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Figuras do lugar, do nome e da letra na escrita de Antonin Artaud

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ARNALDO RODRIGUES BEZERRA FILHO

FIGURAS DO LUGAR, DO NOME E DA LETRA

NA ESCRITA DE ANTONIN ARTAUD

NATAL/RN

2018

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FIGURAS DO LUGAR, DO NOME E DA LETRA

NA ESCRITA DE ANTONIN ARTAUD

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – PPGEL, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Doutor.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa

NATAL/RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Bezerra Filho, Arnaldo Rodrigues.

Figuras do lugar, do nome e da letra na escrita de Antonin Artaud / Arnaldo Rodrigues Bezerra Filho. - Natal, 2018.

141f.: il.

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências humanas, Letras e Artes, Pós-graduação em Estudos da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa.

1. Artaud - Tese. 2. Língua - Escrita bruta - Tese. 3. Análise do Discurso - Psicanálise. I. Barbosa, Márcio Venício. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'42

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Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa – Orientador e Presidente da Banca

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas – Externo ao Programa

Prof. Dr. Djason Barbosa da Cunha – Externo à Instituição

Prof. Dr. Fagner Torres de França – Externo ao Programa

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Ao amado pai,

Arnaldo Rodrigues Bezerra

(In memoriam),

com quem aprendi o valor da amizade,

simplicidade e liberdade no encanto da

vida.

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Ao Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa, meu orientador, pelo acolhimento e pela sensível e valiosa escuta. Suas pontuações e ensinamentos me animaram no trânsito livre pelo intertexto. Aos meus amados filhos, Cristiano, Cíntia, Arnaldo Neto e Thiago. Vosso carinho e confiança me fortalecem e me entusiasmam na lide face aos desafios da vida.

À Diana, minha primeira netinha, que está vindo ejá irradia luz em nossas vidas.

À minha querida mãe, Maria Nazaré,exemplo de educadora infantil, pelo zelo, pelos ternos cuidados e motivações constantes.

À minha esposa Karenina, pelo amor e dedicação ao longo dessa instigante jornada.

Às minhas irmãs e amigo(a)s, pelo incentivo e afetos, que muito me estimularamnessa pesquisa.

Aos Mestres e pacientes que sempre me ensinam e encorajam a procurar ver e escutar o que resiste à claridade e insiste no silêncio.

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Sabemos o quanto é conhecida a posição crítica e insurgente do poeta e dramaturgo Antonin Artaud (1896 – 1948) em face da linguagem canônica, sobretudo desde o período quando foi membro do movimento artístico surrealista, entre 1924 e 1926, o qual buscavase libertar das amarras do racionalismo ocidental. Seus integrantes em suas criações bordejavam a loucura atraídos pelo fascínio do imaginário. Esta pesquisa procurou visualizar a escrita de Artaud sem lhe dar um estatuto de mais um estudo de caso clínico, mas o de um sujeito que apesar do sofrimento da psicose, expressou-se pela arte, especialmente literária e teatral, também como meio de preservar sua existência, de sobrexistir. Portanto, observamos a escrita feita pelo ente e não apenas pelo doente. Para isso, cotejamos a escrita tradicional e a escrita psicótica (bruta), rastreando-se, entre elas, elementos comuns e diferenciais sem a adoção da teoria a priori. Desse modo, à luz de uma análise crítica intertextual, tivemos como balizas teóricas: do lado da psicanálise, os trabalhos de Sigmund Freud e Jacques Lacan; da Análise do Discurso (AD), sobretudo o enfoque de Dominique Maingueneau; entre estudiosos de Artaud, os filósofos Gilles Deleuze e Jacques Derrida, o psicanalista Félix Guattari, a filósofa e psicanalista Julia Kristeva, o literato e filósofo Maurice Blanchot, além de vários outros estudos. Delimitamos o corpus com importantes escritos de Artaud, e a correspondência com seu médico Gaston Ferdière e outros,sobretudo durante a internação asilar em Rodez, na França, entre 1943 e 1946. Verificamos que Artaud transforma a sintaxe e a semântica convencionais da língua materna com as glossolalias e um discurso que chega ao limiar do sentido, e mesmo ao nonsense. Alçou sua escrita singular ao multiverso da arte performática. Inscreveu-se no meio literário e teatral com o estilo de uma poética sonora cuja eficácia o fez adentrar o mundo simbólico, e, por outro lado, constatamos a importância da pesquisa multidisciplinar - sobretudo entre os saberes acima citados - referente à escrita de Artaud situada na interface da psicose e da arte.

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On sait combien la position critique et insurgée du poète et dramaturge Antonin Artaud (1896-1948) est connue face au langage canonique, surtout depuis l'époque où il était membre du mouvement artistique surréaliste entre 1924 et 1926, qui cherchait à se libérer de liens du rationalisme occidental. Ses membres dans leurs créations ont frôlé la folie attirée par la fascination de l'imaginaire. Nous avons cherché à voir l'écriture d'Artaud sans l’a situécomme un modèle d'une étude de cas clinique, mais venant d’un sujet qui, malgré la souffrance de la psychose, exprimée à travers l'art, en particulier littéraire et théâtral, aussi comme un moyen de préserver leur existence, de surexister. Par conséquent, nous observons l'écriture faite par l'être et pas seulement par le patient. Pour cela, nous comparons l'écriture traditionnelle et l'écriture psychotique (brute), traçant, parmi eux, des éléments communs et différentiels sans l'adoption d'une théorie a priori. Ainsi, à la lumière d'une analyse critique intertextuelle, nous avions comme référentiel théorique: du côté de la psychanalyse, les travaux de Sigmund Freud et de Jacques Lacan; d'analyse du discours (AD), en particulier l'approche de Dominique Maingueneau; parmi les chercheurs d'Artaud, les philosophes Gilles Deleuze et Jacques Derrida, le psychanalyste Félix Guattari, le philosophe et psychanalyste Julia Kristeva, l'écrivain et philosophe Maurice Blanchot, en plus de plusieurs autres études. Nous avons délimitécomme le

corpus avec des écrits importants d'Artaud, et la correspondance avec votre médecin Gaston Ferdière

et d'autres, en particulier pendant l'hospitalisation à Rodez, en France, entre 1943 et 1946. Nous avons constaté que Artaud transforme la syntaxe et la sémantique de la languematernelleavec des glossolalies et un discours qui atteint le seuil de la signification, et même un nonsense. Il a élevé son écriture singulière au multivers de l'art performatif. Il entra dans le milieu littéraire et théâtral avec le style d'une poétique sonore dont l'efficacité le fit pénétrer dans le monde symbolique et, d'autre part, on voit l'importance de la recherche pluridisciplinaire - notamment parmi les savoirs mentionné ci-dessus - en référence à l'écriture d'Artaud. dans l'interface de la psychose et de l'art.

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We know how much the critical and insurgent position of the poet and dramaturge Antonin Artaud (1896-1948) is known in the face of canonical language, especially since the period when he was a member of the surrealist artistic movement between 1924 and 1926, which sought to free himself from ties of occidental rationalism.Its members in their creations bordered on madness attracted by the fascination of the imaginary. This research sought to visualize the writing of Artaud without giving it a status of another clinical case study, but that of a subject who despite the suffering of psychosis, expressed himself by art, especially literary and theatrical, also as a means of preserving his existence, of overexing. Therefore, we observe the writing made by the being and not only by the patient. For this, we compare traditional writing and psychotic writing (outsider), tracing between them common and differential elements without the adoption of a priori theory. Thus, with the light of an intertextual critical analysis, we had as theoretical goals: on the side of psychoanalysis, the works of Sigmund Freud and Jacques Lacan; of Discourse Analysis (AD), especially Dominique Maingueneau'sapproach; among the scholars of Artaud, the philosophers Gilles Deleuze and Jacques Derrida, the psychoanalyst Felix Guattari, the philosopher and psychoanalyst Julia Kristeva, the literary and philosopher Maurice Blanchot, and several other studies. We delimit the corpus with important writings of Artaud and correspondence with his doctor Gaston Ferdière and others, especially during the asylum in Rodez, in France, between 1943 and 1946.We find that Artaud transforms the conventional syntax and semantics of the mother tongue with glossolalia and a discourse that reaches the threshold of meaning, and even nonsense.He raised his singular writing to the multiverse of the performance art. He entered the literary and theatrical milieu with the style of a sound poetics whose effectiveness made him enter the symbolic world, and, on the other hand, we see the importance of multidisciplinary research - especially among the aforementioned knowledges - referring to Artaud's writing in the interface of psychosis and art.

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1 INTRODUÇÃO... 08

2 FIGURAS DO LUGAR para uma escrita bruta... 22

3 FIGURAS DO NOMEpara um sujeito em processo... 59

4 CRÍTICA E CLÍNICA DO ESCRITO: para além do sintoma... 93

5 PARA (NÃO) CONCLUIRquanto a uma estética de sobrexistência... 122

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1 INTRODUÇÃO

“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor, e quero que eles sejam ouvidos” (Antonin Artaud).

Antonin Artaud (1896-1948) foi um insurgente participante do movimento surrealista entre 1924 e 1926.Encontra, nesse espaço, a chance de dar vazão à contestação ao padrão artístico vigente: literário, teatral, cinematográfico, e também pictórico.Não apenas como uma ação de rebeldia sociopolítica mas também como protagonista de um projeto de vida que se confundirá com a essência e o valor de sua própria existência. De fato, viveu a poesia em ato!

Inconformou-se com o cenário tradicional da arte em geral onde o ato e a fala fazem sentido per se; seguiu um desejo que não se continha na satisfação do visível, do que estava à mão, porém do que tinha a substância de verdades que lhe eram caras apesar de angustiá-lo; iludiu-se ao achar que,numa comunidade vista como revolucionária,teria a grande chance de executar um extraordinário projeto artístico, apesar de esse lugar haver sido pautado pela linguagem do inconsciente descoberta pela psicanálise.

Vejamos, então, o que diz André Breton, poeta e psiquiatra francês, no “Manifesto do Surrealismo” lançado em Paris em 1924,o qual foi o marco inicial do movimento:

Vivemos, ainda, sob o reinado da Lógica(...). O racionalismo absoluto, ainda em moda, não nos permite considerar senão fatos estreitamente relacionados com a nossa experiência, [esta] passou a ter seus limites estabelecidos, [está presa] (...) e se funda na utilidade imediata, e é guardada pelo senso comum. [A pretexto] da civilização e do progresso, chegou-se a banir do espírito tudo que com razão ou sem ela, pode ser taxado de superstição ou de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade que não se conforme ao uso geral (BRETON, 1924/2001, p. 23).

Notamos, portanto, no Manifesto, uma veemente crítica ao domínio da razão absoluta no modo de vida social, em detrimento da fertilidade imaginativa do sujeito; a sociedade, por meio dos educadores, se encarregaria de reprimir desde a infância o potencial criativo a favor de valores utilitaristas. A imaginação alcança um estatuto privilegiado na criação surrealista; uma experiência apaixonante e livre que não se deixaria frear pelo medo do imaginário social da loucura.

É evidente o fascínio que exerceu a psicanálise na construção do surrealismo; a revelação freudiana do inconsciente com uma linguagem que mostrava o recôndito e

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verdadeiro desejo do sujeito, o modus operandi do psicanalista que trazia à tona, por meio da associação livre, aquilo que surpreendia os hábitos e costumes sociais tão contidos pelos preconceitos da novidade. Na prática psicanalítica,o paciente se emancipa do padrão normativo social e dá vazão ao discurso sem o crivo da censura moral. Essa forma de livre expressão encontrou, no surrealismo, a chance de se realizar em ato social, de fazer emergir na arte a privacidade oculta do ser falante.

O que importava mesmo era seguir o veio da imaginação tal como nos aparece no sonho, principal caminho para o inconsciente como nos ensinou Freud.Inspirado por ele mas por outra via, a da poíesis, o sonho pelo seu encanto quase que hipnotizou Breton (1924/2001, p. 25; 28) que chegou a priorizar o sono mais do que a vigília na produção do “(...) maravilhoso [que] é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Compartilha com Freud a ideia de que, no sonho, o homem se satisfaz plenamente, o que é impossível de ocorrer na realidade repressora; entretanto crê na “resolução” desses dois estados, real e onírico, questionando seus limites, com uma “(...) espécie de realidade absoluta, de sobre-realidade, se é lícito chamá-la assim”.

A atração de Artaud pelo imaginário foi registrada na pesquisa de França (2018)sobre a relação de suas criações com o cinema. Destaca a influência da psicanálise que põe à mostra o cenário onírico cuja plasticidade imagética dizem das verdades da alma. Além disso, refere-se à realidade colocando no centro o corpo que, refere-segundo a concepção artaudiana, refere-sempre precisa ser refeito e reorganizado diante dos imperiosos sistemas racionais dominantes na sociedade.

Ao realizar, então, um movimento artístico com a participação de vários membros que adotavam uma prática, inclusive de vida, pode-se dizer, segundo suas “fantasias”, que seguiam o fio de seus desejos e da criatividade; pareciam que monologavam juntos,e dentre os quais, Artaud.Entretanto, foi a Philippe Soupault que Breton comunicou seus primeiros escritos [nesse] “(...) novo modo de expressão pura”, designado por eles de “SURREALISMO” (BRETON, 1924/2001, p. 32; 37;39).

Este se caracterizava pelo:

(...) Automatismo psíquico puro mediante o qual se propõe exprimir, seja verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral (BRETON, 1924-2001, p. 40).

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Com essa determinação, punham em questão o sujeito do discurso racional; procuravam mais uma linguagem própria e autônoma, desligada do seu escopo tradicional de representação da realidade, da universalidade linguística. A palavra deveria dizer das verdades dos sujeitosalém ou aquém do que eles transpareciam socialmente; a significação do discurso não importava na escrita automática.

A linguagem tornar-se-ia uma realidade substancial e a palavra uma espécie de baliza com força e valor de atingir um grau absoluto de criatividade pelo sujeito imerso num certo ocultismo imaginário, mesmo profundamente destoante do que era dado pelas circunstâncias literárias canônicas.

É enfática e significativa a afirmação de Blanchot (2011, p. 99; 100; 101)quanto à escrita surrealista:

As palavras são livres e talvez possam nos libertar: basta que as sigamos, que nos abandonemos a elas, colocar à sua disposição todos os recursos da invenção e da memória; (...) somos dotados, até certo grau, da palavra e que, por ela, algo de grande e obscuro tende a se expressar imperiosamente através de nós (...). Daí a prioridade do imaginário, o apelo ao maravilhoso, a invocação ao surreal. A poesia e a vida estão ‘alhures’, (...) mas ‘alhures’ não designa uma região espiritual ou temporal: alhures é lugar nenhum; não é o além; significa que a existência

nunca está ali onde está (grifos nossos).

Vemos, nessa citação, além do sentido de liberdade da palavra, a estreita ligação entre a poesia e a vida, e o lugar onde se encontram que não se designa como espaço físico temporal – é um “lugar nenhum” e está “alhures”-; pode-se concebê-lo como um lugar de produção surrealista figurado como se fossem “(...) receptáculos surdos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se deixam hipnotizar pelos desenhos que produzem (...)” (BRETON, 1924/2001, p. 42; 43). Em consequência, o que se produziria nesse lugar não deveria se fixar, escaparia à nomeação, todavia seriam como figuras predispostas a obtê-la. Seria da natureza de uma produção desejante mutante na qual o autor aparece ao mesmo tempo que esvaece. A esse respeito, Artaud (2006, p. 06) conheceu uma cultura mexicana e lá observou que os nativos não apenas contemplam as formas, mas também com elas se imiscuem através de uma “identificação mágica”.

O liame diferencial que faz a ponte entre as criações surrealistas e psicóticas, no que diz respeito à forma, é, muitas vezes, tênue, basta ver uma tela de Salvador Dali e outra pintada por um paciente psicótico daqui mesmo, no nosso meio sociocultural, sem nenhuma projeção social, sem nenhum reconhecimento no âmbito artístico. Entretanto, muitos conseguem chegar aí; entre nós queremos ressaltar as artes pictóricas, plásticas e linguageiras, dos pacientes psicóticosassistidos pela psiquiatra e psicanalista Nise da Silveira

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(1905-1999),criadora do Museu de Imagens do Inconsciente1. Sua postura ética diante de um sujeito psicótico lhe deu a oportunidade de ser visto e escutado numa condição de ente e não apenas de doente.

Nesse contexto da arte bruta2,destacamos a produção do renomado artista, Arthur Bispo do Rosário, diagnosticado como esquizofrênico paranoide e internado na Colônia [psiquiátrica] Juliano Moreira por 50 anos. Ele criou com pinturas, esculturas, colagens, bordados, usando uma diversidade de material; trabalhos que consistiram,além da arte figurativa,uma linguagem própria, na escritura de um texto que revelava o enfrentamento, não apenas da psicose da qual sofria mas também da vida em geral, como sujeito e artista.

Dantas (2009, p. 126-128), reportando-se a Bispo afirma que “se do ponto de vista do discurso médico e/ou psicanalítico a ‘subversão’ da linguagem pode ser um sintoma de morbidez, nada impede que, do ponto de vista estético, ela seja considerada original”. Inclusive observa a analogia dos processos criativos do poeta e daquele tido como louco; afirma que “ a noção de ‘escrito bruto’ não sugere espontaneidade, falta de elaboração ou de sentido mas (...) uma nova atitude frente ao código, nova maneira de tratar a língua, [uma] nova escritura, capaz de subverter os aspectos úteis e bem fixados pela linguagem”.

Esta põe em questão a relação do eu com a realidade, dá ênfase e leva seriamente em conta a diferença entre o eu falante que reflete o olhar do outro no social e o recôndito eu, mais verdadeiro, cujo discurso está situado no registro inconsciente do sujeito - mais próximo do discurso surrealista. A autora citada logo acima sublinha a marca da escrita bruta como sendo “uma nova escritura”, portanto, como se instaurasse um novo código linguístico. Visto desse modo, o discurso psicótico que é uma forma de escrita bruta, se apartaria do contexto puramente clínico e conformaria um outro balizado por uma estética ímpar calcada mais no desejo inconsciente do sujeito, e até mais Realista – com maíscula para diferenciar da realidade comum; esse Real seria um registro do que se apresenta exterior à linguagem.

“O [R]eal, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só existe um lugar-tenente [representante]”, disse Lacan (1964-1985, p. 61), denotando a nosso ver uma proximidade da inscrição onírica imaginária, inconsciente, com o Real que não se inscreve.

E assim parece ter feito Artaud em sua escritura; vai da palavra significada e delirante à sonoridade da letra, versando uma poesia que não se pretendia ser espelho de nenhuma

1 Ver: FRAYSE-PEREIRA, J. A. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política.

Estudos Avançados, SP, ISSN 1806-9592, (17): 49, p. 1-9, 2003.

2 Termo cunhado pelo pintor francês Jean Dubuffet para nomear a arte criada por pacientes psiquiátricos e outros

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realidade.Em suma, a falta de sentido, o irrepresentável, o inefável, enfim, são termos que procuram fazer aparecer e figurar o Real; que é, diga-se de passagem, como veremos depois nesta pesquisa, uma das facetas da letra, das letras, das lettres3 escritas por Artaud surRealista.

Ele nos provocou com o modo peculiar de sua criação artística, especialmente quando a realizou ao mesmo tempoque sofria de uma psicose. Um cenário existencial que terminou sendo o motivo maior do presente estudo. Inspirou-nos interrogações sobre a especificidade de suas produções artísticas. Aqui sobrelevo o fato de ele ter sido diagnosticado como psicótico pela psiquiatria e continuar criando até o fim de uma vida; resistiu o quanto pode à paralisia de um aprisionado nas amarras da loucura, submetido a repressões e eletrochoques.

Assim, sem a trégua da rejeição social e institucional foi internado por longos nove anos em vários hospícios, inclusive sofrendo a miséria asilar durante a França ocupada pelo horror nazista, contudo manteve o pensar poético vivo, uma escrita que o ajudou a sobrexistir, a chegar a um ponto inatingível de sua existência sob o preço de uma imensa solidão!

O desafio para compreender, visualizar, ou simplesmente pensar Artaud, permanece. Desde sempre e depois cremos que foram, são e serão incontáveis os estudos, as pesquisas, e mesmo as teorias que se propuseram e se propõem a compreendê-lo, interpretá-lo em sintonia com os saberes canônicos. Não é bem o que pretendemos fazer com o presente trabalho, por isso, mais do que explicar o perfil de um artista, literato e dramaturgo, entrelaçado no seu desejo com a estrutura psicótica, buscamos figurá-lo em questões pertinentes, a nosso ver, ao escopo de sua produção desejante. E, nesse trabalho, observaremos o que resultará da leitura intertextual dos discursos teórico-literário, filosófico e psicanalítico, cujas referências autorais que nortearão nosso périplo, citaremos mais adiante.

Interessa-nos, sobremaneira, pôr, em primeiro plano da nossa pesquisa, o sujeito-artista, cuja criação é também composta pelos sintomas psicóticos, tais como o delírio e neologismos (sob a forma de glossolalias).Sondaremos a eficácia da escrita na preservação do sujeito criativodiante da possível derrocada na loucura estéril, o que implica indagar sobre a função da escrita na (re)inscrição social do sujeito psicótico.

A seguir, dividimos nossa pesquisa em partes começando com as Figuras4do

Lugarpara uma escrita bruta5, que intitula o Capítulo 2, não sem antes assinalar ao modo

3Cartas em francês, para destacar a homofonia entre letras e lettres.

4 Usamos esse termo no sentido da significância, e sobretudo no que é dado por BARTHES (2003): “As figuras

se destacam segundo possamos reconhecer, no discurso que está passando, alguma coisa que foi lida, ouvida, experimentada” (p. XVIII); com Barthes, entendemos então que a figura é como um signo, uma imagem ou um conto. Auerbach (1997, p. 9; 11; 79) diz que “(...) a interpretação figural (...) está fundada numa alegoria, mas

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de epígrafe o que disse Breton (1924-2014, p. 64), no final do Manifesto: “(...) Viver e deixar de viver é que são soluções imaginárias, a existência está em outra[o]parte[lugar]”.

No percurso de Artaud, observamos o quanto foi difícil para ele encontrar um espaço onde pudesse inscrever sua arte. É evidente que a posição duramente crítica que adotou em frente dos padrões estabelecidos, artísticos e sociais em geral, deixou-o muito solitário apesar de ter encontrado,por dois anos,guarida no surrealismo. A exclusão desse movimento e, depois, os sucessivos internamentos em hospitais psiquiátricos intensificaram o sentimento de isolamento de seus pares, da vida em comunidade. Entretanto isso não foi suficiente para impedir sua luta pelo reconhecimento de suas criações por mais estranhas que pudessem parecer, sobretudo quando vistas com preconceito; este o acometia duplamente; de um lado, por sua contraposição diante do que se lhe apresentava como arte tradicional; de outro, pela condição de paciente mental.

Ele incorporava esses traços em seu perfil identitário, foi um resistente à submissão, à inércia; quando esteve internado no asilo de Rodez, região de Aveyron na França, entre 1943 e 1946,não cessou de escrever, principalmente cartas. Dirigiu um bom número - em torno de 51-ao seu médico Gaston Ferdière, e isso chamou nossa atenção, pois,certamente,tinha chance de falar com elemas,curiosamente,optava, muitas vezes, pela escrita. À parte o hábito de se escrever cartas à época, esse aspecto se torna relevante porque cremos que, pela escrita, o poeta podia se mostrar com mais liberdade interior, visto que, provavelmente, o fazia sem a incidência do olhar do outro sobre si. Este outro estaria provavelmente num espaço imaginário, podendo, consequentemente, ser ele mesmo, outros personagens e até ninguém, como se passa, a título de ilustração, na situação do diálogo psicanalítico; poderia ser um Outro, lugar da linguagem.

Imaginemos Artaud escrevendo essas cartas num espaço inóspito de um hospício durante o período da França ocupada pelo nazismo, e consideremos que, ao escrever, ele se deslocava para outra zona, a do discurso, no qual transitava livremente, testemunhando a realidade mas ao mesmo tempo sentindo, vivenciando e inventando outras de cenários familiares e estranhos, com letras, palavras e frases que,em geral,só cabiam no seu multiverso.

difere da maioria das formas conhecidas de alegorização em virtude do caráter histórico dos seus termos”. Para ele, esse método estabelece uma relação entre acontecimentos históricos, ambos significativos em si mesmos e complementares um do outro. E, ao modo de conclusão, afirma que “(...) uma palavra pode evoluir dentro de uma situação histórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivas durante muitos séculos”.

5 “Por analogia à noção de arte bruta, inventada por Jean Dubuffet, [Michel Thévoz, em seu trabalho Le langage de la rupture de 1978], propõe a de ‘escritos brutos’ para designar a produção de textos que escapam à tradição

literária” (DANTAS, 2009, p. 124). São escritos que subvertem a significação e função convencionais da linguagem; anulam o sentido, alteram a sintaxe, rompem com a semântica. Incluímos o discurso psicótico nessa forma escritural, principalmente quando nele observamos o delírio, os neologismos e as glossolalias.

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Ele escrevia para um alocutário bem identificado civilmente, um médico por quem sentia amor e ódio e que, quando nele via evidências de delírios, lhe prescreviaeletrochoques. Apesar do endereço certo, suas cartas pareciam visar outro horizonte, um outro lugar. O médico seria apenas um intermediário, umaentre muitas âncoras necessárias à consecução do desejo de se fazer ouvir, ou, pelo menos, de fazer ressoar um discurso feito à revelia de quaisquer bússolas.

Havia de encontrar um lugar diferente do espaço físico onde tinham-no posto, um lugar que não impedisse a estranha configuração de sua escrita. Esse lugar parecia ser ficcional mas ele o experimentava como real; nele, aparecia como ser mutante, aberto ao mundo sem nada dele esperar e reter, gerando mutações no pensar e agir do outro, de outrem, de ninguém; como se fosse um eterno passageiro que não deixa sua marca por onde passa mas que todavia, passa.

Atuava em algum cenário existencial como

(...) quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – então percebeu o seu mistério. (...) [E] só uma pessoa muito delicada [que] pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca (LISPECTOR, 1978-1992, p. 07-08).

Além da beleza poética dessa passagem clariceana, tocou-nos uma mensagem que referimos à posição subjetiva de Artaud em seu processo criativo. É como se ele fizesse um apelo ao outro para esquecer de si ao escutá-lo em suas produções desejantes, e, ao mesmo tempo, vendo-o através dele, sem nomeá-lo em algum padrão identitário subjetivo e social; vendo-o como se fosse um personagem virtual, ocupando um lugar-fonte de permanente criação.

Investigaremos no Capítulo 3, com as Figuras do Nome para um sujeitoem processo6,essa fronteira entre a autoria da escrita poética, e a que se forma sob a intromissão da psicose por onde transita Artaud e suas mutações identitárias imaginárias.

Artaud, durante um período de sua escrita, assinou as cartas usando o sobrenome de sua mãe ainda solteira, Nalpas. A partir de 17 de setembro de 1943, subscreve a carta endereçada a Ferdière com o sobrenome paterno, Artaud. Isso nos conduz a fazer uma análise mais apurada do lugar e da importância que ocupa o nome na constituição de sua identidade, não especificamente no sentido da resultante de um processo de cura clínica, mas também de

6 Expressão de KRISTEVA (1977, p. 55), que, ao nosso ver, situa bem Artaud em seu modo singular de

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um reposicionamento subjetivo referente às suas produções e a relação com o outro, com a realidade externa.

Artaud se tornou um sujeito estruturado segundo a função paterna, ou seja, a incidência do significante Nome-do-Pai como teoriza a psicanálise lacaniana, ou continuou um sujeito em processo, criando apesar do e com o sofrimento da psicose? Essa é uma pergunta que nos conduz a examinar de modo acurado a nomeação do sujeito como autor quando se aparta da realidade social comum.

É durante sua internação no asilo de Rodez que ele recupera seu nome, acolhe o Nome-do-Pai que, segundo a concepção de Lacan (1966, p. 575), seria o significante “foracluído”, isto é, radicalmente rejeitado e que ensejaria a constituição da estrutura psicótica no sujeito e as consequentes singulares formações linguageiras - a propósito, há de se notar o que disse Artaud em relação ao pai: “vivi até os 27 anos, com o ódio ao meu pai, meu pai particular. Até o dia em que assisti sua morte” (BEDERE, 2007, p. 22).

A importância e função da escrita, nesse processo de reencontro com o nome próprio, foi tema de uma pesquisa feita por Bedere (2007, p. 9 – 34). Traz-nos o percurso de Artaud durante o período dramático em Rodez e depois dele, no qual atravessa seu confronto com a língua materna – de “(...) origens Legendárias, Místicas e sagradas (...)” (ARTAUD, 1977, p. 60) – aponto de subvertê-la. A assinatura Nalpas (sobrenome materno) indicaria, segundo a psicanálise, algum grave conflito com a figura materna e, anosso ver, em decorrência disso a língua materna seria inconscientemente questionada, e de certo modo o levaria a falar em outra “língua” de forma psicótica em meio a personagens e situações imaginárias no intuito certamente de ter uma chance de ser escutado, lido. Assim, não se deixava morrer existencialmente. Apesar de ter dito o contrário a Ferdière na primeira carta quando recupera seu nome próprio; delirando, acreditava que tinha sido envenenado e assassinado pelas polícias inglesa e francesa e outros; contudo, desacreditado em sua consciência, revela o quanto se sentia feliz em se reconhecer um escritor, não mais do que isso (ARTAUD, 1977, p. 61).

O capítulo 4, denominamos de Crítica e Clínica do Escrito - para além do sintoma,

apropriando-nos desse modo, com a máxima vênia, dos títulos doslivros de Allouch (2007, p. 9-20) e Deleuze (1997).

Com base especialmente no primeiro deles, referimo-nos ao escrito a tudo o que o sujeito produz em sua experiência subjetiva e dispõe à leitura do outro; do puro som vocal,

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passando pela letra (a)significante até a palavra. Para ele, principalmente na situação psicanalítica, que abriu uma nova forma de acesso e de interrogar o dizer do outro, inclusive do psicótico; para nós, além dessa situação, atentamos nosso olhar para a do campo literário circunscrito, principalmente, às missivas artaudianas.

Nestas, procuramos fazer uma “transleitura”, seguindo Paes (2008, p. 5-6), pela qual se procura ler o discurso de Artaud notando o que surge, ou o que se imagina que surge através e até além ou aquém do estilo literário tradicional, a criação do multiverso, do (a)verso, avesso do que se forma com sentido mas que é sentido. Já não seria apenas o sentido que contaria, mas o que estaria além ou aquém dele, com ele. “Afinal, como diz Tin (2011), pode-se estender também à correspondência aquilo que Lobato afirmou, em carta a Cesídio Ambrogi, sobre os livros: ´As coisas mais belas que um leitor encontra num livro não são o que pomos nele – são o que está dentro do leitor e nós apenas sugerimos`”.

Interessante reflexão que nos faz pensar e discutir a relação entre epístola e transferência psicanalítica, entre leitor e autor.Ambos se implicam com seus desejos; aquele se colocando, ainda que sem a consciência disso, num lugar que permitiria a inscrição do autor como sujeito pela escrita.

Decerto, estamos, agora, sublinhando uma relação que seria imaginária, no entanto capaz de ultrapassar o Real da escrita e inscrevê-la enquanto simbólica no plano social. O alocutário, como dissemos, poderia intermediar essa inscrição da narrativa epistolar no campo da linguagem. A esse respeito, vejamos, de passagem, o que disse Artaudao seu médico:

Sempre tenho querido arrastar-lhe a minha esfera poética própria mas tenho visto que você não queria crer nela e é o que tem fechado meu coração. Os estados místicos do poeta não são delírio Dr. Ferdière. São a base de sua poesia. Tratar-me como delirante é negar que desde a idade de quinze anos surge em mim ante as maravilhas do mundo do espírito que o ser da vida real jamais pode realizar; e deste sofrimento admirável do ser é de onde tenho tirado meus poemas e meus cantos (PAVINI, 2011, p. 09).

Vemos, nessas linhas, que ele recusa o delírio e exalta a poesia de seu pensamento; faz uma crítica ao médico que o diagnostica como psicótico e lhe pede para ver o que produz como literatura.De fato, seguindo Artaud em sua demanda notamos a importância de abordar algumas características de sua escrita sem reduzí-la à uma leitura sintomática. Para isso, ressaltam como parâmetros, em primeiro plano, a escrita surrealista e a glossolálica como estilos literários (MÈREDIEU, 2011, p. 908). Estas, vistas por esse ângulo, apesar da similaridade formal se diferenciam por não serem brutas ou outsiders.

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Por outro lado, essa questão do delírio,presente no discurso de Artaud,remete ao apagamentodo sentido. Segundo Freud, um pensamento como esse significa uma defesa psíquica do Eu para lidar com vivências traumáticas ou fantasiosas. A representação destas seriam impedidas de passarao patamar da simbolização, portanto, de uma linguagem compreensível. Lacan, psicanalista alinhado com a base linguística, considera o delírio como uma metáfora, e essa visão nos leva a uma discussão crítica relacionada à noção tradicional desta figura de linguagem uma vez que traz, no âmago, um sentido alegórico, por conseguinte, simbólico.

Consideramos que Artaud encontrou na escrita, um modo de corporificar ou de materializar sua presença no mundo como existente, e o fez livremente com a narrativa de um multiversodespegado do senso e estilos comuns.Esse fato nos dá a chance de analisar sua escrita cotejando-a com os conceitos psicanalíticos lacanianos de “sinthome”(sinthoma) e “lalangue” (alíngua).

Parece haver uma importante diferença entre a alíngua e as glossolalias tendo-se como base reflexiva a noção de letra. Artaud usa a letra priorizando a sua sonoridadediante da ausência de representação. Ora, há de se perguntar se esse construto teria algum proveito subjetivo para ele no campo interdiscursivo.

Quanto ao sinthoma, sabe-se que a visão teórica Lacan muda ao longo de seu percurso teórico; ele introduz essa noção e a diferencia do sintoma clínico, como uma função de suplência – como faz uma escrita - a um discurso que tende a permanecer estranho a ou fora da linguagem coletiva, tal como se passa com o discurso psicótico.

Até que ponto uma escrita bruta se limita aos contornos de uma “suplência” ou configura algo mais; uma estética linguística que por esse motivo seria um fator decisivo para o reconhecimento social do autor como sujeito?Pergunta instigante que nos motiva a responder como parte do desenvolvimento deste capítulo.

Na presente investigação, delimitamos o corpusreferindo-nos ao volume de cartas dirigidas ao seu médico Gaston Ferdière, durante sua internação psiquiátrica no asilo de Rodez entre 1943 e 1946; são inéditas no Brasil e foram publicadas num livro intitulado Nouveaux Écrits de Rodez (ARTAUD, 1977). Ademais, consultamos outros escritos dele, sobretudoO Umbigo dos Limbos(1984 [1924]), O Pesa – Nervos (2004 [1925]), O Teatro e seu Duplo (2006),As Novas revelações do ser (2004 [1937]), As mães no estábulo (2004 [1945]), Van Gogh, o Suicidado da Sociedade (2008 [1947]), Para terminar com o Julgamento de Deus (1983 [1948]), e outras cartas.

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Pretendemos fazer esse estudo, movendo-nos tal como Lima (2010, p. 33 - 34) nos indica:

O único modo possível de lê-lo, de ouvi-lo, é devindo Artaud, deixando-se contagiar, encontrando a zona de vizinhança em que não é possível distinguir-se não da pessoa-Artaud, mas do acontecimento desencadeado por sua própria dissolução da identidade. Não há eu ou Artaud: apenas minorias íntimas se encontrando em outro lugar.

Poderíamos dizer que,na manifestação do sujeito Artaud e suas criações literárias e dramáticas, evidencia-se o essencial da poesia em meio aos sintomas psicóticos (como o delírio e os neologismos); é o acontecimento da expressão criativa que toma a cena diante da expressão clínica, o que nos leva a vê-lo e escutá-lo em sua escrita sobretudo no lugar de poeta mais do que de um paciente mental em crise.

Nesse sentido, E. Grossman, que é uma “excelente leitora de Joyce e Artaud”, diz: “(...) não é possível ler verdadeiramente os textos [de Artaud], se o sujeito que os lê recusa-se a perder-se, a abandonar provisoriamente suas referências subjetivas para entrar no processo de dissolução das identidades que eles impõem” (apud LIMA, 2010, p. 33-34).

Por conseguinte, deixamos que a escrita artaudiana nos tocasse passando pela ansiedade da estranheza à calmaria do discurso compreensível. Ao longo da narrativa, sublinhamos o que se expressa pelo sentido e pela falta dele, observando as construções do discurso numa posição de leitor vigilante às interferências do preconceito; entre fonemas e glossemas, letras e figuras de linguagem, frases articuladas ou não, significantes puros ou encadeados; fazendo uma análise textual sem tentar uma compreensão imediata, ao modo da atenção flutuante própria da escuta psicanalítica; fugindo das amarras de interpretações estanques, com um olhar voltado para a especificidade do discurso, mas atento às possíveis articulações da narrativa com as nossas coordenadas teóricas.

Almejamos trabalhar, em acordo com Barthes (1985),sem uma posição apriorística de encontraruma verdade oculta, empenhando-nos numa leitura do texto como um “intertexto”, isto é, ligando-o a outros códigos históricos e sociais, “(...) com a finalidade de conseguir conceber, imaginar, viver o plural do texto, a abertura de sua significância” (BARTHES, 1985, p. 240).

Sem dúvida, julgamos impressionante perceber que, até o final da vida, Artaud criou sem se deixar paralisar pelo sofrimento da psicose. Na abordagem de sua escrita, podemos considerar tanto o discurso clínico (pelo viés da psicanálise e psicopatologia) quanto o crítico

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(pelo viéssobretudo da filosofia e da teoria literária).Veremos, em nossa pesquisa, as aproximações, entrelaçamentos e distanciamentos entre eles, sem, no entanto, procurar reduzi-los um ao outro.

Do lado da psicanálise, referenciamos os trabalhos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Deles relevaremos os postulados ligados aos modos de inscrição do sujeito em relação à linguagem; desde a investigação freudiana dos sonhos, ou seja, da escrita inconsciente, à formulação lacaniana de lalangue [alíngua ou lalíngua], que abarca o irrepresentável da língua, o inefável. Sabemos que Artaudcom sua artedesbordou limites conceituais generalizantes, transgrediu-os e transpassou-os. Ele, com um discurso delirante e glossolálico, sem sentido e estranho,não se importava com o enquadre normativo no qual seria posto. Talvez quisesse,sobretudo,aparecer com suas verdades e incitar no outro, as dele.

Da Análise do Discurso (AD), consideramos a orientação de Dominique Maingueneau, o qual reconhece que a língua é um suporte material da ordem dodiscurso, todavia aponta uma outra ordem que se realiza por vias diversas; afirma que os conceitos estão em constante construção, não só em função da relação entre elesmas também quanto aos de outros campos discursivos. Além disso, ressalta a noção de linguagem como um instrumento que permite a construção e a transformação das relações entre interlocutores, seus enunciados e referentes, sem que se reduza a um mero suporte para transmissão de informações.

Ademais, recorremos às análises da escrita de Artaud feita pelos filósofos Gilles Deleuze e Jacques Derrida, psicanalista Félix Guattari e filósofa e psicanalista Julia Kristeva, e ainda do escritor e filósofo Maurice Blanchot, além de vários outros estudos pertinentes.

Assim,pretendemos figurar um lugar diferente de um espaço geométrico, de onde pudesse emergir uma escrita bruta; um lugar de origem e, ao mesmo tempo,de jorro poéticomarcado pelo nonsense. Seria um lugar para um sujeito radicalmente crítico do padrão linguístico, livre dos automatismos impostos pelo “julgamento Divino” como quis Artaud. Ele construiu a noção do “Corpo sem Órgãos” (CsO) que, segundo Deleuze e Guattari, seria um lugar para o fluxo de desejos, do devir sujeito sobrepondo-se à alguma mesmidade. Com esses autores, colocaremos poremos em discussão o CsO, veremos que este, aparentemente vazio, seria imbuído de força para suportar o ser passageiro do poeta. Há corpo, contorno de um corpo, nuançado, figurando certa diafanidade, que não designa propriamente a base para a formação de um ego nomeável. Perguntarmo-nos se um corpo assim desenhado se relaciona com uma possível recusa a se deixar apreender enquanto identidade, requer especial atenção

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em nosso estudo, mesmo porque a composição do ego em função da consistente unidade corporal é um princípio basilar para a psicanálise.

Com base na visão do CsO como um “acontecimento” incorporal, contrariando a fixidez de uma estrutura física e identitária, passaremos pela teorização de Maurice Blanchot, sobre a noção do fora no campo da literatura. Nesse sentido, ele evidencia a experiência do fora como uma presença, um acontecimento na literatura no qual se identifica mais uma neutralidade do que uma autoria específica do verso, o que nos dá a chance de pensar o multiverso de Artaud. Esse teria certa conotação de virtualidade, similar à ficcional, contudo produzido e vivenciado na realidade; seria por vezes sem sentido e reduzido à letra, impossível de representação, e, assim, sem elementos para compor um discurso comum. Um multiverso singular que abre portas para uma reflexão sobre a estética escritural artaudiana tendo como referência o pensamento deleuziano sobre a virtualidade.

Evidenciamos esse lugar que não tem referente na realidade no estudo de J. Derrida quando ele lê e analisa o Timeu de Platão. Nesse estudo, teoriza sobre Khôra, “o lugar dos lugares”, como definiu Fedida (1991, p. 115; 124). Examinaremos a pertinência e fertilidade desse conceito de lugar onde se poderia figurar a produção desejante artaudiana. E o faremos também baseados na visão de J. Kristeva sobre Khôra quando propôs, referindo-se a Artaud, a concepção de um sujeito em processo, sem reduzí-lo, portanto, aos limites estruturais psicopatológicos do sujeito psicótico.

Essa questãodo sujeito em processonos permitirá discutir a singular posição de Artaud no fazimento da escrita. Dessa forma, poderemos ver a chance de ele, ao assumir o discurso assinando em nome próprio, portanto separando-se do sobrenome materno, continuar criando com as neoformações linguísticas – da palavra, da palavra delirante, da letra ao grito - estranhas ao cânone.

Talvez Artaud tenha perseguido o reconhecimento do outro, não simplesmente como prestígiomas também como legitimação de uma genuína presença existencial. E isso implicaria, provavelmente, maiso acolhimento de uma estética escritural bruta do que um perfilamento da mesma.

Antevemos, sem prejuízo dos nossos resultados, que a escrita poética e dramática de Artaud desborda o enquadre psicanalítico freud-lacaniano se se refere à questão da sublimação e à eficácia terapêutica pela via da simbolização; afinal, a reassunção do nome paterno pela escrita epistolar não o conformou ao padrão artístico convencional.Consideramos

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que há que se examinar a construção de uma estética singular por meio da escrita bruta e consequentes efeitos para um reconhecimento social. Em Artaud, o sentido e a imagética do discursoterminam perdendo valor heurístico em face da reverberação da sonoridade da letra, do significante puro. É como se o outro devesse ser tocado nem que fosse para reverberar em eco suas emissões, e assim,pelo menos,dar sinais de reconhecimento de uma virtual ou efêmera presença existencial. Evidentementeessa escrita não seria a convencionalmas bruta ou outsider, como um carvão revelando um valor de diamante.

Enfim, com essas reflexões e balizas teóricas,dialogaremos na interface dos discursos literário e psicótico produzidos pelo sujeitoem processo, Antonin Artaud. Investigaremos que elementos são determinantes ou favorecem a inscrição social do sujeito por meio da escrita bruta ou outsider. Nessa posição subjetiva, perguntamo-nos quanto à construção de sua peculiar escrita, qual seria o lugar que ele ocupa como autor; o que representa o nome próprio ou a falta dele na assinatura do discurso, e ainda, à parte a ação da psicose em seu pensamento, o que representa, qual a função e quais as características das neoformações linguísticas no embate com a língua materna usual.

Por enquanto, deixemos o poeta Artaud (2008, p. 267) com a palavra: “Há em todo demente um gênio incompreendido, cuja idéia que luzia na cabeça provocou medo, e que só no delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe prepara”.

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2FIGURAS DO LUGARpara uma escrita bruta

Artaud, poeta, dramaturgo e escritor francês, produziu uma vasta obra literária que consta de vinte e seis volumes.Essa produção singular e revolucionária alcançou outros horizontesalém da literatura e do movimento surrealista do qual foi membro, chegando aos campos do teatro, da pintura, filosofia, medicina, antropologia e psicanálise.

A partir de 1937, ele foi internado na França em vários manicômios como psicótico e, após seis anos, foi transferido para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde ficou três anos, de 1943 a 1946. É quando escreve as cartas àFerdièrecomo já dissemos.

A epistolografia ocupou um lugar privilegiado em sua obra. Confundia o ato de escrever suas lettres [cartas/letras] com o movimento de sua própria vida; disse ele: “A questão para mim não [é] a de saber o que chega a se insinuar no quadro da linguagem escrita, mas na trama de minha alma em vida”(KIFFER, 2008, p. 01).

Com sua criação, não só inovamas também subverte e transforma profundamente a linguagem tida como normal. Fá-lo também com um discurso delirante, ou nem mesmo um discurso, mas o que antecede a palavra: significantes desarticulados – significantes puros –, letras conjuntas e/ou disjuntas, que afetam o outro com sons novos, estranhos, até perturbadores, sem nenhum significado visível, audível. Adentra o espaço privado do outro e se torna ao olhar dele um estrangeiro em sua própria terra; para tanto, chega até a inventar uma nova língua universal7(WILLER, 1983, p. 117), recusando-se pelas vias da arte tradicional e outras – incluindo-se aqui a escrita bruta - como a psicótica–, a permanecer estático no universo da língua materna. Então, ao escrever na forma de um discurso psicótico – entre delírios e glosssolalias –, é como se fosse impossível falar apenas na língua materna, com os sentidos que aí residem.

Explode com ela e mergulha fundo até lugares insondáveis pela língua comum, até onde nada pode se nomear; opondo-se ao Simbólico com o Imaginário e, assim, chegando ao bojo inominável do Real no dizer psicanalítico de Jacques Lacan.

Vejamos numa dessas cartas citadas acima como esses registros do Real, Simbólico e Imaginário, se desatam e produzem uma escrita inédita e estranha em frente dos parâmetros comuns da língua:

7 “(...) Em 1934, escrevi um livro inteiro (...) numa língua que não era o francês, mas que todos podiam ler,

qualquer que fosse a nacionalidade. Infelizmente esse livro perdeu-se”, escreveu Artaud (WILLER, 1983, p. 117).

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“Inemi tenter monietan Inemon ton tarinan”...

(ARTAUD, 1977, p. 27)

Esses dizeres iniciam como epígrafe a primeira carta ao “Caro doutor e amigo” [Ferdière], e mais adiante, como se fosse outro, explica a ele:

(...) que o caso de Antonin Artaud não é questão de literatura nem de teatro mas de

religião e que é por suas idéias religiosas, por sua atitude religiosa e mística que

Antonin Artaud ATÉ SUA MORTE foi perseguido pela loucura dos Franceses. (...) Antonin Artaud morreu de castigo e dor em Ville-Évrard no mês de Agosto 1939 e seu cadáver saiu de Ville-Évrard durante uma noite branca como aquelas das quais fala Dostoievsky (...) mas não incluídas no calendário deste mundo (...) (ARTAUD, 1977, p. 28).

E segue:

o verdadeiro nome de Antonin Artaud é Hippolyte e Santo Hippolyte como o senhor sabe foi o bispo do Pirée nos primeiros séculos da era cristã após a morte de Jesus-Cristo do qual Antonin Artaud Hippolyte no tempo transportou o corpo. Para mim meu nome Dr. Ferdière é Antonin Nalpas (...) (ARTAUD, 1977, p.29, grifo nosso).

E afirma logo após que pertence a uma família do céu apesar de ela estar na terra. Na carta seguinte, ele narra a G. Ferdière suas reflexões “inspiradas” pela leitura do livro “Hino aos Demônios” do poeta Ronsard, por ele indicado. Como é evidente a forma dessa comunicação é da carta, que contém logo, no início, um estranho arranjo de letras sob forma de glossolalias:

“Rat Vahl Vahenechti Kabban” (ARTAUD, 1977, p.29).

O que isso quer dizer?, perguntamo-nos não sem antes ver que é numa atmosfera mística e mágica, num dizer delirante, queArtaud interpreta o que esse poeta expõe. O que ele lê nos versos vinha de Deus; é um poema que reflete uma misteriosa iniciação transcendental e que

(...) não pode ser repetido pelo homem na medida em que ele não perdeu sua comunicação com Deus. Todo poema é uma liberação e vê-se bem que Ronsard escreveu esse poema para se livrar da impressão infernal que o Mau Espírito não cessa de introduzir em todas as coisas usadas pelo homem, e em primeiro lugar aquelas de sua sensibilidade interior, da consciência que lhes aplica e de seu julgamento (ARTAUD, 1977, p. 29-30).

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Ao informar [e provavelmente indicar] a leitura desse livro de conteúdo místico-religioso ao seu paciente, G. Ferdière de certo modo compartilha essa aura com ele. Isso nos faz considerar a circunstância em que se deu a feitura da carta com a interpretação de Artaud; ou seja, a carta tem uma autoria, mas que parece não estar completamente isolada do seu interlocutor. Além do mais, Antonin Artaud a assina revestido da identidade materna, isto é, como Antonin Nalpas. Ele, então, estaria envolto numa confusão de línguas: submetido à injunção da língua materna, no interdiscurso transferencial imaginário com o médico, cuja atitude hesita entre a compreensão e rejeição na escuta do discurso psicótico permeadopelo faltade sentido com o delírio e as glossolalias.Esse discurso não comportaria, segundo a psicanálise, lugar para o significante Nome-do-Pai, que possibilita a língua simbólica, compreendida socialmente.

Essa posição subjetiva de Artaud teria uma conotação de fixidez psíquica dificultando-lhe a assunção do nome próprio e dispersando-o em identidades imaginárias entremeadas no discurso delirante – psicótico, portanto –, e, muito além disso, produzindo e usando de modo enigmático, formações que se reduzem a unidades mínimas da língua, aos glossemas e fonemas, a significantes puros, lá onde o estatuto de sujeito não se configura; talvez nem mesmo o de sujeito do inconsciente, numa temporalidade aquém da palavra.

Nesses fragmentos de cartas antes citados,evidenciamos que não se encontra uma identidade autoral civilmente reconhecida, tampouco um conteúdo em forma linear e compreensível segundo o cânone linguageiro. E o que se encontra?

Na psicanálise lacaniana, as noções do Real, Simbólico e do Imaginário (RSI) nomeiam os elementos da estrutura (psíquica) do sujeito em relação à linguagem. Sabemos que a concepção do psiquismo conforme uma estrutura de instâncias, tais como o Id, Ego e Superego, lugares como os do consciente e inconsciente, foi originalmente descrita por S. Freud, todavia é com J. Lacan, apoiado na linguística estrutural, que essa topologia abre para a reflexão do sujeito relacionado à linguagem, aproxima-sedo campo discursivo em que o sujeito é inserto e incerto! (KAUFFMAN, 1996).

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1996),tornou-se quase que uma máxima na psicanálise lacaniana; uma assertiva que abre a comporta de uma espécie de dique teórico que permite entrar em contato com o estranho, denso e, não raro, arrebatador do Real inefável que incrusta a estrutura do sujeito desde suas primitivas raízes. Referir-se ao Real como inefável é adjetivá-lo como algo ou um lugar de produção de algo que não pode se inscrever na linguagem comum, de consenso, ou seja, de algo que resiste a simbolização, inclusive metafórica.

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Aqui recorremos à clínica, por meio da psicopatologia, para nos auxiliar na compreensão do Real na teoria lacaniana: quando o sujeito psicótico alucina há produção de algo Real em sua sensopercepção, pois escuta vozes, vê e sente o odor de coisas que, de fato, não existem na realidade, por exemplo. Não se trataria de imaginar o que se vê, no caso da alucinação visual, mas da visão de algo Real que não é objeto da realidade; o que difere de uma produção ficcional que se representa, tem lugar noregistro imaginário do sujeito, tem lugar numa história contada no tempo. E o que se representapode ser pensado, simbolizado pelas palavras, falado em língua compreensível para o outro da mesma comunidade linguística. Entretanto, não é o que se passa com o discurso delirante nem com as glossolalias, pelo menos à primeira vista ou à primeira audição, embora não seja assim que pensa Artaud quando escreve uma carta aos médicos-chefes dos manicômios:

(...) Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce [esquizofrênico], as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras? (...) Nãoadmitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de idéias e atos humanos, (...). Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos (...), afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os atos que dela decorrem (WILLER, 1983, p. 30-3).

Então, ele afirma a legitimidade e lógica do delírio, e certamente de outras formas do discurso psicótico – como os neologismos e, aparentemente, as glossolalias - como se reivindicasse um lugar social de reconhecimento pelo outro; adota uma posição rebelde frente ao cânone linguístico materno, questionando-o, desconstruindo-o veementemente. Ao mesmo tempo, procura criar uma nova linguagem na qual possa se expressar livremente sem as amarras e forma da sintaxe tradicional, muito menos segundo a lógica do sentido comum. É como se vivesse na realidade, em seus atos artísticos, o que, em geral, o sujeito experimenta num outro cenário, o do inconsciente, configurado e dirigido pelo Outro8, tal como Lacan o nomeia.

É evidente que essa “língua” neológica não encontra receptividade na sociedade conservadora, tradicional, nem como conseguiu o movimento revolucionário artístico surrealista, do qual fez parte; afinal, um discurso delirante ou composto de neologismos carece de sentido e, em geral, não é consentido! Com seu comportamento e discurso

8 O Outro com maiúscula se diferencia do outro para designar um lugar onde ficam os significantes. Estes se

organizam como um discurso e aparecem numa outra cena, fora da (cons)ciência do sujeito, como nos sonhos, sintomas, chistes e atos falhos; portanto, na cena inconsciente. Esse Outro é a alteridade do campo da linguagem, simbólico, enquanto que o outro é o semelhante visto em espelho pelo sujeito numa relação imaginária. A mãe, sobretudo, ocupa o lugar do Outro e com seu discurso transmite ao sujeito-infante significantes compreensíveis e/ou enigmáticos, devendo em princípio aparecer-lhe como ser-de-falta, desejante, incompleto.

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psicóticos, ele foi várias vezes excluído dessa sociedade para o isolamento no interior de hospitais psiquiátricos.

Esse seria o único lugar onde ele poderia ter voz ativa? Onde poderia falar na ânsia de ser escutado? Nesse lugar fala da posição subjetiva e social de um louco, de um psicótico, por meio de suas lèttres/letras ao seu médico Ferdière; trata-o na maioria das vezes como “caro amigo”, e diz-lhe que não precisa receber eletrochoques porque na verdade é um “homem sóbrio e sem delírio” (ARTAUD, 1977, p. 42-43).

Nesta carta, mais adiante, diz que sua “(...) internação [em Rodez] foi resultado de um sacrifício religioso e de um pacto com pessoas honestas, e que foi decidido na sequência de uma batalha que houve em Paris, em 1934, e onde as forças do Bem e do Mal colidiram com o mais implacável rigor”. Entende que foi vítima de longo “envenenamento” nos serviços psiquiátricos do Hospital do Havre e dos Asilos de Quatremarre e Sainte-Anne, por ação das forças do Mal do Anticristo; os diagnósticos de “mitomania” e “loucura persecutória” não passariam de uma “fábula policialesca” para se justificar alguma perturbação mental e, consequentemente uma internação.

Acredita em sua interpretação e procura ancorá-la na literatura mística; assim, uns dois meses depois, explica seu raciocínio recorrendo ao livro de Marcel Granet intitulado “o Pensamento chinês”, no qual faz “(...) uma longa exposição da Teoria dos Trigramas que é incompreensível se se tem em conta a lógica ordinária do Pensamento Europeu e que seria considerada como uma Demência pela Medicina do ocidente se fosse exposta num Asilo de Alienados por aqueles que a inventaram (...)”(ARTAUD, 1977, p. 55-56).

Em uma das cartas fictícias para Artaud, Galeno (2005, p. 133-188), com uma leitura e escuta sensível de seus escritos, aborda a questão do psicótico (dito louco, socialmente) relevando sua posição de sujeito e suas potencialidades criativas. Destaca o ardoroso e fértil trabalho da psicanalista brasileira Nise da Silveira com pacientes psicóticos internados buscando reinseri-los no meio social através de suas diversas produções artísticas. Tanto no Museu de Imagens do Inconsciente quanto no Museu de Arte Bruta de Lausanne, encontramos acervos que não são apenas mostras de mais um tipo diferente de arte, na verdade são lugares que testemunham como e quanto a sociedade deve incrustar em seu seio o inusitado, o estranho, a aparente bizarrice e a beleza das verdades mais íntimas do sujeito, em geral socialmente invisíveis e rejeitadas.

A visão de Galeno sobre o valor heurístico da arte bruta é explicitada no livro que ora abordamos. Cita uma passagem de Nise cuja ressonância toca o leitor imprimindo-lhe um traço essencial da concepção artaudiana do ser no contato com a realidade. Trata-se do olhar

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de Artaud para uma abelha fazendo-lhe refletir que nela tinha visto um “Ser (...) e isso lhe era suficiente”. Notamos nessa visão conjunta de Galeno, Nise e Artaud, a posição subjetiva deste último diante da natureza, de uma realidade que passa despercebida para a maioria dos seres que têm a razão como baliza principal de suas vidas. Com Galeno (2005, p. 179) compreendemos que há muito o que se explorar e legitimar da e na interligação entre a loucura, a arte e a vida. Que o sujeito psicótico não se reduz a um quadro nosográfico mas transita em paragens estranhas, longe e tão perto, figuradas no “(...) a-pensamento estético (poesia, pintura, literatura, etc.)” e em cartografias múltiplas de seu desejo.

Artaud questiona o pensamento médico atribuindo-lhe ignorância de uma lógica racional que não lhe é própria; mas teria Artaud querido convencer o receptor missivista? Não é o que parecem mostrar suas cartas cuja narrativa é como se não esperasse respostas, não esperasse compreensão, não as dirigisse para um endereço certo mesmo sabendo para quem redigia. Seria um tanto ingênuo responder, afirmativamente, a essa pergunta, até porque há de se considerar o fato de ele saber o quão era dogmático um pensamento médico assentado em doutrina cartesiana positivista. Pensava o célebre escritor com base em outra lógica que ele mesmo desconhecia.

Já vimos que o que ele descrevia,em parte,não se coadunavacom o sentido e a forma da linguagem comum; estaria mais próximo do registro do Real lacaniano a que nos referimos antes: o que é próprio do Real não configura e compõe uma linguagem, está foradela, do campo simbólico em que o discurso tem sentido e o sujeito se apresenta como ser-de-falta; ou seja, a palavra advém para um sujeito incompleto em ser e por isso submetido à linguagem, adequado ao prazer no sentido freudiano e não para além dele – do gozo que irrompe do e no Real, tal como se passa no sintoma psicótico.

Ora, se é assim, se ele procurou escrever fora de um contexto hermenêutico, qual seria seu intuitose é que existia? Essa escrita teria alguma função para o sujeito já que a simbolização linguística seria impossível, pelo menos, na crise psicótica?

Muito já se pensou e se escreveu como respostas a essas indagações, e uma delas, prevalecente no discurso psicanalítico, é que a escrita per se é um modo sublimatório de lidar ou elaborar o que se produz no registro psíquico pulsional, portanto, o que estaria no registro Real da subjetividade. Lacan (2007 [1975-76]) esmera essa interpretação quando se dedica ao estudo da escrita de Joyce; concebe o conceito de sinthome (sinthoma) com base na topologia e gera uma teorização que permite compreender porque a escrita seria eficaz em interditar a derrocada do sujeito na psicose. O sinthoma seria um quarto registro de inscrição subjetiva que enodaria os outros três, isto é, o Real, o simbólico e o imaginário. Entretanto, parece que

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a escrita do sujeito Artaud se conduz para um outro horizonte, um outro lugar que seria melhor concebido com o recurso de outros saberes, notadamente o da teoria literária e filosofia. Nesses campos, poder-se-ia talvez figurar o entrelaçamento dos discursos clínico e poético no multiverso de uma estética da virtualidade.

Esse multiverso, a princípio descomprometido com efeitos de sentido nem de alguma nomeação precisa,não chega a ter lugar no universo das inscrições memoriais que traçam o caminho da história. Pelos idos do início do século passado, Freud, em 1900, escreveu:

(...) Suporemos que um sistema [da percepção (Pcpt) – consciência (Cs)] logo na parte frontal do aparelho [psíquico] recebe os estímulos perceptivos, mas não preserva nenhum traço deles, e portanto, não tem memória, enquanto, por trás dele, há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes (FREUD, 1976 [1900], p. 493).

Ele descrevia a estrutura e dinâmica de funcionamento do aparelho psíquico, e aí visualizava os lugares de inscrição do que se percebia do mundo exterior, como se ele fosse estratificado em instâncias interligadas mas, ao mesmo tempo, autônomas: as atividades consciente e inconsciente do sujeito configurariam sua divisão, e a descontinuidade operacional entre elas por assim dizer. O sujeito perde sua autonomia em função do que há de inconsciente nele. Nessa teorização, há de se notar que Freud, vinte e quatro anos depois, associa essa descontinuidade inerente ao sistema psíquico à origem do conceito de tempo (FREUD, 1976 [1925], p.290).

Temporalidade descontínua que virtualiza os acontecimentos inconscientes para o sujeito que se pretende consciente todo o tempo, e o desloca para uma outra cena!

Um outro cenário de forma surreal, enigmático, em que imagens se deslocam, deslizam umas sobre as outras, fundindo-se sem arranjos prévios, provocando prazeres e angústias, no qual pessoas familiares e estranhas aparecem, mutantes num átimo, num quadro de elementos plásticos que se movem sem nenhuma direção nem marcação de tempo mas que se prestam a alguma compreensão, alguma leitura desde que passem por uma interpretação decodificante. Como vemos, essa outra cena é a onírica, e “(...) a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anímica”, como escreveu Freud (1976 [1900], p. 550).

Assim, tal como se decifra uma escrita hieroglífica mas com método novo inventado por Freud, por meio da leitura dos sonhos pode-se conhecer o discurso do Outroou seus traços que compuseram o universo psíquico infantil - é evidente que aqui se considera a visão lacaniana do inconsciente como discurso do Outro -.

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