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Os Faxinais na Região de Irati (PR): relações peculiares entre território, cultura e meio ambiente

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Os Faxinais na Região de Irati (PR): relações peculiares entre território, cultura e meio ambiente

Ancelmo Schörner

Palavras-chave: Faxinal; Território; Meio ambiente; Memória.

Resumo

Este texto é parte das pesquisas que desenvolvemos sobre os faxinalenses, cuja organização social e econômica os classifica povos tradicionais. Chama-se Sistema de Faxinal a um modo de utilização das terras em comum existente no Sul do Brasil. Ele constitui-se como acontecimento singular por causa de sua forma organizacional, onde o caráter coletivo se expressa na forma de criadouro comum (terras de criar) e terras de plantar, o que vale inclusive para pessoas que não são as proprietárias legais da terra. Mais do que um sistema agrosilvopastoril, ele foi, e é, uma organização que promove a melhor utilização da natureza e pode ser visto sob vários aspectos: - ecológico: como uma das últimas reservas florestais contínuas, alteradas pelo pastoreio e pelas atividades extrativas vegetais; - econômico: equivale à área de atividade extrativa (madeira e erva) aliada ao pastoreio extensivo; - social: o Faxinal é interpretado como resultado da interação entre os meios de produção (terra) e mão-de-obra e escassez de capital. Eles formam um amplo sistema comunal, ligado por antigos laços de consangüinidade, vizinhança ou casamento, onde as pessoas ainda nascem e morrem a poucos quilômetros dos lugares onde seus pais e avós viveram. As rodas de conversa e chimarrão, a divisão do trabalho, a forma da construção das casas e das cercas, e as festas compõem uma estrutura e as representações de um modo de vida que se transforma continuamente, embora existam várias permanências. O Sistema de Faxinais permite questionar a tendência do pensamento a considerar as categorias, normas e valores de certa sociedade ou cultura como parâmetros universais. Assim, se a modernização que adentra os Faxinais não chega a questionar sua legitimidade e posse, ela questiona as maneiras através das quais esses moradores se relacionam com a terra, a água, enfim, com a racionalidade econômica.

Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010.

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Os Faxinais na Região de Irati (PR): relações peculiares entre território, cultura e meio ambiente

Ancelmo Schörner

Nos anos 1970 foram produzidos vários textos sobre a região de Irati2 e sua relação com o Estado do Paraná. Um deles foi escrito em 1978 para as comemorações do seu septuagésimo aniversário. Nele apresentou-se o diagnóstico do governo estadual a respeito da região. O editor do texto citou o documento oficial, especificamente na parte em que essas parcelas do território estadual são apresentadas como pouco dinâmicas, assumindo,

frequentemente, o caráter de subsistência, e deprimidas (ORREDA, 1978, p. 9).

A cidade, em festa, localizava-se no espaço, oficialmente, caracterizado como deprimido. Passados 70 anos de sua elevação à categoria de Vila pela Lei Estadual de nº. 716, de 02/04/1907, Irati era representada como parte de uma totalidade estagnada, sem energia, sem vitalidade, carente do dinamismo próprio da civilização urbano-industrial (ORREDA, 1978, p. 1), característico de outras regiões do Estado.

Essa imagem de sujeitos inativos, permitindo o „livre fluir do tempo‟, indivíduos despreocupados e inertes, meio entorpecidos pelo simples viver, não representa novidade no âmbito da historiografia paranaense. No texto História psicológica do Paraná, Davi Carneiro refere-se ao que considera os dois graves defeitos dos paranaenses: o retraimento excessivo,

uma espécie de misantropia que chega às raias de doença, e a complacência exagerada

(CARNEIRO, 1943, p. 7). Segundo ele, a influência do meio geográfico torna-se o fator determinante sempre que a cultura de determinado grupo não está suficientemente desenvolvida, sendo, ainda, amorfa.

Nesse quadro „genealógico‟, composto de “alguns homens rudes, desejosos de fazer fortuna, talvez chefiando combatentes e degradados [...] gente, sem dúvida, rude, guerreira, áspera” (CARNEIRO, 1943, p. 7). o que se vê é a imagem de uma geração composta por pessoas selvagens, toscas, de caráter duro e ríspido, gente de difícil cultivo moral ou

Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010.

Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO/PR, campus de Irati.

2 A microrregião de Irati, cidade localizada a cerca de 150 quilômetros de Curitiba, compreende os municípios

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intelectual. Esse povo „da origem‟ - europeus e mestiços - teria se adaptado ao meio, rico em elementos favoráveis ao seu estilo de vida.

Essa relação intrínseca entre a cultura e o meio reeditou-se nos escritos de José Maria Orreda e de outros escritores iratienses, como Foed Castro Chamma, para quem existe uma

relação inegável entre o homem e a natureza que o cerca, o que poderia ser visto na configuração geográfica de Iati, incrustrada num declive de extensas áreas de vegetação de uma natureza exuberante, o que dá a seus habitantes uma permanente sensação de segurança e bem-estar (CHAMMA, 1967, p. 37).

Na descrição, os pressupostos teóricos se mantêm, mas o quadro se inverte, porque a descrição refere-se ao espaço urbano e não mais à inércia do espaço habitado por rudes aventureiros ou à região deprimida dos homens lerdos repousando em campos sáfaros. A cidade é representada como lugar construído pelo patriarcalismo altruísta dos dos empresários e dos pioneiros da educação escolar. Ela é também lugar da criação poética, de artistas do teatro amador e dos clubes de pais e mestres, que se espalham para o interior, espaço que aparece como contraponto do urbano, porque fora dos limites urbanos, a cidade reedita a

placidez da vida campestre, com seus habitantes inaugurando a paisagem matinal através da tranqüila presença de rebanhos, como se uma página viva se abrisse e nos colocasse sob um céu de profecias e cânticos sagrados (CHAMMA, 1967, p. 46).

Desse modo, se reproduz e se refaz a „antiga quietude‟ característica do discurso sobre a vida campestre, onde a letargia, o estado sonolento dos colonos, sitiantes e fazendeiros estão sempre presentes, o que poderia ser eliminado pela irradiação da cultura urbana. Eis a

profecia, o cântico sagrado e o milagre referidos nos textos. A aposta nas potencialidades da

ciência e do progresso, no entanto, evidencia-se na forma de abordar a cultura campesina, considerada como conjunto de práticas remanescentes das idades mitológicas, crendices e superstições3.

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Vera Giocha, moradora do Faxinal do Itapará. (Entrevista concedida a Joceli Novak em julho de 2008). É provável que Foed Chamma estivesse referindo-se a algumas práticas da cultura local, como a benção das lavouras ou a consagração das águas dos rios, como no Distrito de Itapará, em Irati, aonde, em determinadas época do ano, antes da celebração da missa, os fiéis e o padre dirigiam-se para uma das lavouras próximas e iniciava-se o ritual para abençoar as plantações. O rito era repetido nos quatro cantos da área plantada, com a finalidade de proteger todas as áreas cultivadas e na intenção de que dessem bons frutos. Os ritos da benção da lavoura e dos rios vinculam-se às praticas culturais dos imigrantes ucranianos e poloneses, vindos para a região na passagem do século XIX para o XX.

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Newton Sponholz radicaliza o enunciado em texto sobre o centenário da emancipação política de Imbituva, onde julga como característica expressiva da cidade “[...] o caboclo, com sua tendência para o trabalho extrativo, quer nas serrarias ou na extração do mate [...], com seu costume de extrair as dádivas da natureza (SPONHOLZ, 1971, p. 39).

No texto, o caboclo aparece como certo tipo humano identificado pelos produtos que vende nas feiras: cocos de tucum, frutas silvestres, orquídeas, ou, no máximo, artefatos de taquara, peneiras, cestinhas, gamelas e colheres de pau. Sem dúvida, o meio físico moldara o caráter e o comportamento dos caboclos, grupo social que teria exercido forte influência sobre o modo de vida adotado pelos imigrantes eslavos.

Para Newton Sponholz, a imigração piorou a condição existente por meio da chamada „caboclização do imigrante‟. Tal fenômeno consistiria em que os imigrantes, de uma forma geral, mas principalmente os poloneses e ucranianos, teriam abandonado “muitas técnicas trazidas de seu país, diante de certas condições desfavoráveis do nosso meio e assimilado [...] práticas primitivas como a queimada, as simpatias e outras” (SPONHOLZ, 1971, p. 41).

Assim, no culto da técnica e na fé na ciência estaria a salvação, e os centros urbanos constituiriam os lugares da construção e da irradiação da cultura que eliminariam as práticas consideradas como características dos sistemas mitológicos, próprios do campo. Estas questões assinalavam, igualmente, a problemática das relações entre meio geográfico, população e cultura (PEREIRA, 1998, p. 64), como a existente nos Faxinais.

SISTEMA FAXINAL: A CULTURA (NÃO) ESTÁ AQUI.

A descrição da área rural nos moldes acima apresentados foi corroborada noutra passagem do texto de José Maria Orreda, agora sobre o distrito de Itapará. Ele é o mais distante do núcleo urbano de Irati e sua colonização foi iniciada em 1908 com a vinda de imigrantes poloneses e ucranianos. Conforme o autor, as terras foram divididas

[...] em 300 lotes logo após a chegada dos imigrantes, que ficaram alojados em um grande barracão e casas de taquara [...]. Plantava-se no toco, como ainda hoje se faz em diversas áreas do distrito, em terrenos a pique [...]. Sem qualquer espécie de assistência, decaindo a produção agrícola, a população isolando-se e dispersando-se

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foi sendo vencida num empobrecimento progressivo e pelas doenças endêmicas (ORREDA, 1978, pp. 21-22).

Trata-se de outra história narrada em estilo trágico: uma derrota, acontecida depois de algum sucesso alcançado. A ruína se deveria à falta de assistência por parte das autoridades competentes. As técnicas de plantação não evoluíram; ainda planta-se sem realizar a destocagem da mata. A produção decaiu, a população isolou-se, dispersou-se, empobreceu e adoeceu. A expressão „foi sendo vencida‟ leva o leitor, que desconhece a região, a imaginar que tal distrito tenha desaparecido completamente.

O distrito de Itapará, no entanto, sobreviveu. Trata-se de uma área de Faxinal e seu espaço de abrangência engloba várias localidades, como Cadeadinho, Cerro da Ponte Alta, Rio da Prata, Água Fria, Faxinal dos Luz, Antônios, Água Mineral, Faxinal dos Neves, Linha Irati, Linha Pinheiro Machado, Pinhal Preto e Campina Branca. Como se vê, algumas das localidades ainda guardam o nome de Faxinal, sobre o qual o autor nada comentou. De fato, a cultura faxinalense não se enquadraria na ótica do progresso.

Mas o que é, então, o Faxinal? Chama-se Sistema Faxinal a um modo de utilização das terras em comum, existente na região Sul do Brasil, para a criação de animais e que se tem classificado como manifestação cultural pertencente à categoria dos povos tradicionais brasileiros: forma própria de uso e posse da terra, o aproveitamento ecológico dos recursos naturais - pinhão, guabirobas, araçás, pitangas, jabuticabas -, o cultivo da vida comunitária e a preservação de memória comum (CAMPIGOTO, 2008a, p. 21).

Vários estudiosos do assunto consideram-no como acontecimento singular, por causa de sua forma organizacional, o uso coletivo de terra cercada para a criação de animais. O caráter coletivo se expressa na forma de criadouro comum (CHANG, 1985), inclusive para pessoas que não são os proprietários da terra.

A perspectiva histórica nos leva a considerar que acontecimentos do tipo criação de animais em comum não surgem por passe de mágica. Pode-se dizer que a convicção de que tais elementos desenvolveram-se ao longo do tempo representa um ponto sobre o qual concordam os pesquisadores em geral, bem como os que tentam explicar ou compreender sua história. Assim, o Faxinal pode estar relacionado às terras comunais que foi prática comum na Ilha de Santa Catarina desde a chegada dos açorianos (DE CAMPOS, 1991).

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Os Faxinais são, ainda, interpretados como herança cultural baseada no modo de ocupação territorial implantado pelos jesuítas espanhóis na parte ocidental do Paraná. Segundo esta hipótese, após a destruição das reduções os indígenas reproduziram o sistema e, no contato com a cultura não-indígena, transmitiam esta experiência comunitária (NERONE, 2000). Deste modo, eles já existiam há muito tempo no Sul do Brasil.

Outros, ao contrário, afirmam que os traços básicos da cultura faxinalense estavam presentes na região da mata com araucária antes da política de incentivo à imigração européia implementada nos séculos XIX e XX. Conforme esta versão, o Faxinal só começa a se formar a partir do momento em que se estabeleceu o contato entre a população que ali vivia e o imigrante europeu de origem eslava (CHANG, 1985).

Há também os que acreditam que a origem dos Faxinais vincula-se à população existente na região no século XVIII, os caboclos. Aqui, os ucranianos e poloneses entraram em contato com a cultura cabocla e do contato originaram-se os Faxinais (LÖWEN SAHR e IEGELSKI, 2003).

Existe ainda a possibilidade de serem as culturas indígenas do Sul do Brasil o berço de origem dos Faxinais. Sabe-se que os ameríndios usavam a terra coletivamente e, então, algumas questões nada desprezíveis tornam-se inevitáveis: porque estabelecer relações entre os Faxinais e a origem européia? Não estaria funcionando, aí, um mecanismo de menosprezo aos povos nativos? Não seria este o caso de um maquinismo cultural colonialista incorporado e reproduzido pelo historiador colonizado? (CAMPIGOTO, 2008, p. 21).

Os faxinalenses, no entanto, também contam histórias. Porém, contam história sem sujeito porque não apresenta o nome do ‘fundador’, do ‘inventor’ do Faxinal. Contudo, não há investigação da origem, nem preocupação com documentos, muito menos alguma ansiedade com as relações que se estabelecem com a sociedade como um todo. Já o historiador da cultura4 tem um campo vasto para estudar, conhecer e tornar conhecidas as relações que estes sujeitos estabelecem com os objetos, com o mundo natural, as pessoas e com a própria história.

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A chamada nova História cultural tem dado, desde os anos 1980, uma importante contribuição no sentido de entendermos como certas maneiras de ver e dizer os lugares, as regiões e como as nações foram construídas historicamente e como elas estão na base de um imaginário ou de um conjunto de percepções que temos em relação a dadas partes do mundo ou às pessoas que as habitam, gerando, muitas vezes, maneiras estereotipadas e preconceituosas de considerá-las (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 24).

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A paisagem do Faxinal é especial; as moradias possuem cerca que delimita a morada, o quintal, pomar, jardim, mangueirões e vários outros espaços. Há um conjunto de normas de organização dentro do Faxinal. Este conjunto pode ser chamado de ‘sociologia das cercas’ e se baseia nos princípios comunitários de direitos e de obrigações, válidos para todos os moradores (CHANG, 1988). Esta tipologia contempla:

- cerca de lei: para deter animais de diversos portes;

- cerca de vão cheio: com sete palmos de altura e traves amarradas com arame; - cerca de meio vão: com dois fios de arame por cima;

- cerca de paus verticais: com oito palmos de altura;

- cerca de arame farpado: com sete palmos de altura e, no mínimo, oito fios de arame (CAMPIGOTO, 2008b).

Existem ainda os valos, com profundidade e largura variáveis, que são os lugares onde estão os mata-burros, espécie de ponte formada por vigas de madeira dispostas de forma transversal e espaçadas destinados a vedar o trânsito de animais, o que dispensa a construção de porteiras.

Essa forma de organização da vida no campo chegou a ser predominante em cerca de um quinto do território paranaense, mas atualmente há um número muito reduzido de municípios que ainda possuem Faxinais ativos. Entre eles estão Prudentópolis, Irati, Turvo, Pinhão, Rebouças, Rio Azul, Mallet, Inácio Martins, Ponta Grossa, Ipiranga, São Mateus do Sul, Antônio Olinto, Mandirituba e Quitandinha (MARQUES, 2004, p. 10ss).

Conforme Relatório Técnico do Instituto Ambiental do Paraná, apenas 44 Faxinais mantém sua organização social típica e a paisagem de matas de araucária; 56 estão desativados, mas preservam a paisagem de florestas nativas; 52 estão extintos, uma vez que perderam totalmente suas características originais (MARQUES, 2004). Estima-se que, há dez anos, existiam cerca de 150 deles. Estes números indicam uma trama que envolve a modernização da agricultura e o desenvolvimento do capitalismo no campo.

O FAXINAL: DA DESAGREGAÇÃO À RES-SIGNIFICAÇÃO POLÍTICA, ECONÔMICA E SOCIAL.

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A desagregação dos criadouros comuns pode ocorrer em diferentes estágios. Na primeira etapa, ocorre o confinamento das criações miúdas, mantendo o criadouro somente para criações graúdas. Na segunda, ocorre a piqueteação individual das propriedades, confinando parcialmente também a criação graúda, o que reduz a área comum para a criação graúda do restante das famílias. Na terceira etapa, ocorre a desagregação derradeira do criadouro, com a retirada das cercas que dividem a criação das lavouras. As desarticulações do Faxinal têm implicações econômicas, sociais, ambientais, políticas e culturais para os que vivem dentro dele, que deixam de ter a relação que tinham com a terra e que referenciava sua concepção de mundo (CHANG, 1988).

Outro problema vivido pelos faxinalenses são os conflitos entre eles e os chamados fazendeiros, notadamente gaúchos, aqueles que compram terra nos Faxinais. A maioria dos migrantes gaúchos que foram para Rebouça, por exemplo, eram pequenos e médios agricultores que estavam passando por dificuldades financeiras. A política de crédito agrícola do regime militar favorecia os latifundiários e acentuava a concentração da terra. O crédito rural subsidiado só era acessível aos agricultores que, como garantia de empréstimo, pudessem oferecer a terra ou alguns bens (NERONE, 2000).

Ao comprarem terras em comunidades de Faxinais, a partir dos anos 1980, exerceram uma forte pressão cultural que, aliada a outros fatores, desestabilizou e até acabou com eles em alguns lugares, pois a chegada do colono de origem gaúcha causou no município um impacto sócio-cultural, visto que os recém-chegados eram portadores de outra bagagem cultural, bem diversa daquela dos faxinalenses (NERONE, 2000).

O primeiro problema que surgiu entre eles foi com relação às cercas, vital para a manutenção do Faxinal, “haja vista que o cercamento individual supõe sua morte porque secciona um espaço que a princípio é de uso comum” (NERONE, 2000, p. 186). A cerca passou a ser o centro dos conflitos, pois na “[...] na ótica do recém-chegado, ela representava um obstáculo ao progresso e era necessário romper a qualquer custo com essa tradição (NERONE, 2000, p. 188).

Até há pouco tempo houve matança de criação por parte das pessoas de fora, que não eram faxinalense e compraram estas áreas e acabou que eles não queriam criação solta, nem gado, nem porco, porque o Faxinal é sortido, tem de todas as espécies de criação lá dentro solto [...]. Então, aquele modo de vida, na opinião deles, tinha que acabar

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porque não dava lucro. Até hoje os fazendeiros chamam o faxinelense de atrasado. Por que atrasado? Porque o Faxinal geralmente é numa área plana, que daria pra trabalhar com máquinas, e o pessoal do Faxinal trabalha geralmente nas serras, então os fazendeiros chamam nós de atrasados por causa disso. Porque nós trabalhos nas serras e deixamos o terreno plano pra criação quando que teria que ser ao contrário, na opinião deles. [...]. No passado aconteceram mortes de pessoas que compraram e disseram que a lei eram quatro fios, e quatro fios5 fios não segura toda a criação que existe dentro do Faxinal (Olevi Soares Pedroso, presidente do Faxinal de Marcondes - Prudentópolis/PR).

As palavras do presidente da Associação Marcondense de Agricultores indica esta outra visão de mundo, que está em oposição à visão dos faxinalenses.

Aqui temos o nosso plantio, obtemos o nosso lucro [...]. Acontece que o Faxinal,

aquilo ali é um atraso de vida, os bichos se criam todos soltos e ninguém mais compra bichos criados assim, e depois dá um problema na cerca vão lá e comem as sementes da lavoura e estraga todo o plantio e dá problemas com os vizinhos, aqui ninguém mais quer Faxinal. Não sei para que aqueles caboclos ainda criam aqueles bichos soltos, eles não têm planejamento, nenhuma máquina quando precisam. Se você for lá vai vê que tipo que é, que não vai pra frente (Meron Charnei, presidente da Associação Marcondense de Agricultores - Prudentópolis/PR).

Além disso, a falta de uma política que fixe o pequeno proprietário em suas terras, garantindo os pressupostos básicos para a sobrevivência de suas famílias, faz com que muitos deles vendam suas terras para grandes fazendeiros, que implantam a monocultura intensiva, devastando as matas nativas que antes sustentavam as comunidades faxinalenses.

[...] o nosso6 Faxinal de Marcondes nasceu com o pessoal vindo da Europa que já faz

110 anos. Hoje nós estamos com a metade, outra metade foi perdido. [...]. Os mais velhos da família faleceram e acabou que o pessoal da família que ficou com a herança não pode fazer documentação. Por um motivo ou outro resolveu vender no ‘bolo’, então a pessoa comprava a área toda e tocava o inventário pra sair mais fácil a escritura e documentava pra ele, então ele compraria mais barato. E aí os faxinalenses começaram a perder estas áreas por causa disso; então, onde as pessoas compravam e

5 Um dos argumentos jurídicos utilizados contra o criadouro comum é a „Lei Federal dos Quatros Fios‟ do

Código Brasileiro, criada em 1916. Porém a lei somente começou a ser posta em prática há aproximadamente doze anos. Esta lei estabelece que as criações é que devem ser cercadas e não as plantações [...]. O proprietário que tem suas terras cercadas com quatro fios de arame e um penetrar nele será considerado invasor e, o proprietário poderá apreender o animal (CHANG, 1988, p. 101).

6 Observamos que a identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nos” e “eles”, que não são, neste

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isolavam, individualizavam aquela área e o Faxinal foi ficando mais pequeno. Aí vai acabando (Olevi Soares Pedroso).

Segundo Davi Carneiro, como vimos, quando a cultura de determinado grupo não está suficiente desenvolvida, sendo ainda amorfa, a influência do meio geográfico torna-se o fator determinante. Sob este olhar, o Faxinal representa o oposto do espaço da cultura na perspectiva historiográfica que constrói imagens do Paraná desenvolvido, onde o interior, o Faxinal, a roça, o ‘matão’, foram definidos como espaços marginais, passando a constituir uma só zona de opacidade no tecido social. Assim, seu morador é aquele que não pode viver na cidade, posto que carrega no corpo, e porque não dizer nas idéias, a grosseria, a aspereza, a brutalidade, a sujeira, marcas do campo incivilizado.

Uma descrição detalhada de um Faxinal, sob esta perspectiva, encontra-se num artigo escrito pelo chefe do Centro de Saúde de Irati em 1968. O médico Lourival Luiz Fornazzari escreveu que, diante da quantidade considerável de pessoas portadores de anemias, provenientes do distrito de Itapará, que procuravam o hospital, resolveu-se realizar um inquérito parasitológico. Iniciou-se a investigação sobre as condições ambientais e sócio-econômicas do lugar, orientada por uma literatura que vincula as doenças e as necessidades médicas das populações ao habitat, às instituições sociais e ao meio de vida. No texto encontra-se a descrição do local e de sua população.

[...] Itapará situa-se em um planalto bastante acidentado, no sopé da Serra da Esperança. A vegetação é secundária, constituindo-se quase exclusivamente de capoeiras, pois o terreno é intensamente lavrado, persistindo pequenos capões de mato [...]. A população é estimada em 3.000 pessoas, na sua maioria descendentes de ucranianos e poloneses, todos agricultores; com raras exceções, há alguns comerciantes [...]. Os produtos cultivados são: batata inglesa, milho, feijão, trigo, arroz, fumo, cebola e alho. As verduras e as frutas são raras. Criam-se galinhas e suínos sem métodos, sendo reduzidíssimo o gado vacum. São extremamente religiosos, conservando os costumes e as crendices herdadas dos ancestrais e outras adquiridas em nosso meio [...]. O índice de alfabetização é pequeno [...]. mas são muito trabalhadores[...] (FORNAZZARI, 1968, p. 41).

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a distingue das demais cidades do interior brasileiro pelo traçado urbano, com todas as ruas muito largas, muito bem calçadas, os passeios amplos, produzindo a sensação de bem estar que se traduz pelos efeitos de claridade, amplitude, arejamento, raramente experimentado em qualquer outro lugar [...]. Sua arquitetura, haurido de sua indústria, comércio e lavoura, se manifesta através de residências suntuosas [...] (CHAMMA, 1967, p. 38).

O diagnóstico da equipe de saúde citada acima referia-se, também, às condições de moradia, higiene, alimentação, costumes e trabalho, apontando que

[...] as habitações são feitas de madeira de pinho, algumas cobertas de tabuinhas e outras de telha, com três ou quatro cômodos. Geralmente assoalhadas, a maioria apresentando chão de terra batida na cozinha. Algumas caiadas, uma minoria pintada a óleo, com janelas envidraçadas e outras sem pintura. Resíduos e detritos jogados porta a fora. Não encontramos privadas na região, exceção feita às habitações de comerciantes. [...]. A água utilizada para os diversos fins provêm de olho d„água [...]. Os animais domésticos - aves, porcos e cães - encontram-se soltos ao redor da casa. Tanto adultos como crianças andam descalços e a higiene pessoal deixa muito a desejar. A alimentação [...] é pobre em proteínas animais e lipídeos. Os varões, de maneira geral, fazem uso de bebidas alcoólicas e do tabaco [...]. Geralmente trabalham para um colono proprietário de terra em regime de empreitada ou alugando-as para o plantio, não colhendo quase sempre o suficiente para o sustento da família (FORNAZZARI, 1968, pp. 41-42).

A descrição desliza das condições de moradia para os costumes, certamente porque tais atitudes tenham efeitos mais visíveis no âmbito da saúde: uso de bebidas alcoólicas e do tabaco, andar descalço, descuido com a higiene e, por fim, a criação de animais a solta, que é a característica básica dos Faxinais. Enfim, sob este prisma, a vida dos faxinalenses está pautada nos costumes, usos e crendices.

Contudo, por outro lado, há um movimento de revivescência destes povos pelo seu reconhecimento jurídico (leis estaduais e federais) e sua re-significação política, tal como mostram as pesquisas realizadas no Departamento de História da UNICENTRO/PR, campus de Irati. Entre elas citamos as sobre ritos fúnebres, festas e narrativas, pesquisas sobre a cultura e a história faxinalense a partir da criação e abate de suínos, história da alimentação e sobre migração.

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Diante disso, sustentamos que criar animais soltos nos Faxinais é cultura e não resultado de crendices ou costumes, e que ele aponta para outros, sempre possíveis, usos e apropriações da terra, o que é extremamente relevante em tempos de individualismo e regulações comerciais, e fundamental para descolonizar o saber e o poder.

Mais do que um singular sistema agrosilvopastoril, ele foi, e é, uma organização que promove a melhor utilização da natureza e pode ser visto sob vários aspectos:

- ecológico: como uma das últimas reservas florestais contínuas, alteradas pelo pastoreio e pelas atividades extrativas vegetais;

- econômico: equivale à área de atividade extrativa, madeira e ervateira, aliada ao pastoreio extensivo;

- social: representa uma interessante experiência já que o Faxinal é interpretado como resultado da interação entre a abundância de meios de produção-terra e mão-de-obra e escassez de capital e portanto de bens de produção.

Mas eles são mais que isso: eles formam um amplo sistema comunal, ligado por antigos laços de consangüinidade, vizinhança ou casamento. Neles as pessoas ainda nascem e morrem a poucos quilômetros dos lugares onde seus pais e avós viveram. As rodas de conversa e chimarrão, a divisão do trabalho, a forma da construção das casas e das cercas, e as festas compõem uma estrutura e as representações de um modo de vida que se transforma continuamente, embora existam várias permanências.

Por isso, o Faxinal, com suas formas próprias de uso e ocupação da terra, permitem questionar as formulações etnocêntricas, a tendência do pensamento a considerar as categorias, normas e valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável a todas as demais (DEBIAGGI, 2004).

Para Zayda Sierra Restrepo,

El estudio de las culturas nos revela la importancia de uno contexto i así reconocer el propio pensamiento etnocéntrico estereotipado [...]. El conocimiento, a través de viajes, vivencias cotidianas, o través de lecturas, de otras culturas nos amplía el marco en el cual fuimos criados de esta manera elevar nuestro nivel de sensibilidad intercultural. Una mayor sensibilidad intercultural significa, entonces, un permanente proceso de descentración, que implica reconocer los límites de nuestro propio conocimiento (RESTREPO, 2006, p. 8).

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Dessa forma, se uma maior sensibilidade intercultural significa um permanente processo que implica reconhecer os limites do nosso próprio conhecimento, é importante ler a resposta do faxinalense Olevi Soares Pedroso aos fazendeiros que os chamam de atrasados.

Pra nós faxinalense é muito importante este modo de vida, porque a gente trabalha muito em mutirão, porque nada se constrói sozinho, é sempre baseado em companheirismo, onde o que um tem o outro também tem ou, mais ainda, em partes iguais. Então eu acho que diferente de outras associações, uma associação só de agricultores, por exemplo, eles não têm igualdade, porque um planta 30 alqueires de milho e feijão, outro planta 100 e outro 200; um ganha mais do que outro e com nós não; a nossa é diferente [...] aquele que não tem mais, amanhã ou depois começa a

ter, porque se lá dentro do Faxinal eu tenho 10 cabeça de gado e tem um vizinho que não tem nenhuma, o que acontece? Se você quer comprar uma cabeça de gado eu tenho que eliminar uma da minha propriedade pra você ter uma.

Entendeu como é que funciona? Dai se tiver mais uma pessoa que também não tem o outro vai ter que diminuir uma da propriedade dela porque vai aumentar uma da outra. [...]. (Olevi Soares Pedroso).

Fontes Orais.

Olevi Soares Pedroso, presidente do Faxinal de Marcondes (Prudentópolis/PR). (Entrevista concedida a Eliane Crestina Lupepsa em 18/06/2008).

Meron Charnei, presidente da Associação Marcondense de Agricultores (Prudentópolis/PR). (Entrevista concedida a Eliane Crestina Lupepsa em 27/07/2008).

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CAMPIGOTO, José Adilçon. “Mapa temático dos Faxinais”. Irati, mimeo, 2008b. _________. “Representações sobre cultura na região de Irati”. Irati, mimeo, 2008a. CARNEIRO, Davi. História psicológica do Paraná. Curitiba: Dicesar Plaisant, 1943.

CHAMMA, Foed Castro. “Notas para um estudo da ecologia de Irati” In: Revista Irati - Sexagésimo aniversário do município. Irati, 1967.

CHANG, Man Yu. Sistema Faxinal - uma forma de organização camponesa em

desagregação no Centro-Sul do Paraná. Rio de Janeiro, 1985. Dissertação (Mestrado em

História). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Referências

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