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Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica

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Academic year: 2021

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(1)Revista de Direito Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010. Thiago Rodovalho dos Santos Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP t_rodovalho@hotmail.com. COISA JULGADA, BOA FÉ DO PARTICULAR E SEGURANÇA JURÍDICA. RESUMO O presente trabalho visa a analisar a questão concernente ao princípio da segurança jurídica, como elemento formador do próprio Estado Democrático de Direito, examinando, assim, tanto o aspecto objetivo da segurança jurídica, especialmente no respeito à coisa julgada, como no aspecto subjetivo da segurança jurídica, assegurando ao particular uma racionalidade do discurso jurídico, bem como proteção à sua boa-fé em caso de mudança de entendimento jurisprudencial reiterado dos Tribunais. Palavras-Chave: jurisprudência; segurança autoridade; precedente; coisa julgada; boa-fé.. jurídica;. previsibilidade;. ABSTRACT The present study aims to examine the question concerning the principle of legal certainty, as a formative element of a democratic state itself, examining, meaning that both the objective aspect of legal certainty, especially with respect to res iudicata, as the subjective aspect of legal certainty, while ensuring a particular rationality of legal discourse, as well as protecting their good faith in case of change of understanding reiterated jurisprudence of the Courts. Keywords: jurisprudence; law security; predictability; authority; precedents; res iudicata; good faith.. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 01/05/2011 Avaliado em: 01/05/2011 Publicação: 10 de junho de 2011. 73.

(2) 74. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. 1.. INTRODUÇÃO Esse presente estudo é fruto da reflexão acerca de dois julgamentos recentes do E. Supremo Tribunal Federal, no sentido de relativizar-se a intangibilidade da coisa julgada. Em um deles, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 363889, em que se discute o direito de um jovem voltar a pleitear de seu suposto pai a realização de exame de DNA, depois que um primeiro processo de investigação de paternidade foi extinto na Justiça de primeira instância porque a mãe do então menor não tinha condições de custear esse exame, o E. Min. Dias Toffoli, relator do RE, proferiu voto dando provimento ao recurso, no sentido de relativizar-se a intangibilidade da coisa julgada, permitindo o andamento da nova ação de investigação de paternidade, a fim de que seja realizado o exame de DNA. Esse julgamento encontra-se suspenso ante o pedido de vista do E. Min. Luiz Fux. No outro caso, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral em relação à relativização da coisa julgada. O tema foi discutido no Recurso Extraordinário (RE) 600658, cuja relatoria é da E. Min. Ellen Gracie, e que foi interposto contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que entendeu ser incabível a reabertura do debate acerca dos critérios de cálculos. O tema do respeito à intangibilidade da coisa julgada e do consequente respeito à garantia e ao princípio constitucional da segurança jurídica, como elemento constitutivo do Estado Democrático de Direito, encontra-se em importante momento no E. Supremo Tribunal Federal. Inclusive, a esse respeito, muito recentemente, em razão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional dos Recursos (denominada PEC dos recursos),1 o E. Min. Marco Aurélio Mello, do E. Supremo Tribunal Federal, manifestou publicamente, por meio do Ofício nº 006/2011 – GBMA, datado de 3 de abril de 2011, e dirigido ao E. Min. Cezar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal, sua preocupação com as inconstitucionalidades da referida PEC, uma delas justamente por pretender mitigar a intangibilidade da coisa julgada; verbis: Consigno ver empecilho em mitigar-se a coisa julgada. Algo é não possuírem o recurso extraordinário e o especial eficácia suspensiva. Totalmente diverso é dizer-se que a admissibilidade – vocábulo a gerar incongruência considerado o que proposto – não. 1 PEC dos Recursos: “Art. 105-A A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte. Parágrafo único. A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento”.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(3) Thiago Rodovalho dos Santos. 75. empece a coisa julgada. O sistema pátrio define-a como qualidade do pronunciamento judicial irrecorrível. A par desse aspecto, não pode haver tramitação de emenda constitucional que vise abolir direito individual, e os parâmetros tradicionais da coisa julgada consubstanciam direito individual. Em síntese, a coisa julgada, tal como se extrai da Constituição Federal, é cláusula pétrea. Mais do que isso, no campo criminal, mitigar a coisa julgada significa mitigar o princípio da não culpabilidade. [...] Para concluir, retorno à problemática da coisa julgada, ressaltando o sistema constitucional. A lei não pode afastá-la. A mitigação do instituto já ocorre na própria Carta da República quando se prevê a ação de impugnação autônoma que é a rescisória. Permita-me, Presidente, externar preocupação no que, pouco a pouco, vem-se esvaziando o sistema processual. O argumento relativo à busca da celeridade não pode ser potencializado a esse ponto. Atenciosamente, MINISTRO MARCO AURÉLIO Supremo Tribunal Federal. Essa legítima preocupação do E. Min. Marco Aurélio Mello com a mitigação, via emenda constitucional, da intangibilidade da coisa julgada, é o que, em verdade, se pretende discutir nesse breve estudo. E pensar em um Poder Judiciário que em sua organicidade hierárquica não transmita segurança e previsibilidade de suas decisões, seria chancelar o caos que esta insegurança jurídica traz aos jurisdicionados, situação esta que é contrária aos ditames não só do justo, como também ofensiva aos ditames do Estado Democrático de Direito e aos preceitos fundantes de nossa República (CF Preâmbulo). Logo, não poderíamos pensar em Justiça, ou melhor, pensar em realizá-la concretamente por meio do Poder Judiciário, sem pensarmos em segurança jurídica.. 2.. O ESTADO CONSTITUCIONAL Um dos grandes desafios do Direito (verdadeira pedra de toque da ciência jurídica), e que se traduz no centro de gravitação de toda sociedade, é justamente o equilíbrio e a interrelação que há entre indivíduo e coletividade (ARRUDA ALVIM, 1966, p. 201), o que perpassa necessariamente pelo modelo de Estado em que se situa a análise (se Estado de Direito, Estado Democrático, Estado Social, Estado Constitucional). Nesse contexto, o Brasil fez, a teor da CF preâmbulo (“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático”) e 1.º (“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”), inequivocamente uma opção política pelo Estado Democrático de Direito, o que assegura aos particulares a prevalência dos direitos fundamentais (faceta garantista) e submete o próprio Estado aos controles inerentes a um Estado Democrático de. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(4) 76. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. Direito (faceta limitadora) [Estado submetido ao império do Direito (CANOTILHO, 2003, p. 98)], o que é o fim e o telos de toda Constituição (LOEWENSTEIN, 1986, p. 151). Em verdade, modernamente, a República brasileira constitui-se no que o constitucionalismo de vanguarda denomina Estado Constitucional (Verfassungsstaat) [HÄBERLE, 2007, p. 81 et seq.], o qual não se traduz apenas em um Estado de Direito (Rechtsstaat), mas conjuga os ideais do Estado Democrático de Direito (Demokratischen Rechtsstaat) e do Estado Social de Direito (Sozialstaat) [cfr. CANOTILHO, 2003, p. 92 et seq.; NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2009, p. 144-145], tendo esse Estado como norte a supremacia da constituição e a garantia e prevalência dos direitos fundamentais. É dizer, o Estado Constitucional se consubstancia em um Estado de Direito, em um Estado Democrático e em um Estado Social (= Estado Democrático e Social de Direito), conjugando-os e estabelecendo uma conexão interna entre eles, especialmente entre democracia e estado de direito, como dois corações políticos (CANOTILHO, 2003, p. 93 e 98). Esse é, precisamente – ainda que na prática as violações a direitos fundamentais no país sejam recorrentes –, o modelo de Estado da República Federativa do Brasil, representando as aspirações essenciais da sociedade brasileira, assegurando o direito imprescindível à vida social e tendo o homem como valor substancial da sociedade (ARRUDA ALVIM, 1966, p. 199, 205 e 207).. 3.. O PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A SEGURANÇA JURÍDICA Em sendo a República brasileira um Estado Constitucional, justamente por conjugar os Estados de Direito, Democrático e Social, ela traz em si, ínsita, o Princípio do Estado de Direito (Rechtsstaatsprinzip), que é um princípio constitutivo que tem natureza material, procedimental e formal (material-verfahrenmässiges Formprinzip) [CANOTILHO, 2003, p. 243], que não se esgota definido na Constituição, funcionando, assim, como verdadeira cláusula geral (Generalklausel) [HÄBERLE, 2007, p. 360]. O Princípio do Estado de Direito (Democrático) tem como componente essencial, como consignam Canotilho e Vital Moreira, a garantia dos direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias fundamentais), o que implica ao Estado (no caso, o Estado brasileiro) não apenas uma atitude abstencionista (passividade, de não ingerência), mas sim, e especialmente, impondo-lhe um verdadeiro dever de garantir e de os fazer observar por todos (postura ativa, atitude positiva) [CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 277].. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(5) Thiago Rodovalho dos Santos. 77. Esse Princípio do Estado de Direito tem subprincípios concretizadores, entre os quais, interessa-nos de perto para esse estudo, o princípio da segurança jurídica (CANOTILHO, 2003, p. 256-257). Nesse contexto, o princípio da segurança jurídica não só é elemento essencial do Princípio do Estado de Direito, como, em verdade, consubstancia-se em elemento constitutivo do próprio Estado de Direito, sem o qual, dele, Estado de Direito, não se pode falar (cfr. CANOTILHO, 2003, p. 257 e 264; NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2009, p. 146). E, nesse sentido, a nossa CF, em diversas importantes passagens, refere-se justamente à segurança jurídica, desvelando seu valor para o Estado brasileiro, como preceito fundante de nossa República.2 Essa é a razão pela qual se pode afirmar ser a segurança jurídica (Rechtssicherheit) um princípio e, ao mesmo tempo, um fim (um objetivo) do Direito (ALSINA, 1999, p. 9 e 14). Como acentua Jorge Miranda, embora não seja específica do Estado de Direito, é somente nele que a segurança jurídica alcança sua máxima aplicação, tendo como manifestações a certeza, a compreensibilidade, a razoabilidade, a determinabilidade, a estabilidade e a previsibilidade (MIRANDA, 2008, p. 272). Sem esse ambiente de segurança jurídica proporcionado pelo Estado (Democrático) de Direito o próprio cidadão não tem como realizar-se plenamente. Nesse sentido, como advertia Theóphilo Cavalcanti Filho, a respeito da segurança jurídica: (o) objetivo primeiro, a razão que, antes de qualquer outra, leva o homem a realizar o direito está na exigência de ordem e segurança (...) O homem (...) para poder conviver com os demais, necessita de saber não só o que pode fazer, mas também o que esperar que os outros façam. E também precisa ter certeza de que os demais, se não agirem da maneira como devem, serão compelidos a proceder da maneira adequada. De um lado, impõe-se a certeza, quanto à ação que deve ser realizada, e por outro, a segurança. 2 Cfr. CF preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” [destacamos]. CF 5.º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” [destacamos]. CF 5.º XXXVI: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Além da própria CF 1.º, que, inserida no título I, que trata justamente dos princípios fundamentais, consagra o Princípio do Estado Democrático de Direito, do qual o princípio da segurança jurídica é dos subprincípios concretizadores: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos” [destacamos].. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(6) 78. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. quanto a que, necessariamente, as coisas se darão da maneira como devem ser. Se a situação fosse diferente, logo descambaríamos para o caos. Não haveria certeza em relação a nada. E uma sensação de absoluta intranqüilidade se apossaria de todos. A convivência se transformaria em um verdadeiro martírio. (CAVALCANTI FILHO, 1964, p. 53 e 58).. A segurança jurídica é, assim, nesse contexto, uma verdadeira necessidade humana, sendo, por isso, um direito fundamental (ALSINA, 1999, p. 15 e 22), que precisa dela para conduzir-se e planejar autônoma e responsavelmente a vida (CANOTILHO, 2003, p. 257), e cuja preservação pelo Estado assegura a própria liberdade e justiça.3 Sem a segurança jurídica, o indivíduo vaga em um tal ambiente de incerteza, que, em verdade, como conseqüência, liberdade e justiça também lhe são negadas. A segurança jurídica é, assim, condição para a realização desses valores [garantias de justiça, paz, segurança, ordem, liberdade (COUTURE, 1974, p. 59)], razão pela qual todos os Estados verdadeiramente democráticos de Direito a asseguram plenamente (a segurança jurídica), como princípio fundante e constitutivo do próprio Estado de Direito (CANOTILHO, 2003, p. 257). E o princípio da segurança jurídica manifesta-se de diversas formas, como, por exemplo, na intangibilidade da coisa julgada, na proteção contra a irretroatividade das leis (proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito), na prescrição, na decadência, na usucapião, no caso administrativo decidido, certeza das normas, validez dos atos administrativos, auto-sujeição da Administração Pública aos requisitos de publicidade, princípio do juiz natural (nesse sentido, cfr. MIRANDA, 2008, p. 273; HÄBERLE, 2007, p. 360-361; CANOTILHO, 2003, p. 257; NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2009, p. 146); protegendo o particular e consolidando situações jurídicas no tempo, exercendo, pois, a função estabilizadora do princípio do Estado de Direito (HÄBERLE, 2007, p. 361). Deste modo, sem a segurança jurídica, o Poder Judiciário deixará de lado sua função pacificadora de conflitos, para tornar-se, ele próprio, um órgão fomentador de angústias e incertezas, e retirando a autoridade de seus próprios julgados.. 3 Nesse sentido, cfr. ROSA MARIA ANDRADE NERY: “É o Direito que desempenha função na sociedade: função histórica pacificadora, de equilíbrio, de segurança, de garantia, de coexistência social pacífica [...] A função social do Direito é, antes de tudo, parificação e pacificação, mas não se pode deixar de lado a legalidade, primeira condição de toda civilidade, porque a doutrina do direito livre não merece essa denominação. Porque ela nega todo o direito e toda a liberdade, permitindo a incerteza, o temor do arbítrio, sede de privilégio, rixa perpétua e perpétua escravidão. A certeza do direito é específica eticidade do direito” (ANDRADE NERY, 2004, p. 276).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(7) Thiago Rodovalho dos Santos. 4.. 79. MANIFESTAÇÕES DA PROTEÇÃO À SEGURANÇA JURÍDICA: A INTANGIBILIDADE DA COISA JULGADA Entre essas manifestações do princípio da segurança jurídica, certamente, uma das mais relevantes – senão a mais relevante – é indubitavelmente a intangibilidade da coisa julgada (Rechtskraft). Em verdade, o ordenamento jurídico já contém, ante o princípio constitucional da proporcionalidade, uma mitigação da coisa julgada, que é a ação rescisória (CPC 485), a qual deve ser exercida, nas situações cujos vícios de que se reveste o julgado se encontram nas hipóteses arroladas em numerus clausus pelo CPC 485, dentro do prazo decadencial de dois anos (CPC 495)4 [RODOVALHO, 2003, p. 107 et seq. e 134]. Transcorrido o prazo decadencial, como consignam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, dá-se o fenômeno da coisa soberanamente julgada, não mais de podendo rescindir ou modificar a coisa julgada, seja qual for o motivo ou fundamento alegado pelo interessado (NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2010, p. 718; no mesmo sentido, cfr. FREDERICO MARQUES, 1975, p. 247). Logo, como bem anota Barbosa Moreira, o que se pretende, em verdade, não é relativizar a coisa julgada, cuja mitigação excepcional (em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade) já é contemplada pelo próprio ordenamento jurídico, e, sim, o alargamento dos limites da “relativização” (MOREIRA, 2007, p. 236), criando, a exemplo do modelo nazista e totalitário, uma hipótese para o Brasil (ao menos na dicção da CF um Estado Democrático de Direito) em que seria dado ao intérprete, quando achar que a coisa julgada não mais deva prevalecer, que possa afastá-la, fazendo-o sem que haja qualquer prazo de encerramento para que isso ocorra (prazo decadencial), criando, portanto, uma hipótese de tirania do intérprete (cfr. NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2010, p.718-719). Ora, no Estado Democrático de Direito, a ratio essendi da função jurisdicional é pôr fim a um conflito de interesses eventualmente ocorrido no seio da vida social, fazendo-o através do Estado e por meio de um terceiro supra-partes desinteressado na lide (o juiz), que dirimirá o litígio, e cuja atividade é substitutiva à vontade das partes (substituição da dirimição privada do conflito pelo Estado), posto que será a sua decisão que deverá prevalecer, e, para que essa função jurisdicional (atividade substitutiva) seja possível e se aperfeiçoe, um requisito é absolutamente necessário: a imutabilidade da sentença, a autoridade da coisa julgada (ARRUDA ALVIM, 1966, p. 210-213). Essa é a síntese da. 4 No Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010, que institui o Novo Código de Processo Civil e revoga o CPC de 1973, diminuiu-se o prazo para o exercício da pretensão rescisória de sentença de 2 (dois) para 1 (um) ano (PLS 166/10, art. 893 caput) [cfr. SENADO FEDERAL. PRESIDÊNCIA. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, Brasília: Senado Federal, 2010, Art. 893 caput, p. 261]: “Art. 893. O direito de propor ação rescisória se extingue em um ano contado do trânsito em julgado da decisão”.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(8) 80. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. atividade jurisdicional, sem a qual, como pontua Arruda Alvim, pode-se “dizer que a substituição da atividade privada pela pública que se opera com a atividade jurisdicional seria inócua, se essa substituição não fôsse definitiva; daí vincularmos indissolùvelmente a imutabilidade da coisa julgada à atividade jurisdicional” (ARRUDA ALVIM, 1966, p. 213). É o efetivo exercício da função pacificadora da jurisdição (a esse respeito, v. FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 78). Por isso se diz que a coisa julgada é atributo específico da jurisdição (COUTURE, 1974, p. 411-412), pois com ela dá-se a entrega definitiva da prestação jurisdicional (FREDERICO MARQUES, 1969, p. 320 e 324). Os conflitos da vida social não podem eternizar-se, e entre o justo absoluto (utópico) e o justo possível (realizável), os Estados Democráticos de Direito – entre eles, o Brasil – fazem uma opção política pelo justo possível (realizável) (NERY JUNIOR, 2004, p.501), através justamente da função pacificadora dos conflitos da vida social pela jurisdição. Como bem pontua Barbosa Moreira, há “um momento em que à preocupação de fazer justiça se sobrepõe a de não deixar que o litígio se eternize” (MOREIRA, 2007, p. 243), até mesmo porque a situação de inexistência de segurança jurídica também não é hipótese de situação justa. Nesse sentido é o entendimento da doutrina alemã, como se depreende dos ensinamentos de Leo Rosenberg: El peligro de que mediante la autoridad de cosa juzgada se mantenga una resolución injusta, es un mal menor frente a la inseguridad del derecho, que sería insoportable y dominaría sin ella. Debe bastar que el Estado mediante cuidadosa formación y elección de los jueces, un procedimiento equipado con todas las garantías de cercioramiento del derecho, en particular mediante la obligación de oír a las dos partes, y la posibilidad de examen por la instancia superior y outras más, haga todo lo posible para asegurar la justicia de la resolución; ¿ quién se atrevería a afirmar que la segunda resolución sería “más justa” que la primera? Acertadamente dice la PreussAllgemGerO, Einl., § 65: “La traquilidad y el orden en la sociedad civil no permiten que el proceso sea eterno y que los derechos de las partes, una vez reconocidos por el magistrado luego de investigación legal, sean impugnados de nuevo com cualquier pretexto. (ROSENBERG, 1955, p. 449, grifo meu).. Essa é a razão pela qual Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam ser a coisa julgada (Rechtskraft) elemento de existência do próprio Estado Democrático de Direito, estando constitucionalmente amparado no princípio do estado de direito (Rechtsstaatsprinzip), consignando expressamente que a [...] supremacia da Constituição está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º caput), não sendo princípio que se possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. (NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2010, p. 715).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(9) Thiago Rodovalho dos Santos. 81. Nesse diapasão, Frederico Marques corretamente afirmava que a proteção constitucional conferida à coisa julgada permite-se inferir que há um verdadeiro direito público subjetivo de exigir-se o respeito à coisa julgada (FREDERICO MARQUES, 1975, p.235). Nesse sentido, é paradigmática decisão monocrática do Min. Celso de Mello que rechaça, com veemência, a relativização da coisa julgada: A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade. - A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apóie o título judicial, ainda que impregnada de eficácia “ex tunc”, como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, “in abstracto”, da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes. (...) Cabe ter presente, neste ponto, a advertência da doutrina (NELSON NERY JUNIOR/ROSA MARIA ANDRADE NERY, “Código de Processo Civil Comentado”, p. 709, 10ª ed., 2007, RT), cujo magistério – em lição plenamente aplicável ao caso ora em exame – assim analisa o princípio do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat”: “Transitada em julgado a sentença de mérito, as partes ficam impossibilitadas de alegar qualquer outra questão relacionada com a lide sobre a qual pesa a autoridade da coisa julgada. A norma reputa repelidas todas as alegações que as partes poderiam ter feito na petição inicial e contestação a respeito da lide e não o fizeram. Isto quer significar que não se admite a propositura de nova demanda para rediscutir a lide, com base em novas alegações. (grifo meu) Esse entendimento - que sustenta a extensão da autoridade da coisa julgada em sentido material tanto ao que foi efetivamente argüido quanto ao que poderia ter sido alegado, mas não o foi, desde que tais alegações e defesas se contenham no objeto do processo.. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, antes da mudança constitucional operada pela CF/88, que suprimiu a análise de relevância (argüição de relevância) de questão federal, formava entendimento no sentido de que a violação à coisa julgada por si só era tema que demonstrava sua relevância (ARRUDA ALVIM, 1999, p. 47). Logo, em nosso sentir, os argumentos de injustiça da decisão e da “excepcionalidade” com que se pretende – ao “prudente” arbítrio (tirano) do intérprete [discricionário e tirano, pois não seguem necessariamente as previsões do CPC 485, nem encontram qualquer prazo de encerramento e estabilização da situação jurídica e da prestação jurisdicional] – desconsiderar (rectius: violar) a coisa julgada (e não propriamente “relativizar”, haja vista que a mitigação legal da intangibilidade da coisa julgada já é feita pelo próprio ordenamento jurídico com a ação rescisória) não nos parecem corretos. As sociedades e o ordenamento jurídico convivem e sempre conviveram com possibilidade injustiça da decisão, procurando, em verdade, dotar o sistema de mecanismos para evitá-. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(10) 82. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. la (sistema recursal para impugnação das decisões), inclusive, após a formação da coisa julgada (ação rescisória), mas em um dado momento, a situação jurídica precisa consolidar-se, estabilizar-se, e isso se dá com o esgotamento do sistema recursal e o decurso do prazo decadencial da ação rescisória, quando tem lugar o fenômeno da coisa soberanamente julgada, não mais de podendo rescindir ou modificar a coisa julgada, seja qual for o motivo ou fundamento alegado pelo interessado, fazendo o Estado Democrático de Direito a opção política pela segurança jurídica coletiva, ainda que pontualmente possa haver uma decisão injusta. Essa conclusão não se altera pela discussão tecnológica que se trava na questão do exame de DNA (embora, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 363889, cujo voto do E. Min.-relator Dias Toffoli foi no sentido de dar-se provimento ao recurso, para relativizar-se a intangibilidade da coisa julgada, permitindo o andamento da nova ação de investigação de paternidade, a fim de que seja realizado o exame de DNA, o fundamento não é sequer a inexistência na época do exame de DNA, e, sim, o fato de a parte não ter podido custeá-lo nem o magistrado ter determinado ao Estado o ônus de suportá-lo). Como bem pontuado pelo Min. Aldir Passarinho, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2011: “Em nome da estabilidade jurídica, o Judiciário não deve rever suas decisões a cada inovação tecnológica”, opinião essa compartilhada pelo Min. Luis Felipe Salomão, em entrevista ao mesmo anuário: “Não se pode abrir mão da coisa julgada. Se permitirmos isso, a cada avanço tecnológico as decisões terão de ser revistas e a segurança jurídica, que é nosso maior patrimônio, deixa de existir” [há, inclusive, precedente do Min. João Otávio de Noronha decidindo nesse sentido (REsp 646.140), em que se consignou que “é inviável a reforma de decisão acobertada pelo manto da coisa julgada, ainda que tenha sido proferida com base em tecnologia já superada”. Avanços tecnológicos sempre existirão. Transformar a sociedade refém deles, de tal sorte que a cada avanço toda segurança jurídica cai por terra, com a desconsideração da coisa julgada, é incorrer no mesmo equívoco (tirânico, ainda que permeado de boas intenções) da idéia de injustiça da decisão para “relativizar” a coisa julgada. A evolução tecnológica sempre representará um problema pontual de um determinado período histórico, em que se adapta à nova tecnologia, não se justificando que se sacrifique um bem e uma necessidade maior – a segurança jurídica – a cada avanço, que será no futuro absorvido pela nova jurisprudência (também criticando a possibilidade de desconsiderarse a coisa julgada em razão do exame de DNA, cfr. NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2010, p. 719-720).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(11) Thiago Rodovalho dos Santos. 5.. 83. SUBPRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA: A CONFIANÇA DO PARTICULAR. O PROBLEMA DA SEGURANÇA JURÍDICA/CONFIANÇA DO PARTICULAR E A RACIONALIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS Outra faceta do princípio da segurança jurídica é a proteção da confiança legítima (Vertrauensschutz). Como pontua Almiro Couto e Silva, o princípio da segurança jurídica tem dois sentidos, um de natureza objetiva [consistente na proteção que expusemos nos itens anteriores (manifestando-se de diversas formas, como, por exemplo, na intangibilidade da coisa julgada, na proteção contra a irretroatividade das leis (proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito), na prescrição, na decadência, na usucapião, no caso administrativo decidido, certeza das normas, validez dos atos administrativos, autosujeição da Administração Pública aos requisitos de publicidade, princípio do juiz natural)], e outro de natureza subjetiva, consistente este justamente na proteção da confiança legítima do particular (COUTO E SILVA, 2005, p. 3-5). Nessa proteção da confiança legítima do particular dois pontos são nucleares: a idéia de (i) uniformidade; e de (ii) estabilidade da jurisprudência (CANOTILHO, 2003, p. 265). A idéia de certa uniformidade das decisões judiciais diz de perto com a necessidade de racionalidade do discurso jurídico e de respeito à autoridade. É evidente que não há direito à jurisprudência formada ou à manutenção da jurisprudência, tendo evidentemente o juiz a garantia inerente às suas funções de julgar de maneira livre, mas o particular tem também o direito a um ambiente de racionalidade jurídica, no qual ele pode desenvolver-se em plenitude. No âmbito do direito tributário, por exemplo, essa situação é de absoluta importância, pois os particulares realizam seu planejamento. tributário. levando. em. consideração. também. o. entendimento. jurisprudencial a respeito da matéria. Nesse contexto, a idéia de autoridade é extremamente necessária para resgatarmos a própria idéia de uma Corte Superior e dar à sociedade um sentimento de segurança e confiabilidade, bem como que cada cidadão possa esperar algo de suas contendas, posto que haveria no ordenamento uma certa previsibilidade [racionalidade do discurso jurídico] das decisões, não ficando ele refém daquilo que alguns doutrinadores, com muita propriedade, denominaram “loteria jurídica”. Tal situação compromete a própria credibilidade das Instituições que integram o Poder Judiciário, institucionalizando um caos “lotérico” de decisões, sem que nenhum cidadão saiba o que efetivamente esperar da Justiça. A racionalização do discurso jurídico é, portanto, em nosso sentir, também uma faceta da proteção da confiança legítima do particular. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(12) 84. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. E, nesse contexto, uma das funções dos Tribunais Superiores é justamente “uniformizar o entendimento da Constituição Federal (STF) e da lei federal no País (STJ e TST), toda decisão tomada pelas cortes superiores em casos individuais projetam o entendimento no tribunal, atuando como que paradigma para casos futuros e idênticos” (NERY JUNIOR, 2008, p. 78). Assim, as decisões dos Tribunais Superiores funcionam, pois, como “fator de implementação da paz social e como paradigmas jurisprudenciais ou decisões-quadro” (Id. ibid., p. 78-79). Neste diapasão, essas decisões paradigmáticas proferidas pelos Tribunais Superiores contribuem, justamente, para que o discurso jurídico se dê de forma mais racional, conferindo, pois, maior segurança jurídica aos jurisdicionados, que têm como saber o quê esperar do Judiciário [previsibilidade]. É preciso, portanto, compreender essa segurança jurídica como um valor mesmo, necessário à vida em sociedade e que precisa ser respeitado. A esse respeito, pontua Humberto Theodoro Júnior que: É essa tempestade de ventos e torrentes em entrechoque nas reformas constantes e profundas por que passa o direito positivo de nossos dias que nos convidam a meditar e ponderar sobre um princípio, um valor, um fundamento, do qual não se pode prescindir quando se intenta compreender a função primária da normatização jurídica. Trata-se da segurança jurídica, que nosso legislador constituinte originário colocou com uma das metas a ser atingida pelo Estado Democrático de Direito, ao lado de outros valores igualmente relevantes, como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça, todos eles guindados à categoria de ‘valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social’ (Preâmbulo da Constituição de 1988) (THEODORO JUNIOR, 2006, p. 36, grifo meu).. E isso é verdadeiro em nosso ordenamento jurídico posto que a segurança jurídica é um valor intrínseco, necessário e almejado em nossa Carta Magna, como um verdadeiro princípio basilar para a mantença da própria sociedade. Não se concebe um Estado Democrático de Direito sem que haja segurança jurídica (CF Preâmbulo e 1º.). É preciso que cada cidadão saiba, com precisão e clareza, o que pode e o que não pode fazer, podendo confiar na segurança jurídica dos precedentes, até como proteção à sua boa-fé objetiva (NERY JUNIOR, 2008, p. 82-90).5 É preciso haver proteção à boa-fé objetiva do cidadão que age confiando nas decisões reiteradas dos Tribunais Superiores. Daí podermos afirmar que se é preciso haver transparência e estabilidade nas leis, também é preciso haver transparência e estabilidade na interpretação dada a essas leis.. Neste sentido, determina a CF Suíça 9º. [“Art. 9. Protection contre l’arbitraire et protection de la bonne foi. Toute personne a le droit d’être traitée par les organes de l’Etat sans arbitraire et conformément aux règles de la bonne foi”] (NERY, 2008, p. 86). No nosso ordenamento jurídico, a boa-fé aplicada à Administração Pública (na qual também se insere, por óbvio, o Poder Judiciário) encontra-se positivada, especialmente, na CF 37 caput, e, ainda, na CF 5º. LXXIII e na LPA 2º. Par. ún. IV.. 5. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(13) Thiago Rodovalho dos Santos. 85. Se há instabilidade na interpretação, se ela é reduzida a uma verdadeira “loteria jurídica”, ficam os cidadãos relegados ao incognoscível, ao caos, sem saber, ou ao menos sem ter certeza, se a sua conduta é permitida ou não, o que se transforma em um fator de instabilidade social, que enfraquece o próprio Estado e a sociedade. A segurança jurídica é, de fato, um valor e, mais do que isso, é um valor que permite até mesmo a concretização dos demais valores constitucionais. Neste sentido, assim pontua Nelson Nery Junior (acerca da importância da segurança jurídica): Referimo-nos à boa-fé como manifestação clara dos princípios do Estado Democrático de Direito (CF 1º. caput), da segurança jurídica (CF 1º. caput; 5º. caput [“... direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade...”]; 5º. XXXVI [irretroatividade]), da legalidade e da moralidade administrativa (CF 37 caput) que, interpretados sistemática e finalisticamente, implicam a conclusão de que é direito fundamental de todos exigir que os poderes públicos, por meio de todos os órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em suas funções típicas e atípicas, ajam de conformidade com a segurança jurídica, da qual a boa-fé objetiva é instrumento de atuação.Trata-se, portanto, de direito fundamental previsto na CF brasileira (NERY JUNIOR, 2008, p. 87).. Deste modo, podemos observar, a toda evidência, tratar-se a segurança jurídica em um valor mesmo, com trato de direito fundamental, protegido pela Constituição Federal. É imperioso, pois, que haja certa previsibilidade e segurança jurídica nas decisões judiciais, como um direito fundamental do cidadão (CF Preâmbulo e 1º.). Disso decorre a busca por uma racionalização do discurso jurídico (a esse respeito, cfr. FERRAZ JUNIOR; MARANHÃO, 2007, p. 273-318; MARANHÃO, 2001, p. 103-115). Portanto, é fundamental haver preocupação em encontrar um certo padrão de racionalidade que torne o discurso jurídico, ou melhor, no presente estudo, as decisões judiciais harmônicas, com um certo grau de previsibilidade e segurança jurídica, que permitam ao cidadão saber o que pode ou não fazer. Há, assim, um dever do magistrado e um direito fundamental do cidadão que este mesmo discurso jurídico se apresente de forma racional, traduzindo-lhe segurança jurídica. O juiz não é, portanto, completamente livre; “o juiz não escolhe entre muitas possíveis decisões, senão que encontra dentro da moldura da lei, a única decisão correta” (ARRUDA ALVIM, 2005, p. 70). Deste modo, ao juiz não é dado um poder supremo e ilimitado de decidir sem qualquer parâmetro mínimo em seu discurso jurídico; ao revés, deve, por óbvio, decidir conforme seu livre convencimento, mas dentro e a partir do ordenamento jurídico, o que implica dizer dentro e a partir do padrão de racionalidade que é dado ao discurso jurídico.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(14) 86. Coisa julgada, boa fé do particular e segurança jurídica. Ademais, tais situações contribuem para o caos decorrente da insegurança jurídica que elas trazem, deixando o cidadão sem saber se sua conduta é juridicamente permitida ou não, sem saber o que esperar do Judiciário. A esse respeito, há muito já constatava Hannah Arendt, ao dissertar sobre o que é a Autoridade: Para evitar mal-entendidos, teria sido muito mais prudente indagar no título: O que foi — e não o que é — autoridade? Pois meu argumento é que somos tentados e autorizados a levantar essa questão por ter a autoridade desaparecido do mundo moderno. Uma vez que não mais podemos recorrer a experiências autênticas e incontestes comuns a todos, o próprio termo tornou-se enevoado por controvérsia e confusão. (ARENDT, 2007, p. 127).. E, a esse respeito, como pontua Nelson Nery Junior: A jurisprudência, principalmente a dos tribunais superiores, traz aos jurisdicionados determinados vínculos, não por conta do efeito vinculante das súmulas do STF editadas com base na CF 103 – A, mas pela autoridade dos tribunais e o respeito que todos lhes devem (NERY JUNIOR, 2008, p. 80, grifo meu).. Logo, o ordenamento jurídico confere ao particular também proteção constitucional relativamente aos atos jurisdicionais, em nome da segurança jurídica. E essa proteção, como vimos expondo, manifesta-se essencialmente de duas formas: (i) na racionalidade do discurso jurídico; e (ii) na proteção da confiança legítima do particular em caso de mudança de entendimento jurisprudencial consolidado das Cortes Superiores. Como consigna Landelino Alsina, os particulares “deben estar en condiciones de prever los términos en que será aplicado el Derecho por los poderes públicos, lo que significa que debe haber una «expectativa razonablemente fundada del ciudadano en cuál ha de ser la actuación del poder en aplicación del Derecho»” (ALSINA, 1999, p. 13). Nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho pontua que: Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos Tribunais. É uma dimensão irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes decidirem, nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade. A bondade da decisão pode ser discutida pelos tribunais superiores que, inclusivamente, a poderão «revogar» ou «anular», mas o juiz é, nos feitos submetidos a julgamento, autonomamente responsável. (CANOTILHO, 2003, p. 265).. Deste modo, à guisa de conclusão, temos que, na proteção da confiança legítima do particular, como faceta subjetiva do princípio da segurança jurídica, deve haver racionalidade do discurso jurídico, e, em caso de mudança de entendimento jurisprudencial consolidado das Cortes Superiores, respeito a essa confiança legítima do particular, que. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

(15) Thiago Rodovalho dos Santos. 87. creu na orientação jurisprudencial uniforme ou ao menos estável dos Tribunais e agiu de acordo com ela, não se lhe prejudicando esses atos pretéritos praticados em consonância com essa orientação jurisprudencial agora alterada.. 6.. CONCLUSÃO Neste breve estudo, procuramos demonstrar as razões pelas quais, em nosso sentir, o respeito à garantia constitucional da segurança jurídica se apresenta como necessário. Sem a segurança jurídica, não há verdadeiramente Estado Democrático de Direito. O princípio da segurança jurídica tem dois sentidos, um de natureza objetiva [manifestando-se de diversas formas, como, por exemplo, na intangibilidade da coisa julgada, na proteção contra a irretroatividade das leis (proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito), na prescrição, na decadência, na usucapião, no caso administrativo decidido, certeza das normas, validez dos atos administrativos, auto-sujeição da Administração Pública aos requisitos de publicidade, princípio do juiz natural], e outro de natureza subjetiva, consistente este justamente na proteção da confiança legítima do particular Entre as manifestações do princípio da segurança jurídica, a coisa julgada é, indubitavelmente, sua maior expressão, podendo-se afirmar que, sem ela, inexiste segurança jurídica nem Estado Democrático de Direito. No tocante à faceta subjetiva do princípio da segurança jurídica, o particular tem direito a uma racionalização do discurso jurídico, sob pena de o cidadão não poder contar com a própria segurança jurídica, bem como, em caso de mudança de entendimento jurisprudencial consolidado das Cortes Superiores, respeito a essa confiança legítima do particular, que creu na orientação jurisprudencial uniforme ou ao menos estável dos Tribunais e agiu de acordo com ela, não se lhe prejudicando esses atos pretéritos praticados em consonância com essa orientação jurisprudencial agora alterada.. REFERÊNCIAS ALSINA, Landelino Lavilla. Seguridad juridica y funcion del derecho (discurso leido el dia 8 de febrero de 1999 en su recepción publica como academico de numero, por el Excmo. Sr. D. Landelino Lavilla Alsina y contestacion del Excmo. Sr. D. Eduardo García de Enterría y Martinez-Carande). Madrid: Real Academia de Jurisprudencia y Legislacion, 1999. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. 348 p.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 73-89.

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