eram contemporâneas, como a bizantina, a judaica, a mulçumana e a asiática.

Em sendo assim, a seguir, exporemos uma breve contextualização da Idade Média, na qual o tempo sofre determinações sociais e naturais.

1.1 A imagem do tempo;

1.2 O tempo rural: leigo e clerical;

1.3 O tempo dos mercadores: tempo urbano; 1.4 O tempo religioso;

1.5 A idade do mundo, das eras e dos estilos. 1.6 O tempo do Oriente Medieval: visão ocidental;

Ao fracionar o tempo histórico da Idade Média não se quer, em nenhum momento, que tais frações tenham existência isoladamente. Ao contrário, eles só adquirem nexo quando vistos na sua totalidade, nas articulações, nas interdependências. Contudo, apenas a título de exposição, o tempo histórico que

10 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 39.

11 Jules Michelet, filósofo e historiador francês (21/10/1789 – 09/02/1874), disponível em

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consubstancia a Idade Média será apresentado na ordem acima exposta, que a seguir explicitamos no que nos parece ser particular a cada momento.

1.1. As imagens do tempo

A representação do tempo é feita através da arte desde a Antiguidade. A representação da beleza, como se a mesma parasse no tempo, é um exemplo das figuras encontradas na Igreja, onde o belo é exposto, contraditoriamente tendo por modelo a Antiguidade pagã. A exemplo, Cristo assume feições de Apolo, “perfeição na Antiguidade grega”12. Sob idêntica orientação, a Virgem é personificada em Venus (outro ícone grego), sugerindo a possibilidade de se reter o tempo e apresentar a beleza nele “congelada”. Mas não é só. A figura do tempo, propriamente dito, se encontra expressa artisticamente em várias representações. Podemos encontrá-lo como a figura humana de uma velha, como foice, gadanha, ampulheta, serpente, dragão, zodíaco, muleta, enfim, em inúmeros atributos que representam a sua perecividade e a sua inexorabilidade.13

Na Antiguidade Clássica, uma figura que representa o tempo tem, alegoricamente, elementos figurativos bastante simbólicos. Chamavam-no de KAIROS, que popularmente ficou conhecido como “oportunidade”, por ser o momento ímpar e decisivo na vida humana e transcorrer no universo infinito. Era uma figura alada, próxima a uma balança e que, no Renascimento, foi mais traduzido no sentido de fortuna, ocasião, oportunidade. Daí se aplicar, no mundo moderno, a expressão: “Tempo é dinheiro”.

Nos tempos antigos, a figura do tempo não era correlacionada à velhice e à decadência. Pelo contrário, sua imagem estava associada a um equilíbrio fugaz, de fertilidade infinita. Para Panofsky14, a usurpação do termo grego CHRONOS, tornado KRONOS no termo romano, foi deturpado, modificando o

12 PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa,1986,p. 70.

13 PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986,p. 71.

14 PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p.72.

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sentido antigo da sua representação. Os adereços incorporados à figura - foice, gadanha, relógio de areia - são posteriores às primeiras representações.

Na Idade Média, no período carolíngio e bizantino, foi ressusscitada a representação saturniana do tempo (KRONOS), o que é confirmado por imagens em Pompéia, nas Homilias de São Gregório, simbolizando algo obscuro, negativo, que associa a imagem à morte, à velhice, à pobreza, à decrepitude. Saturno foi sempre responsável por uma série de desastres na humanidade. Só a partir do século XV a sua imagem foi, em parte, reabilitada pelos neo-platônicos florentinos, que articularam a sua representação à contemplação religiosa e filosófica.

A associação da figura do tempo ao destrutivo tem também uma base árabe, segundo a qual o tempo tudo destrói, chegando a representações canibalistas. No tardio medievo, essa associação canibalista entroncou-se com aspectos astrológicos, muito ao gosto do imaginário medieval.

Com o advento e a presença da filosofia escolástica, na Idade Média, o tempo é personificado em três cabeças: o passado, o presente e o futuro. Também foi representado por quatro asas, sugerindo as estações do ano. Mas nada se aproxima da representação alarmante do implacável destruidor, apregoado por Petrarca15.

As imagens representativas do tempo contêm em si mesmas a sua contradição. Se, por um lado, simboliza uma abstração de um princípio filosófico, por outro, evidencia a voracidade de um ente que destrói tudo ao seu redor. Shakespeare recorre muitas vezes à sua representação, dizendo textualmente: “nutres e matas tudo que existe”16. Apenas na sua obra, intitulada “O rapto de Lucrecia”, há referências ao tempo em onze estrofes, além de aparecer em mais de uma dúzia dos seus sonetos. Para Panofsky, só Shakespeare “foi capaz de

15 PETRARCA, Francesco; 20/07/1304 a 19/07/1374, pai do humanismo, poeta e humanista italiano, doou parte de sua biblioteca para a cidade de Veneza, onde hoje faz parte da biblioteca Marciana, disponível em http://www.wikipédia.org/wiki/francesco_petrarca, acesso em

23/09/2009.

16 PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p. 81.

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condensar e superar as reflexões e emoções de muitos séculos”17. Raduan

Nassar, reconhecido escritor brasileiro, trata com propriedade da versatilidade do tempo, no capítulo 17 de Lavoura Arcaica18: novela trágica, que acontece

numa atmosfera bem brasileira, mas que, segundo Alceu Amoroso Lima19, é “dominada por um sopro universal da tradição clássica mediterrânea. Drama tenebroso (...) da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo”.

Foi no período artístico conhecido como Barroco, que o tempo adquiriu o caráter de maior abrangência e significado total. O tempo revelador vem coroar o seu significado cósmico, universal. Ultrapassa a concepção de prerrogativa de Deus, tão difundida em outras épocas, supera obstáculos horripilantes, nos quais a mente não conseguia a clareza do pensamento, dado que o mesmo era obscurecido por uma ideologia e religiosidade, em que o medo superava a razão, não permitindo, portanto, atribuir-se ao tempo o seu significado incontestável de revelador da verdade, como indica a clássica frase “Veritas filia

temporis”20. Torna-se evidente que só como princípio de transformação o tempo

pode revelar o seu poder verdadeiramente universal e ser representado de forma imparcial. Do contrário, será sempre um tempo determinado pelas condições materiais da existência.

1.2. O tempo rural leigo e clerical

Mesmo com o caminhar para o desenvolvimento das cidades, do qual não haverá retorno, a partir dos séculos XII e XIII, o mundo rural continua sendo, a nosso ver, definidor característico da Idade Média. Franklin de Oliveira tem a

17 PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p. 81.

18 NASSAR, Raduan - Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.95-101. 19 Alceu Amoroso Lima (1893-1983), também conhecido como “Tristão de Athayde”, pseudônimo de escritor das crônicas que marcaram época nos jornais do Rio de Janeiro por mais de meio século, foi, dentre outras coisas, um dos grandes pensadores da universidade brasileira, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/031/31ray.htm, acesso em 21/08/2009. 20PANOFSKY, Erwin - Estudos de Iconologia -Temas humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p. 80.

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respeito desse processo uma feliz afirmação: “ela, a terra, transformou-se na sua oficina”21. Ou seja, continuou sendo a sua base.

Na tentativa de síntese, vamos falar brevemente das situações, fatos, aspectos ligados à natureza e que também envolvem leigos e religiosos no campo que consubstanciava o tempo rural.

Esse tempo rural é um tempo cíclico, no qual o trabalho, por se realizar a céu aberto, fica na dependência da natureza. O trabalho do servo garante a sobrevivência do camponês e a ociosidade do senhor feudal, seja ele leigo ou clerical, a quem o homem rural “servia”.22 Em termos exatos, o camponês trabalhava, segundo Huberman23, uma extensão de terra de 6 a 12 hectares, na Inglaterra e de 15 a 20, na França. “Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento”.24 Mas esse não era o seu único trabalho. Além de ter outras obrigações, em circunstâncias, cujas determinações naturais implicassem urgência, a prioridade era sempre o atendimento aos interesses do senhor. “Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao camponês. De acordo com um observador do século XII, o camponês ‘nunca bebe o produto de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo.’”.25

Como se pode ver, o tempo era determinado por fatores naturais, mas, principalmente, pelos senhores. Pode-se dizer que, assim como a modalidade de tempo que interessa ao capital é o “tempo do trabalho explorável”26,

interessava na Idade Média o tempo servil, demonstrando que a forma como “se organiza a produção traduz uma longa história de exploração do homem pelo

21 OLIVEIRA, Franklin de - Breve panorama medieval, in Dicionário da Idade Média, organizado por Henry R. Loyn. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997, p. V.

22 MARQUES, A. H. de Oliveira - A Sociedade Medieval Portuguesa - Aspectos de Vida

Quotidiana, 4ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1981, p.131.

23 HUBERMAN, Leo - História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 5.

24 HUBERMAN, Leo - História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 5.

25 HUBERMAN, Leo - História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 6.

26 MÉSZÁROS, István - O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 25.

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homem”27. Isso significa dizer que, ao menos no que se refere ao período que

vai do escravismo ao capitalismo, todas as formações sociais têm em comum a desigualdade. Mas, segundo Tavares, “isso não é argumento suficiente para afirmar que a divisão da sociedade em classes seja algo natural”.28 “A Natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, de outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho”.29

Cronometrar o tempo leva, necessariamente, à articulação de gerações e fatos. Neste caso, os fatos ocorridos se referem a personagens ilustres ou famílias proeminentes, numa relação, é claro, com as populações que, embora aparentemente pouco importantes, são garantidoras das condições materiais de existência. Deve-se deixar claro, todavia, que a datação dos fatos tem como referência óbvia os personagens dominantes e que o tempo não é contado linearmente, o que não diminui a importância dessa variável.

Qual era o lugar do trabalho do camponês e em que condições se realizava? Mesmo o trabalho na terra sendo aprovado pela sociedade, uma vez que o mesmo “criava” algo justificado perante Deus, fazia-se necessário o descanso dominical, atendendo ao preceito religioso de guardar o sétimo dia semanal, assim como a proibição do trabalho noturno. A noite era sempre vista como uma coisa diabólica e propícia ao mal: “A noite é a grande circunstância agravante na justiça da Idade Média”30 A exceção acontece na vida monástica, na qual as orações noturnas são vistas como edificantes. O trabalho realizado aos domingos ou à noite, só era desculpável ao camponês se o mesmo tivesse um motivo superior (a necessitas). Ou seja, se a ausência fosse determinada pelo provimento da subsistência, aspecto fulcral da sociedade agrária que estamos tratando.

27 TAVARES, M. A. - Acumulação, trabalho e desigualdades sociais. In Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009 (Módulo referente ao II Curso de

Especialização à distância).

28 TAVARES, M. A. - Acumulação, trabalho e desigualdades sociais. . In Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009 (Módulo referente ao II Curso de

Especialização à distância).

29 MARX, Karl - O Capital, L. 1, vol. I. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 140.

30 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 222.

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O trabalho não tinha por finalidade o progresso econômico.31 Trabalhar a

terra é digno, pois evita a ociosidade “que é uma porta aberta ao Diabo”32. No

dizer de Santo Tomás de Aquino, na sua Summa Theologica: “O trabalho tem quatro finalidades: em primeiro lugar, e acima de tudo, deve fornecer os víveres, em segundo lugar, deve fazer desaparecer a ociosidade, fonte de numerosos males, em terceiro lugar deve refrear a concupiscência mortificando o corpo, em quarto lugar permite dar esmolas”.33

Essa articulação constante entre o material e o espiritual faz parte do dia a dia campesino, sempre em favor dos interesses dos senhores, leigos e clericais. Cada um deve viver o seu ofício, tendo como meta a santificação da alma. Mas a massa camponesa estava reduzida ao mínimo vital, devido às cobranças efetuadas sobre o produto do seu trabalho, sob a forma de renda feudal, pelos senhores nobres, pelo rei, ou sob a forma de dízimos e esmolas, pela Igreja.34

Outra vertente a ser considerada é a comunitária. Fazia-se necessário o agrupamento, a solidariedade entre vizinhos e comunidades, pois um ano mau, improdutivo, trazia a desgraça, a fome (continuamente presente no pensamento campesino). Daí a multiplicidade de ações, racionais ou não, místicas ou fantasiosas, nas quais os camponeses se apoiavam, tendo em vista serem contemplados pelos “favores” celestes. Uma sutil dependência do sagrado se faz presente nas ações diárias. A sabedoria e as crenças são transmitidas objetivando uma eficácia que independe da racionalidade. São criadas oligarquias, nas quais a associação se torna essencial para a exploração de moinhos, azenhas, lagares, onde produtos e sementes são guardados na tentativa de garantir a subsistência.35

31 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 272.

32 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 272.

33 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 272.

34 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 275.

35 MATTOSO, José – Identificação de um País - Ensaio sobre as origens de Portugal

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Tudo isso se explica, hoje, pelo contexto de escassez em que se vivia. Diferentemente da sociedade capitalista, cujas crises são de superprodução, no feudalismo as crises eram de penúria, razões que também vão justificar o associativismo na Idade Média e o individualismo como um dos princípios fomentados pelo liberalismo na sociedade burguesa.

No que se refere à organização do tempo no meio rural, este difere totalmente do meio urbano. O tempo rural é submetido ao tempo astronômico, ao tempo de semear e de colher, enfim, às estações do ano. A determinação do uso do tempo, no meio rural é a tarefa a ser cumprida e o objetivo é terminá-la. O “quando” não pode ser quantificado, pois o resultado depende de fatores inquantificáveis.36

Viver na terra não era fácil, pois o camponês precisava tirar dela tudo que precisava em termos materiais e, muitas vezes, ela lhe era hostil. Os instrumentos de trabalho eram rudimentares, o solo não era devidamente tratado e o resultado era insuficiente, contribuindo para que perdurasse a sua condição de pobreza e submissão contínua. Trabalhar a terra significava estar submisso a quem dela tinha a posse, pois tal condição possibilitava a exploração do trabalho do camponês como se fosse algo natural. Os tributos eram muito altos, podendo ser pagos em gêneros ou em dinheiro, dependendo do acordo que se fizera antes, entre ambos. Variava de 1/3 a 1/10 da produção total, além de outros tributos anexados ao prazeamento ou foro. O dízimo era descontado antes, à parte do restante que insidia sobre a sua diferença.37 Os pagamentos, no Portugal medieval, eram feitos, geralmente, no dia de São Miguel, 29 de Setembro, no Domingo de Páscoa, nos dias de Natal e de São João e no dia de São Martinho, 11 de Setembro.

Ao camponês medieval cabia arar a terra e mantê-la como o principal meio de subsistência. A terra quase nunca lhe pertencia. Podia, quando muito, usufruir dela. O senhorio tinha poderes legítimos de requisitá-la quando

36 MATTOSO, José – Identificação de um País - Ensaio sobre as origens de Portugal

(1096-1325), vol. II , 2ª edição, vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p. 346.

37 MARQUES, A. H. de Oliveira - A Sociedade Medieval Portuguesa - Aspectos de Vida

(24)

desejasse, deixando o camponês a esmo. Explicitamente, Oliveira Marques38

coloca a inexistência de liberdade individual, bem como de propriedade privada para os camponeses, no Portugal medieval. Daí, entre outros motivos, explicar-se o grande movimento migratório, ao qual explicar-se agregou a peregrinação.

Embora, mais tarde, tenham sido feitas críticas a esse movimento de peregrinos, o mesmo teve, num primeiro momento, uma “aceitação” social. Visitar os lugares santos, os relicários, atendia ao espírito religioso e remissivo do homem medieval. Era uma atitude justificada usar o tempo para peregrinar e tentar redimir os pecados. Bem como, essa prática serve de “escudo” para todo tipo de viagem. Le Goff, fazendo referência ao tema, usa um termo bem ao gosto contemporâneo: “a peregrinação é o turismo medieval”39. Mas, com isso,

não se pode minimizar os riscos e perigos que o peregrino e o emigrante corriam ao enfrentar o desconhecido, especialmente a floresta40, ou as velhas estradas romanas que, além de se encontrarem em péssimo estado, não atendiam ao caminho de cunho religioso, uma vez que não foram abertas com esse objetivo. No que nos interessa, a peregrinação e a procura por novas moradas demandavam imenso tempo, na medida em que se fugia aos pedágios obrigatórios, fazendo, assim, o caminho mais longo e mais penoso.

Como abordamos antes, além das justificativas elencadas por Santo Tomás de Aquino, na sua Summa Theologica, o trabalho dignifica e evita a ociosidade “que é uma porta aberta ao Diabo”41. Contudo, tais motivações só dizem respeito ao sujeito cuja condição social lhe impõe trabalhar. O trabalho na Idade Média

38 MARQUES, A. H. de Oliveira - Breve história de Portuga, 3ª edição. Lisboa: Editorial Presença, 1998,p. 83.

39 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 171.

40 A floresta era vista, segundo Le Goff, como “o inquietante horizonte do mundo medieval”. A sua opacidade gerava medos e alimentava histórias. O síxodo de Santiago de Compostela, em 1114, publicou um cânon, no qual todos os homens, fossem padres, cavaleiros ou camponeses, desde que estivessem livres, se deslocassem, todos os sábados (excetuando-se as vésperas da Páscoa e de Pentecostes), para matar na floresta os lobos e colocar-lhes armadilhas. Essa obrigatoriedade do uso do tempo dos homens denota o quão aterrorizante, real ou imaginária, era a floresta. Todavia, esse temor não impediu a mobilidade e a contínua deslocação do homem do medievo. A sua caminhada tinha as mais variadas razões, havendo, portanto um dinamismo temporal bastante significativo. LE GOFF, Jacques - A Civilização do Ocidente

Medieval, Vol. I, 2ªedição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 171.

41 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ª edição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 272.

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era visto como necessidade. Aliás, lembrando Marx, “o processo de trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer forma social determinada”42 Ou seja, o trabalho é uma eterna necessidade do homem, o que

não quer dizer que, pelo menos até agora, todos trabalhem para atender as suas necessidades.

Possuir a terra, ou ter sobre ela o poder de decisão, era o que determinava a riqueza, o poder social e político.43 Se, para o mundo laico, essa era a visão constituída sobre o trabalho, para o mundo religioso ainda se colocava mais limitante. Vale ressaltar que as ordens religiosas, o monaquismo, tiveram uma aceitação social de crucial importância, pois eram vistas, pelo menos num primeiro momento, de forma muito positiva, sendo, portanto, aprovadas socialmente. A razão da sua existência era “louvar e servir a Deus”, afastando-se do mundo, onde as tentações levavam ao desvirtuamento cristão. Em afastando-sendo assim, suas idéias foram incorporadas e disseminadas como a História o demonstra.

No que se refere ao trabalho, como uso da força física, um aspecto deve ser destacado dentro de uma ordem monástica em particular, na qual o uso da força de trabalho ocorre de forma bastante laicizada. A ordem de Cister, que segue a regra de São Bento, “originária de uma sucessão da abadia de Molesme, liderada pelo abade Roberto, em 1098, expandiu-se com a chegada de São Bernardo, em 1112”44 No século XIII, já contava com 647 abadias45, chegando a ter 742 casas no século XVI. Singulariza os cistercienses o direcionamento para o trabalho no campo e a exploração de terras ociosas.

Para o abade Roberto de Molesme, o tempo usado no trabalho era uma prova de afastamento da vida mundana. O recolhimento se fazia necessário para prover o pão de cada dia, o próprio sustento, embora, como já ressaltamos,

42 MARX, Karl - O Capital, L. 1, vol.I. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 149.

43 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ª Edição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 257.

44 LOYN, Henry R. - Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997, p. 261. 45 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. (edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p. 192.

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aqueles que não trabalhavam gozassem de um privilegiado sustento, em detrimento da miséria em que viviam os que produziam a base material da referida sociedade. Para São Bernardo, o trabalho não é um fim em si mesmo, mas uma maneira de combater a ociosidade. Na hierarquia da vida monástica, “el trabajo se sistua por debajo, porque su función es solo instrumental”46

O capítulo 48 da regra de São Bento prevê a ocupação de algum tempo do monge com o trabalho manual.47 A oração é a atividade principal. O que sobra é o tempo intermediário, no qual o trabalho manual está inserido. Ao levar em conta que o sol é instrumento principal de medição do tempo nesses primórdios da instituição, há uma variação no tempo de trabalho, sendo maior no verão, o que se explica pelo fato de a luz tornar os dias mais longos que no inverno. Assim, o trabalho começava depois da hora prima (com a claridade) até a terça. Havia o intervalo da hora nona e o recomeço laboral até antes da hora da véspera. Em síntese, o tempo dedicado ao trabalho pelos monges pode ser considerado, em média, entre duas e seis horas, tendo variações conforme as estações do ano - verão e inverno.48

A entrada dos conversos, permissão dada em 1119, por Calixto II, foi um passo importante para o incremento da ocupação e produção no meio cisterciense. Nas suas diversas abadias, os trabalhos com a ocupação dos bosques, o arroteamento de campos devolutos, os animais que davam leite, carne e lã favoreceram a sua expansão como entidade religiosa.

A ocupação inicial (Cistercium) de uma região favorável ao cultivo da uva e consequentemente à produção de vinho; a exportação de lã para várias partes da Europa Ocidental; o aperfeiçoamento dos instrumentos agrários; a

46 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. (edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p.199.

47 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C.

(edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p. 192.

48 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. (edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p. 193.

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manutenção dos bosques da madeira e do mel e, acima de tudo, o poder organizacional dos cistercienses foram determinantes para a sua expansão territorial, o que em larga medida determinou o seu sucesso, em termos de produção e geração de riqueza.49

Pode-se inferir que, se inicialmente o trabalho no campo se colocava como inferior à oração, com o passar do tempo o mesmo ocupa um lugar menos secundário, uma vez que é gerador de riqueza para a ordem. Mesmo que o trabalho não seja realizado efetivamente pelos monges, mas pelos conversos assalariados50, verifica-se o papel relevante dos cisterciences no campesinato feudal, o que lhes garante um lugar de destaque no mundo rural medieval.

Confirmando a enorme influência do Cristianismo na conformação do tempo histórico medieval, constata-se o entrelaçamento entre a fé cristã e a organização da economia, processo através do qual se preservava a ignorância dos trabalhadores em função do interesse do clero e dos senhores feudais. 1.3. O tempo dos mercadores: tempo urbano

Impossível precisar o momento em que surgiu a mercadoria. Lê-se em Marx: “Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social. E não só para outros simplesmente. O camponês da Idade Média produzia o trigo do tributo para o senhor feudal, e o trigo do dízimo para o clérigo. Embora fossem produzidos para outros, nem o trigo do tributo nem o do dízimo se tornaram por causa disso mercadorias. Para tornar-se mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca”.51

49 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C.

(edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p. 205-208.

50 PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. - Tiempo de trabajo en los

campos y en los bosques, In PORTELA SILVA, E. e PALLARES MÉNDEZ, Mª del C. (edits.), De Galicia en la Edad Media: Sociedad, espacio y poder. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1993, p. 203.

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Sabe-se que havia uma relação de troca entre o servo e o senhor e entre o servo e a Igreja, ou se preferirem, entre o servo e Deus. Tanto o tributo quanto o dízimo sugerem isso: Uma suposta segurança, no primeiro caso, em termos materiais; no segundo espiritual. Mas, para ser mercadoria deve existir uma livre relação de troca entre as partes, o que não caracterizava a relação supracitada.

O direito romano define o servo como sendo aquele que não pode adquirir nada para si mediante intercâmbio. Se o direito romano impõe esse limite ao servo é porque relações de troca já existiam. As leis não antecedem a prática. Dizendo de outra forma: a teoria não é anterior à realidade. Em sendo assim, se já existiam mercadorias, existiam mercadores. Quando, exatamente, teriam aparecido não se sabe.

Sabe-se que a relação compra e venda acompanha o homem desde os seus primórdios, o que não significa identidade com as trocas capitalistas. Aquelas eram inerentes à sobrevivência. Faz-se necessário dizer que, provavelmente, nada do que vamos abordar aqui se constitua novidade, uma vez que este é um tema amplamente explorado por historiadores e estudiosos da Idade Média, a exemplo dos que ora nos servem de referência para a consecução desta pesquisa. Contudo, para não pecar por falta, julgamos procedente aglutinar algumas situações que fizeram “a diferença” no modus

vivendi medievo e que são elucidativas do nosso objeto de pesquisa.

Como primeiro aspecto vale lembrar o desenrolar da vida medieval no campo e na cidade: as suas atividades quotidianas e a forma como a sociedade se organizava no tempo ( a sua historicidade). Embora o foco, aqui, seja uma atividade urbana, não há como separar o tempo rural do tempo urbano, mesmo porque ambos perpassam o universo do mercador. O primeiro refere-se ao tempo determinado por fenômenos naturais, embora não só; enquanto o segundo sofre mais enfaticamente as determinações sociais. Se o primeiro é circular, cíclico, impotente; o segundo é linear e cumulativo.

Tinha o homem medieval consciência desses dois tempos? Como era encarado o trabalho realizado num e noutro tempo?

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No meio rural, o tempo é orientado pela decorrência das possibilidades naturais do dia, da semana etc. No meio urbano, as tarefas têm um tempo definido, pelo qual são reguladas, já que o valor monetário está intimamente relacionado com o referido tempo. Luís Krus afirma que ao se olhar para trás, desde toda a Idade Média, o tempo urbano é o vencedor na comparação entre os dois tempos52. A transformação da consciência medieval de uma sociedade eminentemente agrária para uma sociedade urbana industrial foi uma realidade palpável, na Média e Baixa Idade Média. Mas não se pode, apesar disso, esquecer que o mundo rural foi “a espinha dorsal da economia medieval”53.

Com o passar do tempo, desde a Alta Idade Média até a Idade Média Tardia, Idade Moderna e Contemporânea, os fatores que levaram à hegemonização do tempo urbano são evidentes. Esse direcionamento urbano, aliado a uma racionalização do tempo, tem uma raiz medieval, que foi construída ao longo de todo o processo de transformação mental e de atitudes da realidade apreendida.

Do século XII ao XIV, a mensuração do tempo (afora a mensuração de ordem religiosa) está creditada, sem dúvida, à atividade do mercador. À medida que o comércio ocupa e se destaca cada vez mais, tanto em relação às pessoas, como à sociedade, estabelecer e medir o uso do tempo é de crucial importância. Tanto a produtividade quanto o lucro decorrente dependem da racionalidade da sua aplicação. Ao tempo em que a racionalidade e a objetividade se impõem, concomitantemente é requerida a coexistência de outros tempos: o agrícola, o senhorial, o clerical, conformando uma totalidade cujos nexos são elucidativos das determinações que os fundam.

O tempo agrícola, como já foi dito, obedece ao ritmo da natureza, tendo dois momentos: a sementeira e a colheita. O seu resultado é visualizado nas feiras e festas religiosas, nas quais o tempo senhorial é posto em prática ao receber os tributos dos camponeses. É a prestação de contas entre a terra, o

52 KRUS, Luís - A vivência medieval do tempo, In Estudos de História de Portugal,vol.I, Século X - XV, Imprensa Universitária. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, p. 347.

53 GOFF Le, Jacques - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªEdição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 79.

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produto, o camponês e o senhorio. Sob a égide do senhor (o rei, o senhor feudal) está também o tempo da guerra, já que tendo o camponês sob o seu domínio, pode determinar o seu tempo como lhe aprouver.

Complementando o tempo agrícola, cabe falar sobre as feiras, atividade de grande relevância na Idade Média. Como organização social e econômica, as feiras tiveram grande significado na Idade Média. Vários elementos contribuíram para lhes atribuir um papel de destaque e de referência no medievo. Entre essas, pode-se destacar as dificuldades de comunicação da época, a falta de segurança no deslocamento dos transeuntes e o excesso de portagem e pedágios, que eram obrigatórios para os que se arriscavam a caminhar, às vezes, por dias inteiros, com o intuito de vender sua produção agrícola e comprar o que lhes era necessário. A exemplo, a distância entre a feira de Champagne e a de Nine era de vinte e dois dias e, entre as de Florença e Nápoles, era de onze a doze dias. A média do caminhar diário variava entre vinte e cinco a sessenta quilômetros.54

As datas das feiras não se davam de forma aleatória, tendo uma correlação direta com os acontecimentos religiosos. Como diz Virgínia Rau, as romarias, as peregrinações e as festas religiosas atraiam pessoas de longe (não perder de vista o que representa “longe” à época, quando inúmeros fatores desfavoreciam a caminhada), que aproveitavam a comemoração religiosa e também faziam as trocas necessárias ao provimento familiar.55 Vale salientar que os eventos cristãos aliados à realização das feiras foram, posteriormente, impedidos de se realizarem aos domingos. Esse impedimento promulgado pela Igreja tinha como objetivo a observação do descanso semanal e dedicação deste dia a Deus, chegando sua desobediência ao nível da excomunhão. O Bispo de Lamego (Portugal), em 1332, proibiu que se realizasse o mercado dominical ali. E, em 1408, D. João I transferiu para a segunda-feira a feira que,

54 RAU, Virgínia - Feiras Medievais Portuguesas - Subsídios para o seu estudo, 2ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, p. 175.

55 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªEdição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 175.

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até então, se realizara no domingo, em Aguiar da Beira (Portugal), pelo fato de a mesma ter sido interditada pelo Bispo de Viseu (Portugal).56

Pelo seu status no medievo, ao tempo em que as feiras proliferam em toda a Europa, em Portugal, Ponte de Lima é a feira mais antiga de que se tem conhecimento, fundada em 1125.57 A evolução das feiras medievais, em Portugal, ocorreu em duas principais fases:

▪ Formação das feiras: até meados do século XIII;

▪ Incrementos às feiras: do século XIII ao XV, terminando após o reinado de Afonso V.58

Para que se tenha uma compreensão mais exata do funcionamento das feiras na Idade Média, vale ressaltar um aspecto curioso, que bem demonstra a mentalidade e funcionamento das relações sociais medievais. Virgínia Rau assevera a existência de uma paz especial, “a paz da feira”, estabelecida juridicamente. Nesta se explicitava toda a proibição sobre disputas, vinganças e atos hostis, os quais eram severamente castigados se fossem transgredidos. A proteção dada pelo senhor feudal à realização pacífica das feiras traduzia-se na figura do “custodes mundinarem”.59 Essa paz era representada por símbolos, colocados em locais visíveis, desde o início até o término da feira. Para a autora acima citada, essa simbologia tinha um uso universal. Posteriormente a simbologia traduziu-se na representação de uma cruz.

O nosso propósito ao tecer tais comentários acerca das feiras visa reforçar o caráter errante do mercador, apresentando seus contínuos deslocamentos. Tentaremos, agora, tratar do tempo do modo como eram usados pelos mercadores, focalizando o período que vai do século XII ao XV.

O posicionamento da Igreja, que ditava, delimitava, aprovava e desaprovava o seu uso, é cambiante e variável. Ao tempo em que protegeu e

56 RAU, Virgínia - Feiras Medievais Portuguesas - Subsídios para o seu estudo, 2ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, p. 34.

57 RAU, Virgínia - Feiras Medievais Portuguesas - Subsídios para o seu estudo, 2ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, p. 63

58 RAU, Virgínia - Feiras Medievais Portuguesas - Subsídios para o seu estudo, 2ª Edição. .Lisboa: Editorial Presença, p. 165.

59 RAU, Virgínia - Feiras Medievais Portuguesas - Subsídios para o seu estudo, 2ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, p.. 42.

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favoreceu a atividade mercantil, também fomentou na sociedade uma mentalidade de desaprovação, críticas e suspeitas graves sobre a legitimidade das ações praticadas pelos mercadores. Mas, nas feiras, a “usura” era praticada e a Igreja tinha conhecimento disso. Essa crítica à Igreja, nos tempos medievais, era baseada no tempo teológico, donde Deus, ao criar o mundo, tem sobre o mesmo o domínio do tempo. O mercador ao se antepor aos outros, na compra e venda da mercadoria e no ganho do lucro, estaria praticando a usura mediante a apropriação de um tempo que não lhe pertencia.

A atividade que hoje se designa por “agiotagem” foi uma prática comum na Idade Média. Os mercadores, a nosso ver, sobreviveram às proibições, às críticas e aos estigmas religiosos, porque a compra e venda de mercadoria estava acima dos pruridos morais medievais, sendo a atividade legitimada pelo atendimento a outros interesses da mesma classe que os criticava.

Para o mercador, o tempo é a própria trama do seu negócio: “armazenamento prevendo fomes, compra e revenda nos momentos favoráveis, deduzidos do conhecimento da conjuntura econômica, das inconstâncias do mercado, dos gêneros e do dinheiro, o que implica uma rede de informações e de correios, dentre outros fatores. Ao seu tempo opõe-se o tempo da Igreja, tempo que só pertence a Deus e não pode ser objeto de lucro”.60

O mesmo raciocínio era aplicado à ciência, ratificado, inclusive, por São Bernardo. Entendia-se que ao aprovar a atividade do mercador e o avanço científico o poder “escapava das mãos de quem tinha o seu domínio (a Igreja) fato que a realidade já indicava, pois cada vez mais as atitudes e a mentalidade social se laicizavam. A urbanização acentuada, a partir da baixa Idade Média, sedimentou mentalidades e valores burgueses, levando o homem a ter mais e a querer mais, objetivando o acesso permanente a objetos materiais.

Sem perder de vista o caráter ruralizante da Idade Média, a partir do renascimento econômico medieval, o comércio e a indústria agem sobre essa ruralização. É o comércio que a transforma. Para Le Goff, o século XII é um

60 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

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divisor de águas. Começa a implantação de novas estruturas, inicialmente tímidas, dada a mentalidade impregnada de religiosidade e de temores quanto ao fim eminente do mundo. Mas, aos poucos, a sociedade foi incorporando novas condições econômicas e sociais, levando-a a querer usufruir da vida terrena e não só esperar passivamente pela eternidade.

Nessa dinâmica social é fundamental a contribuição dos mercadores na diferente visão do mundo que começa a penetrar naquela sociedade. A dualidade da Igreja na percepção dessa mudança se constata, por um lado, na legitimidade da atividade comercial e, por outro, na reprovação aos mesmos. Contudo, essa atividade nascente não tem volta.

Na atividade mercantil dois momentos são relevantes para a compreensão da mesma: o tempo natural e o tempo econômico.

Por um lado, o mercador está sujeito ao tempo natural: cataclismas, variações meteorológicas, variações das estações do ano, enfim, fatores a que estavam submetidos nos constantes deslocamentos. Cabia tão-somente orar e acreditar na providência divina. Por outro, a atividade comercial tinha que ser mensurada e validada, considerando fatores, como: distância de um ponto a outro, tempo de produção das mercadorias, resultando no aumento ou diminuição dos produtos, tempestades, chuvas ou secas.61 Enfim, cada vez mais os fatores de medição do tempo (dos quais falaremos mais adiante) faziam a diferença no resultado final.

O tempo, portanto, é algo vital na prática comercial. O mercador é gestor do tempo e da sua atividade. Mais uma vez, vale repetir que não somos portadoras de novidades. Le Goff já colocou magistralmente quase todas as variáveis dessa discussão. Nas suas palavras: “Para o mercador, o meio tecnológico sobrepõe um tempo novo, mensurável, quer dizer, orientado e previsível, ao tempo eternamente recomeçado e perpetuamente imprevisível no meio natural”.62 Ele descobre e explora o “preço do tempo”. Todavia,

61 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 54.

62 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

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questionamo-nos como fica a alma do mercador diante da dualidade que carrega: por um lado, pratica a usura e, por outro, evoca a um Deus, cuja promessa de eternidade está sendo progressivamente abalada pela sua atividade. Como legitimar ambas as dimensões? Surgem, então, formas de aprovação social, pelas quais os mercadores podem “dormir em paz”.

É a legitimação da hipocrisia. Tanto do mercador, como da instituição maior, a Igreja, que é, no fundo, seu suserano. Como a própria Igreja não pode parar a dinâmica do tempo natural, nem social, legitima a ação do mercador aceitando parte do produto da sua atividade em benefício próprio. São doações, pagamento de indulgências e empréstimos feitos pelos mercadores à própria Igreja. Dos seus ganhos o mercador retira “o dinheiro de Deus”.63 Noutra passagem, Le Goff se refere a testamentos, que deixados à Igreja eram considerados passaportes para o Céu. Tratava-se de restituir toda a riqueza que tivesse sido mal ganha,64 sob a justificativa (injustificada) de ter lucro, ao receber a mais-valia ele tenta dar uma parte do seu lucro como garantia do seu futuro após a morte. Mais uma vez Le Goff é elucidativo: “O tempo se quebra e o tempo dos mercadores se liberta do tempo bíblico que a Igreja não sabe manter na sua ambivalência fundamental”.65 O mercador é o ponto fulcral da ideologia moderna. Por séculos, ainda, os velhos regulamentos, em alguma medida, são mantidos e o mercador, mesmo numa tentativa de “pagar a preço de Deus” como resultado da sua atividade, continuará vivendo de forma contraditória entre o tempo de Deus e o tempo dos seus negócios.

Queremos salientar que não creditamos ao mercador a transformação de uma sociedade rural para uma sociedade urbana. Mas, ao mover-se em todas as esferas sociais, acima das classes nitidamente estratificadas e favorecer o “desejo” de consumo, o mercador, a nosso ver, contribuiu para o estabelecimento de uma nova mentalidade. Onde se materializa essa

63 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 55.

64 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ª Edição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 232.

65 GOFF, Jacques Le – Para um novo conceito de Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no

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mentalidade? Sem dúvida no mundo urbano. É lá que se estabelece o comércio e o avanço de um maior número de cidades. Segundo Pirenne, “se na organização política o papel das cidades foi maior na Antiguidade do que na Idade Média, em contrapartida, a sua influência econômica ultrapassou em muito, na Idade Média, o que acontecera na Antiguidade”.66

1.4. Tempo religioso

O tempo é para o medievo um momento da eternidade. Este não pertence ao homem, mas a Deus. Tirar partido do mesmo é um pecado. “Desviar uma sua parcela é um roubo”.67 Os homens estão na terra para

glorificar a Deus e qualquer atitude que os desvie disso incorre em pecado, tendo como garantia o inferno, após a morte. Viver assim devia ser aterrorizante. Não bastavam as condições reais, marcadas pela insegurança, a desinformação, a rudimentaridade tecnológica e a submissão, ainda havia a impotência diante de um juiz imaginário que não podia jamais ser enfrentado.

Graças a esse estado de coisas, Marc Bloch via no homem medieval uma atitude de vasta indiferença ao tempo, o que pode ser entendido pelo fato de o tempo não lhe pertencer, não ter autonomia diante dele. O velho testamento é levado em conta como eco para a concretização do Novo Testamento, após Cristo.

Nos primeiros séculos da Cristandade havia pouco interesse sobre o tempo que vai da morte física ao juízo final. A esse intervalo, a Cristandade denominou de purgatório. No medievo, com a concretude desse período, a importância e magnitude da morte adquire um papel decisivo. A confissão, o arrependimento sincero são vitais para o futuro do homem para além da vida terrestre. Oliveira Marques68 enfatiza a atitude desesperada de proprietários alodiais, nobres e vilões, que deixam seus bens às Ordens Religiosas, às Igrejas

66 PIRENNE, Henri - As cidades da Idade Média, Coleção Saber. Mira - Sintra: Publicação Europa - América, p. 89.

67 GOFF, Jacques Le - A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. I, 2ªEdição. Lisboa : Editorial Estampa, 1995, p. 205.

68 MARQUES, A.H. de Oliveira – Breve História de Portugal, 3ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 103.

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paroquiais e às Sés, numa tentativa de alcançar a salvação. Atitudes idênticas são discutidas por Sérgio Carvalho69, ao mostrar os ricos, burgueses e

mercadores, que na incidência da morte contribuíam financeiramente, na tentativa de garantir a salvação.

A instituição do purgatório levou a uma dramatização dos ritos de passagem mortuária a um local concreto de espera, onde o tempo podia ser negociado por quem se encontrava na terra, em favor de quem havia partido. Bonifácio VIII70 apresentou no Jubileu romano de 1300 uma contabilidade para o purgatório, na qual a aritmética das indulgências lhe estava correlata. Chama atenção a ênfase dada pela Igreja ao purgatório. Certos indícios sociais podem nos ajudar a compreender esse fenômeno. No século XIII, com as diversas transformações ocorridas na sociedade, a Igreja viu seu poder de medidor do tempo, “senhor do calendário e dos sinos”71 ameaçado pela crescente urbanização. Os sinos comerciais eram já concomitantes aos sinos religiosos, indo mais além, pois com o aparecimento do relógio, o tempo era marcado de modo mais rigoroso e racional.

Ao perder o domínio total sobre o tempo terreno, a Igreja se assegurou o domínio do outro tempo que, se antes era imensurável, tornou-se agora mensurável, com os sufrágios necessários ao seu enfrentamento  o tempo do purgatório. Se antes o tempo terreno fazia parte do foro eclesiástico e, a partir da morte dependia do tempo divino, com Bonifácio VIII foi dado o direito de se conjugar esses dois tempos com as indulgências aplicadas às almas do purgatório.72

Com isso, institucionalizam-se as indulgências dadas “por procuração”. Paga-se na terra o que seria remissivo no purgatório. A Igreja reforça o seu poder (no momento em que o sente ameaçado), ao lhe serem benéficos os testamentos com doações várias, feitas principalmente quando influenciadas pelas ordens religiosas, adeptas e em concordância com essa instrumentalidade

69 CARVALHO, Sérgio Luis - Cidades medievais portuguesas - Uma introdução ao seu estudo - Lisboa: Livros horizonte, 1989, p.71.

70 GOFF, Jacques Le – O Imaginário Medieval, 3ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, p. 117. 71 GOFF, Jacques Le – O Imaginário Medieval, 3ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, p. 118. 72 GOFF, Jacques Le - O Imaginário Medieval, 3ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, p. 118.

Referências

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