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HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

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Academic year: 2021

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2021

HERMENÊUTICA

CONSTITUCIONAL

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edição revista atualizada ampliada

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obra, que se pretende objetiva, empenhar-se em criticar essas funções. Para quem lê, importa conhecê-las. Registre-se, por oportuno, a posição deste autor: de fato, a Constituição Brasileira previu a função contramajo-ritária e, portanto, é tecnicamente correto se servir dela moderadamente. O mais é ilusão.

7. Backlash

Em obra específica a respeito do tema (Direito e Backlash), o autor que vos escreve assinalou: “A História revela um possível e provável nexo etio-lógico entre posicionamentos judiciais em questões controversas e uma enfurecida revanche por parte do grupo cujos interesses foram atingidos pela decisão. É como se houvesse um gatilho político invisível, que é acio-nado sempre que Tribunais se precipitam em desacordos morais sensíveis, ainda não amadurecidos pela sociedade” (2019, p. 23).

À guisa de exemplos extraídos dos estudos de Michael Klarman (2011, p. 1-2), Brown v. Board of Education (1954) retardou o sul do país e alavan-cou a carreira de Bull Connor e George Wallace. Por sua vez, Miranda v.

Arizona (1966) favoreceu a vitória de Richard Nixon com a plataforma law--and-order. No célebre caso Furman v. Georgia (1972), a proibição da pena

capital gerou uma reação contundente do Parlamento, na medida em que leis foram editadas para expandir a pena de morte. Rendendo-se à nítida oposição do Parlamento e, por conseguinte, do povo que sufragou seus mandatários, a Corte humildemente se retratou no caso Gregg v. Georgia (1976), tolerando a pena capital para delitos mais graves. Finalmente,

Goo-dridge v. Department of Public Health (2003) possivelmente permitiu a

vitó-ria de Bush no eleitorado de Ohio, sem o que não tevitó-ria conquistado um segundo mandato.

O fenômeno do backlash não passou despercebido por Richard Pos-ner, que suscitou, por meio de perguntas semânticas, se não haveria um nexo de causalidade entre as decisões “garantistas” da Corte de Warren e a superveniência de uma legislação penal mais severa (1998, p. 12). Trilhan-do um raciocínio similar, Ronald Dworkin relata que muitos analistas as-sociam a beligerância do tema do abortamento à maneira pela qual esse direito veio a ser proclamado: uma decisão na arena judicial (Roe v. Wade – 1973), e não no Parlamento (2016. p. 06).

A partir de todas essas evidências, á válido inferir que existe uma relação mecanicista entre decisões judiciais sobre desacordos morais não amadurecidos pela sociedade e a revanche backlash. A questão que se põe, entretanto, é mais profunda: o backlash é mesmo um efeito indesejado e, portanto, algo a ser evitado?

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Há duas grandes correntes sobre o assunto. O fenômeno do backlash, portanto, foi abordado e compreendido de uma maneira binária: como uma ameaça a ser evitada ou como algo benéfico para a democracia constitucional. Autores como Michael Klarman, William Eskridge e Cass Sunstein já consideraram o blacklash como uma ameaça à autoridade ju-dicial e à solidariedade social, logo, tanto quanto possível, algo a ser evi-tado. Contudo, adotando-se o constitucionalismo democrático como marco teórico, o backlash é concebido como algo capaz de ativar a cidadania dos que se rebelam civicamente contra a decisão da Corte Constitucional. Esta última corrente é encampada por Robert Post e Reva Siegel, ambos Professores da Universidade de Yale.

Efeito backlash

Abordagem juristocêntrica Constitucionalismo democrático

De uma maneira geral, backlash é visto como uma ameaça à auto-ridade das Cortes e até mesmo à solidariedade social. Portanto, tra-ta-se de um fenômeno indesejável e contraproducente, que, como tal, deve ser evitado.

O significado de uma Constituição não é ditado unicamente por uma Corte Consti-tucional, porque o povo também é intér-prete desse documento político. É exata-mente essa reação popular que pode indu-zir os juízes a interpretarem a Constituição de maneira diferente, fenômeno este que só presta obséquio à democracia.

Michael Klarman, William Eskridge

e Cass Sunstein. Robert Post e Reva Siegel.

Na visão deste autor, o problema não é o backlash, se considera-do em si mesmo. A polêmica reside na forma de exteriorização desse fe-nômeno social, que pode se dar de maneira lícita ou ilícita. Há muitas maneiras de expressar uma revolta comunitária. Por exemplo, às vezes, grupos sociais até questionam uma decisão, mas nem por isso deixam de cumpri-la. Ainda que insatisfeitos, limitam-se a criticá-la nos meios de comunicação ou, quando muito, realizam manifestações públicas que hostilizam o precedente. Nesse contexto, é possível vislumbrar no

backlash uma legítima militância constitucional. Por outro lado, não

raro, frações sociais se rebelam contra um julgado descumprindo-o. Mais do que isso: há casos em que os próprios agentes públicos praticam atos de insubordinação, de modo a desmoralizar a decisão ou mesmo en-fraquecê-la. Aqui, a autoridade do Estado de Direito passa a ser desa-fiada. Em casos mais graves, a sociedade reage com atos concretos de violência armada ou suscita a destruição do tribunal de onde emanou o

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julgado. Antes de debater se o backlash é intrinsecamente bom ou ruim para uma democracia, convém delimitar sobre qual nível de backlash (grau de impacto) os interlocutores debatem.

Evidentemente, tanto quanto possível, o ideal é evitar esse desgaste na sociedade. Porém, uma vez proferida a decisão geradora da convulsão social, reação lícitas são de todo legítimas. Muitas delas, inclusive, são ma-terializadas por meio de reações legislativas.

8. Casos difíceis (hard cases)

Sem dúvidas, um dos maiores problemas da hermenêutica constitu-cional é a solução dos hard cases (casos difíceis). De uma maneira muito simples, Dworkin refere-se ao caso difícil como aquele “...em que nenhu-ma regra estabelecida dita unenhu-ma decisão em qualquer direção” (2002, p. 131). O Ministro Luís Roberto Barroso, no MS 32326 MC/DF, esclareceu:

A moderna teoria jurídica tem dividido as questões judiciais, de acordo com o grau de dificuldade que elas abriguem, em casos fá-ceis e casos difífá-ceis. Casos fáfá-ceis são aqueles para os quais

exis-te um resultado explícito no ordenamento jurídico, uma solu-ção pré-pronta, cabendo ao intérprete, tão somente, o papel de fazê-la incidir no caso concreto. Por exemplo: aos 70 anos, o

servidor público deve passar compulsoriamente para a inativida-de; ou: vendido o imóvel, deve ser pago o respectivo imposto de transmissão. Casos difíceis, ao revés, são aqueles para os quais

não existe uma solução pré-pronta no ordenamento jurídico. Para resolver o problema, o juiz terá de elaborar argumentati-vamente a resposta correta, considerando inúmeras variáveis, algumas delas metajurídicas.

É o que ocorre em situações nas quais exista uma omissão no orde-namento jurídico ou, ao menos, não exista norma expressa (uniões homoafetivas, nepotismo); ou quando existam normas constitucio-nais aparentemente conflitantes (caso Ellwanger, que contrapunha a liberdade de expressão e a proteção contra o preconceito); ou, ainda, em casos em relação aos quais existam desacordos morais razoáveis, isto é, nos quais pessoas esclarecidas e bem-intencionadas interpre-tam de maneira oposta o sentido da norma em questão (anencefalia, pesquisas com células-tronco embrionárias). Diante de um caso difí-cil, os elementos tradicionais de interpretação são insuficientes para resolver o problema e é preciso recorrer a categorias teóricas dife-rentes, associadas à determinação do núcleo essencial de um princí-pio, à concordância prática entre normas colidentes ou à ponderação como técnica de determinação da regra final a ser aplicada.

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Já vimos o que é um caso difícil. Trata-se de um caso aparentemente sem resposta, pelo menos, à primeira vista, vale dizer, em uma cognição perfunctória. Agora, cumpre demonstrar o porquê. Por que a resposta de um caso se torna difícil de ser encontrada? A doutrina controverte sobre o assunto. Robert Alexy, Manuel Atienza e tantos outros autores apontam causas que podem dificultar a solução de um caso. Em geral, os juristas elencam razões como excessiva porosidade das normas constitucionais (va-gas e indeterminadas), antinomias, lacunas, lacunas axiológicas (há norma, mas sua incidência geraria injustiça) etc. A questão que se nos afigura é: como resolver um caso difícil?

A resposta flutuará ao sabor da abordagem jurídica abraçada pelo ju-rista. De maneira didática e sistematizada, podemos organizar três gran-des correntes para responder como deve ser solucionado um caso difícil: y 1ª corrente: discricionariamente, deve o Juiz empregar uma inter-pretação razoável (Hart). Esta é a visão positivista, que fatalmente reconhece uma discricionariedade.

y 2ª corrente: “o Juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente” (Dworkin, 2002, p. 127). Neste caso, os princípios cumprirão uma importante função. Não há discricionariedade.

y 3ª corrente: Primeiro, projetam-se as consequências de cada in-terpretação alternativa. Será considerada correta a que gerar as melhores consequências (Posner, 2007, p. 141).

Por fim, não podemos deixar de mencionar que, em uma perspectiva crítica, parte da doutrina não mais reconhece essa divisão entre casos fá-ceis e casos difífá-ceis. No Brasil, esta é a posição de Lenio Streck, que repe-le essa distinção, por considerá-la obsorepe-leta. Na opinião do autor que vos fala, batizar um caso como fácil, universalmente, é ignorar que a facilidade também deriva de quem se debruça sobre ele.

9. Positivismo

No Brasil, a expressão “direita política” pode designar tanto o moral-mente conservador (v.g. cidadão contrário ao casamento gay) quanto o economicamente liberal (v.g. cidadão contrário à intervenção do Estado na economia). No lado oposto, a palavra “esquerda política” congrega adep-tos do leninismo, trotskismo, stalinismo, marxismo, anarquismo etc. Essa

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pluralidade de concepções pode gerar graves desentendimentos em um eventual debate sobre o alinhamento político do eleitor brasileiro. Um indivíduo comunista pode endereçar críticas à “direita”, mirando nos con-servadores, mas ignorando que suas afirmações genéricas acidentalmen-te também atingem a direita libertária. Nesacidentalmen-te caso, a melhor maneira de evitar problemas de comunicação é delimitar o objeto, esclarecendo aos interlocutores sobre o que estão a debater.

De maneira muito semelhante, no Direito, a palavra “positivismo” compreende posições teóricas das mais variadas. Apenas para se ter ideia, diante do texto de uma dada lei, pode ser considerado positivista aquele que defende uma interpretação gramatical ou filológica. Porém, também pode ser tido como positivista o jurista convicto de que essa mesma lei possui uma moldura dentro da qual várias interpretações po-dem ser acomodadas, não havendo preferência científica entre elas. O primeiro positivista seria mais fácil de ser encontrado no início do século XIX, na França (positivismo exegético). O segundo deles, no início do sé-culo XX, por exemplo, na Áustria. Seja como for, a verdade é que ambos existem até hoje. Verdade seja dita, o positivista exegético é um espéci-me rara em extinção.

Portanto, iniciamos nossa abordagem com a advertência de Lenio Streck, para quem “... o positivismo jurídico, enquanto paradigma teórico, está longe de ser algo uniforme. Muito ao contrário, por positivismo jurídi-co é possível jurídi-considerar posições teóricas que são, entre si, profundamen-te heprofundamen-terogêneas” (2016, p. 19).

O desconhecimento acerca das vertentes do positivismo jurídico tem gerado discussões infrutíferas, críticas infundadas, desperdício de tempo e até mesmo o assassinato de reputações científicas.

A partir da distinção entre os vários positivismos, convidamos o leitor a não participar desta Torre de Babel.

9.1 A sistematização de Norberto Bobbio 9.1 A sistematização de Norberto Bobbio

O jurista italiano Norberto Bobbio classificou o gênero positivismo em três espécies, quais sejam, o positivismo ideológico, o positivismo teórico e o positivismo metodológico. Observe o gráfico adiante:

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POSITIVISMO TEÓRICO POSITIVISMO POSITIVISMO METODOLÓGICO POSITIVISMO IDEOLÓGICO

Apresentadas as espécies de positivismo, conforme a sistematização de Norberto Bobbio, estudemo-las.

9.1.1 Positivismo ideológico 9.1.1 Positivismo ideológico

a. Positivismo ideológico forte

O positivismo ideológico é caracterizado por uma postura diante do ordenamento jurídico: independentemente do teor da norma jurídica, sua autoridade exige que seja cumprida. Assim como o carrasco não ques-tiona a ordem que recebeu para tirar a vida do prisioneiro condenado à pena de morte, o operador do Direito adepto do positivismo ideológico não hesita em cumprir cegamente a lei.

Essa defesa intransigente de cumprimento da lei, típica de um posi-tivismo ideológico, pode gerar situações de manifesta injustiça. Figure-se o exemplo de dois adolescentes, ambos com 13 anos de idade, que, no curso de um namoro, decidem manter relações sexuais. À luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos cometeram o ato infracional equipa-rado ao delito de estupro de vulnerável, o que faria incidir uma medida socioeducativa para cada qual.

Lenio Streck esclarece que “... o positivismo ideológico é caracterizado em posturas que defendem a tese de que o direito positivo possui força obrigatória, devendo ser por todo obedecido e aplicado pelos juízes, in-dependentemente de um julgamento acerca dos escrúpulos morais que o envolvem” (2016, p. 20). Tomando-se de empréstimo as palavras do pró-prio Bobbio, “podemos dizer que tal (suposta) ideologia consiste em afirmar o dever absoluto ou incondicionado de obedecer à lei enquanto tal” (1995, p. 225). Complementando seu raciocínio acerca do conteúdo do positivismo ideológico, o jurista italiano preceitua que (1995, p. 226):

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“o absolutismo ou incondicionalismo da obediência à lei significa (...) também uma outra coisa: (...) a obrigação de obedecer à lei não é apenas uma obrigação jurídica, mas também uma obrigação moral. (...) O homem deve obedecer às leis não só por motivos ex-ternos, mas também por motivos inex-ternos, não só porque a isto é constrangido, mas porque está convencido de que tal obediência é uma coisa intrinsecamente boa: obediência não por constrição, mas por convicção. (...) tal dever é sentido não como uma obriga-ção heterônoma, mas como uma obrigaobriga-ção autônoma, porque a lei se transforma numa norma moral, (...)há o dever de consciência de obedecer às leis”.

Como se percebe no trecho acima, há um componente moral. Exata-mente porque o positivismo ideológico trabalha com um dever moral de obediência às leis, Bobbio o denomina de positivismo ético.

Aqui, a lei deve ser cumprida pelo só fato de ser válida, sendo irrele-vante se é justa. Ou melhor, como nos ensina Norberto Bobbio, a justiça é deduzida da própria validade, ou seja, uma lei válida será automatica-mente justa.

Esta é a chamada versão extremista ou forte do positivismo ético. Se-gundo Bobbio, o mais comum é que esta versão do positivismo seja invo-cada justamente pelos detratores do positivismo. Isto porque, sendo uma vertente radical, é sempre mais conveniente refutá-la, criticá-la ou ridicula-rizá-la. É como se os adversários do positivismo tivessem um espantalho, ou seja, uma caricatura do positivismo para combater. Noutras palavras, temos aqui uma versão mais vulnerável do positivismo.

b. Positivismo ideológico moderado

O positivismo ético forte ou extremista encara o Direito como um fim em si mesmo. Diferentemente, para o positivismo ético moderado, o Di-reito é apenas um meio. Qual o fim colimado por este meio? Resposta: a ordem. Ou seja, o positivismo ideológico moderado considera o respeito ao Direito como um meio para a realização de um importante valor, qual seja, a instauração da ordem social. Para além disso, sustenta que a lei é a forma mais perfeita de Direito, porque é genérica e abstrata.

Partindo-se do pressuposto de que, em uma sociedade, prefere-se a ordem à anarquia, Bobbio conclui que a lei é o instrumento mais efi-ciente para atingir a ordem. Há duas razões para isso: primeiro, porque a lei é genérica e isso prestigia a igualdade formal; segundo, porque a lei é abstrata, reverenciando a segurança jurídica. Nota-se que esta é, de certa forma, uma visão romantizada da lei, na medida em que há leis de efeitos

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concretos, a exemplo dos códigos de posturas municipais. Ora, sendo uma visão idealista da lei, cuida-se de um positivismo ideológico.

Quer se trate do positivismo ideológico forte ou moderado, ambos consideram que o Direito, independentemente do seu conteúdo, deve ser observado.

No quadro abaixo, esquematizamos o assunto, a partir dos escritos de Norberto Bobbio (1995, p. 230):

Positivismo Ético (ou ideológico)

forte ou extremista (ou ideológico) moderadoPositivismo Ético

O Direito tem um valor, independentemente do seu conteúdo. Esse valor é proveniente do fato de o

Direito ser válido e, por conseguinte, justo (justiça deduzida da validade).

Esse valor é proveniente do fato de ser o Direito um meio para a realização da ordem.

O Direito tem um valor final O Direito tem um valor instrumental

É de bom alvitre lembrar que Hans Kelsen não pertence a esta corren-te do positivismo, seja na sua modalidade extremista ou moderada.

9.1.2 Positivismo Teórico 9.1.2 Positivismo Teórico

O positivismo teórico é o positivismo visto como uma teoria. Na per-cepção de Lenio Streck, “...trata-se da estrutura do ordenamento jurídico e do arcabouço teórico para a sua compreensão” (2016, p. 21). Porém, inda-ga-se: qual o conteúdo da teoria a que faz alusão o positivismo teórico? Ei-la: a única fonte do Direito é a lei e com ela o Direito se confunde. Não há distinção entre texto e norma. Na prática, o Juiz é la bouche de la loi, isto é, a boca da lei.

Como se nota, não há diferenças muito significativas do positivismo ideológico, estudado no tópico anterior, não fosse o fato de que não há um componente moral no positivismo teórico. Cumpre-se a lei porque o Direito, que deve ser respeitado, é formado unicamente por ela. A conclu-são é científica, não ideológica.

O assunto está resumido no esquema abaixo, construído a partir dos escritos de Lenio Streck (2016, p. 22):

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Positivismo ideológico (ou ético) Positivismo teórico

O apego à lei é tido como um coman-do de íncoman-dole moral.

O apego à lei é uma consequência na-tural da teoria adotada, na medida em que a lei é a única fonte reconhecida pelo Direito.

Mais uma vez, porque salutar, advertimos que Hans Kelsen também

não pertence a este marco do positivismo.

9.1.3 Positivismo metodológico 9.1.3 Positivismo metodológico

Também chamado de positivismo conceitual ou descritivo, o posi-tivismo metodológico é uma forma de abordagem do estudo do Direito. Principiamos com um exemplo: quando se diz que “ontem choveu”, a me-nos que não tenha chovido, não se pode dizer “não concordo”. Nota-se que a proposição é eminentemente descritiva e não prescritiva, ou seja, limita-se a uma constatação e não a uma proposição. O intuito é somen-te descrever.

Neste ponto, convém transcrever os ensinamentos de Norberto Bobbio, ancorados na doutrina de John Austin, para quem “o positi-vismo jurídico assume uma atitude científica frente ao direito, já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser” (1995, p. 136).

Tem-se no positivismo metodológico uma abordagem avalorativa do Direito. Isso explica a afirmação de Hans Kelsen no sentido de que

“O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito” (2015, p. 77). Logo, com arrimo nas palavras

de Kelsen, em tese, é possível que um jurista descreva um ordenamento jurídico hipotético que consagrou a pena de morte, mesmo que, no seu íntimo, não concorde com a pena capital. Do mesmo modo, o adepto do positivismo metodológico pode examinar uma Constituição autoritária e descrevê-la, mesmo que não concorde com esse autoritarismo. Tanto quanto um perito criminal é levado a descrever, mediante observação empírica, o assassinato de uma pessoa cuja vida ele jamais aceitaria que fosse ceifada, o positivista metodológico descreve o Direito como um fato real, não ideal. O laudo está para o perito como a doutrina está para o positivista metodológico; o cadáver da pessoa assassinada está para o perito como uma Constituição fascista está para o positivista metodoló-gico. Em comum: ambos descrevem um homicídio ou uma constituição

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autoritária sem valorações. É esse caráter avalorativo que permite, se-gundo Bobbio, que um cientista se debruce sobre o Direito Romano e considere o instituto jurídico da escravidão. Segundo ele, “...o romanista, por exemplo, considerará direito romano tudo o que a sociedade romana considerava como tal, sem fazer intervir um juízo de valor que distinga entre direito justo ou verdadeiro e direito injusto ou aparente. Assim a escravidão será considerada um instituto jurídico como qualquer outro, mesmo que dela se possa dar uma valoração negativa” (1995, p. 136). Pergunta-se: isso transforma o romanista em um defensor do regime es-cravocrata? Absolutamente. Se o leitor chegou a essa conclusão equivo-cada, basta ler o texto novamente. Ou, para facilitar, reler a declaração de Kelsen, pela qual “O jurista científico não se identifica com qualquer valor,

nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito”.

Como método que é, o positivismo metodológico (ou conceitual) é apenas uma maneira de abordagem científica, assumindo relevo esclarecer ao leitor que os resultados poderão variar ao sabor dos objetos examina-dos. Se um positivista metodológico examina o Direito Romano, o resultado é o reconhecimento da escravidão como instituto jurídico válido (somente para o Direito Romano). Noutra ponta, se esse mesmo cientista examina a escravidão à luz da Constituição de 1988, o resultado é a escravidão como uma prática inconstitucional (inválida, pois). Os resultados são diferentes, mas o método é o mesmo e quem os emprega também pode ser.

Parece simples perceber que o positivismo metodológico é extrema-mente difícil de ser contestado como ciência, porque se limita a descre-ver o estado de coisas. Assim como não se refuta a validade de quem diz que “ontem choveu”, afigura-se tormentoso contestar a validade de doutrinas positivistas. Isso levou Lenio Streck a asseverar, com muita franqueza, que “talvez isso indique o porquê de ser o aspecto mais difí-cil de ser contestado e criticado. Na verdade, não há dúvida de que se trata da forma mais sofisticada do positivismo e é aquela que, no âmbito da teoria do direito, encontra maior repercussão geral” (2016, p. 22). A confissão de Lenio Streck assume ainda mais importância porque ele é um dos poucos juristas brasileiros que têm tido um modesto êxito no combate sério e científico à discricionariedade do positivismo. A propó-sito, este é o último ponto para concluirmos esta parte da análise sobre o positivismo, antes de avançarmos para os modelos contemporâneos: a

discricionariedade no positivismo.

Incrivelmente, no Brasil, é lugar comum que professores associem o positivismo somente ao exegético. Pior ainda, atribuem a Kelsen esse tipo de positivismo. Como lembrou Lenio Streck, “...esse tipo de interpretação só

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pode ser feita por alguém que possua algum tipo de domínio vulgar da teoria do direito” (2016, p. 22). Cuida-se de um mito que precisa ser

desmistifica-do. Em boa verdade, por mais surpresa que isso possa causar no leitor, os adeptos do positivismo metodológico, de maneira realista (pessimis-ta ou fa(pessimis-talis(pessimis-ta), compreendem que, quando uma norma possui várias interpretações ou mesmo não há uma regra clara a normatizar um dado problema, a discricionariedade judicial é inevitável. Diante das limitações do próprio Direito, os positivistas metodológicos simplesmente se conformam em dizer que não é possível antever, a priori, como decidirá o Juiz, que, por exemplo, terá liberdade para não aplicar a lei ou mesmo fazê-la de maneira diferente de tantos outros magistrados. É o positivismo

vaticinando o relativismo. Em suma, ao contrário de autores como Ronald

Dworkin, positivistas metodológicos não trabalham com a hipótese da “única resposta correta”.

Que autores empunharam ou ainda empunham a bandeira desta for-ma tão sofisticada de positivismo, qual seja, o positivismo metodológico ou conceitual? Norberto Bobbio, Hans Kelsen, Herbert Hart, John Austin, Alf Ross, dentre outros.

9.2 O positivismo metodológico de Kelsen 9.2 O positivismo metodológico de Kelsen

Tanto quanto Pontes de Miranda, Kelsen é um daqueles autores do Di-reito que foi amaldiçoado para não ser lido ou, caso lido, não ser (bem) com-preendido. A despeito desta maldição, o Professor de Viena é sempre citado. Principiamos nossas digressões esclarecendo o que é interpretação para Kelsen. Nos dizeres do Professor de Viena, “a interpretação é (...) uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (2015, p. 387). Por exemplo, quando o legislador interpreta a Constituição (escalão superior) para elaborar uma lei (escalão inferior) ou quando o Juiz inter-preta a lei (escalão superior) para proferir uma sentença (norma individual do escalão inferior). Em todos esses casos, o escalão superior dita a forma e o conteúdo do escalão inferior. Ilustrativamente, a Constituição estabe-lece como devem ser feitas as leis e também o assunto sobre o qual de-vem versar. Na Constituição de 1988, o tema inelegibilidades é matéria reservada à lei complementar. Percebe-se claramente que uma norma do escalão superior (CF/88) estatuiu o conteúdo (inelegibilidades) e a forma (lei complementar) do escalão inferior (lei).

Contudo, Kelsen descreve muitas situações em que haverá uma

Referências

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