• Nenhum resultado encontrado

Ranciere, Jacques. as Distancias Do Cinema - Prologo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Ranciere, Jacques. as Distancias Do Cinema - Prologo"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

JACQUES RANCIERE

As distancias

do cinema

(2)

MUSEU OE ARTi 00 A lO

lnlcla~va 1 PREFEITURA DORIO DE JANEIRO Realiza~o 1 FUNDAI;A.O ROBERTO MARINHO Patrocinadores 1 ORGANIZA~OES GLOBO 1 VALE

colec;ao

arte físsi

1

JACOUES RANCIERE

As distancias

do cinema

TRADUc;Ao

Estela dos Santos Abreu

(3)

© La Fabrique éditions, 2003 Título original: Les Écarts du cinéma

Direitos adquiridos para o Brasil por Contraponto Editora Ltda.

Vedada, nos termos da lei, a reproduc;:ao total ou parcial deste

livro, por quaisquer meios, sem a aprovac;:iio da Editora.

Contraponto Editora Ltda.

Avenida Franklin Roosevelt 23 1 1405 Centro-Rio de Janeiro, RJ- CEP 20021-120 Telefax: (21) 2544-020612215-6148

Site: www.contrapontoeditora.com.br

E-mail: conrato@conrraponroeditora.com.br

Coodernac;:ao editorial e preparac;:ao de originais: César Benjamín Revisiio de traduc;:iio: Antonio Monteiro Guimariies

Revisiio técnica: Tadeu Capistrano

Revisao tipográfica: Tereza da Rocha

!'rojeto gráfico: Aline Paiva e Andréia Resende

Capa: Clarice Pamplona

Colec;:iio dirigida por Tadeu Capistrano EsCOLA DE BELAS ARTES/ UNIYERSIDADE FEDERAL DO R10 OE JANEIRO

1" edic;:iio: outubro de 2012 Tiragem: 2.000 exemplares

CJJ>.JIRASIL. CATALOGA<;:AO·NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LJVROS, RJ

R 151d Ranciere, jacques, 1940·

As distancias do cinema 1 jacques Rancierc; rradu· 9ao Estela dos Santos Abrcu ; organiza~iio Tadcu Ca pis·

trano.-Rio de Janeiro: Contra ponto, 2012. (ArtcFíssil)

Tradw;:ao de: les écarts du cinéma

ISBN 978-85-7866-070·3

1. Cinema-Filosofia. 2. Cinema - Estética. 3. Arre e fílosofia. 4. Cinemarografia. l. Capistrano, Tadeu.

11. Título. lll. Séric.

12-6739. CDD: 791.4301

CDU: 791.01

A Coler;ao ArteFíssil se prop6e a pensar a expe-riencia estética no mundo contempodineo, refletin-do sobre as condir;oes e as forr;as históricas, políticas e culturais que marcam seus caminhos. A coles;ao

publicará textos que contribuem para a análise das

práticas artísticas na atualidade, enfatizando a in

-fluencia das navidades conceituais, tecnológicas e

midiáticas. O caráter interdisciplinar desta propos

-ta visa a ampliar o campo da história da arte, prio -rizando diálogos cada vez mais intensos com n filo

(4)

Sumário

l. Depois da literatura 2 7

A vertigem cinematográfica: Hitchcock-Vertov e retorno 29

Mouchette e os paradoxos da língua das imagens 53

11. As fronteiras da arte 83

Ars gratia artis: a poética de Minnelli 85

O corpo do filósofo: os filmes filosóficos de Rossellini 101

ll

.

Políticas dos filmes 119

Conversa em torno da fogueira: Straub e alguns outros 121

Política de Pedro Costa 14 7

(5)

Prólogo

E um día ganhei um premio. Coisa que nao me acontecía havia muito tempo: desde que era menino e acabei a escoJa. Além disso, foi na ltália que recebi esse premio pelo livro

La Fable cinématographique. Tal associar;ao revelou-me

algo sobre a minha relar;ao como cinema. De diversas ma-neiras, aqueJe país influenciara o meu aprendizado da séti-ma arte. Tinha havido, é claro, Rossellini e aqueJa noite do inverno de 1964 em que Europa 51 me deixara tao abalado,

sobretudo pela resistencia que provocava em mim aqueJa trajetória da burguesía até a santidade através da classe

operária. Havia também livros e revistas que um amigo,

apaixonado pela Itália, costumava me enviar de Roma na -queJa época e com os quais eu procurava aprender a teoría do cinema, o marxismo e a língua italiana. E havia ainda

aqueJe insólito reservado nos fundos de um bar em Nápoles onde, projetadas no que parecía urna espécie de lenr;ol mal esticado, as imagens de James Cagney e John Derek fal a-vam italiano em versao dublada do filme em preto e branco A sombra do patíbulo (Run for cover, para os puristas), de Nicholas Ray.

Se tais lembraw;as me vieram quando recebi o premio inesperado, isso nao se deu por meras raz6es de circunsta

n-cia. E se hoje eu as evoco nao é por sentimentalismo

nostál-gico. É porque delineiam com bastante clareza a singula

ri-dade da minha aproximar;ao com o cinema.

o

cinema nao é um objeto sobre o qual me debrucei como filósofo ou

(6)

como crítico. Minha relar;ao com ele é um jogo de encon -tros e distanciamentos que essas tres recordar;oes permitem de algum modo recompor; resumem tres modalidades de distancias a partir das quais tentei faJar de cinema: entre cinema e arte, cinema e política, cinema e teoría.

A primeira distancia, simbolizada por aqueJa sala im -provisada onde era exibido o filme do Nicholas Ray, é a da cinefilia. A cinefilia é urna relar;ao com o cinema, que s-tao de paixao muito antes de ser questao de teoría. Sab e--se que a paixao nao tem discernimento. A cinefilia era urna mistura dos discernimentos aceitos. Primeiro, misce

-lanea dos lugares: urna peculiar diagonal trar;ada entre as

cinematecas, nas quais se conservava a memória de urna arte, e os cinemas dos bairros afastados onde era exibido um ou outro filme americano mal considerado, mas no qua! os cinéfilos descobriam seu tesouro na desabalada

cavalgada de um western, na tensao do assalto a um b an-co ou no sorriso de urna crianr;a. A cinefilia ligava o culto da arte com a democracia dos entretenimemos e das emo -r;oes, rejeitando os critérios segundo os quais o cinema se fazia aceito pelas distinr;oes da alta cultura. Afirmava que

a grandeza do cinema nao estava na elevar;ao metafísica de seus temas ou na visibilidade de seus efeitos plásticos, mas em uma imperceptível diferenr;a na maneira de col o-car histórias e emor;oes tradicionais em imagens. Essa di -ferenr;a a cinefilia chamava de mise-en-scene sem saber muito bem o que isso quería dizer. Nao saber o que se ama e por que se ama é, como costumam dizer, próprio da pai -xao. É também o caminho de certa sabedoria. A cinefilia só conseguía dar conta de seus amores com apoio em urna fenomenología bastante rudimentar da mise-en-scene como instaura<;ao de urna "rela<;ao com o mundo". E coro isso punha em quesrao as categorías dominantes do

pen-10 Jacques Ra nciere

samento sobre a arte. É habitual descrever a arte do sécu

-lo XX de acordo com o paradigma modernista que identi -fica a revolur;ao artística moderna coro a concentrar;ao de cada arte em um meio de comunicar;ao que !he é próprio, opondo essa concentrar;ao as formas de estetizar;ao mer -cantil da vida. Foi entao que, na década de 1960, essa modernidade desmoronou sob os golpes conjugados da desconfianr;a política em relar;ao a autonomía artística e da invasao das formas mercantis e publicitárias. A tal hi

s-tória da pureza modernista derrotada pelo "vale tuda"

pós-moderno esquece que a diferenciar;ao das fronteiras se dera de modo mais complexo alhures, como no cinema. A cinefilia pos em questao as categorías do modernismo artístico, nao por indiferenr;a em relar;ao a grande arte, mas pelo retorno a um vínculo mais íntimo e mais obscuro entre as marcas da arte, as emor;oes da narrativa e a d es-coberta do esplendor que ela pode ganhar quando proje -tada em urna tela luminosa no fundo de urna sala escura: a mao banal dos espetáculos; a mao que ergue urna cortina ou vira a mar;aneta da porta, urna caber;a inclinada para fora da janela, um sinal de transito, os faróis de automóveis

na noite, copos que fazem barulho contra o alumínio do baldío de um bar ... A cinefilia levava assim a urna compreensao positiva, nao irónica ou já sem ilusoes, da

impureza da arte.

E decerto o fazia por canta da sua dificuldade de pensar a relar;ao entre a razáo de suas emor;oes e as razoes que permitiam orientar-se políticamente nos conflitos do mun

-do. No início da década de 1960, qual relar;ao com a !uta contra a desigualdade social poderia um estudante que es

-tava descobrindo o marxismo estabelecer com aqueJa for-ma de igualdade que o sorriso e o olhar do pequeno John Mohune em O tesauro do Barba Ruiva (Moonfleet) resta

(7)

belecem com as intrigas armadas por seu falso amigo Jere-my Fax? Que rela¡;ao podem ter com a !uta travada pelo novo mundo operário contra o mundo da explora¡;ao a busca obsessiva de justi¡;a para seu irmao assassino em que

se empenha o herói de Winchestet 73 ou as maos unidas do

fora da lei Wes Mac Queen e da selvagem Colorado quan

-do se veem cercados no alto de um rochedo pelas for¡;as da

ordem em Golpe de misericórdia (Colorado Territory)?

Para reconhecer algum vínculo entre essas coisas, seria

preciso postular urna misteriosa adequa¡;ao entre o

mate-rialismo histórico, que clava fundamento a !uta operária, e o materialismo da rela¡;ao cinematográfica dos carpos com seu espa¡;o. Justamente nesse aspecto Europa 51 revelou-se

tao perturbador. O trajera de Irene, do seu apartamento hurgues até os prédios de apartamentos do subúrbio operá

-rio e até a fábrica, parecía de início reunir exatamente os

dais materialismos. O comportamento físico da heroína, aventurando-se pouco a pouco por espa¡;os desconhecidos,

fazia o andamento do enredo e a a¡;ao da camera co

incidi-rem com a descoberta do mundo do trabalho e da opre s-sao. Infelizmente bastavam para quebrar a bela linha reta materialista a simples subida de urna escada que levava Ire-ne até urna igreja e a descida que a levava até urna prostitu-ta tuberculosa - as boas obras da caridade e o itinerário

espiritual da santidade.

Seria o caso de dizer que o materialismo da mise-en--sdme tinha sido desviado pela ideología pessoal do dire

-tor. Era essa urna nova versao do velho argumento marxi

s-ta enaltecendo Balzac, que, embora reacionário, havia

mostrado a realidade do mundo social capitalista. Mas as imprecisoes da estética marxista vinham acrescentar-se as da estética da cinefilia, dando a entender que os únicos

materialistas de verdade sao aqueles que o sao sem querer.

12 Jacques Ranciere

Esse paradoxo parecía confirmar, na época, minha visao desconsolada de A Linha geral: aquelas torrentes de leite e a multidao de porquinhos mamando em urna parca em

estado de extase me haviam provocado certa náusea, ao passo que arrancavam gargalhadas de um público cuja maioria devia, como eu, simpatizar com o comunismo e acreditar nos méritos da agricultura coletivizada. É costu-me dizer que os filmes militantes só convencem quem já está convencido. Mas o que dizer quando o suprassumo do filme comunista tem efeito negativo sobre os já con-vencidos? O afastamento entre cinefilia

e

comunismo nao parecía reduzir-se apenas aos casos em que os princípios estéticos e as rela¡;oes sociais eram bem distantes de nós, como na sequencia final de A nova saga do cla Taira (Shin Heike Monogatari) de Mizogushi, em que o filho re volta-do, quando passa com os companheiros de armas e ve lá embaixo, na pradaria, a sua frívola mae divertindo-se na companhia de gente da classe privilegiada, pronuncia a frase final: "Divirtam-se, rica¡;os! O amanha nos perten -ce." É provável que a sedu¡;ao dessa cena estivesse em nos fazer saborear tanto os encantos visuais do Velho Mundo condenado quanto as virtudes ribombantes da palavra que anunciava o novo.

Como reduzir a distancia, como pensar a adequa¡;ao en -tre o prazer que se tem com sombras projetadas numa tela, a inteligencia de urna arte e a de urna visao do mundo? É o que se acreditava, na época, poder se indagar a urna teoría do cinema. Mas nenhuma combina¡;ao entre os clássicos da teoría marxista e os clássicos do pensamento sobre o cin e-ma me permitiu decidir sobre o caráter idealista ou mate

-rialista, progressista ou reacionário, de urna subida ou urna descida de escada. E nenhuma combina¡;ao desse tipo pode-ría jamais facultar a determina¡;ao de critérios que distin

(8)

guissem, no cinema, o que era arte e o que nao era, ou concluir se urna dada mensagem política está sugerida por

certa disposi~ao dos carpos em um plano ou em urna se-quencia de dais planos.

Talvez fosse o caso de inverter a perspectiva e indagar

sobre aquela unidade entre arte, forma de emoc,:ao e visao

coerente do mundo que se busca com urna assim chamada

"teoría do cinema". Caberia indagar se o cinema nao

exis-te justamente soba forma de um sistema de afastamentos

irredutíveis entre coisas que levam o mesmo nome sem se-rem membros de um mesmo corpo. Na verdade, o cinema é urna multidiio de coisas. É o lugar material onde vamos

nos divertir com o espetáculo de sombras, na expectativa

de que essas sombras nos tragam urna emoc,:ao mais secreta do que aquela expressada pela condescendente palavra

"diversao". É também o que se acumula e se sedimenta em

nós dessas presenc,:as

a

medida que sua realidade se desfaz e se altera: aquele outro cinema que é recomposto por nos

-sas lembranc,:as e com nossas palavras até diferir muitíss

i-mo do que a projec,:ao apresentou. O cinema é também um

aparelho ideológico produtor de imagens que circulam na sociedade e nas quais esta reconhece o presente de seus ti -pos, o passado de sua lenda ou os futuros que imagina

para si. É ainda o conceito de urna arte, isto é, de urna

li-nha divisória problemática que distingue, dentre as produ-~6es do savoir-faire de urna indústria, aquetas que

mere-cem ser consideradas habitantes do grande reino artístico.

Mas o cinema é também urna utopía: aqueta escrita do

movimento que foi celebrada na década de 1920 como a grande sinfonía universal, a manifesta~ao exemplar de

urna energía que anima ao mesmo tempo a arte, o trabalho

e a coletividade. O cinema pode, enfim, ser um conceito

filosófico, urna teoria do próprio movimento das coisas e

14 Jacques Ranciere

do pensamento, como em Gilles Deleuze, cujos dais livros

falam, em cada página, dos filmes e de seus procedimentos

sem por isso tornar-se urna teoria ou urna filosofía do

cine-ma, mas antes urna metafísica.

Essa multiplicidade, que recusa qualquer teoría unitá-ria, suscita reac,:oes diversas. Alguns querem separar o joio do trigo: o que tem a ver com a arte cinematográfica e o que tem a ver com indústria do entretenimento ou com

propaganda. Outros preferem distinguir o filme como tal,

o conjunto dos fotogramas, planos e movimentos de came-ra que sao estudados diante do monitor, das lembranc,:as deformantes e palavras que se acrescentam. Talvez esse

ri-gor traduza urna visao estreita. Limitar-se

a

arte é esquecer

que a própria arte só existe como fronteira instável que

precisa, para existir, ser constantemente atravessada. O

ci-nema pertence ao regime estético da arte no qua! já nao vigoram os antigos critérios da representac,:ao que dis

crimi-nam as belas-artes e as artes mecanicas, colocando cada

qua! no seu devido lugar. Pertence a um regime da arte em que a pureza das formas novas foi muitas vezes buscar seus

modelos na pantomima, no circo ou no grafismo come

r-cial. Limitar-se aos planos e procedimentos que comp6em

um filme é esquecer que o cinema é arte contanto que seja

um mundo, que aqueJes planos e efeitos que se esvaem no

instante da projec,:iio precisam ser prolongados,

transfor-mados pela lembranc,:a e pela palavra que tornam o cinema um mundo compartilhado bem além da realidade material

de suas projec,:oes.

Para mim, escrever sobre o cinema é assumir ao mesmo

tempo duas posic,:6es aparentemente contrárias. A primeira

é que nao há nenhum conceito que reúna todos esses

cine-mas, nenhuma teoría que unifique todos os problemas que eles suscitam. Entre o título Cinéma que designa os dois

(9)

volumes de Gilles Deleuze· e a grande sala com poltronas vermelhas de antigamente, onde eram exibidos, em seq

uen-cía, o jornal da tela, o documentário e o filme, entremeados pelos picolés do intervalo, o que há é urna mera rela~ao de

homonímia. Já a outra posi~ao diz, ao inverso, que toda

homonímia instaura um espa~o comum de pensamento, que o pensamento do cinema é o que circula nesse espa~o, pensa

de dentro esses afastamentos e se esfor~a para determinar este ou aquele vínculo entre dois cinemas ou dois

"proble-mas do cinema". Esta bem pode ser justificada como urna

posi~ao de amador. Nunca dei aula de cinema, de teoría ou

de estética do cinema. Encontrei-me com o cinema em vá-rios momentos de minha vida: no entusiasmo cinéfílo da década de 1960, nas inquieta~oes da década de 1970 quan

-to as rela~oes entre cinema e história, ou no questionamento

que se fez na década de 1990 dos paradigmas estéticos que haviam servido para pensar a sétima arte. Mas a posi~ao de amador nao é a do eclético que opoe a riqueza da colorida diversidade empírica aos rigores cinzentos da teoría. O ama-dorismo é também urna posi~ao teórica e política, a que re-cusa a autoridade dos especialistas, sempre a reexaminar o

modo como as fronteiras entre suas áreas se tra~am na en

-cruzilhada das experiencias e dos saberes. A política do

amador afirma que o cinema pertence a todos aqueJes que,

de urna ou de outra maneira, viajaram dentro do sistema de

desvíos que esse nome instaura, e que cada um se pode

per-mitir tra~ar, entre este ou aquele ponto dessa topografía, um

itinerário próprio, peculiar, o qual acrescenta ao cinema como mundo e ao seu conhecimento.

* Edi~oes brasileiras: A imagem-movimento. Sao Paulo: Brasiliense, 1985; A imagem-tempo. Sao Paulo: Brasiliense, 1990. Ambas as tradu~oes sao de

Stella Senra. [N.R.]

16 Jacques Ranciere

Por isso falei em outros textos de "fábula cinemat ográfi-ca" e nao de teoría do cinema. Com isso quis me situar em um universo sem hierarquia, onde os filmes que nossas

per-cep~oes, emo~oes e palavras recompoem contam tanto

quanto os que estao gravados na película; em que as teorías e estéticas do cinema sao consideradas como outras tantas

histórias, como aventuras singulares do pensamento as quais a existencia múltipla do cinema deu vida. Durante quarenta ou cinquenta anos guardei na lembran~a-ao

mes-mo tempo que descobria novas filmes ou novas discursos sobre o cinema-filmes, planos, frases mais ou menos defor-mados. Em momentos diversos, confrontei minhas lembr an-~as com a realidade dos filmes, ou entao rediscuti sua inter-preta~ao. Revi Amarga esperanfa (They Live

by

Night), de Nicholas Ray, para sentir de novo a impressao fulgurante daquele momento em que Bowie se encontra com Keechie na porta de urna garagem. E nao achei de novo esse plano porque ele nao existe no filme. Mas tentei entender a for~a singular da quebra de narrativa que eu havia concentrado nesse plano que imaginara. Revi duas vezes Europa 51: a primeira vez, para derru bar minha interpreta~ao anterior do filme e validar o desvío de Irene, que sai da topografía do

mundo operário que o primo, o jornalista comunista, prepa-rara para ela e passa para o outro lado, para o lado em que

os espetáculos do mundo social já nao se deixam aprisionar pelos esquemas de pensamento elaborados pelo poder, pela mídia ou pela ciencia social; e a segunda vez, para ques tio-nar a oposi~ao demasiado fácil entre os esquemas sociais da

represenra~ao e o irrepresentável da arte. Revi os western de

Anthony Mann para compreender o que neles me havia f as-cinado: nao apenas o prazer infantil das cavalgadas pelos grandes espa~os ou o prazer adolescente de ver pervertidos os critérios já dados da arte, mas a perfei~ao de um equilí

(10)

brío entre duas coisas-o rigor aristotélico do enredo que, ao longo de reconhecimentos e peripécias, dá a cada um a felicidade ou a infelicidade que !he cabe, e a maneira como o corpo dos heróis interpretados por James Stewart sub-traía-se, pela própria minúcia de seus gestos, ao universo ético que clava sentido aquele rigor da a~ao. Revi A linha geral e compreendi por que eu o havia rejeitado trinta anos antes: nao pelo conteúdo ideológico do filme, mas por sua forma, urna cinematografía concebida como tradu~ao ime

-diata do pensamento em urna linguagem própria do visível. Para apreciá-lo, teria sido necessário compreender que

aquelas torrentes de leite e aquelas ninhadas de porquinhos

nao eram de fato torrentes de leite nem porquinhos, mas

ideogramas sonhados de urna nova língua. A fé em tal lín

-gua, contudo, havia sucumbido já antes da fé na coletivi za-~ao agrícola. Por isso aqueJe filme mostrava-se, em 1960, físicamente insuportável, talvez porque fosse preciso esperar para perceber-lhe a beleza, vendo nele apenas a esplendida utopía de urna língua que sobreviveu a catástrofe de um sistema social.

A partir de tais errancias e retornos, era possível d iscer-nir o núcleo central entendido pelo termo "fábula cinema-tográfica". Esse nome sugere primeiro a tensao que está na origem dos desvíos do cinema, a tensao entre arte e histó -ria. O cinema nasceu na época da grande desconfian~a em

rela~ao as histórias, no tempo em que se pensava que urna arte nova estava nascendo e já nao contava histórias, nao

descrevia o espetáculo das coisas, nao apresentava os esta-dos de alma das personagens, mas inscrevia diretamente o produto do pensamento no movimento das formas. Apare -ceu entao o cinema como a arte mais indicada para realizar tal sonho. "O cinema é verdade; urna história é urna menti

-ra", disse Jean Epstein. Podía-se entender essa verdade de

18 Jacques Ranciere

diversas maneiras. Para Jean Epstein, era a escrita da luz, imprimindo na película nao a imagem das coisas, mas as

vibra~oes de urna matéria sensível trazida a imaterialidade da energía. Para Eisenstein, era urna linguagem de ideogr a-mas que traduzia diretamente o pensamento em estímulos

sensíveis, lavrando como um tratar as consciencias soviéti-cas; para Dziga Vertov, o fio estendido entre todos os gestos que construíam a realidade sensível do comunismo. A "teo-ría" do cinema foi primeiro sua utopía, a ideia de urna es-crita do movimento, adequada a urna nova era na qua! a

reorganiza~ao racional do mundo sensível coincidiría com o próprio movimento das energías desse mundo.

Quando foi solicitado que os artistas soviéticos produ

-zissem imagens positivas do novo homem, e quando os ci -neastas alemaes foram projetar suas luzes e sombras nas histórias formatadas pela indústria hollywoodiana, a pro-messa virou do avesso. O cinema, que deveria ser a nova arte da nao representa~ao, parecía tomar exatamente o rumo contrário: restaurava o encadeamento das a~oes, os esquemas psicológicos e os códigos expressivos que as outras artes vinham tentando quebrar. A montagem, que fora o sonho de urna nova língua do mundo novo, parecía, em Hollywood, estar de volta as fun~oes tradicionais da arte narrativa: a decupagem das a~oes e a intensifica~ao

dos afetos que garantem a identifica~ao dos espectadores

com histórias de amor e de sangue. Essa evolu~ao refor~ou diversos ceticismos: o olhar desencantado sobre urna arte decaída ou, ao contrário, a revisao irónica do sonho da

nova língua. Também refor~ou de vários modos o sonho de um cinema que encontraría sua verdadeira voca~ao: e assim foi, com Bresson, a reafirmac;ao de um corte radical entre a montagem e o automatismo espirituais, próprios do cine-matógrafo, e os jogos teatrais do cinema. Ao contrário,

(11)

com Rossellini ou André Bazin, foi a afirma\=ao de um cin

e-ma que deveria ser antes de tudo urna janela aberta para o

mundo: um meio de decifrá-lo ou de faze-lo revelar sua verdade nas próprias aparencias.

Julguei necessário retomar essas periodiza\=Ües e

oposi-\=Oes. Se o cinema nao cumpriu a promessa de urna nova

arte da nao representa\=aO, talvez isso nao se deva

a

submi s-sao

a

leido comércio. A própria vontade de identificá-lo a

urna língua da sensa\=aO era contraditória. Pediam-lhe que

realizasse o sonho de um século de literatura: substituir as histórias e personagens de outrora pelo estender-se

impes-soal dos signos escritos sobre as coisas ou a restitui\=ao das

velocidades e intensidades do mundo. Mas a literatura ti-nha conseguido veicular esse sonho porque seu discurso

das coisas e de suas intensidades sensíveis permanecía in s-crito no duplo jogo das palavras que furtam aos olhos a riqueza sensível que faz cintilar nas mentes. O cinema m

os-tra o que mostra; só podia retomar o sonho da literatura

a

custa de assim fazer um pleonasmo: os porquinhos nao po-dem ser, a um só tempo, porquinhos e palavras. A arte do

cinematógrafo só pode ser o desenvolvimento das for\=aS

específicas de sua máquina. Existe através de um jogo de desvios e de impropriedades. Este livro tenta analisar al

-guns aspectos desse jogo

a

luz de urna tríplice rela\=aO. Pri

-meiro, a rela\=ao do cinema com a literatura, que !he oferece seus modelos narrativos, dos quais ele tenta se libertar.

É também sua rela\=ao com os dois polos nos quais secos-tuma pensar que a arte se perde: quando ela reduz seu al

-cance

a

mera fun\=ao de entretenimento; quando ela quer,

ao contrário, excede-lo para transmitir pensamentos e dar

aulas de política.

A rela\=ao entre cinema e literatura é aqui ilustrada por

dois exemplos buscados em poéticas bem diversas: o

cine-20 Jacques Rancie re

ma narrativo clássico de Hitchcock retira de um enredo

po-licial o esquema de um conjunto de opera\=oes feitas para

criar e depois dissipar urna ilusao; a cinematografía moder-nista de Bresson, que parte de um texto literário para cons

-truir um filme no qua! se demonstre a especificidade de urna linguagem das imagens. No entanto, ambas as

tentati-vas sentem de modos diversos a resistencia de seu objeto.

Em duas cenas de Um corpo que cai (Vertigo), a habilidade

do mestre do suspense em fazer coincidir o relato de urna maquinar;ao intelectual coma encena\=ao de um fascínio

vi-sual acaba nos surtindo o efeito que nao é nada acidental,

pois tcm a ver com a própria relar;ao entre mostrar e dizer.

O virtuose perde o jeito quando defronta como que cons-tituí o núcleo "literário" da obra que adapta. O romance policial é de fato um objeto dúplice; suposto modelo de urna lógica narrativa que dissipa as aparencias, levando dos

indícios

a

verdade, ele é também fisgado pelo seu oposto: a

lógica de desaparecimento das causas e de entropia do

sen-tido cujo vírus a grande literatura comunicou aos generos

"menores". Pois a literatura nao é um mero reservatório de

histórias ou um modo de contá-las; é urna maneira de cons-truir o mundo onde histórias podem acontecer, fatos se li -gam, aparencias se mostram. A prova disso é dada de ma-neira diferente quando Bresson adapta urna obra literária herdeira da grande tradi\=ao naturalista. A relar;ao entre a língua das imagens e a língua das palavras aparece em

Mouchette com faces invertidas. A op\=ao pela

fragmenta-\=aO, destinada a excluir o risco da "representar;ao", e o

cuidado com que o cineasta timpa a tela da sobrecarga lite

-rária das imagens tem o efeito paradoxal de obrigar o

mo-vimento das imagens a modos de encadeamento narrativo

dos quais a arte das palavras se havia libertado. E assim, é o desempenho dos corpos que falam que deve tornar visível

(12)

a consistencia perdida dessa arte. Mas, para isso, deve recu-sar a oposir;:ao demasiado simples feíta pelo cineasta entre o "modelo" do cinematográfo e o ator do "teatro fil ma-do". Se é verdade que Bresson simboliza os vícios do teatro

com a representar;:ao que faz de Hamlet ero estilo tr ovado-resco, a forr;:a de elocur;:ao que dá a sua Mouchette vem se-cretamente do encontro no qual cineastas herdeiros do tea-tro brechtiano, como Jean-Marie Straub e Danielle Huillet,

conferem aos operários, camponeses e pastores tomados de empréstimo aos diálogos de Pavese ou de Vittorini. Litera

-tura, cinematografía e teatralidade aparecem, entao, nao como o que é próprio de artes específicas, mas como figuras estéticas, relar;:oes entre a forr;:a das palavras e a forr;:a do visível, entre os encadeamentos das histórias e os movimentos dos carpos, que cruzam as fronteiras trar;:adas

entre as artes.

Com que carpo se pode transmitir a forr;:a de um texto é também o problema de Rossellini quando ele se vale da te

-levisao para trazer ao grande público o pensamento dos fi-lósofos. A dificuldade nao está na banalidade da imagem rebelde diante das profundidades do pensamento, como quera opiniao generalizada, mas em que tanto a densidade da imagem como a do outro pensamento nao permitem que se estabeler;:a entre eles urna simples relar;:ao de causa e efeito. Rossellini precisa, pois, dar um carpo bem peculiar

aos filósofos para fazer sentir urna dessas densidades nas

formas da outra. Mais urna vez, essa passagem entre dais regimes de sentido entra em jogo quando a arte c

inemato-gráfica, com Minnelli, p6e em cena- e em canr;:oes- a rel

a-r;:ao da arte com o entretenimento. Caberia pensar que o falso problema de saber ande urna acaba e o outro comer;:a tivesse desaparecido a partir do momento em que os cam-pe6es da modernidade artística opuseram a arte perfeita

22 Jacques Ranciere

dos saltimbancos a emor;:ao obsoleta das histórias. Mas o mestre da comédia musical revela que todo o trabalho da arte- com ou sem maiúscula- está em construir as transi-r;:oes de uma até o outro. O puro desempenho é o limite utópico para o qual tende, sem poder nele desaparecer, a tensao entre o jogo das formas e a emor;:ao das histórias de

que vive a arte das sombras cinematográficas.

Esse limite utópico é também o que fez pensar que o cinema fosse capaz de suprimir os afastamentos entre arte, vida e política. O cinema de Dziga Vertov apresenta o

exemplo completo de urna ideia do cinema como comu

-nismo real, identificado com o próprio movimento da li-gar;:ao entre todos os rnovirnentos. Esse comunismo cine-matográfico que recusa tanto a arte das histórias quanto a política dos estrategistas só podía desencorajar os especia

-listas de urna e da outra. Mas ele permanece corno o des-vio radical que permite pensar a tensao nao resolvida en-tre cinema e política. Passado o tempo da fé na linguagem nova da vida nova, a política do cinema viu-se aprisiona-da nas contradir;:oes que sao próprias as expectativas da arte crítica. O modo corno sao vistas as ambiguidades do cinema já é marcado pela duplicidade do que se espera dele: que suscite consciencia, pela clareza de um desvela-mento, e energía, pela apresentar;:ao de urna estranheza; e que revele a uro só tempo toda a ambiguidade do mundo

e corno lidar com essa arnbiguidade. Projeta-se no cinema a obscuridade da relar;:ao que se pressup6e entre a clareza

da visao e as energías da ar;:ao. Se o cinema pode esclarecer a ar;:ao, será talvez questionando a evidencia dessa rel a-r;:ao. Jean-Marie Straub e Danielle Huillet fazem isso dan-do a dais pastores a tarefa de discutir as aporías da justi-r;:a. Pedro Costa, por sua vez, reinventa a realidade do itinerário e das emincias de um pedreiro cabo-verdiano,

(13)

entre o passado do trabalho explorado e o presente do desemprego, entre as vielas coloridas da favela e os cubos brancos dos conjuntos habitacionais. Béla Tarr segue

len-tamente a marcha acelerada de urna menina para a morte

que resume o engodo das grandes esperan~as. Tariq T e-guia cruza, no Oeste argelino, o tra~ado meticuloso de um

agrimensor com o longo percurso de migrantes a caminho

das terras prometidas da prosperidade.

o

cinema nao apresenta um mundo que tocaría a outros transformar. Ele

junta do seu jeito o mutismo dos fatos e o encadeamento das a~6es, a razao do visível e sua simples identidade con-sigo mesmo. A eficácia política das formas da arte deve ser

construída pela política em seus próprios cenários. O mes-mo cinema que diz em nome dos revoltados "O amanha nos pertence" assinala igualmente que nao pode oferecer outros aman has senao os seus próprios. É o que Mizogushi

mostra em outro filme, O Intendente Sansho (Sansho Dayu), no qua! se canta a história da família de um gover -nador de provincia afastado do cargo por causa da

solici-tude que manifestou em rela~ao aos camponeses

oprimi-dos: sua mulher é raptada e seus filhos sao vendidos como escravos para trabalharem em urna mina. Para que o filho

Zushio possa fugir a fim de encontrar a mae cativa e

cum-prir a palavra dada de libertar os escravos, a irma de Zushio, Anju, ve-se abrigada a imergir lentamente nas águas de um lago. Mas essa culmina~ao da lógica da ac;:ao é também sua bifurcac;:ao. Por um lado, o cinema participa do combate pela emancipa~ao; por outro, ele se desfaz

nos círculos que se formam na superfície de um lago.

Zushio adorará essa lógica dupla, demitindo-se de suas

fun~6es assim que os escra vos sao libertados para ir a o encontro da mae cega, que está na ilha. Todos os desvíos

do cinema podem ser resumidos no movimento pelo qual

24 Jacques Ranciere

o filme, que acaba de encenar a grande !uta pela liberda -de, nos fala, em sua última panoramica: "Eis os limites do que eu posso. O resto é com voces."

O Intendente Sansho (Sansho Dayu), Kenji Mizoguchi, 1954.

Referências

Documentos relacionados

Assim, constroem-se metas coletivas, com trabalhos capazes de (re)significar o ensino superior na atual sociedade tecnológica, sem esquecer o envolvimento e o

Os investimentos realizados pelo investidor para sua carteira estão sujeitos a diversos riscos inerentes aos mercados e aos ativos integrantes da carteira,

Podemos concluir que o muco respiratório dos indiví- duos saudáveis tem um melhor transporte ciliar do que o de pacientes com doenc¸as de pulmão, enquanto o muco em pacientes com

CLÁUSULA SÉTIMA - ANTECIPAÇÃO DO DÉCIMO TERCEIRO SALÁRIO Antecipação do percentual de 50% (cinqüenta por cento) do 13º salário aos empregados que requeiram até

A partir de 15 dias após a aplicação, continuar o monitoramento da lavoura e, em condições climáticas muito propícias ao reaparecimento da brusone, quando

Ainda sobre a relação entre o estatuto teórico da profissão e sua condição sócio- profissional ao longo da história da profissão, é possível perceber a

Chegou o momento de tocar pra valer! Irei disponibilizar para vocês quatro músicas com os acordes já estudados. Sugiro que você treine bastante todos os tópicos

d) Taxa diária aplicada por esquecimento do Cartão de Utente. Equipadas/Anual inclui Titular e viatura, com desconto de 4% em janeiro e julho, não incluídos. g) Taxa anual com titular