BRUNO LEONARDO BARROS FERREIRA
A (RE) PRODUÇÃO DO MODO DE SER AWÁ: dinâmicas de socialização na aldeia Juriti
Ferreira, Bruno Leonardo Barros Ferreira.
A (re)produção do modo de ser Awá: dinâmicas de socialização na aldeia Juriti. – São Luís, 2011.
111 f.
Impresso por computador (Fotocópia). Orientadora: Elizabeth Maria Beserra Coelho.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2011.
1. Índios – Socialização. 2. Índios – Territorialização. I. Título
A (RE) PRODUÇÃO DO MODO DE SER AWÁ: dinâmicas de socialização na aldeia Juriti
Dissertação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Maria Beserra Coelho
Dedicatória
Ao meu querido e amado pai que recentemente deixou este plano, mas que nunca será esquecido por mim. Ele foi o meu maior incentivador, proporcionando-me uma educação de qualidade, sendo ele o melhor professor que pude ter, pois ensinou-me a ser o homem que sou. Esta dissertação existe por causa dele.
À minha mãe, Vivi e à minha irmã, Danielle que em nenhum momento deixaram de acreditar em mim.
Ao meu sobrinho Danilo que chegou recentemente a este mundo para trazer de volta à minha família a alegria que sempre foi o nosso cartão de visitas.
dois anos em que cursei o mestrado na UFMA, mas de todo o processo pelo qual
passei para chegar até aqui. As pessoas que contribuíram para tal são muitas e nem
todas serão citadas, pois ocuparia um espaço considerável neste texto. Mas desde
já agradeço a todos que de alguma forma me ajudaram nesta caminhada.
Primeiramente agradeço a minha orientadora Elizabeth Coelho (Beta),
que se mostrou, no decorrer dos sete anos que convivemos, muito mais do que isso.
Por muitas vezes foi além de professora, minha amiga e incentivadora, até mesmo
nos momentos em que minha orelha era puxada, simbolicamente, é claro. Ela é uma
das pessoas que agradeço a Deus todos os dias por ter colocado em minha vida,
pois representa um divisor de águas na minha trajetória tanto acadêmica quanto
pessoal.
Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, por todo o apoio
a mim dirigido, não somente através das aulas dos meus professores, que com
certeza contribuíram para o meu aprimoramento intelectual, mas também da
atenção oferecida pela secretaria do curso especialmente nas figuras de Mary e
Soraya.
A CAPES que me concedeu bolsa de estudos, sem a qual complicaria de
maneira considerável a elaboração desta dissertação.
A FAPEMA pelo auxílio a mim concedido em dois congressos que marcaram
minha carreira acadêmica.
Ao meu amigo, David Ribeiro, que por muitas vezes me acalmou em
momentos em que não sabia qual rumo tomar e que com sua companhia tornou as
barreiras que surgiam muito mais fáceis de ser derrubadas. Agradeço também aos
meus amigos Alaina, Rosamalvina, Paula, JoJo, JaJa, Mauri, Ana Terra, Jânia (Fu),
Lory, Samir e Luizinho por manterem a alegria em minha vida, o que me dá forças
para seguir em frente.
Ao meu amigo Antonio Santana. pelas conversas que tivemos, tanto em
campo quanto em reuniões de pesquisa, que me auxiliaram na elaboração desta
dissertação e também por ser para mim um exemplo de dignidade e inteligência.
Aos meus amigos de grupo de pesquisa, que também contribuíram com suas
opiniões sobre o meu trabalho.
A Dona Dalva, Seu Riba Rocha e Patriolino, funcionários da FUNASA e
FUNAI que trabalham no Posto indígena que atende aos Awá da aldeia Juriti, que
me receberam em seu trabalho de braços abertos. Colaboraram de forma
substancial para a elaboração desta dissertação. Obrigado pelas conversas no
período de campo e um agradecimento especial à D. Dalva, pela comidinha tão
gostosa que me fortalecia em dias de longas caminhadas pela mata.
Aos Awá faço um agradecimento mais do que especial, pois são os maiores
colaboradores desta dissertação, que permitiram que eu acompanhasse seu
cotidiano, proporcionando-me grandes ensinamentos não só acadêmicos, mas
pessoais.
Análise das dinâmicas de socialização do povo Awá, tomando como referência o
processo de territorialização que ora vivenciam. Busca compreender como os Awá,
em face da dinâmica de colonialidade do poder e do saber exercida pelo Estado,
constroem suas estratégias de formação e manutenção da identidade, levando em
consideração que este processo caracteriza um modo próprio de socialização,
responsável por sua reprodução enquanto povo. As fontes utilizadas foram a
literatura produzida sobre os Awá e os registros de campo efetuados em diferentes
etapas pesquisa, no período de 2008 a 2009. A análise focaliza especialmente o
cotidiano Awá, privilegiando as atividades de caça, agricultura, coleta e pesca.
Analysis dynamics of the Awa people socialization, with reference to the
territorialization process they live nowadays. Seeks to understand how the Awa
people, given the dynamics of power and knowledge coloniality exerted by the state,
build their strategies in formation and maintenance of identity, taking into
consideration that this process characterizes a particular way of socialization,
responsible for their reproduction as a people. It was used literature produced about
the Awa and the field recordings made in different search stages, in the period 2008
to 2009. The analysis focuses especially Awa daily, with emphasis on the activities of
hunting, farming, gathering and fishing.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 11
LISTA DE SIGLAS 13
1. INTRODUÇÃO...14
2. A DINÂMICA DE TERRITORIALIZAÇÃO AWÁ: exercícios da colonialidade do poder...29
3. REPRODUZINDO O SER AWÁ NA ALDEIA JURITI...45
3.1. Os espaços da aldeia Juriti...53
3.2. Processos de socialização...56
3.2.1 Moldando o corpo Awá...70
3.3 O cotidiano Awá...76
3.3.3 Agricultura...95
3.3.4 Pesca...99
CONSIDERAÇÕES FINAIS 104
QUADRO 1 Terras Indígenas (T.I.) onde vivem os Awá ...31
FIGURA 01 Mapa das terras indígenas com presença dos Awá e localização dos Postos Indígenas...32
FIGURA 02 Jovem Awá munido de arco e flechas...39
FIGURA 03 Mata devastada. ...40
FIGURA 04 Os Awá no local devastado. Fonte: Acervo próprio...40
FIGURA 05 Barricadas sendo destruídas pela polícia...42
FIGURA 06 Posto Indígena Juriti...46
FIGURA 07 Foto identificada dos Awá da aldeia Juriti...51
FIGURA 08 Gráfico do parentesco dos Awá da aldeia Juriti...51
FIGURA 09 Casa comunal...54
FIGURA 10 Croqui da aldeia...54
FIGURA 11 Casa de Muturuhu...55
FIGURA 12 Casa de Takãrentxiá...55
FIGURA 13 Rabiscos Awá em meu caderno de campo...59
FIGURA 14 Piraima’a fabricando seu arco com a ajuda de Iwi’i...63
FIGURA 15 Awá na mata munido de várias flechas Awá na mata munido de várias flechas...64
FIGURA 16 Awá tendo o corpo ornamentado pela esposa...68
FIGURA 17 Takaia...68
QUADRO 2 Atividades realizadas por homens e mulheres...78
FIGURA 18 Awá no acampamento provisório realizando uma última verificação nas armas...85
FIGURA 22 Awá coletando mel...94
FIGURA 23 Awá trabalhando na colheita do milho...98
FIGURA 24 Awá pescando de arco e flechas...101
Centro de Trabalho Indigenista - CTI
Colonização do nordeste - COLONE
Conselho Missionário Indigenista - CIMI
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –CNPq
Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Maranhão- FAPEMA
Fundação Nacional de Saúde - FUNASA
Fundação Nacional do Índio - FUNAI
Instituto de Colonização e Terra Maranhão - ITERMA
Posto Indígena - P.I.
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC
Serviço de Proteção ao Índio - SPI
Terra Indígena - T.I.
1 INTRODUÇÃO
A elaboração de um trabalho dissertativo requer de seu autor a dedicação de
horas de sua vida para tentar expressar, em algumas páginas, o conhecimento
acumulado durante anos de estudos e debates sobre uma determinada temática.
Esta dissertação é fruto de um processo de amadurecimento acadêmico que
teve início no ano de 2004, com a minha entrada no curso de graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e o posterior
ingresso no grupo de pesquisa “Estado Multicultural e Políticas Públicas”, ao qual
estou vinculado até hoje.
Em 2004 tive o meu primeiro contato com os estudos sobre povos indígenas,
o que despertou meu interesse em seguir nesta área de pesquisa durante minha
graduação. Os primeiros passos nessa direção foram dados ao ser convidado,
assim como os demais membros do grupo de pesquisa, a participar de uma parceria
com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI)1, que desenvolvia o projeto “Escola
Timbira”2, e necessitava de pessoas para realizar as tarefas de acompanhamento
dos alunos em suas respectivas aldeias. Nosso trabalho consistia em assistir as
aulas das etapas presenciais do ensino fundamental na Escola em Carolina – MA e,
posteriormente, realizar o reforço dessas aulas nas aldeias.
Minha primeira atividade de acompanhamento ocorreu junto aos índios Krahô,
na aldeia Rio Vermelho, no Tocantins. Essa experiência subsidiou a elaboração do
1 É uma Organização Não-Governamental fundada em março de 1979 por antropólogos e
indigenistas que já trabalhavam com alguns grupos indígenas do Brasil.
2 Projeto educacional que funciona em módulos e forma índios dos povos Timbira do Maranhão e
subprojeto “A educação indigenista na perspectiva da Escola Timbira”, que
desenvolvi como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC)/ CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico),
entre os anos de 2005 e 2006.
O objetivo deste projeto era analisar se o discurso do CTI, no que se refere
aos objetivos do projeto “Escola Timbira”, condizia com sua dinâmica de execução.
Procurei observar em que medida as novas regras da educação indigenista estavam
sendo consideradas. Percebi que a Escola Timbira era vista, pelo CTI, como a
possibilidade de concretização da união dos povos Timbira (Apinajé e Krahô no
Tocantins; e Krikati, Canela-Ramkôkamekra, Canela-Apãinekra e Gavião-Pykobjê)
no Maranhão. Isso ocorreria pela reunião de todos em uma única escola, onde seria
implementada a unificação de suas grafias.
A Escola Timbira tinha o objetivo de oferecer uma educação específica e
diferenciada, mas não conseguia fugir da estrutura da escola sugerida pelo Estado,
reforçando o espaço escolar como lócus de dominação e reforço de valores muitas
vezes alheios às realidades de cada povo Timbira.
Do segundo semestre de 2006 até o primeiro semestre de 2008, por ocasião
da renovação da bolsa PIBIC/CNPq para esse período, participei do projeto sobre
política indigenista de saúde e participação indígena3. Meu subprojeto, então,
focalizava como os Tentehar-Guajajara da Terra Indígena Araribóia percebiam a
nova política indigenista de saúde e em que medida participavam de sua elaboração
e execução. Esta pesquisa deu origem a minha monografia de conclusão de curso
de graduação, onde realizei uma reflexão sobre como o processo de participação
3 Projeto que estava sendo desenvolvido no grupo sob a coordenação da professora Elizabeth
indígena está sendo definido na formulação e implementação de ações de saúde
aos povos indígenas, já que estas pretendem ser específicas e diferenciadas.
Percebi que os Tentehar vivenciam uma relação tensa com o Estado, que, ao
mesmo tempo em que afirma construir políticas específicas e diferenciadas,
pretende submeter os povos indígenas à sua lógica burocrático-científica,
desconsiderando as formas de organização e os saberes indígenas. Pude identificar
as diferentes estratégias através das quais os Tentehar-Guajajara construíam uma
identidade de resistência (CASTELLS, 2001).
Ainda durante o curso de graduação tive a oportunidade de participar, na
condição de auxiliar de pesquisa, do Projeto Awá: “Implicações da introdução da
agricultura e na cultura material de um grupo de caçadores-coletores. Estudo da
identidade, uso de recursos e percepção do espaço entre os Awá-Guajá –
Maranhão, Brasil”, financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia da Espanha4.
Esta experiência teve início no ano de 2008, na aldeia Juriti,e minha função
era auxiliar o arqueólogo Gustavo Politis em seu trabalho de coleta de dados que
envolvia basicamente o registro, através do GPS, das rotas utilizadas pelos Awá
durante suas caçadas, do peso dessas caças, dos horários de saída e retorno e a
anotação das atividades diárias na aldeia. Essa pesquisa tinha como objetivo
oferecer uma imagem da riqueza e do estado do patrimônio dos Awá, e do
significado da transformação de sua cultura, face ao processo globalizador ao qual
estão sendo submetidos.
4 :"Etnoarqueología de los Awá (Guajá) - Maranhão, Brasil, um grupo de cazadores-recolectores en
O material recolhido nos quinze dias em que passamos em campo
ofereceu-me pistas sobre o que veio a se constituir o problema de investigação que subsidiou
a elaboração dessa dissertação.
A experiência junto aos Awá situou-me com mais intensidade diante da
situação que caracteriza a relação entre o Estado e os povos indígenas no Brasil. As
pesquisas anteriores, relacionadas à saúde e a educação escolar para povos
indígenas já haviam delineado as estratégias de colonialidade do poder (QUIJANO,
2005) desenvolvidas pelo Estado brasileiro, objetivando inserir os povos indígenas
numa lógica evolucionista linear e eurocêntrica. A situação vivenciada pelos Awá,
expressa pelo processo de territorialização5 (OLIVEIRA, 1999) em curso, que lhes
impõe uma dinâmica de sedentarização, despertou-me para buscar entender como
esse povo tem articulado estratégias de reprodução social em meio às
transformações que uma dinâmica desse tipo ocasiona.
No fim do ano de 2008, retornei a esta aldeia, sozinho, para dar continuidade
às atividades de coleta de dados. Nessa ocasião já delineava minhas pretensões em
aprofundar os conhecimentos sobre os Awá. Por esse motivo, este retorno foi
importante, pois as observações feitas neste período já estavam direcionadas para a
minha futura investigação, que a priori tinha como foco as crianças da aldeia.
Em meio a estas condições, conclui minha graduação no início do ano de
2009 e, logo em seguida, ingressei no Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais da UFMA. Para o ingresso no mestrado, optei por elaborar um projeto no
5
Territorialização: é uma intervenção da esfera pública que associa, de forma prescritiva e
qual investigaria como os Awá da aldeia Juriti estão percebendo o “novo”, através,
principalmente da compreensão que constroem do atendimento à saúde e dos
valores e concepções a ele agregados. Tal idéia teve inspiração no trabalho que
vinha fazendo durante a graduação junto aos Tentehar.
Mas já como mestrando, ao revisitar os meus cadernos de campo, comecei a
refletir sobre a minha relação com esse povo e algumas questões que haviam
despertado meu interesse em estudá-lo mais profundamente. Percebi que havia
acumulado alguns registros interessantes sobre minha relação com as crianças da
aldeia, seus comportamentos, as relações que mantinham com os mais velhos,
dentre outros aspectos. Algumas questões já haviam surgido daí, principalmente
relacionadas a como se daria a formação das gerações mais novas de Awá, em
meio às mudanças que vinham vivenciando, de forma célere, nos últimos vinte anos.
Dessa forma, decidi concentrar meus esforços, durante o mestrado, em
compreender como os Awá, em face da dinâmica de colonialidade do poder e do
saber (LANDER, 2005) exercida pelo Estado, constroem suas estratégias de
formação e manutenção da identidade, levando em consideração que este processo
caracteriza um modo próprio de socialização, responsável por sua reprodução
enquanto povo.
O Estado brasileiro busca inserir os índios em sua lógica. O status, de
colonizado, outorgado aos índios (inferior) perante o colonizador europeu6 (superior)
foi determinante na maneira como os índios foram tratados na história do Brasil.
Castro Gómez (2000, 178) afirma que “ocolonizado aparece assim como o ‘outro da
razão’, o que justifica o exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador”.
Até os dias atuais permanece essa construção de superioridade da Europa.
Esta lógica eurocêntrica foi incorporada pelas sociedades majoritárias das
ex-colônias, que reproduzem a postura de superioridade na relação com os povos
indígenas. Busca-se enquadrar os índios no que o Estado considera a “única ordem
possível” (CASTRO-GÓMES, 2005, 173), onde “a aquisição da cidadania é, então,
um funil pelo qual só passarão aquelas pessoas cujo perfil se ajuste ao tipo sujeito
requerido pelo projeto da modernidade”.
Os Awá vivenciam um modelo civilizador que sobre eles se abate,
desconsiderando seus saberes, subalternizando-os aos ditames do
“desenvolvimento”. Os processos de territorialização (OLIVEIRA, 1999) que
enfrentam são expressões dessas estratégias de colonialidade do poder (LANDER,
2005). Ao terem que adotar um modo de vida nômade, há mais de 300 anos, e ao
serem forçados à sedentarização, atualmente, necessitam construir novas formas de
reprodução como povo, construir novos processos de socialização.
Já com essas perspectivas em mente, retornei à aldeia Juriti no ano de 2009
para retomar meu trabalho de campo, já com meu olhar direcionado para a
identificação dos processos de socialização vivenciados por esse povo, buscando
perceber como a transmissão de saberes e de regras sociais ocorre entre as
diferentes gerações e como eles os (re)atualizam. Neste retorno, fui acompanhado
de Antônio Santana, lingüista que também estava em trabalho de campo e que tinha
um domínio considerado da língua Awá, que me ajudou a entendê-los melhor e por
vezes intermediou minhas conversas com alguns Awá que não falam português.
Para entender os processos de socialização Awá, procurei fazer uma leitura
“fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado”.
Uma etnografia é uma descrição densa (GEERTZ, 1989) visando à
interpretação dos símbolos sociais, através da interpretação do fato descrito,
procurando suas motivações e seus objetivos, deixando de lado a idéia de uma
simples descrição dos fatos. Desse modo, a etnografia é então o recurso mais
apropriado para entender a sociedade Awá, pois não se restringe apenas a escrita
dos textos, mas é uma experiência de construção de sentido que se efetiva desde o
campo, por meio das relações particulares que o etnógrafo vai entretecendo com
seus interlocutores, levando em consideração o que esta sendo produzido. É uma
interpretação da interpretação que os Awá imprimem sobre sua realidade.
Dessa forma, a leitura que faço dos Awá é conduzida, também, pelo que
Andrea Semprini (1999) denomina epistemologia multicultural, que é caracterizada
pela percepção da realidade como dependente dos personagens que a criam, das
teorias que a descrevem e da linguagem que viabiliza sua descrição e comunicação
(SEMPRINI, 1999, p. 93).
Nesta perspectiva, as interpretações são subjetivas e a realidade é percebida
como uma construção, sendo consideradas as condições de identidade e posição do
indivíduo emissor das interpretações. Portanto, os valores são relativos, assim como
a verdade, pois é baseada em uma história pessoal. O conhecimento, por esse viés,
um valor para legitimar um “conhecimento” que foi construído, ou seja, um fato
político.
A literatura antropológica sobre os povos pertencentes a família lingüística
Tupi-guarani é vasta e possui informações desses povos desde a época da
colonização portuguesa até os dias atuais, inspirada por diferentes perspectivas
teóricas. Uma obra de referência é “Araweté: os deuses canibais”, de autoria de
Eduardo Viveiros de Castro. O segundo capítulo desta obra contém um “breve
balanço da produção propriamente antropológica sobre Tupi, destacando as
monografias e os estudos clássicos” sobre esses povos (1989, p. 82).
Viveiros de Castro salienta a grande importância que os estudos baseados
nos “cronistas” quinhentistas e seiscentistas como os realizados por Alfred Métraux
(1928 e 1979) e Florestan Fernandes têm para as pesquisas sobre povos indígenas,
pois sintetizam antropologicamente o que poderíamos denominar como os Tupi do
“tempo do descobrimento”.
Métraux (1979), apesar de ter tentado comparar traços de cultura material, em
termos de sua difusão, para estabelecer parâmetros para identificar se os povos
Tupi-guarani seriam “autênticos” ou aculturados, possui méritos por “ter apontado a
notável continuidade entre as culturas Tupi-guarani estudadas in situ por etnógrafos
contemporâneos e a imagem da sociedade Tupinambá deixada pelos cronistas”
(VIVEIROS DE CASTRO, 1989, p. 84). Uma das características emblemáticas que
expressam essa continuidade e que encontramos entre os povos Tupi é o tema da
“Terra Sem Males”.
A Terra sem Mal: um espaço sem lugares marcados, onde se apagam as relações sociais, um tempo sem pontos de referência, em que se abolem as gerações. .... a completude; no conjunto dos homens cada um se vê restituído a si próprio, suprimida a dupla distância que os fazia dependentes uns dos outros e separados dos deuses – lei de sociedade, lei de natureza: o mal radical.
Nessa perspectiva, para os Awá, o iwa, seria a sua “terra sem males”. Eles
entendem que cada pessoa existe através de três manifestações distintas: o corpo
terrestre dos vivos, o corpo terrestre dos mortos e os múltiplos corpos sagrados que
cada pessoa tem no céu ou iwa. (CORMIER, 2003, p.101)
Fernandes (1963, 1970) explora exaustivamente o material dos cronistas
tentando reconstituir uma “Sociedade Tupinambá” ideal, na perspectiva de um
sistema com várias dimensões funcionalmente articuladas, onde a guerra (vingança
e execução ritual) surge como uma forma de resolução de tensões internas à
cosmologia. Viveiros de Castro (1989, p. 88) considera que, “o autor recorta o
discurso dos cronistas em unidades arbitrárias, em tudo semelhantes a “traços” de
cultura material”.
Dessa forma, Florestan Fernandes aproxima-se de Métraux, Sua obra, tem
sido considerada pioneira e também essencial para as reflexões sobre os povos
Tupi-guarani, pois aponta aspectos da socialização entre os Tupinambá que mais a
frente serão discutidos quando trato mais especificamente sobre os processos de
socialização dos Awá.
Os estudos sobre os povos Tupi da Amazônia ocidental tiveram grande
destaque nas décadas de 30 e 40 com Charles Wagley (Tapirapé - 1977) e Charles
teórica da “aculturação”, enfoque que marcou os estudos sobre povos indígenas
nessa época.
Esses trabalhos têm em comum um pessimismo em relação ao futuro dos
Tupi, como na obra de Wagley e Galvão (1955), que salientam que os Tentehar do
Maranhão iriam desaparecer do mapa sócio-cultural devido as grandes influências
da expansão capitalista na Amazônia. Sobre isso afirmam que:
“Se o processo não vier a sofrer interrupção ou reorientação por circunstancias que fogem à possibilidade de previsão, a distância cultural diminuirá ao ponto de permitir a transformação desses índios em caboclos. Não será uma transformação brusca porém gradual, de índios que “passam” para a sociedade brasileira” (WAGLEY & GALVÃO, 1955, p. 12).
Apesar de a história mostrar que esta tese não se efetivou, este pensamento
catastrófico ampara-se nas versões de estudiosos dos povos Tupi que defendem
que estes encaram o mundo através de uma concepção de sociedade e reprodução
social muito mais “frágil” do que sua concepção do plano cosmológico.
As mudanças ocorridas no modo como vivem, advindas do contato, com a
adoção de bens considerados de fora (roupas e o modo de construção de suas
casas) e a própria perda de alguns aspectos culturais, não faz com que os povos
Tupi deixem de acreditar e perpetuar para as gerações mais novas o que
consideram ser importante na sua constituição étnica e um desses elementos
essenciais é a cosmologia.
Os pensadores das décadas de 30 e 40, envolvidos pela perspectiva da
cultura material, o que os impediu de perceber a força de seu discurso cosmológico,
conforme salienta. Viveiros de Castro (1989, p. 90)
A plasticidade ou fluidez da organização social dos Tupi-guarani, que se manifesta não só nesta “fragilidade” ao contato, como também na notável variedade apresentada pelas morfologias Tupi-Guarani concretas, encontra sua contrapartida na homogeneidade igualmente surpreendente quanto ao discurso cosmológico, os temas míticos e a vida religiosa, que atravessa séculos de história e milhares de quilômetros de distância.
Apesar da fluidez da estrutura social dos Tupi, apontada pelos autores, cabe
salientar a importância que a língua tem, e tudo que ela abriga, como a transmissão
dos conhecimentos cosmológicos. Estas propriedades específicas de cada um
desses povos (língua e cosmologia) são importantes por terem resistido a vários
séculos de contato. Os Tentehar são prova disso, pois apesar de terem mais de 400
anos de contato e muitos falarem português, continuam a dominar e usar sua própria
língua, expressando a força que as culturas indígenas têm em resistir à intervenção
do Estado.
Mércio Gomes (2002), em seu livro “O índio na história: o povo Tenetehara
em busca da liberdade” argumenta que o futuro desse povo não é o extermínio.
Chama-nos a atenção para o fato do povo Tentehar ter sofrido, ao longo de sua
história, diversas agressões que datam desde a época da colonização. Segundo o
autor:
A história Tenetehara ganha uma dimensão especial porque é, de certa forma, uma história que resultou exitosa, não obstante o sofrimento humano, as perdas territoriais e os desfalques culturais sofridos no seu relacionamento com a sociedade luso-brasileira em formação (GOMES, 2002, p. 69).
Segundo Gomes (2002), os índios Tentehar, após a chegada dos
colonizadores, sempre estiveram em um posicionamento social inferior, devido às
Já na relação com os Awá, os Tentehar, segundo Darcy Ribeiro (1996)
reproduzem a relação de dominação dos colonizadores:
Os Guajajaras acham que seu papel seja o de amansar esses irmãos bárbaros e procedem para com eles do mesmo modo que os civilizados. Prova disso é que já conheci aqui no posto uns quatro Guajá, meninos, rapazes e adultos, tomados pelos Guajajaras (RIBEIRO, 1996, p.332).
Esse trecho é do fim da década de 40 e início de 50, quando Darcy Ribeiro
realizou pesquisas antropológicas entre os Urubu-Kaapor, no Maranhão, como
etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Foram duas viagens, cada uma com
seis meses de duração, registradas em diários de campo que, somente em 1996,
vieram a ser publicados, expondo a história e a vida dos Urubu-Kaapor na Amazônia
maranhense, com toda sua riqueza e complexidade cultural e também os problemas
resultantes do contato com as sociedades envolventes, tanto dos brancos como de
outros povos indígenas.
Ao longo de seu diário, Darcy Ribeiro comenta sobre essas sociedades que
estão próximas aos Ka’apor, entre elas os Awá-Guajá, que são tratados por ele
como:
Índios de fala tupi que perambulam por essas matas, sempre em luta contra as outras tribos. Segundo as informações de que se dispõe, são os mais primitivos habitantes da região e talvez do Brasil. Não têm aldeias permanentes, mas simples choças, muito toscas, que constroem umas após outras, em sua interminável andança em busca de alimentos (RIBEIRO, 1996, p. 332).
Darcy Ribeiro (1996) destaca o papel dos Awá como inimigos tradicionais dos
Ka’apor, sendo uma relação marcada por raptos de mulheres e conflitos mortais.
Descreve relatos dos Ka’apor sobre momentos em que possuídos pelo sentimento
de raiva saiam pela mata à procura de um Awá para matar, inclusive formando
Os Awá eram retratados pelos Ka’apor (RIBEIRO,1996) de forma pejorativa.
Segundo sua cosmologia, Maíra fez primeiramente os Ka’apor e os brancos,
ensinando aos primeiros a fazer pano e os segundos a fabricar casa, espingardas,
fazer terçado e pano, enquanto que os Awá foram feitos depois e não lhes foi
ensinado nada. Salientam que os Brancos foram feitos de samaúma7 e os Ka’apor
de pau d’arco e, em contrapartida, os Awá teriam sido feitos de pau podre e,
quando morrem, não vão para o céu, já que não são enterrados, sendo o corpo
abandonado e apodrecido pelo tempo.
Esses relatos nos mostram o quão conflituosa era a relação entre esses
povos e atualmente, principalmente entre os Awá mais velhos, existe certa
temeridade em fazer contato com os Ka’apor.
Essa dinâmica é perceptível na Terra Indígena (T.I.) Caru, devido a
proximidade entre Tentehar e Awá. Os primeiros pretendem definir as políticas
publicas relativas aos Awá e, inclusive, falar em nome deles nos vários fóruns de
discussão de políticas públicas, especialmente de saúde e educação. Situação
semelhante pode ser observada na terra indígena Alto Turiaçu, onde as relações
dos Awá com os Ka’apor são constantes, embora esses últimos não tentem exercer
sobre os Awá o mesmo grau de domínio que os Tentehar.
A produção de literatura sobre os Tupi durante os anos 60 e 70 sofreu uma
redução, devido principalmente, ao grande destaque que as escolas
estrutural-funcionalista e estruturalistas davam aos estudos sobre os grupos Jê. Estes grupos
possuem uma organização social8 que melhor se adequa ao recorte teórico utilizado
por essas escolas, já que os estudiosos da temática indígena consideravam que
entre os Tupi havia uma baixa especialização da estrutura social.
Do final da década de 70 em diante, o contato forçado com certos grupos do
leste amazônico despertou interesse de alguns antropólogos que também
começaram a re-estudar esses povos. Os Awá são um desses, mas com trabalhos
poucos divulgados e a maioria realizados por estrangeiros.
Entre os trabalhos sobre os Awá alguns ganham destaque nesta dissertação.
Um deles é o livro de Loretta A. Cormier (2003), que aborda a relação dos humanos
com os primatas na sociedade Awá, buscando explicar seu particular
comportamento com os animais, à luz das construções míticas e das relações de
parentesco do grupo.
Merece destaque, também, a tese de doutoramento The Persistence and
Cultural Transformation of the Guajá Indians, apresentada à Universidade da Florida
em 1997, pelo etnólogo Louis Carlos Forline, que realizou várias etapas de campo
nas aldeias Awá, entre 1991 e 1994. Numa perspectiva ecológico cultural, Forline
analisou as mudanças sócio-culturais ocorridas entre os Awá-Guajá em decorrência
do contato.
Outra contribuição importante para o conhecimento desse povo pode ser
encontrada nos relatórios de pesquisa, sobre os Awá, do antropólogo Mércio Pereira
Gomes9. Esses relatórios foram produzidos num intervalo que vai da década de
8 Aspectos dos povos Jê como sociedade dual organizada em partidos e existência de grupos de
idade.
oitenta até o inicio dos anos 2000. Seu conteúdo alerta para importância da proteção
da terra destinada aos Awá e oferece um panorama dos contatos realizados, das
intrusões na terra e descreve aspectos culturais e indentitários.
Os relatórios produzidos no âmbito da pesquisa da qual participei como
auxiliar de campo, assim como artigos apresentados em congressos, capítulos de
livros, entre outros, trazem informações sobre as transformações vivenciadas pelos
Awá no processo de sedentarização10.
10 Coelho, Politis, Hernando e Ruibal (2005) Coelho, Politis, Hernando e Ruibal (2008) e Coelho,
2 A DINÂMICA DE TERRITORIALIZAÇÃO AWÁ: exercícios da colonialidade do poder
Ao tratar da dinâmica de Territorialização Awá, recorro a Cormier (2003),
Forline (1997), O’Dwyer (2002), Gomes e Meireilles (2002), que apontam o fato
desse povo ter sido, possivelmente, agricultor até cerca de 300 anos, pois seu
vocabulário conserva termos relacionados a agricultura e plantas cultivadas
(mandioca, farinha, jerimum, milho, algodão e outros).
Segundo Clastres (2004, p. 65-66), as culturas de caçadores são, na América
do Sul, completamente minoritárias, conforme apontam os estudos arqueológicos e
etnobotânicos que defendem a teoria de que:
a ausência de agricultura resulta entre eles (povos caçadores) não da persistência, através do tempo, de um modo de vida pré-agrícola, mas sim de uma perda: os Guayaki do Paraguai, os Siriono da Bolívia praticavam, como seus vizinhos, a agricultura à base de queimadas, mas, devido a circunstâncias históricas diversas, abandonaram-na, em épocas mais ou menos antigas, e voltaram a ser caçadores-coletores. Em outras palavras, em vez de uma infinita variedade de culturas, observa-se antes um enorme bloco homogêneo de sociedades com um modo de produção semelhante.
Corroborando essa perspectiva, a hipótese mais recorrente nos trabalhos
sobre os Awá considera que eles possivelmente adotaram o modo de vida de caça e
coleta como única via para escapar da pressão dos colonizadores que invadiam o
estado do Pará, possível território de origem. Sendo assim, esse provável
movimento inicial é visto por mim como o primeiro processo de territorialização
(Oliveira, 1999) que os obrigou a uma redefinição das relações sociais, das
estratégias produtivas e da cosmologia.
O contato inicial do Estado brasileiro com os Awá, que caracteriza o novo e
(FUNAI), que instituiu as chamadas Frentes de Atração, instância administrativa
utilizada para estabelecer contatos com povos indígenas denominados arredios. No
caso dos Awá, essas frentes foram, posteriormente, transformadas em Postos
Indígenas que vêm estabelecendo um processo de sedentarização desse povo
(GOMES & MEIRELLES, 2002).
Em 1961, antes mesmo do primeiro contato oficial, as terras dessa região já
eram reconhecidas pelo decreto do presidente da época, Jânio Quadros, como
sendo indígenas. O decreto de criação da Reserva Florestal do Gurupi, com 1 674
000 hectares, em seu Artigo 4º afirma:
Dentro do polígono constitutivo da Reserva Florestal serão respeitadas as terras do índio, de forma a preservar as populações aborígenes, de acôrdo com o preceito constitucional e a legislação específica em vigor, bem como os princípios de proteção e assistência aos silvícolas, adotados pelo Serviço de Proteção aos índios.
Somente em 1982, foram homologadas as TIs Alto Turiaçu (para os Ka’apor)
e Caru (para os Tentehar e Awá-Guajá) e, posteriormente, em 1985, a FUNAI iniciou
os estudos de identificação da TI Awá para os Awá, na área entre essas duas TI’s
antes citadas.
A Terra Indígena Araribóia foi homologada em 1990 e, embora nela não
exista uma aldeia Awá, há relatos dos Tentehar que afirmam a presença de grupos
desse povo perambulando pela mata e a própria FUNAI, em expedições pela área,
já encontrou vestígios de Awá nessa terra.
No período em que fazia trabalho de campo para a realização da minha
monografia de conclusão de curso de graduação (2007/2008), nesta T.I., ouvi
homem na mata que acreditavam ser um Awá. Acrescentaram que estava muito
magro e provavelmente estaria passando fome.
Mais recentemente, no início de 2011, próximo a aldeia Vargem Limpa, nesta
mesma terra indígena, um índio Tentehar afirmou ter tido contato com um homem
Awá. No momento do encontro este, que era jovem, teria saído correndo, retornando
em seguida com seu grupo, composto de cinco integrantes. Além dessas cinco
pessoas, havia outras que ficaram observando o encontro de longe. Ele não soube
dizer exatamente quantas pessoas, mas informou que havia jovens, crianças e
idosos. (WWW.cimi.org.br – 28/03/2011).
Quadro Nº 1 Terras Indígenas onde vivem os Awá
Terra indígena Extensão da
área(ha) Povos homologação Data de
Alto Turiaçu 530.525 Awá, Tentehar e
Ka’apor 28/12/1982
Carú 172.667 Awá e Tentehar 22/11/1982
Awá 116.582 Awá 19/04/2005
O mapa a seguir indica a localização dessas terras:
O que pude identificar, atualmente, como território Awá corresponde a uma
extensão que engloba as quatro terras indígenas demarcadas e uma faixa de terra
sem demarcação, localizada entre as terras indígenas Caru e Araribóia. A terra
indígena Awá, demarcada por último, objetivou resguardar o corredor pelo qual
perambulavam os Awá, conforme pode ser visto na figura 01. Todas as terras
indígenas que constituem esse “território” têm sofrido a recorrente ação de
invasores.
O contato oficial com os Awá ocorreu no ano de 1972, quando foram
resgatadas duas crianças que estavam próximas ao rio Carú. No ano seguinte
(1973) foi montada uma expedição para fazer contato com doze índios na região do Figura 01: Mapa das terras indígenas com presença dos Awá e localização dos
Postos Indígenas.
P I Guajá
P I Juriti
Alto Turiaçu. Essa expedição deu origem a Frente de Atração Guajá, constituída
pela FUNAI (O’Dwyer 2002, sp), que se converteria, posteriormente, no primeiro
Posto Indígena11 (P.I.) dos Awá-Guajá, o P.I. Guajá (Terra Indígena Alto Turiaçu).
Gomes e Meirelles (2002, sp) referem-se as perdas populacionais
decorrentes da atração desse primeiro grupo:
“eram cerca de 56 indivíduos em 1978, quando começaram a contrair fortes gripes que resultavam rapidamente em pneumonias. Quando o antropólogo (Mércio Gomes) esteve com eles em fevereiro de 1980 estavam reduzidos a apenas 26,
ainda sofrendo de fortes malárias, alta mortalidade infantil e desproporção entre os sexos (dois homens para uma mulher). Porém, a partir de uma assistência mais de perto, estancaram sua queda demográfica, passaram a crescer e hoje (setembro de 2002) somam 67, sendo 32 do sexo masculino e 35 do sexo feminino”.
Atualmente, quase oitenta indivíduos vivem na aldeia próxima a esse posto e
enfrentam problemas de desnutrição. O estilo de vida mais sedentário, promovido
pela FUNAI, tem sido articulado à prática da agricultura, atividade que os Awá ainda
não conseguem dominar de forma autônoma.
Esta aldeia se localiza na Terra Indígena Alto Turiaçu que possui uma
extensão de 530.525 Ha., o que a converte na maior Terra Indígena no estado do
Maranhão. Está localizada na bacia dos rios Turiaçu e Gurupí, nos municipios de
Carutapera, Cândido Mendes, Monção e Turiaçu. Limita-se ao Norte e Nordeste com
as terras do núcleo de colonização da COLONE (Colonização do nordeste)12, de
onde surgem com freqüência invasões de camponeses em busca de terras.
Nos limites Oeste e sul também se encontram vários povoados que
constituem focos de penetração na terra indígena, cujos moradores, pouco a pouco,
11 Os P.I. se localizam em terras indígenas e têm a função de articular as ações locais de prestação
de serviços, fiscalização e proteção das áreas.
12 Projeto governamental de assentamento de pequenos produtores, promovido pela extinta
vão abrindo clareiras na mata para o cultivo de roça. Depois do acordo, estabelecido
em 1970, entre a FUNAI e a SUDENE, de reservar um pedaço da terra para a
colonização, a Terra Indígena Alto Turiaçú ficou localizada entre os rios Gurupi (a
Oeste), Turiaçu (a Leste), Gurupiúna (ao Sul) e Maracaçumé (ao Norte).
Até 1976, essa terra formava, junto com a atual T.I. Caru uma única reserva
de cerca de 845.000 Ha. Mas a partir dessa data, a FUNAI permitiu a divisão dessa
área inicial em duas distintas: T.I. Caru, com 172.667 Ha. e a T.I. Alto Turiaçu, com
530.524 Ha. Isso significa que uma importante extensão, que originalmente era terra
protegida, ficou fora da demarcação. Neste espaço, estabeleceram-se diversos
povoados e fazendas, o que aumentou as pressões sobre o território Awá.
A T.I. Alto Turiaçu13 foi demarcada, com esta extensão em 1978 e
homologada em 1982. Mesmo demarcada, as invasões ocasionais de camponeses,
madeireiros ou fazendeiros permanecem. O P.I. Guajá foi criado em 1973, a partir
de dos primeiros contatos da FUNAI com os Awá nesta terra indígena, originalmente
demarcada para o povo Ka’apor.
Posteriormente à criação do P.I. Guajá foram instalados mais três postos
indígenas - Awá, Tiracambú e Jurití -, chegando à configuração atual de quatro
postos. Esse processo é justificado pelo órgão indigenista, a FUNAI, como uma
estratégia de proteção, devido principalmente a pressão de madeireiros, fazendeiros
e pequenos agricultores sobre as terras por onde os Awá perambulavam.
O P.I. Awá se localiza na Terra Indígena Caru e teve sua construção de forma
dramática, pois os primeiros índios que constituíram este posto eram da “região do
igarapé Timbira, afluente do rio Pindaré, que desce na altura do povoado Mineirinho”
(GOMES & MEIRELLES, 2002, sp) e estavam pressionados por lavradores por
todos os lados, sendo transferidos para uma nova localidade. Em 1980, dos 28
índios contatados, somente 22 foram transferidos, tendo o restante morrido em
decorrência de uma forte gripe.
O P.I. Tiramcambú, também na Terra Indígena Caru, é formado por índios
que foram trazidos do P.I. Awá, onde se concentrava grande população Awá, para
que pudessem ter melhores condições de caça e pesca.
A Terra Indígena Caru14 tem a extensão de 172.667 Ha. e foi homologada,
assim como a T.I. Alto Turiaçu, em 1982. Como as demais terras, habitadas pelos
Awá, sofre pressões de madeireiros, posseiros e fazendeiros, além de em suas
margens ter sido construída a Estrada de Ferro Carajás, o que supõe um elemento
que distorce o modo de vida caçador-coletor, tanto pelos limites da mobilidade que
implica, como pelo efeito que tem sobre a caça potencial dos índios, em decorrência
do barulho constante dos trens.
Já o P.I. Juriti foi instalado na Terra Indígena Awá, demarcada para uso
exclusivo desse povo. Junto ao posto indígena foram fixados dois grupos Awá
-Guajá, contatados em 1989. Posteriormente, foi feito contato com mais dois grupos,
um em 1991 e o outro em 1998.
A Terra Indígena Awá, onde se localiza a aldeia Juriti, tem a extensão de
116.582 hectares e encontra-se no norte do Maranhão, entre outras duas Terras
Indígenas que os Awá compartilham com outros índios, (T.I. Alto Turiaçu e T.I.
Caru). Com a demarcação da T.I. Awá, forma-se uma área contínua de extrema
importância na defesa das condições de sobrevivência dos Awá, desde que seja
resguardada.
O processo de reconhecimento dessa terra teve início na década de 1980,
mas ficou paralisado por conta da forte oposição de fazendeiros, madeireiros e
posseiros que ocupam a área desde a década de 1950, quando foi construída a
Rodovia BR-322, que liga as cidades de Santa Inês e Imperatriz e a Ferrovia
Carajás, que transporta minérios do sul do Pará até São Luis do Maranhão.
Durante o processo de Demarcação, a empresa Agropecuária Alto Turiaçu,
moveu uma série de ações judiciais reivindicando a posse de 37.980 hectares,
entretanto a contestação foi considerada improcedente pela justiça.
Esta empresa, que tem sede em São Paulo, se apossou dessas terras antes
da portaria de interdição de 1991, explorando madeira nobre e criando gado,
alegando ter títulos concedidos pelo ITERMA (Instituto de Colonização e Terra
Maranhão). Cabe destacar que as terras em questão eram federais, inseridas no
perímetro definido pelo decreto de Jânio Quadros de 1961, que declarava todas as
terras situadas entre os rios Pindaré e Gurupi como sendo Reserva florestal do
Gurupi. Portanto, o ITERMA não tinha domínio sobre essas terras.
Mesmo assim, a Agropecuária Alto Turiaçu alegava que, apesar da FUNAI
defender que a terra era de posse imemorial dos índios, estes não eram vistos por lá
nos últimos anos. Segundo Coelho (1994, p.22):
bovino, com mais de 3,3 mil cabeças, bem como a foto de uma serraria em funcionamento, e de tratores trabalhando na abertura de uma estrada.”
De 1985 a 1992 a extensão da terra para os Awá sofreu algumas
modificações, na forma de reduções e de acréscimos, através de portarias
interministeriais, demonstrando as pressões que caracterizaram o seu procedimento
demarcatório, que continuaram após a última declaração de posse permanente
indígena, em 199215.
Essa declaração levou em consideração que a ocupação de uma área
indígena não pode se restringir ao local de aldeamento, ainda mais quando estamos
considerando o Povo Awá que possui características de grupos nômades. Aspectos
como o uso tradicional da terra, as migrações e compulsões que os levaria a se
afastar de espaços anteriormente utilizados e necessários para a sua sobrevivência
foram levados em consideração nesta ocasião. Mas somente em 19 de abril de 2005
o presidente Lula homologou a terra Indígena Awá, determinado sua desintrusão.16
Os Awá pareciam pouco compreender o processo de disputa pela terra.
Assim como os Araweté17, analisados por Viveiros de Castro (1986 e 1994), os Awá
“não tinham a noção de um domínio exclusivo sobre um espaço contínuo e
homogêneo” (VIVEIROS DE CASTRO, 1994, p. 31), mas uma concepção de
território que não possuía limites impostos externamente e sim uma organização
própria. As pressões efetivadas pelos madeireiros precipitaram o “contato” e a
fixação em áreas restritas. Muito embora os processos demarcatórios tenham
15 Em 1991 foi publicada a portaria de interdição da terra e no ano seguinte a de demarcação -
Portaria 373/92 que serviu de base para os trabalhos que se iniciaram somente em 1994.
16 Como o Decreto 1775/96 permite o recurso do contraditório, até hoje não houve desintrusão, pois
vários processos tramitam na justiça.
17 São falantes da língua
Araweté classificada, como a língua Awá, na família Tupi-Guarani
buscado resguardar as rotas tradicionais de perambulação Awá, esse território não
tem sido protegido e as permanentes invasões têm alterado as formas de
nomadismo típico desses povos, gerando transformações em seu cotidiano.
Ao invés de constituir uma estrutura de vigilância que protegesse a área de
perambulação Awá, a FUNAI construiu Postos que serviriam como locais de apoio
às aldeias Awá, onde estariam protegidos. Em troca de proteção, permaneceriam
nas proximidades dos Postos instalados. Isso implicava num processo de
aldeamento18, semelhante ao praticado no Brasil Colônia.
Mesmo assim, os Awá têm buscado reproduzir a estrutura territorial que
possuíam em seus territórios de origem (O’DWYER 2002, sp). Cada grupo Awá
reconhece como própria uma parte do território que compartilha, ao que chamam
harakwa (“meu território”) ou hakwa (“território do outro”). Gomes (1996, p. 7) ao
falar da importância dessa estrutura, salienta que este o território Awá é utilizado:
Como fonte de vida e conhecimento. Determina limites e reconhece os seus pontos e tempos de permanência e exploração. A incursão de grupo ou indivíduo no hakwa de outro grupo constitui motivo de cautela que deve ser observada e respeitada. Assim, o chamado nomadismo guajá não se dá de forma aleatória, mas regular.
Atualmente chamam de harakwa a aldeia onde foram fixados pela FUNAI,
assim como as rotas de caça e coleta.
Com essa concepção de território imposta aos Awá foi sendo implantada uma
concepção de limites de suas terras, dos quais deveriam assumir o papel de
“fiscais”, considerando invasores todos aqueles que exploram suas riquezas, sendo
18 Ao sistema colonial, não interessava a dispersão dos índios em grupos autônomos, espalhadas ao
a figura do madeireiro uma espécie de símbolo do homem branco que destrói a
natureza e a quem devem combater.
Quando os Awá tratam das questões relacionadas à proteção da terra,
demonstram impaciência e rispidez em relação aos invasores. Presenciei uma
situação tensa nos arredores da aldeia, no período em que fazia trabalho de campo
na aldeia Juriti. Um Awá retornou da mata alertando que havia madeireiro nas
proximidades da aldeia derrubando árvores. Todos ficaram muito irritados e
resolveram ir ao local, no dia seguinte, para “conversar” com o responsável por essa
situação. Convidaram-me para acompanhá-los, mas de início hesitei, pois temia a
deflagração de um conflito. Refleti melhor e resolvi ir junto, depois de reuni-los e
tentar explicar que poderíamos primeiramente averiguar o local e fotografar. Como
eu retornaria para São Luís no dia seguinte, buscaria junto aos órgãos responsáveis
as providências necessárias.
Minha proposta foi aceita e foi
formado um grupo de oito homens, sendo
seis adultos e dois mais jovens, para
efetivar a averiguação. Todos estavam
munidos de arco e flecha (Figura 02) ou
espingardas, sendo que um portava um
rifle da FUNAI.
Começamos a caminhada pela mata e, depois de mais ou menos vinte
minutos, começamos a ouvir o som de motosserra. Encontramos uma trilha que
seguimos, até um clarão na mata onde as árvores haviam sido derrubadas (figuras
02 e 03). Ficamos por algumas horas circulando e tirando fotos dessa área, além de
Figura 02: Jovem Awá munido de arco e flechas.
verificar se havia alguém nesse local. Posteriormente, os Awá decidiram que iriam
seguir o barulho da motosserra para verificar quantas pessoas ali estavam e impedir
que continuassem derrubando as árvores.
Tentei dissuadí-los, pois temia as conseqüências desse ato. Argumentei,
novamente, que em São Luís eu poderia procurar ajuda nos órgãos responsáveis
pela proteção da área e que no posto da FUNAI, na própria aldeia, poderíamos
passar um rádio para Santa Inês informando a situação Eles hesitaram um pouco,
alegaram que ninguém fazia nada em sua defesa, e decidiram verificar quantas
pessoas estavam envolvidas e seqüestrar a motosserra. Para essa empreitada não
fui convidado, ao contrário, fui impedido. Depois de uma hora retornaram e, como
ocorre depois das caçadas, sentaram e começaram a contar tudo que haviam visto
nesse intervalo de tempo. Falavam entre si, em sua língua, e em alguns momentos
se reportavam a mim relatando que havia somente uma pessoa e que retornariam
no dia seguinte para pegar a motosserra. Na aldeia, a todo o momento
demonstravam revolta em relação aquela situação. Nesse mesmo dia realizaram o
Figura 03: Mata devastada. Fonte Acervo próprio.
ritual karawárə e, como soube depois, retornaram no dia seguinte para capturar o
invasor.
Ao retornar para São Luís, minha orientadora conseguiu uma reunião no
Ministério Público para informarmos o que estava ocorrendo em campo. Nesse meio
tempo, chegou a informação de que os índios haviam capturado a motosserra e seu
operador, levando-os para aldeia. Lá, agrediram bastante este indivíduo que, em
conseqüência, foi a óbito.
Os registros de campo indicam a ocorrência de outras situações semelhantes,
quando agiram da mesma forma, fiscalizando os limites de sua terra. Esses
episódios são ilustrativos das condições atuais vivenciadas pelos Awá. Convivem
com o barulho de motosserras, que se aproximam, a cada dia mais, da aldeia.
Os Awá estão imersos em um novo contexto, ao qual ainda estão se
adaptando e, por falta da proteção a que teriam direito, buscam resolver seus
problemas expondo-se do mesmo modo que ocorria no passado, quando viviam
perambulando pela mata, à ameaça dos madeireiros, fazendeiros e afins.
A Terra Indígena Awá encontra-se tão desmatada e invadida a ponto de
existir dentro dela um povoado chamado Cajú, no qual o município de São João de
Caru construiu uma escola pública. A situação no Posto Juriti atualmente é muito
perigosa, a ponto dos funcionários deste local temerem por suas vidas. É constante
a insegurança, principalmente quando necessitam navegar pelo rio, para desfrutar
do período de descanso em suas cidades de origem:
Tive acesso a algumas cartas enviadas pelo chefe do P.I. Juriti a
administração da FUNAI informando sobre os invasores e os perigos que os Awá e
os próprios funcionários enfrentam nessa área, mas que não obtiveram resposta.
Em agosto de 2006 os pesquisadores Almudena Hernando e Alfredo Ruibal
tiveram a oportunidade de acompanhar uma operação conjunta da FUNAI com a
Polícia Militar Florestal do Maranhão para intervir e deter os responsáveis pela
fixação de vários acampamentos de madeireiros dentro da Terra Awá. Nessa
ocasião, foram detidos alguns madeireiros e os tratores que eram utilizados para a
derrubada da mata. No entanto, na mesma noite do dia em que foram presos, foram
liberados e em poder dos veículos voltaram para a Terra Awá.
No caminho construíram cinco
barricadas (figura 05) para retardar a
chegada da polícia e deram sumiço no
maquinário de maior valor utilizado no
desmatamento, abandonando o
acampamento. Quando a polícia chegou
ao local encontrou somente objetos de
menor valor e latas de bebida alcoólica. Segundo os pesquisadores, o acampamento
era bem equipado, com cozinha para preparo da alimentação. Os Awá têm esse
acontecimento bem vivo em sua memória, sendo demandadas, quando vou à aldeia,
as fotos que foram tiradas pelos pesquisadores durante a operação. Grande parte
da aldeia se aglomera em frente ao notebook para ver as imagens e comentar, de
forma revoltada, as cenas que observam.
Figura 05: Barricadas sendo destruídas pela polícia.
Atualmente, portanto, o território demarcado encontra-se em grande parte
invadido e os Awá são forçados a se adaptar a um nomadismo restrito. Seus
deslocamentos tradicionais foram alterados e a área de perambulação
extremamente reduzida. Percursos que antes se davam em distâncias de mais de
80 km, reduziram-se, no caso dos que estão no PI Juriti, a 15 ou 10 km, onde já
podem encontrar os rastros dos madeireiros.
Sobre esse assunto, Coelho, Politis, Hernando e Ruibal (2009, p. 115)
afirmam que:
Os Awá vivenciam um processo de adaptação ao novo estilo de vida,
caracterizado por uma semi-sedentarização. Mantêm os deslocamentos para caça, que permanece como sua atividade de subsistência por excelência; no entanto, possuem nova dinâmica em função do seu interesse em retornar para a aldeia onde se sentem protegidos pela estrutura da FUNAI e contam com uma assistência médica de nível primário.
As conseqüências dessas mudanças atingem os Awá nos mais diversos
setores de suas vidas. Os índios que nasceram após essa semi-sedentarização
passam a ter uma vivência diferente da que seus pais tiveram, pois já nascem na
aldeia e desconhecem a experiência da vida exclusivamente na mata.
A dinâmica de atração e fixação dos Awá em Postos Indígenas tem implicado
em novo processo de territorialização (OLIVEIRA,1993), marcado inicialmente por
intensa mortandade e, posteriormente, por novos arranjos territoriais, sociais e
alimentares.
Os Awá mantêm um contato limitado com a sociedade brasileira e há fortes
da FUNAI, ou, conforme categoria de Gomes (1989), “autônomos”, isto é, que
mantêm seu próprio modo de vida sem nenhuma interferência exterior.
A situação atual dos Awá tem provocado alterações consideráveis no seu
cotidiano, fazendo com que busquem novas estratégias para a manutenção do seu
3 REPRODUZINDO O SER AWÁ NA ALDEIA JURITI
As informações relativas aos Awá, trabalhadas neste capítulo, referem-se aos
que vivem na aldeia Juriti, onde fiz o trabalho de campo. Essa aldeia encontra-se em
uma relação peculiar em relação às demais, pelo menor contato com os de fora e a
ausência de processos de escolarização.
Os Awá são um dos últimos povos indígenas que sobrevivem, quase
exclusivamente, da caça, pesca e coleta de animais e vegetais da floresta. Sua
organização social era tradicionalmente baseada em grupos de 08 a 25 pessoas
praticantes do nomadismo (Relatório Projeto Awá, 2005). São falantes da língua
Awá, classificada no tronco lingüístico Tupi (RODRIGUES, 2002).
A aldeia juriti encontra-se na Amazônia ocidental, em um local onde a
vegetação é fechada e cortada por vários igarapés. Dessa forma, a caça ganha
ainda mais força, sendo bastante explorada pelos Awá. Essa atividade tem sido
comprometida pela invasão das terras por madeireiros, interferido de forma incisiva
no cotidiano da aldeia Juriti, onde procuram construir formas próprias de lidar com
esta situação.
Nessa aldeia vivem cerca de quarenta índios que têm contato regular com
poucos funcionários da FUNAI e da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) desde
o final da década de oitenta, quando foi implantado o Posto Indígena Juriti. Nesse
posto trabalham quatro funcionários, sendo dois da FUNAI e dois da FUNASA
(técnicos em enfermagem), em sistema de revezamento quinzenal.19 A FUNAI
mantém funcionários na aldeia para oferecer proteção aos Awá em relação aos
invasores de suas terras e para supri-los de bens industrializados. Vale salientar,
que o povo Awá é o único no Maranhão para quem foi mantido o funcionamento de
Posto Indígena na aldeia, com a presença de funcionários em tempo integral20. A
FUNASA mantém um técnico em enfermagem na área para prestar atendimento de
baixa complexidade.
Os dois postos de atendimento
funcionam numa mesma construção,
situada a poucos metros da aldeia
(Figura 06). Esta casa possui luz
elétrica (fornecida por placas solares e
por motor a diesel), banheiro (sem
chuveiro), filtros d’água, duas
geladeiras, uma cozinha com fogão e
quatro quartos. Um quarto funciona como enfermaria, com uma maca, duas
balanças (infantil e adulta), um armário com remédios e material de primeiros
socorros e um rádio amador da FUNASA. No outro quarto há uma mesa com um
rádio amador21 da FUNAI. Os outros dois quartos são divididos entre os
funcionários.
A aldeia Juriti tem o município de São João do Caru como referência. O
acesso, na época menos chuvosa, se dá somente por moto ou carro com tração até
o povoado de São João dos Porcos, de onde se segue a pé, cerca de três
quilômetros na mata, até a aldeia. No inverno, a viagem de São João do Caru para
20 Decreto N° 7.056, 28 de dezembro de 2009, extinguiu os postos indígenas.
21 Esses rádios são as únicas formas de comunicação que eles possuem com quem se localiza fora
da aldeia, neste caso a ligação é direta com a cidade de Santa Inês.
Figura 06: Posto Indígena Juriti. Fonte: Acervo Projeto
aldeia é feita unicamente pelo rio Carú, uma viagem que dura cerca de oito horas. A
distância dificulta o acesso dos índios à cidade o que ocorre raramente.
Os Awá que vivem na aldeia Juriti foram contatados em diferentes momentos
e, provavelmente, estavam ligados a diferentes patrigrupos.O’Dwyer (2010) salienta
que os grupos são nominados por um dos homens adultos, tanto nos documentos
da FUNAI consultados por ela em sua pesquisa, como também, pelos próprios Awá.
Argumenta que:
“Esta lógica em seguir um sistema de nominação e divisão em grupos presente na própria prática indigenista parece estar teoricamente orientada pela patrissegmentação dos Tupi-Guarani, como no caso dos índios parakanã (O’Dwyer, 2010, p. 396).”
Carlos Fausto (2001, p. 181) que estudou esta divisão entre os Parakanã,
salienta que “seu ponto mais forte de aplicação é a dicotomia interna entre “nós” e
“outros”. Ao localizarmos os grupos contatados e como foram se adaptando à aldeia,
fica mais claro observar essa diferença entre “nos” e “outros”.
O contato com o primeiro grupo que atualmente reside na aldeia Juriti, se deu
em 23 de julho de 1989, nas proximidades do igarapé Água Preta. Era um pequeno
grupo com sete Awá, que relataram aos sertanistas a existência de outros grupos,
inclusive com maior número de componentes. Mas somente três meses depois, em
20 de outubro de 1989, no igarapé Mutum, ocorreu o contato com mais onze índios.
Takãrentxiá foi contatado em 1991, próximo as águas do rio Pindarezinho
juntamente com sua esposa e mais três filhos. Por ocasião do contato havia mais
dois Awá, um homem que veio a falecer devido a uma queda de um cajueiro e um