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A representação do imaginário social do negro no Brasil através do videoclipe Eminência parda, de Emicida

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Academic year: 2021

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A representação do imaginário social do negro no Brasil através do videoclipe Eminência parda, de Emicida

Sheila Cristina Silva Aragão Caetano1 RESUMO

O Brasil foi uma sociedade escravocrata por mais de três séculos e, em decorrência disso, junto com desdobramentos históricos, sociais e econômicos, foi criado um imaginário social do negro na sociedade brasileira. Esse imaginário, por muito tempo, foi omitido, mas nos últimos anos essa questão vem sendo discutida no país. Inclusive, em 2019 o rapper Emicida lançou um videoclipe chamado Eminência parda, o qual mostra como pessoas brancas da sociedade brasileira enxergam os negros.

Este artigo visa problematizar essas representações da imagem do negro por meio de pesquisa qualitativa com Stuart Hall, bell hooks e Adilson Moreira. Os dois primeiros autores traçam um diálogo entre cultura, raça e representação, enquanto Moreira classifica e mostra o racismo como recreativo.

Após essa análise, são evidenciados os desafios para que se possa fazer uma nova construção do imaginário social do negro no Brasil e por que essa mudança é necessária.

Palavra-chave: representação; racismo; sociedade brasileira.

Introdução

Em 2019 o rapper Emicida lançou o videoclipe Eminência parda, em que, como o próprio nome diz, fala sobre a ascensão do negro e do pardo na sociedade brasileira. Contudo, o foco deste artigo não é a análise da letra, mas sim do videoclipe, que mostra, na prática, o imaginário social dos negros por parte dos brancos no Brasil.

Ao longo dos séculos XVI e XIX, o país foi uma sociedade escravocrata, que primeiro escravizou os povos indígenas2 e, depois, os povos africanos. Os últimos, em especial, sofreram violências diversas, desde o trabalho forçado, severas punições, introdução forçada da cultura

1 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e

professora adjunta I na Faculdade Zumbi dos Palmares (FZP).

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europeia, até o estupro de mulheres e separação de seus familiares, dentre tantas outras questões (FAUSTO, 2019; KARASCH, 2000). Esse período produziu uma visão inferiorizada do africano e do negro brasileiro pela sociedade, a qual foi reforçada por meio das teorias raciais e do ideal europeizado (SCHWARCZ, 2017; ORTIZ, 2011).

E assim, mesmo após a libertação burocrática dos escravizados negros em 13 de maio de 1888, ainda hoje, em 2020, não houve a libertação desse grupo na prática. Ao contrário, foi criado um abismo social, cultural e econômico em que o negro tem dificuldades de ascensão social e econômica e em que sua cultura é diluída no meio da cultura brasileira.

Apesar de esforços como a Lei n. 1.390/1951, mais conhecida por Lei Afonso Arinos, em referência ao nome do deputado que propôs a lei, e promulgada pelo presidente da República, foi a primeira lei a criminalizar o racismo, observando fatos como recusa de hospedagem, venda de mercadorias, inscrição de aluno em escola, acesso a cargo público e empregos de forma geral.3 O artigo 150 da Constituição de 1967 e o artigo 153 da Constituição de 1969 dizem basicamente que todos são iguais perante a lei e que o preconceito de raça será punido. E segundo a Constituição de 1988:

O art. 3º, IV, proíbe o preconceito e qualquer outra forma de discriminação (de onde se poderia inferir que preconceito seria espécie do gênero discriminação); o 4º VIII, assinala a repulsa do racismo no âmbito das relações internacionais; o art. 5º, XLI, prescreve que a lei punirá qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais; o mesmo art. 5º, XLII, criminaliza a prática do racismo; o art. 7º, XXX, proíbe diferença de salários e de critério de admissão por motivo de cor, entre outras motivações, e finalmente o art. 227, que atribui ao estado o dever de colocar a criança a salvo de toda forma de discriminação e repudia o preconceito contra portadores de deficiência. (SILVA JUNIOR, 2002: 13)

Mais recentemente a Lei n. 10.639/2003, que foi substituída pela Lei n. 11.645/2008, institui que o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena faça parte do currículo de ensino de todas as matérias das escolas públicas e particulares. Dessa maneira, começa a propagação de conteúdos que anteriormente eram negados ao brasileiro.

3 Essa lei valeu para gênero também.

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Contudo, vemos o encarceramento em massa da população afrodescendente que começa com a Lei da Vadiagem4 e cresce com o racismo institucional (ALMEIDA, 2018), o qual criminaliza mais negros do que brancos, uma vez que juízes, advogados e delegados, em sua maioria brancos, praticam o racismo em suas funções.

Ainda, o imaginário social inferiorizado do negro no Brasil é reforçado por meio de romances, novelas, seriados, programas de TV e filmes em que quase não se vê tantos personagens negros. E quando há, na maioria das vezes, são representados por meio de papéis subalternizados, criminalizados, sem vínculo familiar ou mesmo hipersexualizados.

Essa questão pode ser analisada na série de livros Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, nos personagens de Tia Anastácia e Tio Barnabé, ambos sem vínculos familiares, realizando trabalhos subalternizados, velhos e gordos. Essa coleção de livros ainda se transformou em série infantil para a televisão, exibida na TV Tupi entre 1952 e 1963 e na Rede Globo entre 1977 e 1986 e, depois, entre 2001 e 2007.

Vemos esse cenário também no filme (1976) e na novela (1996-1997) sobre Chica da Silva, personagem que “majoritariamente aparece como desregrado, transgressor às normas, marcado pelas relações de raça/etnia, gênero e sexualidade” (CAETANO; SCHWARTZ, 2019: p. 175). O mesmo ocorre na novela Da cor do pecado, exibida em 2004, que tem como personagem principal Preta, primeira protagonista negra, que é retratada como mãe solteira e com o ofício de feirante. O próprio nome da novela faz associação da etnia negra a algo errado, algo que deva ser evitado de acordo com os dogmas da igreja católica: o pecado.

O seriado também global Sexo e as negas, de 2014, também pode ser analisado sob esse viés, já que narra a história de quatro mulheres negras com trabalhos subalternos, habitantes de uma região periférica do Rio de Janeiro, enfatizando seus casos amorosos e o esforço em alcançar seus sonhos, mas o nome da série também deixa claro a sexualização da mulher negra.

Como pano de fundo para compreender melhor os sentidos de cultura e representação na sociedade de maneira geral, este artigo se baseará nos estudos de Stuart Hall (2016) e de bell hooks (2019). hooks escreve um livro em que teoriza como as representações sobre os negros

4 No Código Criminal de 1830 o capítulo IV, em seus artigos 295 e 296, foi dedicado à criminalização de vadios e

mendigos. Em 1890 o Decreto n. 847 deu continuidade a esse tema e acrescentou a capoeira à vadiagem nos artigos 399 ao 404 do capítulo XIII. Em 1940 o Decreto-lei n. 3.688, além de manter a vadiagem como crime, acrescentou embriaguez por consumo de álcool ou qualquer substância que gere o mesmo efeito.

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norte-americanos disseminam racismo, alimentando estereótipos nocivos para o psicológico das negras e dos negros. Discorre também sobre quão importante é que negros e negras construam novas representações deles mesmos e alerta sobre o processo de desconstrução do pensamento colonizado, patriarcal e a respeito da supremacia branca.

Com isso, hooks (2019) servirá de base teórico-metodológica para análise das representações dos negros por parte dos brancos no videoclipe Eminência parda de Emicida. Moreira (2019), tanto por tratar dos estereótipos dos negros como da conceituação do racismo recreativo, também servirá de base teórico-metodológica.

Análise do videoclipe

O videoclipe Eminência parda mostra uma família negra de classe média-alta celebrando em um restaurante chique o título de graduação precoce de Vitória, de 19 anos, e sua ida ao exterior para um intercâmbio com emprego garantido. Ao longo do videoclipe a família está feliz e sorridente, comendo adequadamente e celebrando o amor entre eles, contudo ocorrem encontros diversos com a forma como os brancos enxergam o lugar dos membros dessa família. Nos últimos anos, o entendimento da palavra cultura passou por alguns processos de modificação. Hall (2016) liga cultura a características de um modo vida de um grupo, seja ele um povo, comunidade ou grupo social, e relaciona a valores compartilhados por esses mesmos grupos. Assim, “afirmar que dois indivíduos pertencem à mesma cultura equivale dizer que eles interpretam o mundo de maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma que um compreenda o outro” (HALL, 2016: 20).

Para Rancière (2017), a imagem funciona como uma representação direta de um pensamento ou de um sentimento. Já Hall (2016: 49) conclui que “a representação é uma prática, um tipo de ‘trabalho’, que usa objetos materiais e efeitos. O sentido depende não da qualidade material do signo, mas de sua função simbólica”. Sobre o significado, o sentido, o autor discorre que ele é construído por meio de conceitos e signos, assim “os atores sociais usam os sistemas conceituais para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente, para outros” (HALL, 2016: 49).

De maneira geral, poderíamos pensar que, por sermos todos brasileiros e, assim, pertencentes a uma mesma cultura, interpretaríamos significados da mesma maneira. Contudo, o racismo

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que estrutura nossa sociedade e os resquícios do pensamento escravocrata e da permanência das teorias raciais – que a grosso modo categorizavam em hierarquias os indivíduos, deixando como superiores, em quesitos estéticos, morais e cognitivos, os brancos europeus, e como inferiorizados, os índios, os mestiços e os negros – fazem com que pessoas negras e não negras que tenham desconstruído essas ideias pensem diferente das pessoas negras e não negras que não as desconstruíram.

Isso se dá em função da representação ser uma prática que está atrelada ao poder. Por isso Hall (2016), enquanto discorre sobre representação, vale-se da conceituação de Focault que diz que a elaboração de conhecimento transpassa pelo poder e pelo corpo e que isso é válido também para o campo da representação. O poder está ligado ao discurso, o qual “produz um lugar para o sujeito (ou seja, leitor ou espectador, que também está ‘sujeito ao’ discurso), onde seus significados e entendimentos específicos fazem sentido” (HALL, 2016: 100).

Desse modo, apesar de a família negra ser representada de maneira feliz, essa visão só é realmente possível para os sujeitos que não são racistas, pois os indivíduos racistas “não serão capazes de captar o sentido até que tenham se identificado com aquelas posições que o discurso constrói” (HALL, 2016: 100).

No ambiente, a família, únicos clientes negros no restaurante, logo que entra recebe olhares de repulsa por parte dos outros clientes, todos brancos, homens e mulheres adultos com idades variadas. No desdobramento do videoclipe, enquanto a família compartilha um jantar feliz, aparecem recortes no meio dessa realidade, que são representações mentais dos outros do restaurante sobre a família retratada.

A primeira imagem vem do pensamento de um casal que os olha com nojo e os imagina morando na rua, debaixo de alguma ponte, malvestidos, comendo restos de comida com as mãos e usando drogas. Esse pensamento é a representação de alguns estereótipos que se tem de pessoas negras no Brasil.

A priori, os estereótipos servem como uma simplificação de características que sejam “facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas [...] a estereotipagem reduz, essencializa, naturaliza e fixa a ‘diferença’ [...] divide o normal e aceitável do anormal e inaceitável” (HALL, 2016: 191). Assim, para o casal mencionado, o estereótipo que eles têm

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de pessoas negras é uma redução da percepção social dos negros e, por isso, eles julgam ser inaceitável e anormal a presença de negros naquele restaurante chique, próximo deles.

Moreira (2019) compreende que o estereótipo generaliza e vai além dessa simplificação de como alguns indivíduos possam perceber outros. Para o autor, os estereótipos “possuem uma dimensão claramente política, pois são meios de legitimação de arranjos sociais excludentes” (p. 59). Nesse caso, legitimaria a não presença de pessoas negras nesse tipo de estabelecimento, que em geral é frequentado majoritariamente por pessoas brancas. O mesmo acontece na próxima cena, com a criminalização do homem negro.

Uma mulher sozinha à mesa chama alguém do restaurante para reclamar sobre a presença da família no local, enquanto isso, em sua na mente, vê o pai dessa família entrando no restaurante com uma arma na mão para assaltar o local e insinuando-se sexualmente para ela por meio de sua arma, falando em seu ouvido.

Essa representação é construída com base no encarceramento em massa de homens negros, que começa com o aumento da repressão à vadiagem após 13 de maio de 1888:

A repressão à vadiagem foi um recurso frequentemente utilizado pelos poderosos para expulsar das localidades indivíduos considerados “insubordinados” ou que não se submetiam à autoridade senhorial. Essa era também uma tentativa de controlar e limitar a liberdade dos egressos da escravidão de escolher onde e quando trabalhar, e de circular em busca de alternativas de sobrevivência. (FRAGA, 2018: 356)

Moreira (2019) faz um estudo de estereótipo e estigma. Ele diz que o estigma acaba sendo uma característica que faz com que um grupo ou uma pessoa perca escrupulosamente vantagens, e no geral é esse o resultado dos estereótipos dos negros. Segundo ele, “estigmas são responsáveis pela construção de identidades sociais culturalmente desprezadas porque designam pessoas supostamente diferentes ou inferiores” (MOREIRA, 2019: 62).

A manutenção dos estereótipos dos negros na mente de pessoas brancas os convence de que “os arranjos sociais existentes correspondem a formas naturais de organização social” (MOREIRA, 2019: 60). Com isso, faz sentido para eles que indivíduos negros não tenham as mesmas oportunidades nem os mesmos acessos econômico-socioculturais. Esse cenário é agravado pela criação e disseminação dos estigmas, uma vez que literalmente limitam os acessos a oportunidades sociais, instigando, assim, atos discriminatórios que levam à exclusão

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social e acabam por confirmar o pensamento que moveu a criação deles. Além disso, os estigmas fazem com que os grupos subjugados percebam a si próprios da mesma maneira, dificultando que possam tomar atitudes a respeito disso.

Fechando essa cena, após reclamar em vão, a mulher deixa o recinto. Enquanto isso, outra mulher ameaça deixar o recinto ao mesmo tempo que seu companheiro a faz se sentar à mesa. Na sequência, aparece um idoso encarando Vitória e um homem de meia-idade que a olha fixamente, provocante, medindo-a de cima a baixo. Na mente deles, Vitória é hipersexualizada e atende a seus desejos sexuais.

No período escravocrata brasileiro, existiam alguns escravizados que eram considerados de cunho doméstico e que, por isso, ficavam dentro da casa-grande desempenhando funções no local, dentre eles a figura da mucama:

Escrava doméstica, negra ou parda, escolhida, quase sempre pela senhora, para serviços domésticos, especialmente nas casas-grandes do Nordeste. Acompanhava a cadeirinha na qual a senhora saía a passeio e podia ser ama-de-leite, cozinheira, copeira, confidente das filhas do senhor, alcoviteira ou objeto sexual do seu dono ou de outros membros da família. Transformou-se em símbolo erótico para uma certa tendência literária. (MOURA, 2013: 282)

A escravizada negra, na função de mucama, se transformava em objeto sexual e, com isso, sofria abusos sexuais e era estuprada. Na condição de escravizada de ganho, os senhores de escravos exploravam as mulheres negras para que elas se tornassem prostitutas, mesmo quando tinham pouca idade, como foi o caso de Honorata, aos 12 anos. Havia também a possibilidade de que os homens, além de as forçarem sexualmente, obrigarem mulheres negras a serem suas concubinas. Em contrapartida, além de sofrerem sexualmente na mão dos senhores de escravo, elas sofriam retaliações físicas diversas por parte do ciúme e da inveja das senhoras das casas-grandes (SCHUMAHER, BRAZIL, 2013; MOURA, 2013).

Dessa forma, constrói-se o estereótipo hipersexualizado das mulheres negras na sociedade brasileira, deixando o lastro na mente de homens brancos de que eles podem possuir e abusar sexualmente delas sem compromisso legal ou mesmo amoroso. Isso é mostrado no videoclipe por meio do homem de meia-idade e do homem idoso. hooks (2019) enfatiza que, mesmo na contemporaneidade, a mulher negra ainda é representada por essa imagem e que também não existe um esforço para a desconstrução desse imaginário: “representações de corpos de

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mulheres negras na cultura popular contemporânea raramente criticam ou subvertem imagens da sexualidade da mulher negra que eram aparato cultural do racista do século XIX e que ainda moldam as percepções de hoje” (hooks, 2019: 130).

Mais tarde, no videoclipe, uma senhora de idade balança a cabeça pela presença da família no restaurante. A senhora imagina a mãe e o pai fazendo a limpeza do lugar após o fechamento, e em sua mente o pai demonstra falta de “modos”, algo bem próximo do animalesco. Nesse caso, a exclusão social aparece “amenizada” visto que, na mente da senhora, pessoas negras até podem transitar no mesmo lugar que pessoas brancas, porém na condição subalterna, como empregados da limpeza, e transitando quando não há clientes. Somado a essa ideia, desponta a imagem do homem negro como algo selvagem, próximo do comportamento de animais, denotando, assim, falta de capacidade cognitiva aos homens negros, que foi um dos conceitos atrelados aos negros por meio das teorias raciais (SCHWARCZ, 2017; ORTIZ, 2011).

A limpeza, desempenhada muitas vezes por mulheres negras, ficou como resquício da escravidão. Laudelina de Campos Melo, que lutou a vida inteira para que as empregadas domésticas tivessem direitos trabalhistas, em entrevista para a pesquisadora Elisabete Aparecida Pinto (1993, v. 2: 39), discorre a esse respeito: “Era uma vida assim... Uma vida toda de semiescravidão e ganhando apenas cento e cinquenta cruzeiros por mês, que não chegava a nenhum salário, pois em 1961 o salário [era de] novecentos cruzeiros, não chegava a um salário. Não chegava a nada mesmo”.

Retomando a sequência do clipe, surge um casal ultrajado pela presença da família negra. Eles cochicham a respeito da presença da família no recinto, dando risadas debochadas e imaginando os filhos como escravizados com o corpo todo acorrentado a um pau de madeira, inclusive o pescoço. Nesse momento, a esposa os observa com olhar de desdém e superioridade. Fica evidenciado que, apesar de burocraticamente a escravização do negro ter terminado no Brasil há 132 anos, ainda é recente e que as ideias propagadas pelas teorias raciais continuam em voga na sociedade brasileira.

Após 13 de maio de 1888, políticas públicas do governo foram criadas para importar mão de obra branca europeia para substituição ao trabalho escravizado. Sobre isso, Costa (2010) relata que era o Estado que financiava integralmente as passagens dos imigrantes e arcava com metade dos riscos envolvidos na inserção desses trabalhadores no país. Desde os últimos anos do

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período escravocrata, o Brasil já recebia volume de trabalhadores europeus, que foi escalonado após a abolição.

Entre 1875 e 1886, entraram na província de São Paulo quatro vezes mais imigrantes do que nos quarenta anos anteriores. Foi, no entanto, nos últimos anos anteriores à abolição que a imigração italiana realmente ganhou impulso. Em 1886 e 1887 mais de 100 mil imigrantes, em sua maioria italianos e portugueses, chegaram à província de São Paulo. Entre 1888 e 1900, São Paulo receberia 800 mil imigrantes – número superior à população escrava em todo o país no ano de 1887. (Costa, 2010: 71)

Além da política pública de inserção de brancos no país, Costa (2010) relata que, após a abolição, a situação do negro na sociedade brasileira seria ainda piorada.

Após a abolição as autoridades pareciam mais preocupadas em aumentar a força policial e em exercer o controle sobre as camadas subalternas da população. Com esse objetivo multiplicaram-se leis estaduais e regulamentos municipais. Renovaram-se antigas restrições às festividades características da população negra, como batuques cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos. Posturas municipais reiteraram medidas visando a cercear os vadios e os desocupados, proibindo que vagassem pelas ruas da cidade sem que tivessem uma ocupação e impedindo-os de procurar guarida na casa de parentes e amigos. [...] Nos anos que se seguiram à abolição, os sonhos de liberdade dos libertos converteram-se muitas vezes em pesadelo em virtude das condições adversas que tiveram que enfrentar. Eles não tardaram em reconhecer que a luta não chegara ao fim. Caberia a eles próprios se organizarem para alcançar seus objetivos. A emancipação fora apenas o primeiro passo para liberdade. Muitos após o fim da escravidão, o eco de sua frustração ainda se podia ouvir. (COSTA, 2010: 138)

Próximo ao final do videoclipe, a mulher que ameaçou sair do restaurante, mas não o fez, observa a família com tristeza e raiva e enxerga a todos mortos no chão do restaurante, envoltos de uma grande poça de sangue, ao mesmo tempo que o marido nota a cena com raiva. Na sequência, aparece um garçom pisando e quase escorregando na poça de sangue da família – o detalhe da cena é que ele é negro e olha para o sangue e, depois, com tristeza para a família. A última cena do videoclipe é o enquadramento de seu rosto, focando em seu olhar assustado e perturbado.

Quando Moreira (2019) e hooks (2019) dissertam a respeito da interiorização dos conceitos, seja do racismo, seja dos estigmas por parte dos negros, eles podem ser observados na reação do garçom, que não é de raiva pelo sistema injusto mas que age de maneira desrespeitosa ao

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pisar no sangue da família negra e por achar algo normatizado pessoas negras morrerem brutalmente.

Conclusão

Apesar de a letra da música versar sobre a eminência parda e mostrar como personagens centrais os integrantes de uma família negra bem-sucedida aos olhos do sistema capitalista, feliz, estruturada, comemorando uma conquista da filha mais nova, esta não é a visão que pessoas brancas têm sobre as pessoas negras. Além disso, fica em evidência também que a família retratada é uma exceção à regra, uma vez que eles são os únicos negros no local.

Mesmo denotando que pessoas negras consigam ser exceção à regra, isso não quer dizer que serão socialmente aceitas em ambientes que antes não ocupavam socialmente. Obviamente, como o racismo é crime e é um crime irrevogável quando comprovado – o que é difícil pelo racismo institucional e estrutural –, as pessoas não negras muitas vezes até têm o bom senso de se calarem, entretanto, não é possível controlar suas mentes e suas reações não convidativas para que pessoas negras se sintam efetivamente bem frequentando esses lugares.

Felizmente, a família do videoclipe não percebeu ou ao menos não se incomodou com os olhares e o staff do restaurante não os convidou a se retirarem, mas novamente seria um crime se assim o fizessem. Porém, além de, por via de regra, ou melhor, pelo racismo estrutural, ser complicado a eminência negra/parda social e economicamente, uma vez que acontece, existem os obstáculos sociais e culturais.

Moreira (2019) justifica esses obstáculos pela existência do racismo recreativo, que acontece por meio do humor racista para manutenção dos privilégios socioculturais brancos, ou seja, para a manutenção da branquitude. A justificativa das piadas fica fundamentada na reprodução de estigmas e estereótipos que desqualificam os negros e, dessa forma, exercem uma violência simbólica aos negros.

A reprodução dos estereótipos e estigmas por meio de piadas existe como forma de defesa da branquitude que se sente ameaçada subjetivamente pelo avanço social de pessoas negras, ou seja, as pessoas brancas não querem ter de competir por estima e valorização social. Com isso, o racismo recreativo opera para garantir aos brancos respeitabilidade por meio da propagação da superioridade branca. No entanto, ele não ocorre diretamente, mas sim indiretamente por

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meio da desqualificação moral, cognitiva, cultural e estética dos negros através de piadas e injúrias raciais. Ações essas que são possíveis em virtude da estrutura social racista brasileira. Desse modo, para os racistas que estão à frente das instituições de justiça, na maioria das vezes, essas injúrias raciais acabam deslegitimadas.

O racismo recreativo, além de infligir negativamente no psicológico de pessoas negras, tenta “impedir a mobilização política por meio da raça” (MOREIRA, 2019: 149) em função de esconder ou tentar esconder o racismo com seu caráter humorístico. Assim, muitas pessoas brancas, que, inclusive, se dizem não ser racistas, acusam pessoas negras de “mimimi” quando dizem que uma situação (pessoa, programa de TV etc.) foi racista e que isso é errado.

Muito provavelmente é mais difícil para pessoas brancas considerarem o racismo recreativo como racismo efetivamente, pela “satisfação psicológica que elas obtêm ao reproduzir piadas racistas” (MOREIRA, 2019: 154) e também porque “a hostilidade presente em expressões humorísticas encobre uma forma de antipatia dirigida principalmente a pessoas negras, o que está relacionado à pressuposição de que elas não são capazes de atuar de forma competente na esfera pública” (MOREIRA, 2019: 155).

hooks (2019) disserta sobre a representação negra norte-americana no início da década de 1990, quase trinta anos antes de Moreira, contudo discorre que muitas vezes pessoas negras assumem os estereótipos para que possam se sentir aceitas em sociedade. E isso é um fato, já que as pessoas negras que assumem os papéis sociais esperados por elas acabam sendo aceitas, uma vez que ocupam os lugares mentais que pessoas brancas que ainda não desconstruíram suas mentes estipularam ser adequados para convívio em sociedade.

O racismo, assim como o patriarcado e o colonialismo, é um sistema de poder que opera há muitos séculos em sociedade e que, por isso, é difícil de desconstruir, mas, se houver esforço individual ou mesmo por parte dos governos e em especial dos veículos de comunicação, pode sim ser descontruído.

O racismo perpassa mecanismos diversos, afetando as pessoas negras psicológica, cognitiva, moral, social, cultural e economicamente. Ele faz com que pessoas brancas não considerem a raça branca como uma raça e se sintam superiores e assim propaguem a supremacia branca por todos os meios possíveis para garantir sua prevalência no poder, no controle. Contudo, é necessário entender que pessoas brancas precisam começar a abrir mão de seus privilégios para

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que assim o racismo seja amenizado. Obviamente, nem toda pessoa branca é conscientemente racista, e algumas já estão desconstruindo suas mentes e até podem tentar afetar sua rede de contato, mas é necessário que isso seja ampliado, que pessoas brancas aceitem ter pessoas negras como chefes e colegas diretos de trabalho em suas atividades, que valorizem a cultura, história, religiões e estéticas negras socialmente.

hooks (2019) alerta para que negros construam novas imagens de si próprios e que assim possam se libertar dessas correntes do colonialismo, da supremacia branca e do patriarcado. Aqui no Brasil, mesmo trinta anos depois do lançamento de seu livro, temos uma grande jornada rumo a essa libertação. O fato de as redes sociais darem voz para todos (BOSCO, 2017) e estarem cada vez mais em evidência no Brasil, em especial nesse momento da covid-19, está propiciando reflexões por parte de brancos e negros. Nos últimos anos está sendo construído pelas novas gerações negras um orgulho de ser negro e assim de sua negritude.

Nos últimos anos também, seja por motivo financeiro, seja pela conscientização, se observa, nas novelas globais a presença de cada vez mais personagens negros que não são subalternizados e também a reflexão sobre os efeitos do racismo na sociedade, por exemplo, Amor de Mãe (2020), O outro lado do paraíso (2019), Malhação – Viva a Diferença (2017-18). Da mesma forma, com o aumento da presença de pessoas negras como destaque nas propagandas, contudo, o caminho da construção de uma nova imagem do negro no Brasil será longo.

Em 2019, a Netflix lançou o seriado Irmandade em que o negro ainda é visto como criminalizado e mesmo os personagens negros que não eram acabam se tornando, além de mostrar o homem negro como violento. O mesmo ocorre no seriado Homens?, disponível na Amazon Prime Video, em que o personagem negro tem sua alcunha no diminutivo enquanto o branco não. Além disso, ele é mais associado que os outros a sua potência sexual, chegando, inclusive, a ser objeto sexual e é o único dos amigos sem vínculo afetivo com ninguém. Entretanto, a terceira temporada, lançada em 2020, mostra um rumo um pouco diferente para a história.

Notamos que estamos rumando para a construção de novas representações do negro em sociedade, por meio de discussões e reflexões de pessoas na academia, na mídia e de pessoas comuns, mas, como mencionei anteriormente, sabemos que será um longo caminho.

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Referências bibliográficas

ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BOSCO, Francisco. A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017.

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CAETANO, Sheila Cristina Silva Aragão Caetano; SCHWARTZ, Rosana Maria Pires Barbato. A invisibilidade do negro no Brasil através do filme Chica da Silva. In: RAMOS, Maria Marcos (org.). El cine como reflejo de la historia, de la literatura y del arte en la filmografía hispano-brasileña. Salamanca: Univesidad de Salamanca; Centro de Estudios Brasileños, 2019.

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Referências

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