[di<;ao
SeculoXXI
Editorial Verbo
EDITORIAL VERBO
DEPARTAMENTO DE ENCICLOPEDIAS E DICIONARIOS DIRECTOR
JOAD BIGOTIE CHOMO da Academia das Ciencias de Lisboa
SECRETAR1A-GERAL ANTONIO LEITAo COORDENAt;;AO EDITORIAL JORGE COLAC;:o GEORGE VICENTE TRATAMENTO INFORMATICO EM BASE DE DADOS SANDRA MONTEIRO COORDENAt;;AO GRAFICA E PESQlJISA JcONOGRAFICA MAGDA MACIEIRA COELHO FONTES ICONOGRAFICAS ARQUIVO VERBO • EUROPEDIA
BONNIER'S LEXICON CAMARA MUNICIPAL DE RESENDE CAMARA MUNICIPAL DE RIBElRA BRAVA CAMARA MUNICIPAL DE RIBEIRA DE PENA CAMARA MUNICIPAL DE RIBEIRA GRANDE
CAMARA MUNICIPAL DE RIo MAlOR • CAMARA MUNICIPAL DE SABROSA CAMARA MUNICIPAL DE SABUGAL
CAMARA MUNICIPAL DE SALVATERRA DE MAGOS ARTE RUPESTRE: FOTOGRAFIAS.DE M. E R. VARELA GOMES A. F. DE CARVALHO,
J.
1. CARDOSO E M. FARINHA DOS SANTOSREVISAO LIDIA VINTEM CAPA E GUARDAS JOSE BRANDAo PAGINA<;AO E PRE-lMPRESSAO
MARIA ESTIIER - GABINETE DE ARTES GWICAS, LoA.
/MPRESSAO E ACABAMENTO
TILGWICA - BRAGA DEZEMBRO DE 2002 © EDITORIAL VERBO LISBOA / SAo PAULO
NUMERO DE EDIc;:Ao: 2743 DEPOSITO LEGAL N.O 135 126/99 ISBN 972-22-1850-6 (OBRA COMPLETA)
ISBN 972-22-2170-1 (VOLUME XXV)
NOTA
PREvIA
Editar uma Enciclopedia implica uma clara consciencia de que 0 momenta da edi\;3.o representa urn corte num processo que continua, imperturbavel, a desenrolar-se. Preparar uma edi~o pro-fundamente revista e actualizada dessa Enciclopedia - resultado de uma tal consciencia - impli-ca, por sua vez, a n~o de que uma actualiza~o nao constitui necessariamente urn corte com 0 mundo dos valores e dos saberes a que 0 brilho e 0 esfor\;o de muitos dera anteriormente expressao. Empreender a actualiza\;ao dessa Enciclopedia constitui, antes de mais, uma home-nagem a esse labor colectivo, dando-lhe continuidade.
Nesta renovada edi~o, a ENCICLOPEDIA VERBO tomou corpo animada pelo mesmo sopro de alma com que a anterior se apresentou. Mas nela esta presente, merce de centenas de contribui\;oes de cialistas, urn desejo de aperfei~oamento e de aten~ao ao mundo que agora vivemos, ferido imprevisibilidades, mas triunfante de transforma\;oes e novos conhecimentos.
Os ritrnos da vivencia cultural e cien(mca adquiriram uma tal velocidade, tal diversidade e tais ca-racteristicas de interdisciplinaridade, que nao podiam senao ter deterrninado urn elevado grau de mudan\;a. Nesse sentido, a ENCICLOPEDIA VERBO, sendo a mesma, e hoje outra. Urn intenso trabalho editorial ao longo de anos impulsionou os mecanismos de uma renova\;ao que se traduz num apuro de criterios e de sistematicidade e numa significativa percentagem de texto novo, consubs-tanciada em alguns milhares de novas entradas e na actualiza\;ao ou substitui~ao das existentes.
o
manuseamento e consulta da ENCICLOPEoIA VERBO e intuitivo e extremamente simples. Impoem--se, no entanto, algumas explica~oes.Actualizat;Oes e Bibliografias
Entre OS aspectos que contribuiram para 0 prestigio e credibilidade da Verbo-Enciclopedia
Luso--Brasileira de Cultura, desde 0 inicio da publica\;3.o e durante os anos que levou a completar-se a 1: edi~o, foi 0 facto de os verbetes nela contidos serem assinados por grandes nomes da
cul-tura e da ciencia de Portugal e do Brasil, alem da colabora~o de ilustres autores de outros paises, e, regra geral, conterem uma bibliografia. Ora, a circunstincia desta edi\;3.o ser realizada a uma considecivel distancia no tempo daquela 1: edi~o, levantou dificuldades no que diz respeito ao equilibrio entre a necessidade de actualiza~o e a preserva~o do importante patrimonio de textos e autores, muitos deles infelizmente ja desaparecidos. Neste sentido, foram utilizados dois proce-dimentos que se toma necessario esclarecer. 0 primeiro consiste em assinalar, por meio da sua coloca\;ao entre parenteses rectos, breves actualiza~oes em textos cuja qualidade supera urn ou outro aspecto inactual. 0 segundo, visou libertar a bibliografia da assinatura do autar, de modo a perrnitir a sua actualiza~ao. Este procedimento, traduzido na coloca~o da bibliografia depois da assinatura, destinad6 a textos de autores que as circunstancias impedem de rever, converteu-se em regra, para manter uma identidade estmtural da Enciclopedia. No ultimo volume da Enciclopedia serao contemplados verbetes omissos e outras actualiza~oes.
RemissOes
A ENCICLOPEDIA VERBO utiliza um sistema de remissoes - atraves da coloca\;3.o do sunbolo 71 imedia-tamente antes do vocabulo remetido - que envia 0 consulente para informa~oes complementares e the perrnite ir tra~ndo percursos de descoberta e aprofundamento, construindo a partir do texto procurado, um outro texto maior, multifacetado.
Nesta nova edi~o eliminaram-se, contudo, as remiss6es para nomes proprios e apelidos, sobretu-do porque se considerou redundante juntar qualquer outra distin\;3.o
a
que 0 nome, pela sua propria natureza, ja contem. Assim, qualquer indica~o de nome no interior de uma dada entrada constitui, por si so, uma potencial rernissao, desde que procurada segundo os criterios de orde-na~o utilizados, nomeadamente 0 da ordena\;ao alfabetica do apelido.No caso das freguesias, agora incluidas em artigos mais.extensos sobre os respectivos concelhos, encontra-se no artigo .Portugal» uma lista de todas elas com indica\;3.o do concelho a que perten-cem e respectiva popula\;ao.
Re1e relegagem - relevo
relegagem - DIR. Era 0 nome que tinha na Idade Media a pensao ou foro que certos par-ticulares agricultores livres deviam pagar aquele que detinha 0 senhorio da terra - nos reguen-gos do rei, nas jugadas, coutos e honras dos
nobres e dos mosteiros - e gozava, por isso, do direito ou privilegio do chamado relego. Com
tal pensao ou foro ficavam os ditos particulares isentos desse direito ou privilegio do senhorio no que dizia respeito a livre venda do seu vinho, inclusive em concorrencia com 0 deste e duran-te 0 mesmo espat,;:o de tempo. Era um direito que com tal pensao ou foro 0 proprietano cam-prava para limitar assim 0 privilegio gratuito do senhor quanto a prioridade na venda do seu vinho.
L. CABRAL DE MONCADA
BlBL.: Viterbo, Elucidilrio.
relego - DIR. Palavra de etimologia duvi-dosa, talvez contract,;:ao ou abreviatura de rega-lengo, que significava, desde os tempos feudais,
o direito ou privilegio que tinham os soberanos nas terras regalengas, os donatarios nos coutos e honras e os mosteiros, de serem os primeiros durante certo tempo do ano, de meses e dias, a venderem 0 seu vinho produzido na terra sem a concorrencia dos outros agricultores e vinha-teros da mesma. Constituia 0 R. um verdadeiro monop6lio temporiirio relativo a venda do vinho, chamando-se a tal direito e privilegio direitode
R., cuja concessao expressamente constava de certas cartas de merce e ate de alguns forais. Este nome, que era inicialmente 0 nome s6 de um direito, comunicou-se depois aos pr6prios locais onde 0 vinho era fabricado ou guardado, tais como lagares, adegas e celeiros, juntamen-te com os outros produtos agricolas, enquanto aguardava 0 termo da proibit,;:ao de venda, de-pois de vendido 0 da senhar; au mesma antes
dissa se a praprietaria tinha paga a censa au
a foro de 71 relegagem. Os pr6prios indivfduos,
homens ou mulheres, que cobravam as rendas, pens6es e foros devidos aos senhorios por tal isent,;:ao eram charnados relegueiros. 0 direito de R. era ainda, como tantos outros direitos e insti-tuic6es limitadores da liberdade da terra (direitos ba~ais) pr6prios do mundo feudal e senhorial,
Esquema de inversao de relevo
7
reconhecidos nas ultimas Ordenar;6es do Reino
(Filip., Livro 2. 29, 3) ate perto do fim do antigo regime.
L. CABRAL DE MONCADA
BlBL.: Viterbo, Elucidilrio; Gama Barros, H. Admin., III; Paulo Merea, .Organiza<;;ao social e administra<;;ao publi-ca", em H. P. (Bare.).
relevo - CIN. Fen6meno da visao cinemato-grMica que consiste em dar uma «terce ira dimen-sao" as imagens. Este fen6meno da visao bino-cular nasce por uma select,;:ao, perceptivel por cada um dos olhos, de duas. imagens paraliixicas que se sobrep6em, durante a projec~o do filme, num efeito de estereovisao produzindo 71 «este-reoscopia" por meio de lentes polar6ides de co-res diferentes (processo 3-D) ou por meio de um ecra constituido por uma infinidade de Himinas prismaticas (sistema Ivanoff), 0 efeito de R. tam-bem e conseguido, embora atenuadamente, com o sistema de project,;:ao tripla denominado cine-rama. Tambem se chama «som em relevo- aos efeitos sonoros conseguidos atraves da 71estereo-fonia (altifalantes mUltiplos ligados a diferentes bandas rnagneticas de som de urn mesmo fUme).
Luis DE PINA
GEOL. 1. a) Elevat,;:6es ou desigualdades, em conjunto, de uma superficie de terreno.
b) A diferent,;:a de cotas entre os pontos mais alto e mais baixo de uma superficie de terreno.
2. R. jovem - Designat,;:ao geomorfol6gica para uma configurat,;:ao do R. correspondente a fase inicial do cielo de erosao (por oposit,;:ao a R. antigo ou maduro). Um R. jovem, ou imaturo, corresponde geralmente a formas topograficas vigorosas, com forte encaixe dos cursos de agua e encostas escarpadas, revelando 0 predominio dos fen6menos erosivos em detrimento dos fe-n6menos de transporte e sedimentac;;ao. Um R. jovem e caracteristico das zonas de montanha, em que a energia potencial e elevada, podendo tambem ocorrer em zonas de planalto ou mes-mo de planicie, quando se da a retorna do cielo de erosao por rebaixamento do nivel de base.
3. R. policiclico - Para os partidarios da teoria do «cielo de erosao normal", um R. e policielico quando e constituido por forrnas topograficamen-te distintas e originadas em epocas diferentopograficamen-tes.
4. R. ruiniforme - Formas menores da morfo-logia Karsica, devidas a combinat,;:ao das act,;:6es de dissolut,;:ao e de desagregat,;:ao ao longo. das diaelases de certas rochas carbonatadas. Estas formas evocam, geralmente, construt,;:6es e torres (Pinaculos) arruinadas.
5. R. tabular- R. de planaltos estruturais.
Em-pregue, muito especialmente, em areas de ro<:has sedimentares quando camadas duras oferecem superficies horizontais; a designat,;:ao de «relevo tabular- e, tambem, utilizada em situat,;:6es seme-lhantes, em areas vulcanicas (p. ex., as «mesas-do Mexico).
6. Inversiio do R. - Designat,;:ao adoptada para os tipos de R. em que a direct,;:ao da defonna~o tect6nica e da orografia sao inversas. Este tipo de R. e caracteristico das regi6es em que os vales correspondem a anticlinais (ou antiformas) e as elevat,;:6es aos sinelinais (ou sinformas), i. e, as depress6es no terreno (vales) correspondem dobramentos com a conca vida de virada para baixo (antielinais) e vice-versa.
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Um caso tipico de inversao do R. ocorre nos vales tif6nicos, em que as format,;:6es mais resistentes interessam a parte exterior do antifonna, enquan-to os terrenos moles constituem 0 seu nucleo. Os fen6menos de meteorizat,;:ao promovem uma erosao mais rapida das zonas menos resistentes - que se situam precisamente no nucleo do antiforma - dando origem a depress6es em zonas em que 0 substrato apresenta um R. sa-liente. Um bom exemplo de inversao do R. em Portugal e constituido pelo vale tif6nico das Cal-das da Rainha.
A. BARROS E CARY ALHOSA 1 Jos~ ANT6NJO AMARAL 2, 6
M. MONTEIRO MARQUES 3
JORGE ARROTElA 4
F. M. SILVA REBELO 5 BIBL. (de 2 e 4): J. Aubouin, R. Brousse, S. P. Lehman,
Precis de Geologie, Tectonique, Morphologie, Globe ter-restre, vol. III, Paris, 1968; M. Gary, R. McAfee, C. L. Wolf,
Glossary of Geology, Am. Geo!. Inst., Washington D.C., 1972; c. Teixeira e F. Gon<;;alves, Introdu~iio ii Geologia de Portuga4 Inst. Nae. Invest Cientlfica, Lx., 1980. De 3: M. Derruau, Precis de Geomorphologie, Paris, '1967.
religiao - REL. A existencia do fen6meno re-ligioso e sua permanencia ao longo da hist6ria, a sua unidade fundamental bem como a origina-lidade e inesgotabiorigina-lidade de suas express6es sao dados irrecusaveis abundantemente confirmados pelas ciencias da R.
Ha milhares de anos que as interrogat,;:6es fun-damentais sobre 0 sentido do mund 0 e da vida alit'nentam a reflexao do homem, que assim rnar-ca religiosamente os espat,;:os socioculturais que constr6i e habita.
o
desejo incoerdvel de verdade e de felicidade, que deixa 0 coras:ao inquieto (Sto. Agostinho), serve bem para demonstrar que 0 homem exce-de infinitamente 0 homem (Pascal) e que e, por isso mesmo, naturalmente religioso.De facto, nao se encontrou ate hoje nenhuma grande civilizat,;:ao que nao fosse religiosa (Toyn-bee). A concep~o evolucionista de um progres-so linear segundo a qual 0 homo sapiens teria
sucedido ao homem primitiv~ e, deste modo, suplantado 0 homo religiosus e destituida de fundamento. 0 homem de hoje, como outrora 0 homem das cavemas, continua a fazer a expe-riencia do sagrado sabre 0 qual funda a sua exis-tencia, com 0 qual transcende a sua finitude e grat,;:as ao qual prepara um futuro que quer e anteve risonho e feliz.
E
esta a condit,;:ao espiri-tual da humanidade expressa ainda recentemen-te na Declarat,;:ao Nostra aetate, do concilioecumenico Vaticano II, a 28.10.1965. Desde os tempos mais recuados ate hoje, en-contramos nos diferentes povos uma certa sen-sibilidade a esta fort,;:a oculta que acompanha 0 curso das coisas e os acontecimentos da vida hurnana, e ate, por vezes, urn reconhecimento da Divindade suprema ou ainda do PaL Esta sen-sibilidade e este conhecimento penetram a sua vida de um prof undo sentido religioso.
o homo religiosus nao e uma present,;:a exclusiva
de epocas remotas: do Paleolitico, das civiliza-t,;:6es hitita, egipcia, grega, romana, celta, germa-nica ou esla,:"a. Encontra-se no seio das grandes reli~ioes da Asia (hindulsmo, budismo, taoismo), da Africa e da Australia. E vive desassombrada-mente a sua fe nas tres religioes que constituem
9 religiao
'Reli
Hindulsmo Judaismo Budismo Cristianismo lslamismoGeografia das grandes religi6es
a posteridade de Abraao: judaismo, cristianismo e islamismo. 0 homo religiosus esta enraizado na
hist6ria, na qual deixou vestigios orais e escritos das multiplas e variadas experiencias que man-tem com uma realidade absoluta e na qual
acre-ditou, 0 sagrado, que transcende este mundo, mas nele se manifesta e, por iSso, 0 santifica e torna real eM. Eliade). A historia das religii5es e
Simbologia
'1lpiritual indiana: o lotus ii mandala
Reli
religiaopOis a hist6ria do homo religiosus surpreendido
na realidade existencial e no exercicio pratico das suas cren<;as, das suas convic<;6es e com-portamentos.
1. Nor;iio: etimo!ogia e semantica. 0 termo
.re-ligiao. evoca de imediato urn conjunto de repre-sentac;:6es, de ritos e de observancias, que tradu-zem exteriormente encontros ou experiencias humanas com 0 sagrado. Usado universalmente, o vocibulo assume as mais variadas significa<;6es de harmonia com as culturas e mentalidades de onde emerge e nas quais se exprime. De si mesmo, tanto pode designar a relas;:ao funda-mental do homem com 0 Absoluto, 0 Transcenc dente, 0 Misterio, 0 Inominado ou Indizive1, co-mo 0 conjunto das suas manifesta<;6es hist6ricas organizadas em sistema coerente de cren<;as e de pniticas pr6prias de uma determlnada civiliza-<;ao ou cultura. A hist6ria da ideia da R. revela tra<;os culturais pr6prios de cada universo lingui5-tico de onde surgiu e onde se desenvolveu, pelo que qualquer tentativa de descri<;ao ou defmi<;io geral com base apenas na hist6ria das R. e pra-ticamente impossiveJ. Se qUisermos colher a es-sencia do fen6meno religioso,porventura 0 seu sentido original e especifico, havera que recor-rer, para la da hist6ria das R, a fenomenologia da R, a antropologia religiosa e sobretudo a her-meneutica filos6fica da R No entanto, e impres-cindivel conhecer previamente, ao menos nas suas linhas gerais, 0 percurso semantico do con-ceito .religiio., derivado do latim religio e cuja
etimologia ja os antigos romanos, incertos, dis-cutiam.
Segundo Cicero, religio remontaria a relegere, cujo
sentido primeiro viria de recolligere, curam agere,
que, por oposic;:ao a negligere, significa revolver
no espirito, cUidar, tomar a serio, ler uma se-gunda vez, Ier nao apenas com os labios, mas com cUidado, compenetrando-se do sentido daquilo que se Ie, meditar. R significaria entao pudor e recolhimento, escrupulo e delicadeza de consciencia, cumprimento do dever para com coisas e pessoas, culto dos deuses (De natura deorum, II, 28, 72). Mais recentemente, mas no
seguimento de Cicero, F. Altheim (La Religion romaine antique, Paris, 1955) ve na R., por oposic;:ao a negligencia, uma atitude de
volun-taria e dedic--ada submissao, e Dumezil (Les Dieux
des Indo-Europeens, Paris, 1952), uma atitude
reservada, urn escrupulo, uma interdic;:ao, 0 con-trario de urn impulso ou de uma acc;:ao. Tudo indica, observa H. Fugier, que se trata de uma tomada de consciencia sob 0 signo da disci-plina. Sin6nimo de disposic;:ao subjectiva, de es-crupulo, de cuidado vigilante e aplicac;:ao me-ticuiosa, 0 significado de R depressa derivou, por extensao, para as realidades objectivas cor-respondentes ao culto e observancia rituais. Independentemente do seu valor de verdade, a dupla referencia etimol6gica, de Cicero a pri-meira, a segunda de Lactancio e de Tertuliano, presta-se admiravelmente a mostrar, numa visao de conjunto, 0 sentido convergente que podem revestir as mais variadas formas de experiencia do homo religiosus. E a partir deste horizonte semantico que se tern pretendido apreender e definir a essencia do fen6meno religioso. Urn estudo elaborado por Pauli, em 1947, apresenta nada menos do que 150 definic;:6es (Paul She-besta, Ursprung der Religion, Bedim, 1961; trad.
fr., Paris, 1%3). Por sua vez, M. Despiand, no seu livro La Religion en Occident (Montreal, 1979)'
refere c. 40 definic;:6es s6 para 0 Ocidente ate Schelling.
2. Fenom..enoiogia da R.: 0 sagrado e sua
iin-guagem. E sempre possive1 definir a R a partir
das experiencias e das atitudes que 0 homem assume para com uma alteridade transcendente e qualitativamente superior, seja ela 0 simples
sagrado, 0 sentido ultimo do universo ou 0 Deus pessoal, criador e providente das R mo-noteistas. Sera entao para 0 conteudo ou den-sidade ontol6gica desta alteridade que transita o problema. Entretanto, uma coisa parece desde ja assegurada: a R. pertence por natureza ao dominio do sagrado.
Todo e qualquer fen6meno religioso constitui uma experiencia sui generis suscitada por uma
especie de encontro ou contacto directo e ime-diato com 0 sagrado. Derivado do radical indo--europeu sakOatim sacer, de sancire- delimitar,
rodear, sacralizar e santificar), 0 vocabulo sagra-do significa, por oposic;:ao a profano, tusagra-do
aquilo que esta delimitado, separado, reservado ou proibido. 0 sacer latino sugere a ideia de Bhagavata Purana; Krishna crianfa, no banho (c. 1500)
11 12
Pagina omamentada do Coriio, Bagdade, sec. XI
(Biblioteca Chester Beatty, Dublin)
dois espac;:os irredutivelmente separados de que sao representac;:6es simb6licas 0 templo ([anum)
e as imediac;:6es do templo (pro-fanum).
Segundo esta prime ira e fundamental determi-nas;ao, 0 sagrado designa uma ordem de rea-lidades cuja natureza e valor superam radical-mente a natureza e valor das coisas do mundo em que vivemos. Os autores da escola socio-16gica, designadamente E. Durkheim, decla-ram esta oposic;:ao radical e invendvel: ·0
sa-grado e 0 profano foram sempre concebidos pelo espirito h1..l;mano, em toda a parte, como generos separados, como dois mundos abso-lutamente incomunicaveis e intransponiveis»
(Les formes eiementaires de la vie religieuse,
Paris, '1925, p. 53). Mesmo quando entre 0 fanum e 0 profanum nao existe uma linha divis6ria materialmente intransponfvel, 0 sa-grado apresenta-se sempre como um mundo separado, investido de urn valor intangivel, inviolavel.
E
da sua essencia ser diferente e tomar diferente: homem e objectos sao esco-lhidos, reservados para servic;:os do templo, para 0 culto divino, certos dias da semana ou do ana sao especialmente destinados a celebra-cao das forcas ou seres sobrenaturais. Interdi-ros e tabus 'encontram aqui a sua explicas;:ao. Fen6meno primitiv~ e universal, 0 sagrado parece ter emergido da necessidade que 0homem sempre experimentou de conciliar a natureza com as suas necessidades e a aspira-cao de vencer ou neutralizar a morte e de se ~colher a urn ceu amigo e protector, a urn po-der seguro e fiel. Com base no sagrado, 0 ho-mem organiza urn mundo habitavel, ao mesmo tempo s6lido e largamente aberto a urn futuro cheio de promessas.
Sobre a tensao elementar entre 0 sagrado e 0 profano tecem-se e articulam-se as mais varia-das concepc;:6es do mundo e da vida expressas atraves de uma imensa profusao· de simbolos, de mitos e ritos, tanto nas R. primitivas e arcai-cas como nas R. mais evoluidas, que a fenome-nologia e hermeneutica irao encontrar e tentar compreender sem exduir as grandes R. reve-ladas.
13
religiao
Reli
o
mundo superior do sagrado e constituido por urn ou mais seres (deus, deuses) nos quais se concentra ou para os quais converge 0 sagrado propriamente dito. Estes seres sao geralmente con-cebidos como autores e senhores de todas as coisas, provendo com particular solicitude as ne-cessidades dos homens. Mas 0 qualificativo de sagrado aplica-se tambem, por extensao, a deter-minados objectos, forc;:as da natureZ'd, astros, ani-mais, homens (sacerdotes, reis, her6is), a seres concebidos a maneira de homens (genios, dem6-nios, espiritos), a artefactos (amuletos, estatuetas, talismas), acc;:6es (sacrificios), tempos, espa<;os, formulas, nomes ou doutrinas, sempre que neles ou por meio deles se manifesta urn poder sobre-natural ou divino. Estas realidades tomam-se, por assim dizer, epifanias ou rnanifestac;:oes do sagrado. Na linguagem de M.Eliade, 0 sagrado enralza-se numa hierofania como lugar original da suareve-lac;:ao. No corac;:ao das realidades intramundanas, que lhe servem de mediaf/5es, 0 sagrado revela-se, ao mesmo tempo que se oculta, como 0 total-mente diferente, como poder espiritual, fonte de satide, de virtude e de santidade. Atraves dos sacri-ficios e do culto que lhe presta, 0 homem esperd dele a comunica<;io de uma forc;:a capaz de trans-fonnar a totalidade e integridade da sua existencia. A etnologia e a hist6ria das R revelam a pre-senc;:a irrefutavel do sagrado em todos os povos e culturas como categoria central da sua visao religiosa do mundo. Se, sob um aspecto negati-vo, 0 sagrado equivale ao absoluto, ao nao-rela-tivo, ao incondicionado e incognoscivel, ele e tambem, de modo positivo, 0 unico, 0 simples, o puro Ser e puro Saber, Espirito, Verdade e Bondade. Entre os fil6sofos, 0 Absoluto e 0 fun-damento sem funfun-damento, 0 Ser em si, 0 Acto puro de Arist6teles, 0 Bern supremo de Platao, o Uno de Plotino, 0 brahman dos Upanishads e
do Vedanta que impregna misteriosamente os se-res e as coisas, a Shunyata, Vacuidade, do
mis-ticismo das escolas budicas. As R. invocam-no sob 0 nome de Jave, 0 Senhor, de Allah ou Deus, de Propicio (Shiva) e Omnipotente (Vishnu).
Trata-se, porem, de uma mesma realidade vista e percebida de modos diferentes: como con-dusao filos6fica, a primeira; como experiencia pessoal, a segunda. Nas R., 0 Absoluto tern urn rosto que interpela os homens, chamando-os a salva<;ao. No hindufsmo
e Ishvara,
0 Senhor, manifestac;:ao pessoal do brahman. Nojudeo--cristianismo e islamismo e 0 Deus de Abraao, de Isaac e de Jacob, de Jesus e de Maome.
o
sagrado poe 0 homo religiosus em contacto com uma re-dlidade transcendente atraves de uma luxuriante vegetac;:ao de sfmb%s, de mitos e de ritos em que se exprime. Nesta perspectiva, 0 homo religiosus e nao s6 leit~r do sagrado, mas, sobretudo, seu interlocutor e mensageiro privi-legiado. A linguagem do. vida e da experiencia do homem religioso e essencialmente simb6lica.E
pela boca do simbolo que 0 mundo the fala, revelando modalidades do real que nao sao evi-dentes por si mesmas. Irrompendo natural e es-pontaneamente das estruturas mais fundas da Vida, os simbolos religiosos trazem a superf:icie uma dimensao que transcende a simples dirnen-sao humana e permitem apreender a realidade ultima. 0 pensamento simb6lico precede a lin-guagem conceptual e faz parte integrante daReli
religiaoo
arcanjo Isriiftl, miniatura de As Maravilbas da Criar;iio (sec. XN), de al-Qazwini(Freer Gallery of Art, Washington)
experiencia religiosa a demonstrar que 0 homo
religiosus e, por natureza, urn homo symbolicus.
Pode dizer-se, com Paul Ricoeur, que, sobre urn sentido primeiro, literal, patente, 0 simbolo evoca, sugere ou da urn sentido segundo que indefinidamente 0 enriquece e dilata (Finitude
et Culpabilite, p. 22-23). Deste modo, todo 0 simbolo e urn sinal sensivel e dinarnico aberto a ilirnitadas significa~6es e ressonancias. Com base nos trabalhos de Jung, de Piaget e de Ba-chelard, G. Durand funda este dinarnismo orga-nizador, factor de homogeneidade de represen-ta~ao, na pr6pria estrutura da imagina~ao (id.,
p. 25-26). Etirnologicamente, 0 simbolo implica a ideia de divisao e de subsequente reuniao, evoca uma harmonia que ainda nao se encon-trou ou que ja se perdeu e que ele precisamen-te e chamado a refazer. A separa~ao e visivel por toda a parte: a noite separada do dia, a Iua separada do sol, a agua do fogo, 0 puro do impuro, 0 sagrado do profano, etc. Por sobre a dispersividade aparentemente insanavel, 0 sim-bolo, gra~s ao seu natural dinarnismo, revela-se como abertura e promessa em multiplos e sur-preendentes itinerarios de sentido. Conjugando o visivel com 0 invisivel, 0 mesmo com 0 outro, o presente com 0 passado e 0 futuro, 0 simbolo inventa indefinidamente novas e mais amplas formas de harmonia ate ao encontro definitivo com a unidade absoluta, a urn tempo ultima e primeira. 0 natural e deslumbrante jogo dos simbolos obrigou 0 homem a levantar-se da terra e a fixar os olhos no ceu: todo 0 simbolo, mormente 0 simbolo religioso, e de si mesmo indicativo de dignidade e de brio, de inabalavel confian~a e de remontada altitude que por den-tro sustentam e soerguem a humana condi~ao.
o
homem serve-se das suas pr6prias estruturas psiquicas e mentais para exprirnir 0 sagrado, que ele concebe como indizivel. Toda aexpres-15
sao do sagrado, inseparavel do homem, e, por isso mesmo, de natureza simb6lica, a qual, por sua vez, se concretiza em mitos e ritos. 1;'odos os rnitos - cosmog6nicos, de origem, de reno-va~ao, escatol6gicos, etc. - contem uma men-sagem normativa, de natureza doutrinal e de apli-ca~ao pratica. As repetidas irnita<;:oes dos gestos primordiais ou sagrados, mediante a permanente actualiza<;:ao, operada nos e pelos ritos, aproxi-rna cada vez mais 0 homem religioso do modelo divino. Mediante as praticas rituais, os crentes reafirmam a sua fidelidade aos deuses que fun-daram 0 seu mundo e
a
comunidade que os acolheu e formou. 0 rito por excelencia e 0 sacriffcio em que uma vitima serve de interme-diario entre os homens e a divindade. Segundo Rene Girard, 0 cristianismo, com 0 sacrificio de Jesus, veio por fima
vioH~ncia dos sacrifkiosantigos.
Esta concep<;:ao da realidade e do valor perma-nente da linguagem simb6lica e comum a mui-tos pensadores contempacineos cujas formula<;:6es perrnitem compreender melhor a originalidade irredutivel da sua fun~ao na experiencia huma-na. Segundo a defini~ao de Lalande
(Vocabu-laire critique et technique de la philosophie, art.
..symbole») - sinal concreto que evoca, por uma rela<;:ao natural, qualquer coisa de ausente ou impossivel de compreender - , pe10 facto de ser concreto, 0 sfmbolo contem previamente aquilo mesmo que de seguida ira dar por refe-rencia e alusao. Concreto, 0 simbolo e principio e germe de crescimento na medida em que, enraizado na natureza, e por e1a portador de uma mensagem, de urn apelo que faz 0 nosso viver e crescer. Pela sua liga~ao estrutural com a natureza e 0 corpo, 0 simbolo e uma perma-nente li<;:ao de realismo. Pela evoca<;:ao de uma realidade ausente, 0 simbolo rompe os quadros do espa~o e do tempo fisicos que tantas vezes nos afogam e oprimem, deixando entrever, para hi de todos os espa~os e tempos, ilirnitados ho-rizontes de novas terras e de novos ceus.
:E-
a pr6pria razao, d6cil e hurnilde, a reconhecer que 0 simbolo torna perceptivel a existencia de certas realidades que escapama
sua luz natural.o
pensamento simb6lico surge assim como ne-cessario complemento do pensamento 16gico ou racional.A simboliza~ao mostra a capacidade do homem em ultrapassar a aparencia material das coisas, para elaborar uma linguagem compreensive1 a urn grupo de iniciados, ligando-os a uma comu-nidade intencionalmente significativa mais vas-ta e que os ultrapassa. Pouco imporvas-ta que essa comunidade seja unicamente social ou esteja revestida de uma voca~ao religiosa e espiritual. Quando muito, esta intencionalidade religiosa exprime uma tentativa do.homem para represen-tar a ultima realidade de sentido. A este prop6-sito Creuzer escrevia que 0 simbolo torna de algum modo visivel ate 0 divino: .[' .
.J
ele atrai a si com uma for~a incoercivel 0 homem que o ve, apodera-se da sua alma como se fosse 0 pr6prio espfrito do mundo» (Symbolik undMy-thologie der alten Volker, t. I, p. 70).E Goethe acrescenta: «0 simbolismo transforma 0 fen6me-no em ideia, a ideia numa imagem, de tal sorte que a ideia permanece sempre e actua na ima-gem, permanecendo fuacessivel e
indefinidamen-16
te activa, e mesmo que a ideia se exprima em todas as linguas, continua entretanto inexprimi- . vel. (Maximen und Rriflexionen, ed. Tempel, II, p.463).
G. Morel insiste na ideia de que 0 simbolo traz consigo 0 sentido e 0 caminho (Le sens de l'e:x:is-tence selon Saint-jean de la Croix-, vol. III, p. 40), a sublinhar a correla~ao entre 0 simbolo e 0 pensamento racional. Mas aqui a t6nica e posta na propriedade que tern 0 simbolo de lanfar e
prender, ao propor uma direc<;:ao acompanhada
de directrizes. Eo que acontece, p. ex., com 0 simbolo da fonte que nos indica ou ens ina 0 rio, 0 qual, por sua vez, s6
e
na medida em que corre pressuroso a dizer 0 mar oceano. A pratica do simbolo obedece, portanto, a certas directri-zes inconscientes que, desde 0 inicio, contem potencialmente 0 termo ou ponto de chegada do seu livre caminhar. 0 sentido, que e uma direc<;:ao, e tambem, e sobretudo, uma luz mais abundante, urn subito darao, a apontar novos rumos para hi dos carninhos porventura ja anda-dos ate pela sabia razao. Ao simbolo esta reser-vado urn carninho original, que e 0 carninho da fe, a qual, nas R. mais evoluidas, reune 0 pas-sado e 0 futuro no mesmo lugar de nascen<;:a, a que chama Ser Supremo ou Deus criador e providente.Neste mesmo sentido abundam, dotadas de par-ticular acuidade, as analises de C. G. Jung para quem ·0 simbolo e a melhor figura possivel de uma coisa relativamente desconhecida, que nao poderiamos designar, de inkio, de uma manei-ra mais clamanei-ra ou camanei-racteristica. (Types
psychologi-ques). 0 simbolo surge-Ihe como uma abertura ao misterio, como a instaura~ao de uma rela<;:ao gue arazao nao compreende nem sabe definir: E pelo facto de inumeras coisas se situarem para alem dos lirnites do entendimento hurnano que n6s utilizamos constantemente termos sim-b6licos para representar conceitos que nao po-demos nem defmic nem compreender plenamente
[ .. .J,
mas 0 usa consciente que fazemos dos sim-bolos nao passa de urn aspecto particular de urn facto psicol6gico mais geral e importante: 0 ho-mem cria tambem simbolos de modo incons-ciente e espontaneo, para exprirnir 0 invisivel e 0 inefave1 (L 'hom me et ses symboles).Mas a realidade para a qual 0 simbolo orienta o pensamento nao e arbitraria, como adverte 0 mesmo Jung: 0 simbolo supoe sempre que a expressao escolhida designa 0 mais adequada-mente passivel certas dimensoes da realidade cuja natureza podemos desconhecer, mas de cuja existencia nao podemos duvidar (Types
psycho-logiques).
Este desconhecido do simbolo, observa a pro-posito
J.
Chevalier, mio e 0 vazio da ignorancia, mas 0 indeterminado do pressentimento. Umaimagem ou figura~ao vectorial vai envolver este indeterminado numa aura de luz a indicar a sua presen~a. Preciosa tambem, na sua sobriedade e concisao, a explica~ao de P. Ricoeur, que de-fine 0 simbolo como ·estrutura de significa<;ao em que urn sentido primeiro designa por acres-cimo um novo sentido, que s6 atraves do pri-meiro pode ser apreendido. (Le Conflit des inter-pretations). E, mais concretamente, no ambito
da experiencia religiosa, 0 mesmo autor precisa que 0 simbolo «e uma rela~ao entre 0 ser do ho-17
religiao
Reli
mem e 0 Ser total». Sublinhando, deste modo, a intima uniao do homem com todo 0 Univer-so e, ultimamente, com 0 pr6prio Deus, ocul-to, mas presente, no come~o e no fim de todo o processo simb6lico, P. Ricoeur termina por afirmar que .todo 0 simbolo e finalmente uma hierofania, uma manifesta<;:ao da rela~ao do homem com 0 sagrado» enquanto estrutura ou dimensao fundamental do ser (Finitude efCul-pabilite).
Este ultimo aspecto foi expressamente estuda-do por M. Eliade ao longo de toda a sua obra. Como «categoria transcendente da altura, do su-praterrestre, do infinito, 0 simbolo revela-se ao homem todo, tanto
a
sua inteligencia comoa
sua alma. 0 simbolismo e um dado imediato da consciencia total, quer dizer, do homem que se descobre como tal, do homem que toma cons-ciencia da sUa posi~ao no universo; estas des-cobertas primordiais andam ligadas de modo tao organico ao seu drama que 0 mesmo simbolis-mo determina tanto a actividade do seu subcons-ciente como as mais nobres expressoes da vida espiritual. (Hisfoire des religions). Verifica-se por este longo extracto que 0 simbolo autentico e, para M. Eliade, urn dado imediato da conscien-cia no qual participam todos os recursos de or-dem intelectual, cultural e afectiva: 0 simbolo «permanece indefinidamente sugestivo», acolhen-do e uninacolhen-do,a
imagem e semelhan~a de Deus, num mesmo e unico centro, todos os elementos esparsos pelo universo.E
ja de dentro da teologia que Paul Tillich, de-pois de reconhecer que 0 simbolo naoe
arbitra-riamente escolhido, pois se mostra dotado de urn poder intrinseco e de uma dimensao comu-nitiria que se oferecema
contempla~ao e reme-tern para alem dele mesmo, termina por declararBuda Avalokitesbvara guia a alma dos fieis para
o parafso (Museu Guimet, Paris)
o
taiji, simbolo da alterruincia da energia cosmicaReli
religiao«que ele e essencial a vida religiosa como meio indispensavel para a sua expressao. (Aux
jron-tieres de la religion et de la science).
o
simbolo emerge como estruturac;:ao das relac;:6es do homem com 0 mundo: relac;:6es de alteridade exterior - sfmbolo c6smico - e relac;:oes de alteridade interior - simbolo onirico. 0proble-ma consiste em saber como e a partir de que origem se processa e organiza a estruturac;:ao simb6lica. Do mesmo modo que a sa grado, tam-bem a simbolo constitui um dos lugares mais solenes e decisivos do conJlito das interpretar;Oes. Podemos reparti-Ias, tendencialmente, em dois grupos: hermeneuticas'redutoras e hermeneuticas instauradoras. As primeiras consideram 0 sim-bolo como expressao da obscura profundidade da Vida, como expressao de insignificantes sobre-vivencias arcaicas, nao lhes reconhecendo qual-quer func;:ao importante na presente organizac;:ao da vida. As segundas, mais atentas ao sortilegio das suas mensagens, veem no simbolo uma ten-sao para um sentido, para um fim absoluto e definitivo.
Uma hermeneutica sera redutora sempre que pre-tenda explicar exaustivamente 0 simbolo atraves da analise dos elementos que a compoem e que pertencem a outro dominio da realidade; decompor 0 simbolo nos seus elementos, para assim 0 explicar, equivale a destrui-lo. Pelo con-trario, a hermeneutica sera instauradora na medi-da em que lance luz sobre a misterio que nele subsiste e desponta. Entre as hermeneuticas re-dutoras do simbolo, G. Durand enumera, alem da pSicanalise freudiana - associac;:ao do sim-bolo ao processo de sublimac;:ao e de recalca-mento - , a ideologia trifuncional de G. Dumezil _ rei, classe militar e povo - , e a estruturalis-mo de Levi-Strauss, que substituiu a ressonancia
Divinclacle budista, sec. XI
19
c6smica e religiosa do simbolo pela monotonia geomettica dos seres e das esttuturas relacionais da linguagem (L'imagination symbolique, caps.
II e III). Entre as hermeneuticas instauradoras, e
justa salientar as posic;:6es de E. Cassirer e de
C. G. Jung. Na sua obra monumental em tres volumes, Filosofia das Formas Simb6licas, Cas-sirer apresenta a simbolo e a simbolismo, em mol des kantianos, como categorias mentais, participantes ao mesmo tempo do fen6meno e do numero. 0 pensamento simb6lico resulta de uma disposic;:ao irredutivel que avanc;:a incoer-dvel, atraves de todas as construp5es racionais, para a realidade de que e expressao sensivel. Como forma a priori do espirito humano,' afec-ta e acompanha tudo a que a homem apreende e diz. Por sua vez, C. Jung sublinha, em varias das suas obras, mas sobretudo em L 'homme et
ses symboles, a existencia de uma dimensao
es-piritual que, oculta num inconsciente colectivo, vem a luz na func;:ao slmb6lica. 0 sentido espi-ritual do simbolo, que irrompe animado de um dinamismo ascensional, e regulado par um con-junto de arquetipos, imagens primordiais, cen-tros aut6nomos e interdisciplinares que, como outras tantas constelac;:oes, povoam as profun-didades do subconsciente colectivo, formando e configurando a consciencia individual. Nestes arquetipos ou imagens primordiais vive e espera a eterna crianc;:a, a puer aeternus, que todos os homens carregam em aspira<;:ao e promessa de imortalidade.
As hermeneuticas instauradoras sao assumidas e potenciadas pelas hermeneuticas religiosas, de-signadamente de M. Eliade e de P. Ricoeur, e integradas na superior unidade do sagrado au divino. Se a simbolo tem um sentido espiritual e porque corresponde a uma experiencia par-ticular, a uma experiencia original e irredutivel, que e a presenc;:a do sagrado. Para M. Eliade nao existe simbolismo religioso sem a experiencia viva do sagrado, que e uma estrutura da cons-ciencia humana e nao uma manifestac;:ao aci-dental e provis6ria. As formas simb6licas nascem de um fundo irredutivel e subjacente a cons-tante mobilidade das suas manifestac;:oes visiveis e palpaveis.
E
esta a grande lic;:ao da hist6ria das R., que e a hist6ria cia Homem na sua luta pela ImOltalidade.No suko aberto por Mircea Eliade, Paul Ricoeur considera que as hermeneuticas redutoras e as hermeneuticas instauradoras tendem a conver-gir e a reconciliar-se na superior hetmeneutica religiosa, ja que «a ambiguidadedo simbolo nao e um defeito de univocidade, mas a possibilida-de possibilida-de conter e possibilida-de produzir interpretac;:oes con-trarias e coerentes em si mesmas [, .
.1;
as mes-mas simbolos sao portadores de dois vectores: par um lado, repetem a nossa infancia [. ..J,
par outro, exploram a nossa vida adulta [ .. .]. Estes simbolos autenticos sao verdadeiramente regres-sivo-progressivos; pela reminiscencia, a anteci-pac;:ao; pelo arcaismo, a profecia. (DeI'interpre-tation. Essai sur Freud).
Procurar as fontes do simbolismo e interrogar nao apenas as fundamentos do saber humane, mas tambem a sentir e a finalidade de todas as actividades criadoras do homem de que as gran-des simbolos poeticos e religiosos sao a mai? directa e opulenta celebrac;:ao. Ao mesmo
tem-20
po original e incoerdvel, a func;:ao simb6lica corresponde as necessidades e aspirac;:oes mais profundas do homem, que se mostra inquieto enquanto nao encontra um absoluto no qual possa, par fim, repousar. A criac;:ao simb6lica nao e pura Jicc;:ao, mas a natural e espontaneo desvelar-se do ,ser como momenta inelutavel pelo qual todas as coisas, saindo da obscuri-dade, vem a sua presenc;:a. Como diz Levinas, a simbolo nao e a resumo de uma presenc;:a 'que lhe preexiste, pais dri sempre mais do que toda a receptividade do mundo e capaz de canter. Receber, acolher e perseguir quanta no simbolo se da e oferece e a maneira mais original e ve-ridica de se siruar em relac;:ao aos seres e ao Ser (Humanisme de I'autre homme). S6 e possivel atingir a sagrado atraves do ho-memo Em toda a sua obra P. Tillich esforca-se par demonstrar que a R. e absolutamente Inse-paravel da cultura e que e um erro separar a sagrado do secular: e no mais intimo da cultura humana que mergulham as raizes do fen6meno religioso. «Os simbolos religiosos, escreve, nao sao pedras caidas do ceu. Enraizam-se na tota-lidade da experiencia humana. S6 as poderemos compreender tendo em conta 0 contexto social e cultural em que se desenvolveram e contra a qual tantas vezes reagiram. (,The Significance of the History of Religions., em Essays on
Unders-tandiniJ. Porem, a visao antropol6gica do
fen6-~eno religioso implica uma aten<;:ao muito par-ticular ao, problema hermeneutico au seja a leitura correcta das diversas
linguag~ns,
simb6-lica, mitica, ritual e conceptual, atraves das quais a homem exprime a sua busca e concepc;:ao do sagrado. P,o~emos adrnitir com Heidegger que a homem so e verdadeiramente homem quando exprime as seus originais pensamentos e intui-c;:oes. Se a linguagem e a instrumento decisivo com a qual a homem comunica as suas intuicoes primeiras, torna-se evidente que a hermen~uti ca, porque visa restituir a sentido autentico desta comunicac;:ao,e
um facto social: nao podera ha-ver compreensao fora da densidade humana de um conviver, de um Zusammenleben. Par isso, r.nais do que uma simples explicac;:ao de uma lmguagem particular, a hermeneutica tera de explicar como e porque e que as textos mi-ticos e simb6licos nos tocam tao directa e pro-fundamente. 0 pape! da hermeneutica consiste em decifrar a sentido oculto no sentido aparen-te e liaparen-teral dessas linguagens. A analise das for-mas de comportamento do homem em relacao ao sagrado, a interpretac;:ao dos ritos e mitos, dos simbolos e crenc;:as, como outras tantas mo-dalidades de representac;:ao deve conduzir a uma reflexao do homem sabre si mesmo.E
que a homem, no dizer de Paul Ricoeur tomacons-~iencia
da sua existencia na medfda em que, l~terpelado pelo sagrado, pode rever-se no que dlZ das suas pr6prias experiencias reliaiosas (<<Existence et Hermeneutique., em Le Zonjlitdes interpretations). Para compreendermos,
par pouco que seja, as atitudes religiosas do homem, e necessaria avanc;:ar, para la do hist6-rico e social, em direcc;:ao as estruturas profun-~Ias do pensamento, da linguagem falada e do mconsciente humano. No termo dessas analises o
~agrado
revela-se como um elemento dapr6~
pna estrutura do homem e nao como umasim-21
religiao Reli
Juclaismo: pagina i1uminada cia Biblfa de Cervera (1299)
pies etapa da sua evoluc;:ao espiritual, permane-cendo como exigencia fundamental sob as mais diversos modos de expressao. A critica desen-volvida par Marx, Freud e Nietzsche, mesttes da suspeita, na intenc;:ao de eliminar par com-pleto a fen6meno religioso, mais nao faz do que restitui-Io a sua verdadeira essencia e dicr-ni?ade. Pode a sagrado assumir, em tempos de cnse, formas mais au menos degradadas, mais au menos alienantes, conhecer eclipses mais au menos prolongados, mas 0 seu
desaparecimen-to nunca sera desaparecimen-total nem definitivo.
Toda a sociedade humana, em virtude do seu pr6prio dinamismo, recorre a um sagrado como suporte e justificac;:ao das suas acc;:oes na exac-ta medida em que este sagrado e a mundo do home~ ~le~ado acima da sua existencia profana, da eXlstencla de todos as dias. Sem a sublima-c;:ao attaves do sagrado, as sociedades humanas degradam-se e mergulham numa especie de le-targia au mesmo de desespero ontol6gico, que, a breve trecho, pode provocar a sua ruina e desaparecimento.
Toda a constituic;:ao sinlb6lica e condicionada par ~m contexto social, cultural e religioso, que ~porta con.hecer para uma correcta interpreta-c;:ao do sentldo de cada simbolo em palticular. Ha que situar os simbolos no quadro creral que as deterrnina e dentro do qual
dese~penham
uma func;:ao de referencia. Assim, p. ex., hayed que analisar as simbolos religiosos em estrita re1ac;:ao nao s6 com toda uma tradic;:ao doutrinal que lhes ;onfere uma significac;:ao espedfica, mas tambem com a meio hist6rico-cultural em que esta tradic;:ao religiosa se formou e desvolveu. Isto explica que a historiador possa en-contrar vestigios e analogias de certos simbolos cristaos antes do aparecimento do cristianismo: a cruz, a arado, a palma, a coroa, 0 peL'l:e, a re-feic;:ao, etc. Podera explicar atea
sua aenese e conduir que se ttata em grande parte "'de lega-dos de outtas religioes e civilizac;:6es. No entan-to, porque a cristianismo e a proclamac;:ao ciaUuminurada
Bfblia de Cervera
Reli
religiiioPalavra de Deus no cumprimento de uma pro-messa feita por Jave ao seu povo, cada aconte-cimento da Nova Alian~a e precedido, na hist6ria de Israel, por um tipo, por uma imagem prefigu-rativa e cuja significa~ao foi previa e explicita-mente dada. Em virtude desta coerencia intema do pensamento cristio, a interpretas;ao religiosa das figuras testamentarias, dos seus simbolos ri-tuais, devera ser global e uniforme, pois repou-sa sobre uma significa~ao doutrinal pr6pria e exclusiva. Havera que ter em conta, para la da ordem cultural, a realidade intema do simbolo religioso, deste fenomeno vital, que introduz 0 homem no dominio do sagrado, segundo um tipo muito particular de comunicas;ao. Nada im-pede, porem, muito pelo contrario, que a emer-gencia e promo~ao desse novo sentido se arti-cule com as projec~oes do desejo, das pulsoes do inconsciente e tradi~oes ancestrais de outros povos e culturas (Jean Danielou, Les symboles chretiens primitifS). 0 nosso tempo, tempo de
crise e de indigencia, caracteriza-se
fundamen-talmente por um fazer sem imagem (Rilke). NC?
opusculo Les sens et la connaissance de Dieu,
Romano Guardini queixa-se de 0 mundo mo-demo da tecnica ter substituido as imagens cor-porais pelos conceitos da razao abstracta e os
ritmos espontineos e palpitantes da vida por re-gras e normas de caracter pragmatico e decla-radamente utilitarista. 0 homem vai ficando doen-te porque 0 seu ser mais profundo nao pode viver apenas de conCeitos, mas necessita tambem de imagens. Pela directa e imediata liga~ao a experiencia e pela ressonancia que deles se des-prende, a sua mensagem parece destinada a aju-dar 0 homem a operar a reconcilia~ao do espirito de finesse com 0 espirito de geometrie, ambos necessarios na procura da solw;ao para os gra-ves problemas que afligem 0 homem de hoje.
23
Biblia hebraica do sec. xv (Biblioteca do Mosteiro do Escorial)
S6 mediante a recupera~ao das imagens simb6-licas da realidade, a vida deixam de ser insipida, insignificante e estern (M. Eliade, Fragments, d'un journal; C. Jung, L 'Homme et ses symboles). E que
os simbolos sao corpos vivos, expressoes de uma profunda incorpora~ao e anima~ao a esca-la do universo, de uma alians;a antropoc6smica, constantemente renovada, do interior para 0 exterior e do exterior para 0 interior, como 0 ceu, 0 sol, as arvores e as montanhas, com a agua e 0 fogo, a terra e 0 vento. Porque da que pensar Le symbole donne
a
penser (P.Ri-coeur) - , 0 simbolo ensina, forma e educa: leva a pensar que, para alem do mundo sensi-vel e racional, outro mundo nos e dado, no qual e pelo qual 0 primeiro e possivel e verdadeiro, que 0 ser da aparencia e na aparencia traz no-ticias do seu principio etemo e fundador; insi-nua que «existe um pensamento que reveste a forma das grandes imagens primitivas e dos sim-bolos originais, mais antigo que 0 homem da hist6ria e que, inato, sobrevive a todas as gera-~oes e anima de uma vida etema os mais fundos recess os da alma>; faz cismar que. a vida, na sua plenitude, s6 e possivel na medida em que com ele se configura e que a sabedoria con-siste em te-Io sempre presente no pensamento e na ac~ao (c. G. Jung, Problemes de tame mo-derne). 0 simbolo cia que pensar porque, desde tempos imemoriais, actua e anuncia, a par da 16gica racional e discursiva dos conceitos, que alias ele alimenta e promove, a 16gica espontanea e figurativa do sentido que do interior de todas as coisas se desprende agil, festivo e envolvente.
3. Dimensoes da R. Apesar da complexidade e
das diferen~as entre sistemas religiosos, e pos-sivel encontrar certos denominadores comuns. Ninian Smart, na obra The World's Religions,
re-fere algumas dimensoes comuns fundamentais, embora 0 significado, a importancia e a inter--relas;ao de cada uma delas variem de R. para R. Uma primeira dimensao pode ser designada de
dimensiio mitica e narrativa. Como 0 nome indica, consiste na rela~ao privilegiada que a
R. estabelece com a Palavra. Ao narrar, por vezes ao dramatizar ritualmente, os 'aconteci-mentos' fundadores e significativos de uma his-t6ria sagrada que se deram 'naquele tempo' (<<in ilIo tempore ..• ), i.
e,
no tempo sagrado das ori-gens (M. Eliade, Origens), em que certasreali-dades surgiram pela primeira vez (os deuses, nas teogonias; 0 cosmos, nas cosmogonias; 0 homem, nas antropogonias), ou quando se deu a revela~ao de uma verdade salvifica (vocas;ao de Abraao, na Caldeia, de Moises, no Sinai; a Anuncias;ao do Anjo a Maria; a Ultima Ceia, de Jesus; ilumina~ao do Buda; revela~ao de Gabriel de Maome, etc.), ou ainda quando foi revelado o sentido mitico e religioso de tal ou tal aq::ao (procriar, ca~ar, cultivar, comer, etc.), a Palavra actualiza esses 'acontecimentos', tomando-os efi-cazes e significativos no presente. Anulando a ordem cr6nica do tempo,pela remissao para uma ordem ciclica e renovavel, a narra~ao tem como que um poder anamnetico de recriar a realidade original, a perfei~ao dos come~os (M. Eliade, 0 Mito do Eterno Retorno).
Estreitamente relacionada com a dimensao mitica e narrativa encontra-se a dimensiio pratica e ritual. Fenomenologicamente, consiste na
verifi-24
ca~ao de que a R. determina e comanda certos comportamentos e atitudes: cultos, peregrinas;6es, ora~oes, sacrificios, jejuns, ritos a serem cumpri-dos, interditos a serem respeitacumpri-dos, assun~ao de determinadas posis;oes corporais (joelhos, posi-~ao-de-Iotus, etc.). Em suma: a R. intende a ac-s;ao.
E se esta dimensao diz sobretudo as expressoes exteriores e observaveis (M. Eliade, 0 Sagrado eo Profano) a dimensiio experiencial e emocio-nal, por seu tumo, diz respeito as repercussoes
que 0 fenomeno religioso pode despertar na consciencia crente (Michel Meslin, Experience humaine du divin): vis6es, aparis;oes,
conver-s6es, estados interiores de alegria, paz, louvor, mas tambem sentimentos de respeito, medo, de absoluta nulidade (a experiencia do numi-noso, que arrepia e faz tremelicar: misterium tremendum et fascinans, de acordo com 0 es-tudo de Rudolf Otto, 0 Sagrado).
Por outro lado, 0 conteudo objectivo de cada R. (fides quae), seja ele narrativo, legal, profetico,
escato16gico, ou outro, assume-se como conhe-cimento verdadeiro, i. e, uma doutrina.
E
esta a dimensiio doutrinal, jilosojica, e ate ontol6gica(Georges Gusdorf, My the et Metaphysique),
pre-sente nas R., ja atematicamente vivida ja cons-cientemente confessada. As afirmas;oes de uma doutrina, na medida em que requerem alguma compreensao, implicam um esfors;o de esclareci-mento por parte da razao:
e
a dimensao fflos6fica, ou intelectual, que nem todas as R. desenvolvem do mesmo modo, ate porque a componente psi-cologica, simbolica, 01..1 obediencial, por vezese
tao forte que deixa pouca margem a tematiza-s;ao. Alem disso, circunstancias historicas podem favorecer ou nao esta dimensao. p~ ex., as nar-rativas das primeiras comunidades cristas sobre o Significado da vida, das palavras, da mOrte e da ressurreis;ao de Jesus, encontraram-se logo a seguir com a linguagem, a teologia, a filosofia e a cultura greco-latinas, propiciando 0 desen-volvimento de toda uma tradi~ao reflexiva sobre a condi~o de Jesus como Filho de Deus, se Deus podia ser uno e trino, etc., assertos que depois foram incorporados no Credo.Apresentando-se as R. como vias de transforma-s;ao, de aperfeis;oamento e mesmo de salvatransforma-s;ao, o modo como pretendem dirigir a conduta hu-mana implica presens;a nelas de uma dimensiio etica e legal. 0 valor e a predominancia de urn
ou outro dos aspectos, ou de ambos, pode variar: algumas R. abolem ou recusam por completo ambos os aspectos em nome da absoluta pure-za espiritual (R. mistericas, visionarismos, vias negativas e noctumas, R. do puro amor, etc.). Outras, ao inves, colocam no centro precisa-mente 0 lado legal, como acontece com 0 ju-daismo da Torah e da halakah, ou com 0 Isiao fundamentalista da Shari'a, onde 0 texto corii-nico deve assumir for~a de lei religiosa, moral e politica, individual· e social. A R. potencia a emergencia de uma dimensao etico-Iegalseja na proclama~ao de mandamentos absolutos (<<Es-cutet, 6 Israel, 0 Senhor teu Deus e 0 unico ... ",
"Ama a Deus sobre todas as coisas .. . ", "Ala e um
so",,,,
etc.) seja na formula~ao hipotetica de certos preceitos religiosos (se queres ser feliz ... , se cfUeres ganhar a vida eterna ... , se queres ser salvo ... , se queres abolir 0 desejo ... , se queres25
religiiio
Reli
alcanr;ar 0 Paraiso, etc.). Todavia, tais preceitostalvez devam ser compreendidos antes como sapiencial admoni~ao do que como categorica antecipa~ao do projecto kantiano de uma 'R.
nos limites da Simples razao'. Acrescente-se que em sistemas religiosos ditos 'primitivos' a R. e uma especie de dimensao total, assumindo uma funs;ao s6cio-integradora e velando pela ordem familiar, social, pslquica e espiritual de todo 0 grupo, onde aquelas dimensoes tendem a fun-dir-se.
Neste sentido, cumpre sublinhar ainda a dimen-siio social e institucional da R. Mau grado as atitudesde fuga mundi (vida monacal,
eremi-tas, saida para 0 deserto, mlsticos: formas de aftrmar a contrario a sua dimensao social) ou
da modema e ocidental remissao da R. para uma subjectividade solipsista, e depois transcenden-tal, todas as R. desenvolvem uma dimensao social e institucional. A R., como outras dimensoes da existenda humana, e sempre um facto social, tendendo progressivamente· a criar institui~oes e hierarquias: curandeiro, xama, sacerdote; totens, clas, irmandades, ordens, sanghas, assembleias,
sinagogas, igrejas, seitas, etc. Em suma, onde ha pessoas e uma relas;ao com 0 sagrado e pre-ciSo organizar 0 poder, 0 que implica uma di-mensao institucional. 0 modo de funcionamen-to do institudonal pode variar muifuncionamen-to, deste 0 modelo magico-simpatico das R. prirnitivas, 0 modelo monarquico-patriarcal indo-europeu e semita, ate ao modelo democrntico (comunidades cristiis primitivas, protestantes, carismaticos, new age), 01..1 mesmo despotico e revolucionario (sei-tas fanaticas,anarquismo, etc.).
Sublinhe-se por ultimo da dimensao material. Com efeito, por for~a da dimensao corp6rea da existencia humana e do seu enraizamento cos-mico (Max Scheler), as R. nao podem deixar de desenvolver certos tipos de rela~ao com a dimensao material da existencia. Diga-se que a rela~ao com a materia e uma das maiores fon-tes de tensao nas R. Desde a diabolizas;ao da materia (gnose, maniquelSmo, cataros, certos mis-ticismos ... ) a sua plena aceita~ao como gloria e 'corpo de Deus', no cristianismo, 0 espectro de atitudes e amplo, consistindo um ponto impor-tante a afirmas;ao da materia como cria~o di-vina, sublinhando ao mesmo tempo 0 risco ido-latrico presente numa consciencia fascinada pela representa~ao imagetica. Sendo, porem, fenome-nologicamente irrecusavel (porque ai existem corpos, espas;os sagrados, templos, sacramen-tos, simbolos, obras de arte, etc.), a dimensao material e tambem uma oportunidade de sal-vas;ao e de transfiguras;ao 'gloriosa' da existen-cia encamada.
4. A Linguagem religiosa. A experiencia religiosa
e a expedencia· doSagrado. Mas este, na sua transcendencia, na ambivalencia constitutiva da sua manifesta~ao, no camcter dialectico do apelo e da resposta que em nos suscita, no seu misto de presens;a/ausencia, de interioridade/exterio-ridade, insinua-se, revela-se, mas jamais se dei.xa objectivar 01..1 aprisionar nas nossas categorias. Todavia, mobiliza 0 homem todo na multiplici-dade das suas funs;oes (cognitivas, expressivas e conativas), nas irradias;oes da sua acs;ao (so-cial, politica, economica, etica e artlstica), no la~o incindiveI entre 0 interior e 0 exterior, entre 0
Reli
religiaoprivado e 0 publico, no fluxo temporal e mu-tuamente iluminativo do passado, presente e futuro, no transito reciproco entre 0 pessoal e o colectivo, pois - como real<:,;:a M. Bakhtin-a compreensBakhtin-ao
e
sempre, mais ou menos, dia-logica e a consci{~ncia de cada urn jamais deL'Ca de surgir embrulhacla na consciencia dos outros. Na experiencia religiosa e na historia dos seus efeitos, como em toda experiencia humana, nao existe assim urn primeiro e ultimo sentido, uma primeira e derradeira palavra: persiste, sim, a cir-cula<;:iio interna de uma cultura como urn todo, em todos os veios da sua visao do divino e das coisas, ao longo do tempo, que nao deixa de operar transforma<;:oes e de revelar a inesgota-bilidade semantica dos seus textos, a cuja luz os individuos interpretam 0 seu contacto, mais ou menos profundo, com 0 Sagrado. . A experiencia religiosa, ao tentar traduzir-se em palavras apresenta a mesma diversidade e rique-za dos generos de discurso que encontramos na literatura: a narrativa, 0 relato historico, enuncia-dos doutrinais, a invocac;;ao e a prece, as admoes~ tac;;oes, os decs. jundicos, os mandamentos, hinos e poemas, simbolos e metiforas, etc. A) A preocupac;;ao com a linguagem religiosa en-quanta tal, embora nao ausente no mundo pre--modemo, tomou-se visivel sobretudo a partir do sec. XVIII, na atmosfera do Iluminismo e na esteira do sistema kantiano, cuja cntica do pen-samento humano desencadeou tambem questoes relativas ao estatuto e aos limites da linguagem. Fez-se ela sentir em autores como Johann G. Hamann (1730-1788), Johann G. Herder (1744--1803), Wilhelm von Humboldt (1767-1835), Frie-drich D. Schleiermacher (1768-1834), S. Kierke-gaard (1813-1855) e em muitos outros. Vma consequencia foi a afirmac;;ao da insuficiencia de uma concepc;;ao puramente racional, abstrac-ta do espirito humano e do especabstrac-taculo de urn cosmos mecanicista; outra foi a acentuac;;ao daJesus, ilurninura de urn rnanuscrito bizantino do sec. XI
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dimensao expressiva da linguagem e do carac-ter peculiar de todas as criac;;oes culturais, para cuja avaliac;;ao e insuficiente 0 mero olhar natu-ralista e 0 metodo das ciencias naturais. Por outro lado, 0 nascimento das ciencias huma-nas (historia, sociologia, economia, filologia, etc.) acentuOU a peculiaridade hermeneutica de toda a realidade humana, inclusive a sua visao da na-tureza e 0 seu modo de conceber as ciencias. A nova constelac;;ao de ideias nunca mais deixou de - na luta da cultura - se estender ao uni-verso religioso.
B) Na caracterizac;;ao da linguagem religiosa, podemos, segundo A. C. Thiselton, distinguir tres penodos:
a) Entre meados do sec. XVIII e 0 principio do sec. xx, encontramos contributos importantes. Mencionemos so alguns: na te%gia, 0 de Schleiermacher que, reconhecendo a revolu-c;;ao linguistica suscitada pelo cristianismo, pro-curou leval~ a cabo 0 projecto de uma herme-neutica universal; 0 de Kierkegaard que, para combater toda a transposic;;ao de Deus em projecc;;ao humana idohitrica e desafiar a von-tade humana a empenhar-se na fe, salientou o papel essencial da comunicac;;ao indirecta por meio da parabola, do paradoxo, da narrativa e da contradic;;ao.
Fora da teologia, W. von Humboldt insistiu em que 0 proprio mundo - como nos aparece -e uma construc;;ao cia linguagem; toda a realida-de
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.linguistica. e nao podemos sair do nosso dizer para analisar 0 que ele representa. Para K. Marx (1818-1883), a linguagem, como 0 pen-samento humano, serve de ve:iculo para impor ou defender interesses dominantes. Segundo S. Freud (1856-1939), ela e uma mascara multinive-lada ao servico das conveniencias do eu e dos seus conflito~ intemos, com intuito autodefen-sivo; na sua modalidade religiosa, acoitam-se, alem da angu.stia social, projecc;;oes distorcidas de confiitos intemos entre a libido e 0 supere-go repressivo.b) No intervalo temporal entre 1914 e 1967, apos a criac;;ao da modema ciencia da linguistica por Ferdinand de Saussure (1857-1930) que faz uma distinc;;ao entre os actos comunicativos (fa/a) e os diversos sistemas abstractos de potencialida-des linguisticas (lingua) por eles presstipostos, acentuou-se a chamacla .viragem linguistica •. Apa-recem entao, na filosofia europeia, as teorias da lingua gem inspiradas pela fenomenologia, pelo neokantismo de E. Cassirer, pelo existen-cialismo, pelo estruturalismo e pelas ramificac;;oes da filosofia analitica.
Martin Heidegger, ao desdobrar as implicac;;oes da compreensao e da sua estrutura ontologica, sublinhou a inseparabilidade de linguagem e in-terpretac;;ao e realc;;ou os limites das teorias po-sitivistas da linguagem - 0 que teve grande importancia para 0 discurso religioso, p. ex., em Rudolf Bultmann, com 0 seu programa da desmitologizac;;ao. Segundo este, a linguagem do 'mito' pode obstruir 0 evangelho.au 0 .kerig-rna· que intima a decisao e a obediencia, por-que tende a apresenta-lo como uma descric;;ao pseudo-objectiva de urn estado de coisas OCOf-rido noutra epoca. Temas afins, mas mais mati-zados, se encontram nos trabalhos teologicos de G. Ebeling e Ernst Fuchs.
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Na tradic;;ao anglo-ame~icana, 0 acento deslo-cou-se em sentido contrario. 0 interesse pola-rizou-se no contraste excessivo entre linguagem descritiva e indirecta ou nao-cognitiva. Sao aqui importantes B. Russell, 0 Circulo de Viena, R. Camap e outros que, inspirando-se na teoria iconica do primeiro L. Wittgenstein, nao resisti-ram a tentac;;ao de tomar como paradigma de toda a linguagem aquela que descreve 0 mundo fisico (mas ignorando que, para Wittgenstein, o mais importante na vida e aquilo que ·nao pode ser dito., 0 transcendental e 0 'mistico').
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resultado foi uma atitude antimetafisica, dis-traida dos seus proprios pressupostos, e a con-sequente desvalorizac;;ao de todas as outras lin-guagens, ou seduzidas por falsos problemas, ou de conteudo meramente emocional. A lin-guagem religiosa nao e excepc;;ao a regra. Assim A. J. Ayer valorizou apenas as proposic;;oes logi-camente contingentes que descrevem 0 mundo fisico, e cujo significado pode ser verificado por observac;;ao empirica; ou entao as proposic;;oes logicamente necessarias, formais, analiticas e tau-tologicas. As expressoes emotivas que reflec-tern atitudes ou valores sao, do ponto de vista logico, proposic;;oes sem sentido.A esta posic;;ao positivista agressiva nao faltaram as cnticas vindas do campo teologico, p. ex., no mundo de lingua inglesa, de Austin Farrer, Basil Mitchell, Eric Mascall, John Macquarrie elan Ramsey; na tradic;;ao alema, salientou-se sobre-tudo Paul Tillich, cuja concepc;;ao do simbolo religioso bebeu muito na teoria de C. G. Jung, e aincla 0 projecto de uma hermeneutica filo-s6fica de H. G. Gadamer que, desde meados do sec. xx, continua a exercer uma . influencia marcante na reflexao sobre a linguagem (enquan-to constitutiva da nossa humanidade) e na criti-ca as graves restric;;oes do positivismo natura-lista.
c) A partir de 1967, a atmosfera filosofica a volta
cia linguagem religiosa modificou-se, por razoes varias: a transformac;;ao revolucionaria da epis-temologia que abandonou, em grande parte, as bases empiristas e se tomou mais sensivel ao papel da historia dentro da propria ciencia, ao elemento construtivo do conhecimento humano, ao caracter linguistico de toda a experiencia hurnana, a convicc;;ao da 'incerteza' e ao fundacio-nalismo no conhecimento, em virtude da desco-berta da complexidade incomensuravel do uni-verso e do seu caracter hist6rico, do jogo de lei e alea que 0 habita em toda a sua contextu-ra e na tcontextu-rama dos seus processos e eventos. Relevante e aqui 0 contributo de Paul Ricoeur. Parte da filosofia reflexiva francesa, junge em si os contributos da tradic;;ao fenomenologica de M. Merleau-Ponty e de M. Heidegger, 0 estrutu-ralismo de Roland Barthes e as teorias anglo--americanas da linguagem. Comec;;ou por salien-tar a dependencia da linguagem religiosa quanto
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«expressOes de duplo sentido., que caracterizam o simbolo e a metifora e exigem a interpreta-c;;ao. Soube escutar a .hermeneutica da suspeita., que indaga a validade, 0 interesse proprio, 0 auto-engano e as projecc;;oes idolitricas, e alia-Ia it ,<hermeneutica cia recuperac;;ao. que, numa aber-tura .pos-critica., interroga 0 que os simbolos e as narrativas pretendem dizer. Portanto, existe na hermeneutica uma dupla motivac;;ao: avon-29
religiao
Reli
tade de suspeita e a vontade de escuta; 0 desejo de rigor, mas tambem 0 desejo de obediencia.
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contrario da suspeita e a fe que passou pela critica, e que se tomou consciente da originalida-de do simbolo que .da que pensar., da metifora que, pela torc;;ao semantica por ela introduzida nos termos, renova 0 sentido e estabelece com outras uma rede que insinua e tenta expressar o indizivel misterio de Deus.A Escada de Jacob, gravura de William Blake
A metifora religiosa foi tambem considerada por Eberhard Jungel: assellta ela na tensao entre 0 familiar e 0 estranho, no sua indole de ape1o, na sua capacidade de alargamento do horizonte ontologico, porquanto faz parte e constitui urn mundo que nos e dirigido e no qual Deus se manifesta e e invocado metaforicamente. Em si, mergulha na natureza essencialmente metaf6ri-ca de toda a linguagem humana e no seu es-forc;;o de ampliac;;ao e especificac;;ao da realidade narrada. Por isso, enquanto seres enderec;;ados, devemos aprender a deL'Car que a realidade se nos mostre enos introduza na sua verdadE! que, por outro lado, nos empenha enos con-vida it decisao.
Reve1ou-se tambem de grande prestimo, a partir de 1969, a teoria dos 'aetos de fala' de John Searle que, aproveitando as intuic;;oes de John L. Austin, pesquisou as condic;;oes logicas, extra-linguisticas e lingulsticas para a realizac;;ao de certos actos ilocucionirios (como a promessa, a ameac;;a, 0 mandamento, etc.). Na linguagem religiosa, sobretudo insericla na liturgia e no cul-to, mas tambem nos efeitos transformadores da leitura de textos religiosos, as expressoes que traduzem arrependimento, perdao, louvor, ben-c;;ao, libertaben-c;;ao, surgem como actos especificos num contexto, e nao como relatos de aconteci-mentos ou de estados mentais.
Nas ultimas decadas do sec. xx, intensificou-se igualmente a atenc;;ao prestada ao estatuto cia linguagem, sobretudo dos textos escritos como