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Arte Teoria, série II, nº20 (2017)

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TE TEORIA SÉ RIE II N º 20

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P R O P R I E D A D E D O T Í T U L O

C I E B A _

CENTRO DE INVESTIVAÇÃO E DE ESTUDOS EM BELAS ARTES

SECÇÃO DE CIÊNCIAS DA ARTE E DO PATRIMÓNIO — FRANCISCO DE HOLANDA

FACULDADE DE BELAS-ARTES, LARGO DA ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES, 1247-058, LISBOA

TELEFONE 213 252 100

F U N D A D O R f o u n d e r

José Fernandes Pereira

D I R E C Ç Ã O e d i t o r s

José Carlos Pereira

FBAUL

António Vargas

UDESC

C A P A c o v e r

Fernando Estevens

P A G I N A Ç Ã O p a g i n a t i o n

Fernando Estevens

C O O R D E N A Ç Ã O G R Á F I C A g r a p h i c c o o r d i n a t i o n

Fernando Estevens

I M P R E S S Ã O E A C A B A M E N T O g r a p h i c c o o r d i n a t i o n

Grafisol

T I R A G E M e d i t i o n

200

I S S N i s s n

1646-396X

D E P Ó S I T O L E G A L l e g a l d e p o s i t

450540/18

* Os artigos são da responsabilidade dos autores.

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Luisa Arruda

Universidade de Lisboa

Cristina Azevedo Tavares

Universidade de Lisboa

Fernando António Baptista Pereira

Universidade de Lisboa

João Paulo Queiroz

Universidade de Lisboa

Ilídio Salteiro

Universidade de Lisboa

Vítor dos Reis

Universidade de Lisboa

Eduardo Duarte

Universidade de Lisboa

Pedro Cabral Santo

Universidade do Algarve

Carlos Bizarro Morais

Universidade Católica Portuguesa

Rodrigo Sobral Cunha

Universidade Europeia-IADE

Sylvie Deswartes-Rosa

Institut d’histoire des représentations et des idées dans les modernités

Margarida Acciaiuoli

Universidade Nova de Lisboa

Lúcia Rosas

Universidade do Porto

Daniela Kern

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rosangela Maria Cherem

Universidade do Estado de Santa Catarina

Domingo Hernandez

Universidad de Salamanca

Pedro Duarte

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Afonso de Medeiros

Universidade Federal do Pará

Bernardo Pinto de Almeida

Universidade do Porto

António Pedro Pita

Universidade de Coimbra

Francisco de Almeida Dias

Università degli Studi della Tuscia

Salvato Teles de Menezes

Fundação D. Luis I

Sabina de Cavi

Universidad de Córdoba

Anna Maria Guasch

Universitat de Barcelona

Annemarie Jordan

Universidade Nova de Lisboa

António Braz Teixeira

Academia das Ciências de Lisboa

Samuel Dimas

Universidade Católica Portuguesa C O N S E L H O C I E N T Í F I C O

a d v i s o r y b o a r d

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E D I T O R I A LP. 9

José Carlos Pereira António Vargas I _ A R T I G O S

P. 15

PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA António Braz Teixeira

P. 23

O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR SIMÕES

Samuel Dimas P. 41

O HIPERESTETA – DA VERTIGEM À PRESENÇA PASSANDO PELO FUTURISMO

Rui Lopo P. 73

JOSÉ RÉGIO: O ESTETA E O ARTISTA (À VOLTA DE UM MANUSCRITO INÉDITO DO POETA)

Isabel Cadete Novais P. 89

“TIPOGRAFIA VIVA”: EXPERIMENTAÇÃO E

EXPRESSÃO TIPOGRÁFICAS NA REVISTA PRESENÇA Sofia Rodrigues

P. 109

PRESENÇA: UMA REVISTA TIPOGRAFADA AO RITMO DO MODERNISMO

Cristiana Serejo _ Jorge dos Reis P. 139

COMENTÁRIO SOBRE OS MUNDOS “INTERNO” E

“EXTERNO” À PRESENÇA Carlos Vidal

I I _ N O T A S D E I N V E S T I G A Ç Ã O

P. 153

A EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS DE 1878 CONTADA POR RAMALHO ORTIGÃO

Alice Nogueira Alves P. 175

SAUDAÇÃO RÍTMICA NA OBRA DE CARLOS QUEIROZ Rodrigo Sobral Cunha

P. 187

UMA CARTA DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOÃO GASPAR SIMÕES

Zetho Cunha Gonçalves P. 199

CARTAS DE RAUL LEAL (HENOCH) PARA JOSÉ RÉGIO Rui Lopo

P. 229

UMA VIAGEM AO PRINCÍPIO CUMPLICIDADES ARTÍSTICAS JOSÉ RÉGIO E JULIO

Rui Maia P. 241

FILMOGRAFIA E PRESENCISMO José de Matos-Cruz P. 253

AD EXTRA A Direcção

Í N D I C E G E R A L

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EDITORIAL

José Carlos Pereira António Vargas

Com este número dedicado aos 90 anos da revista Presença, folha de arte e crítica, cujo perfil revela traços do simbolismo coimbrão, do futurismo e do paulismo lisboetas, e mesmo do saudosismo portuense, fechamos o primeiro ano da Série II da Revista Arteteoria. Conhecida a tese acerca do carácter mais ou menos contra-revolucionário do movimento presencista, consagramos o seu legado nos campos da poesia, da ficção, do design editorial, da filosofia, da doutrinação crítica e estética, do cinema — seja pelo seu precoce reconhecimento como arte seja pela ligação privilegiada de Manoel de Oliveira ao universo ficcional e estético de José Régio —, da música, através de Lopes Graça, sendo que a figura de Julio, igualmente poeta sob o pseudónimo de Saúl Dias, se destacou no panorama dos artistas que nela colaboraram: Mário Eloy, Almada, Diogo de Macedo, Paulo Ferreira, ou Arlindo Vicente, entre outros. Se a Presença se afirma como contraponto à “ausência”, sobre que assentava esteticamente o movimento da Renascença Portuguesa sob a égide do Saudosismo, é, por outro lado, o movimento que se aproxima de uma estética da expressão, tema ao qual Fidelino de Figueiredo, Leonardo Coimbra ou José Régio dedicaram particular atenção. Além disso, e ape- sar das várias sensibilidades e posições doutrinárias e estéticas que a caracterizam, a Presença, segundo juízo de João Gaspar Simões, assumiu-se como “pendant literário e artístico do Orpheu”, acolhendo colaboração dos primeiros modernistas, sendo apresen- tada por alguns dos seus colaboradores como a pedra de fecho do arco do modernismo em Portugal, pela sequência que deu aos valores artísticos afirmados em publicações como Portugal Futurista, Exílio, Centauro, ou Contemporânea, entre outras. Como dou- trinador da Presença, José Régio procura, num primeiro momento, compatibilizar clas- sicismo e individualismo, sem deixar de assinalar o que há de “romântico”, seja por evo- lução ou por reacção, no Dadaísmo, no Futurismo ou no Expressionismo, vanguardas cuja “exagerada exaltação emocional” conduziu ao “exaspero estético niilista”, de Dada, à recusa futurista de “toda a sentimentalidade e toda a estesia”, e à “excentricidade no seu sonho anti-realista” da estética expressionista.

Num segundo momento, Régio procura conciliar Classicismo e Modernismo, afir- mando que este último não se constituiu a partir da soma das vanguardas que o com- põem, mas da tentativa, tanto na expressão como no expresso, de valorizar o novo e o actual, face às formas e às substâncias esgotadas. Apenas possível de analisar na singu- laridade da obra de cada artista, o modernismo superior e verdadeiro, aquele que Régio reputa de clássico, alberga o que há de mais pessoal, sincero e vivo em cada criador, e

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que determina a sua personalidade artística. É por esta razão que, no caso da poesia, o autor de Cântico Negro se opõe à estética do fingimento de Fernando Pessoa, prefe- rindo a poesia de Pascoaes quando “escuta o seu génio”, embora recuse o Saudosismo, seja pela referida dimensão de “ausência”, que o caracteriza, seja pelo facto de, em sua opinião, se constituir uma “escola” que impede o desenvolvimento da individualidade artística. Quanto à génese da obra de arte, é ainda a emoção, ou a paixão — como es- creveu —, que consubstancia, consciente ou inconscientemente, a finalidade estética, e a arte apenas como arte se realiza quando mergulha as suas raízes na humanidade, de que o artista é, enquanto Homem, parte integrante. No que toca à finalidade e à natu- reza da obra de arte, defende que os seus meios são a linha, a mancha, a cor, no caso da pintura, e os recursos da linguagem, e a sua própria plasticidade, no caso da literatura, respondendo deste modo aos que, à época, exigiam da arte correctivos sociais e ideoló- gicos. Para Régio, antes ou depois da expressão, não existe obra de arte, pois que esta apenas existe onde há “intenção profunda e jogo, imitação aparente e transfiguração do real”, distinguindo ainda outros dois tipos de expressão: a expressão vital, insuficiente para atingir a expressão artística, e a expressão mística, que exorbita a esfera da arte.

Para além de uma Teoria da Crítica, que cedo propõe, parte de uma inicial filosofia da arte, na qual se destaca uma teoria estética da expressão, e culmina numa gnoseo- logia, como podemos, de modo lapidar, observar no poema "Redenção". Para além dos vários colaboradores da Presença, na teorização estética e crítica relevam também Adolfo Casais Monteiro e João Gaspar Simões. A teorização especulativa do autor de Clareza e Mistério da Crítica assenta também nos valores do “individualismo” e numa concepção da arte como “expressão”, embora considere que a oposição do romantismo ao classicismo não foi suficiente para uma efectiva autonomização da obra de arte, e do eu criador. Na verdade, o especulativo defende que, em alternativa aos clássicos con- ceitos de “belo” e de “razão”, os românticos criaram um outro formalismo, através das oposições “sinceridade-mentira”, “verdadeiro-falso” e “autenticidade-artifício”, dicoto- mias que Casais Monteiro se propõe ultrapassar por via da defesa de uma “arte viva”, baseada no modelo criacionista do continuum entre sujeito e realidade. Com a defesa intransigente da autonomização da estética face à filosofia, Casais Monteiro manifesta a preocupação epistemológica adjacente ao seu pensamento, atribuindo à permanência do platonismo e do neoplatonismo na cultura ocidental a causa maior da resistência a uma estética ancorada na experiência criadora, de que a Poética de Aristóteles se constitui precursora tentativa. É neste sentido que, no artigo intitulado “Estética”, pertencente ao seu espólio, depositado na Biblioteca Nacional1, Casais Monteiro re-equaciona o papel da razão na estética da criação, opondo-se a Schelling e a Hegel quando defendem “a unificação pela intuição intelectual do espírito e da sensibilidade”. Ao defender a especi- ficidade do “estético” contra a predominância dos modelos narrativos e historiográficos

1 BNP, Espólio de Adolfo Casais Monteiro, E15/cx.28.

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da imitação, que serviram, ao longo da História, de critério para os juízos sobre arte, o autor de Uma Tese e Algumas Notas sobre a Arte Moderna manifesta uma dupla oposi- ção ao formalismo: em sentido clássico, a partir da negação da forma prévia enquanto molde no qual o artista “funde” a sua obra; em consonância com a concepção da arte que resulta do acordo entre “a nossa maneira de ser e a nossa maneira de nos sentirmos ser” (sublinhado do autor), isto é, na assunção do artista como “voz transfigurada”

duma totalidade que excede qualquer parcela, insurge-se contra a “forma” como ele- mento autónomo, como acontecera no cubismo, movimento que impedira, a seu ver, a originalidade e a sinceridade, bases de uma “criação artística viva” (sublinhado nosso).

Será, aliás, a partir da necessidade de uma aprendizagem do “ver”, que Casais Monteiro teoriza a autonomia da Crítica de Arte, devendo esta, para ser autêntica, constituir-se também numa área de expressão do que é especificamente artístico, ou seja, do que, enquanto obra de arte, repousa na “ambiguidade daquilo que para perdurar deixa de ser vida, mas que só perdura porque continua vivo”.

À semelhança de Régio, João Gaspar Simões manifesta especial apreço pelas artes plásticas, e toma-as como termo de analogia da crítica e teorização literária e poética, manifestando a sua preferência pelos artistas que considera “neo-românticos”, nos quais a intuição se sobrepõe à inteligência, como Miró e os surrealistas em geral, sendo que vê também na “originalidade” e na “autenticidade” os atributos fundamentais da verda- deira arte. Aproximando-se da filosofia bergsónica, o que originou uma polémica com o neo-racionalista António Sérgio, Gaspar Simões defende que “a arte é a evidenciação do espírito (de uma certa qualidade de espírito) em qualquer matéria, duma maneira voluntária e intencional”, confirmando, à semelhança do autor de A Evolução Criadora, a natureza criacionista das relações entre sujeito e natureza. Um dos primeiros defenso- res em Portugal da arte abstracta, e em oposição frontal quer ao realismo estético quer à campanha nacionalista que o Saudosismo e o Integralismo Lusitano promoveram, Gaspar Simões afirma que o processo artístico assenta numa transposição formal do mundo interior, a partir das noções que teoriza de “deformação do real” e de “ingenui- dade”, como génese do processo artístico, que concilia com a vontade e a intencionali- dade do artista, o que não deixa de acentuar a complexidade da teorização presencista.

Neste número evocativo do movimento da Presença, António Braz Teixeira faz o levantamento e a análise da reflexão filosófica na publicação nascida em Coimbra, a que se segue a problematização da proposta crítica e estética de João Gaspar Simões, por parte de Samuel Dimas, a partir do intuicionismo de Henry Bergson, e do con- traponto entre razão poética e razão filosófica. Rui Lopo apresenta o Vertiginismo de Raul Leal, estética que deverá necessariamente ser invocada para melhor se entender o Interseccionismo como culto multímodo da sensação, como Fernando Pessoa o des- creveu em carta a um editor inglês. A “incerteza substancial”, que Raul Leal reivindica como base do Vertiginismo, é também a base do anúncio profético do Hiperesteta, e da

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sua doutrina teometafísica, a qual deverá ser colocada em paralelo com o anúncio do Supra-Camões de Fernando Pessoa nas páginas de A Águia, a que se pode juntar, em- bora num outro plano, a teorização do Homem-Artista, por parte de Régio, de que pu- blicamos, na transcrição de Isabel Cadete Novais, um seu inédito. Como se depreende do artigo de Rui Lopo, complementado com a transcrição de um conjunto igualmente inédito de cartas do autor de Sodoma Divinizada para José Régio, a cumplicidade dos dois poetas órficos parece estender-se à teorização estética que nos deixaram, a qual, doravante, deverá ser compulsada em paralelo. Como referido, Isabel Cadete Novais apresenta um inédito de José Régio, e as contradições que, dilacerando a personalidade do autor de Poemas de Deus e do Diabo, na sua obra se espelham de modo sincero, como sejam o Bem e o Mal, a Verdade e a Mentira, ou o Grotesco e o Sublime, demonstrando a almejada coerência que o poeta buscou entre a sua doutrinação e produção estéticas.

As propostas inovadoras no campo tipográfico e editorial, de que Régio e o seu Irmão Julio se ocuparam com regularidade, são objecto da análise de Sofia Leal Rodrigues, Cristiana Serejo e Jorge dos Reis, respectivamente. Da relação entre o presencismo e o neo-realismo (este último já apelidado de terceiro modernismo português), trata Carlos Vidal, através da invocação de “exemplares” polémicas entre alguns dos seus corifeus, alertando para a complexidade do conceito de realismo, e para a especificidade das propostas estéticas e políticas dos dois movimentos. Nas Notas de Investigação, apre- sentam-se o estudo de Rui Maia acerca dos primórdios da relação criativa entre Régio e o seu irmão Julio, o relato feito por Ramalho Ortigão da Exposição Universal de Paris de 1878, uma saudação mais do que rítmica na obra de Carlos Queiroz, pois que a meditação de Rodrigo Sobral Cunha faz o desenho das relações do poeta com uma constelação de autores e valores que deram corpo ao primeiro e segundo modernismos em Portugal, a transcrição e apresentação, por Zetho Cunha Gonçalves, de uma carta inédita de Raul Leal a João Gaspar Simões, assim como o levantamento, da autoria de José de Matos-Cruz, das obras e dos factos que relacionam o presencismo com o cine- ma, lembrando o papel pioneiro da revista na crítica cinematográfica. Por fim, publica- -se uma recensão, da responsabilidade da Direcção, da obra Arte Portuguesa no Século XX: Uma História Crítica, da autoria de Bernardo Pinto de Almeida.

Uma palavra de gratidão é devida a todos os colaboradores, à Área de Ciências da Arte, da FBAUL, na pessoa da sua coordenadora, Profª. Doutora Cristina Azevedo Tavares, ao Presidente da FBAUL, Prof. Doutor Vitor dos Reis, à Secção de Ciências da Arte e do Património — Francisco de Holanda, na pessoa da sua Coordenadora, Profª. Doutora Luisa Arruda, ao Presidente do CIEBA, Prof. Doutor João Paulo Queiroz, ao El Corte Inglés, Grandes Armazéns, na pessoa da Doutora Susana Santos, à Dra. Elisa Ferraz, Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, e à Presidente da Direcção do Centro de Estudos Regianos, Doutora Isabel Cadete Novais, pelo apoio prestado.

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P. 15

PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA António Braz Teixeira

P. 23

O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR SIMÕES Samuel Dimas

P. 41

O HIPERESTETA – DA VERTIGEM À PRESENÇA PASSANDO PELO FUTURISMO Rui Lopo

P. 73

JOSÉ RÉGIO: O ESTETA E O ARTISTA (À VOLTA DE UM MANUSCRITO INÉDITO DO POETA) Isabel Cadete Novais

P. 89

“TIPOGRAFIA VIVA”: EXPERIMENTAÇÃO E EXPRESSÃO TIPOGRÁFICAS NA REVISTA PRESENÇA Sofia Leal Rodrigues

P. 109

PRESENÇA: UMA REVISTA TIPOGRAFADA AO RITMO DO MODERNISMO Cristiana Serejo _ Jorge dos Reis

P. 139

COMENTÁRIO SOBRE OS MUNDOS “INTERNO” E “EXTERNO” À PRESENÇA Carlos Vidal

I _ A R T I G O S

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PRESENÇA DA FILOSOFIA NA PRESENÇA

António Braz Teixeira

1. Apesar de a “folha de arte e crítica” que se publicou em Coimbra, de 1927 a 1938, e terminaria a sua vida, em Lisboa, dois anos depois, haver dado lugar largamente predo- minante à poesia, à ficção narrativa e à doutrina e crítica literárias e, numa posição relati- vamente secundária, às artes plásticas, ao teatro e ao cinema, não deixou, no entanto, de atribuir o merecido relevo à reflexão e ao ensaísmo filosóficos e de abrir as suas páginas a alguns dos mais dotados pensadores da geração nascida na primeira década do séc. XX.

Com efeito, a partir do seu quarto ano, a presença passou a inserir colaboração de an- tigos colegas de Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) na Faculdade de Letras do Porto ou seus companheiros no movimento da Renovação Democrática1, como José Marinho (1904-1975), Delfim Santos (1907-1966) e Manuel Maia Pinto, a que veio juntar- -se António Lobo Vilela (1902-1966) que, para evitar ou tornear a censura, assinava Eduardo Lobo, e que, nos finais da revista, as suas páginas se franquearam à colaboração de José Bacelar (1900-1960), autor cujos dois volumes de Revisão. Anotações à margem da vida quotidiana (1935 e 1936) haviam sido entusiasticamente saudados por José Régio2 e cujo opúsculo Duas frentes: pedagogismo e universalismo (1938) seria objecto, no ano seguinte, de uma atenta e compreensiva recensão por parte de José Marinho3.

Poderá, talvez, estranhar-se que entre os colaboradores portuenses da revista coim- brã se não achem Álvaro Ribeiro nem Sant’Anna Dionísio, atentas as fortes relações de amizade do primeiro com Casais Monteiro, seu activo companheiro na Renovação Democrática, e com José Régio, a quem dedicaria um dos seus mais significativos tra- tados filosóficos4 e a cuja obra consagraria todo um volume5, e tendo em conta o alto apreço que o autor de Cepticismos sempre manifestou pelo admirável poeta de As encru- zilhadas de Deus.

1 Cf. A. Braz Teixeira, Conceito e formas de democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias, Lisboa, Sílabo, 2008, pp. 27-66.

2 Nº 49, Junho 1937, pp. 14-15.

3 Nº 53-54, Novembro 1938, pp. 25-26.

4 A arte de filosofar, Lisboa, 1955.

5 A literatura de José Régio, Lisboa, 1969.

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Quanto a Álvaro Ribeiro, o não ter chegado a colaborar na presença6 poderá, talvez, explicar-se pelo longo e silencioso processo de revisão e aprofundamento por que passou o seu pensamento após a dissolução do movimento Renovação Democrática, em 1934, havendo-se a sua atenção reflexiva concentrado, nesse período, no demorado estudo da filosofia de Aristóteles, Hegel e Sampaio Bruno.

Relativamente a Sant’Anna Dionísio, empenhado, até 1932, na direcção da última sé- rie de A Águia, a sua ausência do corpo de colaboradores, ainda que acidentais, da revista coimbrã poderá explicar-se pelo relativo isolamento intelectual a que o condenaram as tarefas de professor liceal em bisonhas e melancólicas cidades da província e, acima de tudo, por não compartilhar as orientações estéticas modernistas acolhidas pela presen- ça, revista que, note-se, nenhuma atenção dedicou às obras ensaísticas ou de intenção reflexiva editadas ao longo dos quatorze anos da sua publicação, mesmo de autores que nela colaboraram ou dela se encontravam próximos, como seria o caso, entre outros, do vol. III dos Ensaios, de António Sérgio, O amor místico, de Sílvio Lima, Da filosofia, de Delfim Santos, Tangentes, de Sant’Anna Dionísio, A religião grega, de Agostinho da Silva e Menoridade da inteligência ou O dever dos intelectuais, de Fidelino de Figueiredo.

2. Dos cinco especulativos acima mencionados7, foi José Marinho, devido, decerto, à forte amizade intelectual que o ligava a José Régio e a outros directores da presença, o que mais constante e duradoura colaboração deu à revista, pois, enquanto Delfim Santos8 e Manuel Maria Pinto9 nela publicaram apenas um artigo e A. Lobo Vilela dois ensaios10, o futuro autor da Teoria do Ser e da Verdade, durante uma década, aí viu editados cinco longos ensaios11, um diálogo filosófico12 e um significativo conjunto de reflexões e aforismos13.

6 No espólio da Casa José Régio, em Vila do Conde, encontra-se um manuscrito de Álvaro Ribeiro, sem título, presumivelmente de 1939 ou 1940, destinado à revista presença, onde, no entanto, não chegou a ser publicado, texto incluído, hoje, no vol. 1, pp. 189-191 dos Dispersos e Inéditos do filósofo portuense, Lisboa, INCM, 2004.

7 Haveria ainda que referir Jaime Macedo Santos, autor de um breve artigo “Sobre Hegel e Croce”, publi- cado no nº 18, Janeiro 1929, p. 13.

8 “Dialéctica totalista”, nº 39, Julho 1993, pp. 8-9 e 12.

9 “Introdução a uma estética pragmatista”, nº 43, Dezembro 1934, pp. 7-10.

10 “Infinitismo”, nº 34, Novembro 1931 – Fevereiro 1932, pp 10-13; “Metafísica infinitista”, nº 37, Fe- vereiro 1933, pp. 9-11.

11 “O equívoco chestoviano”, nº 29, Novembro-Dezembro 1930, pp. 5-7 e 15; “Aforismo e discurso”, nº 43, Dezembro 1934, pp. 4-6; “Reflexões sobre religião, Deus e mandamento”, nº 46, Outubro 1935, pp.

4-6; “O homem, suas possibilidades e valores no pensamento de Leonardo Coimbra”, nº 50, Dezembro 1937, pp. 2-4; “Razão e irracional”, 2ª série, nº 1, Novembro, 1939, pp. 44-46.

12 “Diálogo sobre a imortalidade”, nº 37, Fevereiro 1933, pp. 4-6.

13 “Reflexões e aforismos”, nº 31-32, Março-Junho 1931, pp. 2-4.

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Mas a colaboração reflexiva de José Marinho na presença não se destaca apenas pelo seu número, extensão e regularidade, sendo, igualmente, de todas, a de maior rigor e profundidade especulativa, revelando já algumas das características mais singularizado- ras do seu modo de pensar e os seus invulgares dotes de admirável escritor de ideias.

Afigura-se, desde logo, muito significativo que a colaboração que o então jovem pensador portuense deu à revista coimbrã, embora haja revestido maioritariamente a forma ensaística, não tenha deixado, também, de recorrer ao diálogo filosófico e à expressão aforística.

Cabe lembrar aqui que a forma aforística, de muito escassa presença no nosso pensa- mento anterior à geração de 1930, encontrou nela um conjunto expressivo de cultores, em que, ao lado de José Marinho, avultam Sant’Anna Dionísio, José Bacelar, Augusto Saraiva (1900-1983) e Agostinho da Silva (1906-1994), não sendo, decerto, ousado afirmar que, se o autor de Revisão retoma, de algum modo, a esquecida e ainda hoje mal compreendida lição de Matias Aires, os restantes haurem a sua mais visível e directa inspiração no Pacoaes do Verbo escuro e de O bailado e no que há de oracular na prosa inspirada de Junqueiro, Brandão e Leonardo.

3. De todos eles foi, no entanto, Marinho o que não só mais constante e abundan- temente recorreu à expressão aforística como o que dedicou mais demorada atenção reflexiva ao significado e valor do aforismo como forma de expressão de ideias con- traposta à forma discursiva, em dois luminosos e modelares ensaios publicados na presença, em 1930 e 1934.

Aí, o jovem autor dos, até há pouco, inéditos Aforismos sobre o que mais importa ob- servava que o aforismo representa “na expressão das ideias o máximo de descontinui- dade”, o que não significa, porém, “ausência de interior discursividade”, implicando, pelo contrário, “uma discursividade realizada em planos diversos de intelecção: uma discursividade da qual o pensamento tem a inequívoca presença, mas não se realiza com uma face votada para a luz e outra para a sombra”. É que, como argutamente notava Marinho, o recurso à forma aforística tanto pode representar uma maneira acidental de expressão de um pensador que se não encontra na posse dos seus melhores dons como decorrer de uma incapacidade não já acidental do homem “para traduzir certas intuições instantâneas, certas obscuras experiências, que pela sua mesma superioridade são remo- tas, fugazes”, pelo que em vão se pretenderia desenvolvê-las discursivamente.

Com efeito, advertia o moço filósofo, “se houvesse no espírito do homem pura, perfei- ta continuidade, o pensamento aforístico seria apenas transitório, e sinal da incompleta posse que um certo pensamento toma de si mesmo”. Dado que, no entanto, nele não existe tal continuidade e que, constantemente, salta para realizar em si “resíduos ou antecipações insolvidas”, forçoso será reconhecer que o pensamento aforístico, com sua intrínseca descontinuidade, se apresenta mais de acordo com a condição do homem e

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a sua real realidade do que o pensamento discursivo, o qual exprime o que no “homem tende a ser e não é ainda”.

Deste modo, o aforismo, revelando “o ser do homem no qual a vigília, que é o pen- samento, é tecida ainda de sonho e a continuidade é ainda prenhe de descontinuidade, revela também, na sua vigília entrecortada, na sua descontinuidade resignada, o ser que é pura vigília, continuidade perfeita”14.

4. O entendimento do pensador portuense acerca da superior verdade humana do pensamento aforístico e a sua maior capacidade para abrir o homem para o seu próprio mistério e para o mistério divino, assim como se encontrava exemplarmente ilustrado no conjunto de Reflexões e aforismos que publicara na revista coimbrã três anos antes, articulava-se, coerentemente, com um tema essencial da sua reflexão, o das incindíveis relações entre razão e irracional, que viria a constituir o objecto do último texto seu inserido na presença.

Sustentava aí o subtil e exigente filósofo que a razão não é princípio nem fim da acti- vidade do espírito, mas apenas processo, é algo que se situa entre a inteligência intuente e o existir sensual, mas que possibilita que uma e outro consistam e possam subsistir, pois, se é a intuição que permite ao homem aceder, instantaneamente, à verdade, num conhecimento imediato e pleno, a que depois virá a chamar visão unívoca, ela, sem a razão, seria constantemente retomada e perdida, tal como a representação sensível seria constantemente evanescente.

Isto significaria, então, que, no homem, a razão não é razão absoluta nem razão pura, mas é sempre razão correlativa com o irracional, no qual se desenvolve o seu processo ou a razão como processo, pelo que o irracional não é só “o vasto e profundo seio no qual a razão procede” mas é presente à razão em si mesma. A razão, sendo processo, é algo que incessantemente se dissolve e se refaz e que, por isso, só existe na relação com o diverso de si, o irracional. Razão e irracional implicam-se, pois, mutuamente e é desta relação substantiva entre ambos, que os transmuda, que provêm a sensação, o desejo e a ideia.

Deste modo, a razão, se, por um lado, porque ligada à intuição fulgurante e instantânea da verdade, aponta, incessantemente, para o ser, para o uno ou para a suprema unidade, por outro, porque ligada, igualmente, pela sensação, à diversidade e à variedade da vida e do existir, é levada a reconhecer as múltiplas possibilidades de ser15.

14 “O equívoco chestoviano” e “Aforismo e discurso”. Cfr. Maria Luísa Couto Soares, “Aforismo e filoso- fia. José Marinho na Presença”, nas Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), vol. III, Lisboa, 2002, pp. 159-165.

15 “Razão e irracional”. Cfr. A. Braz Teixeira, “O primeiro estádio no caminho filosófico de José Marinho”, em Deus, o mal e a saudade, Lisboa, 1993, pp. 179-197.

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5. Foi este modo de conceber as relações entre razão e irracional, muito próximo do seu mestre Leonardo Coimbra e do de outros seus antigos companheiros na, entre- tanto extinta, Faculdade de Letras do Porto, como Sant´Anna Dionísio ou Agostinho da Silva, que constituiu o fulcro da polémica do jovem pensador com António Sérgio (1883-1969), nas páginas da Seara Nova, em meados da década de 30, de que resultou fecharem-se, daí para diante, as portas dessa revista à sua colaboração. Nela objectará Marinho ao racionalismo crítico do autor dos Ensaios que “da mesma maneira que o verdadeiro bem se não encontra pela exclusão do mal (…), assim também o pensamento verdadeiro se não encontra pela exclusão do sensível, do imaginífico, do afectivo, pela exclusão do real estranho ao pensamento, mas pela aceitação dele”16.

Advirta-se que a compreensão que Marinho tinha das relações entre a razão e o irra- cional não o conduzia a nenhuma forma de anti-logicismo, antes a sua funda exigência de razão e o seu agudo sentido do logos o levavam a sustentar, em expressa crítica a Chestov, que nenhum pensador pode deixar de pensar logicamente, cumprindo, con- tudo, não confundir a lógica inerente ao processo de todo o pensar com as plurais e diversas formas pelas quais o pensamento se explicita, do mesmo modo que o conduzia a considerar desprovida de sentido e de valor a oposição entre obscuridade e clareza na expressão do pensamento ou no próprio pensamento17.

6. A colaboração de José Marinho na presença versou, igualmente, sobre interroga- ções metafísicas de grande significado, como o problema da imortalidade e o proble- ma de Deus.

No tratamento do primeiro, em que é claramente reconhecível a lição leonardina, recorreu o jovem filósofo à forma dialogal, como o fizera o mestre numa das três obras em que se ocupou do mesmo problema18, forma filosófica que viriam a usar, igual- mente, outros dois destacados membros da “Escola portuense”, Agostinho da Silva19 e Sant’Anna Dionísio20.

O pensamento expresso por Marinho no seu Diálogo sobre a imortalidade (1933), através da figura de Jaime, é o de que, enquanto a vida, em todos os momentos do ser, é possível e real, só são possíveis casos particulares de morte. Há, todavia, uma mor- te implícita no nosso ser, pois somos, morrendo, do mesmo modo que lembramos, esquecendo, amamos, preferindo e pensamos, excluindo. No entanto, geralmente

16 “Resposta a um idealista de um amigo de pensar inclassificado”, na Seara Nova.

17 “O equívoco chestoviano”.

18 A morte, 1913, A luta pela imortalidade, 1918 e Do amor e da morte, 1924.

19 Conversação com Diotima, 1944 e Policlés, 1944.

20 Diálogo do jardim, 1959.

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considera-se a imortalidade completa em si, perfeita e acabada e não o processo de imortalização em que o ser consiste, pelo que, visto desta perspectiva, o problema da mortalidade física desaparece.

Na verdade, notava o pensador, o problema real é o de saber se alguma coisa ou algum ser poderia ser, se não fosse imortal, uma vez que ou nascemos com uma possibilidade de ser ou não nascemos. Mas se não nos é possível ser, como somos? E se deixamos de ser, como é possível termos sido?

Assim, para Marinho, o problema da imortalidade reconduz-se ou subsume-se no pro- blema de conhecer e ser, pois pensar na imortalidade é pensar ainda na morte e a verda- deira especulação metafísica supõe a evidência interna das possibilidades infinitas de ser.21 7. Quanto ao problema de Deus, que comparece, amiúde, nos aforismos que Marinho publicou na revista coimbrã em 1931, será ainda objecto do longo artigo intitulado Reflexões sobre religião, Deus e mandamento, dado à estampa em 1935, e cuja segunda parte, redigida possivelmente três anos mais tarde, o filósofo nunca chegou a publicar22.

Aí sustentava o pensador que tudo quanto de Deus sabemos radica na nossa possibili- dade divina, sendo tanto mais perfeito quanto realizarmos em nós a possibilidade de nos aproximarmos da divindade. No entanto, os homens, levados pela ambição de conceber Deus, “qualificam-no copiosamente”. Mas Deus é o ser, a nua unidade, a simples verda- de, o único necessário, pelo que, quanto mais se qualifica, menos se alcança.

Assim, Deus, tal como não julga – porquanto o juízo não é fim mas processo para a compreensão do ser – também não conhece nem ama, embora possa ser objecto de incompleto conhecimento e imperfeito amor. Deste modo, para Marinho, o Deus das religiões, aquele que a nossa ambição de conceber leva a qualificar por atributos, não é mais do que uma divindade da zona intermédia do ser, existente mas não subsistente, entre o homem e o puro divino. Este, assim como não se define por atributos, por ser a extrema simplicidade e o concreto por excelência, também não se exprime por manda- mentos, tal como o homem, no que tem de mais íntimo, não se exprime em norma, lei ou decreto ou deles pode ser objecto. A ideia de mandamento, para o jovem especulativo portuense, radica no divino transitório, naquele a quem mantém o deficiente amor e o deficiente pensamento do homem. Pela mesma razão não pode atribuir-se a Deus a actividade ou juízo final, sendo, precisamente, o atribuir-lhe tal actividade ou tal juízo a fonte de que promanam o politeísmo e a idolatria, assim como é um estádio inferior de pensamento ou de vida religiosa aquele em que Deus se nos revela ainda e apenas como um demiurgo ou como um ser que julga, se compadece ou ama23.

21 “Diálogo sobre a imortalidade”.

22 Cfr. Jorge Croce Rivera, “Reflexões de José Marinho sobre o Cristianismo (1932-1938) ”, em Arquipé- lago, série Filosofia, nºs 2-3, 1991-92, pp. 187-243.

23 Cfr. A. Braz Teixeira, “Filosofia e religião no pensamento português contemporâneo”, em Ética, filosofia e religião, Évora, Pendor, 1997, pp. 66-73.

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8. Ao lado da de José Marinho, as mais importantes colaborações filosóficas com que contou a presença foram, sem dúvida, as de José Bacelar e de Delfim Santos.

A do médico-filósofo insere-se na directa continuidade dos dois breves e densos vo- lumes de Revisão. Anotações à margem da vida quotidina, cuja publicação, pela pena de Régio, a revista coimbrã saudara com evidente admiração, realçando a invulgar intuição psicológica e a capacidade reflexiva que neles se revelavam.

A primeira das colaborações de José Bacelar retomava o subtítulo dos seus volumes de estreia, intitulando-se, precisamente, 72 anotações à margem da vida quotidiana24, aparecendo as duas restantes, de bem menor extensão e significado, sob a designação de Aquário25, e sendo constituídas as três por aforismos ou breves reflexões sobre os mes- mos temas que haviam atraído a lúcida e penetrante observação psicológica do céptico e exigente moralista de Revisão, que, durante a segunda metade dos anos 30, redigiu um interessante conjunto de opúsculos e ensaios sobre algumas “questões disputadas” da época, em larga medida levantadas pela presença. Inscrevem-se aqui o problema da via- bilidade do romance português, o do significado e valor da polémica e do pedagogismo cultural, ou a questão das relações entre arte e política, temas e problemas que Bacelar abordou com serena lucidez e a mesma independência de espírito que caracterizava a sua obra aforística26.

9. A colaboração de Delfim Santos, que precedeu de um lustro a do futuro autor de Razão e absoluto, se anuncia já alguns dos rumos que definirão o rigoroso pensamento metafísico e antropológico do notável filósofo e forçado pedagogista, não deixa, tam- bém, de conter marcas de campanha democratista em que se empenhara, ao lado de Álvaro Ribeiro, Casais Monteiro, Pedro Veiga, Rodrigues de Freitas, António Alvim, Lobo Vilela, Domingos Monteiro, Joaquim Magalhães e outros mais da mesma geração.

Partindo das concepções antropológicas fundadas na nova ontologia pluralista, o jo- vem e sério ensaísta, no texto Dialéctica totalista (1933) reflecte, criticamente, sobre as noções de liberdade e de igualdade. Assim, quanto à primeira, sustenta não ser ela algo de substancial ou de substantivo, que possa ser entendido ontologicamente e como realidade exterior ao homem, pois é dinamismo e esforço, acção total ou espírito, é uma conquista mais do que uma aquisição definitiva, pelo que o próprio espírito deve ser entendido mais como acto dinâmico do que como realidade estática. Daí que, por exemplo, como refere o pensador, liberdade de pensamento se lhe afigure expressão in- correcta e sem sentido, pois pensamento é afirmação de liberdade e nunca de qualquer coisa a que a liberdade seja exterior e mero veículo de formulação.

24 Nº 52, Julho 1938, pp. 5-8.

25 2ª série, nº 1, Novembro 1939, pp. 54-56 e nº2 Fevereiro 1940, pp. 125-126.

26 Realidade, nebulosidade e falsificação, 1937, Duas frentes: pedagogismo e universalismo, 1938, Polémica e abstenção, 1939, Da viabilidade do romance português de interesse universal, 1939 e Arte, política e liberdade (1939), 1941.

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Por seu turno, a noção de igualdade, em que se funda o conceito de indivíduo, não é mais do que o resultado da aplicação da lógica dos mecanismos ao mundo do homem, sendo absolutamente contraditória com os valores humanos. Com efeito, não há igual- dade essencial entre os homens, pelo que a democracia deveria entender-se não como o regime da igualdade mas como o da diversidade, no qual todos os homens têm igual- mente a liberdade de serem desiguais.

Assim, em nome de uma nova concepção do homem liberta de cientismo oitocen- tista, defendia Delfim Santos a necessidade de aproximar a política da religião e não da ciência, de abandonar a lógica atomista e mecanicista que a ela presidiu durante largo período, e de atribuir ao novo democratismo uma missão cultural e espiritual, pondo a acção política ao serviço dos valores que definem o homem, a liberdade, a consciência, o espírito27.

10. Também no pensamento expresso na Introdução a uma estética pragmatista (1934), com que Manuel Maia Pinto colaborou na presença, é possível encontrar eco ou sinais de uma nova posição relativamente ao homem e às suas criações espirituais. No seu ensaio, sustentava Maia Pinto que, diversamente do que, em geral, se pensa, a arte ou o artista não busca o belo ou a emoção que se dão na natureza, nas suas formas ou manifestações, mas, pelo contrário, visa, unicamente, o que designa por uma “comunicação não-inteli- gível”, de carácter subjectivo ou consciencional, que permita tornar conscientes, sociais e colectivos, através de valores de comunicação, de símbolos, palavras e formas com conteúdo subjectivo, sentimentos que, até então, não hajam encontrado ainda maneira de exprimir-se ou cuja comunicação se apresentava muito difícil ou muito imprecisa.

11. Mais ambiciosa do que a de Maia Pinto era a intenção especulativa de António Eduardo Lobo Vilela, oculto sob os seus segundo nome e primeiro apelido, ao propor- -se construir uma “metafísica infinitista” ou um novo sistema filosófico, o Infinitismo, assente na afirmação de uma pretendida superioridade cognitiva da imaginação sobre a razão, a inteligência e demais faculdades humanas, apresentando-se como uma filosofia ultramoderna, cujo objectivo era “a assimilação plena da Verdade integral, absoluta mas humana, liberta de quaisquer dogmas da verdade divina e revelada”.

A tentativa filosófica do moço ensaísta, se bem que inegavelmente interessante e en- genhosa, não deixava, contudo, de sacrificar demasiado ao paradoxo e a uma evidente vontade de ser (ou parecer) original e diferente, dificilmente conciliável com as mais sérias exigências da razão especulativa, a que se afirmava nos textos de José Marinho, Delfim Santos ou José Bacelar, figuras maiores da reflexão filosófica acolhida nas páginas da presença, como a obra posterior de cada um deles veio mostrar.

27 Cf. A. Braz Teixeira, Conceito e formas de democracia, op. cit., pp. 55-66.

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O MISTÉRIO DA POESIA NA ESTÉTICA DA INSPIRAÇÃO E DA EXPRESSÃO DE JOÃO GASPAR SIMÕES

Samuel Dimas

RESUMO

A estética da inspiração e da expressão de João Gaspar Simões fundamenta-se na teoria do conhecimento intuitivo de Henry Bergson. O ensaísta português apresenta a distin- ção entre a poesia lírica pura e a poesia lírica intelectual. A primeira corresponde a uma expressão do estado de alma não motivado ou previsto. A segunda corresponde à procura consciente e voluntária de um ideal de beleza pré-concebido. A arte da poesia lírica pura é expressão inconsciente da emoção estética momentânea e revela a essência íntima e vital da pessoa, que é anterior às convenções culturais.

PALAVRAS CHAVE

intuição, inspiração, expressão, poesia, emoção estética ABSTRACT

The aesthetics of João Gaspar Simões is based on Henry Bergson’s theory of intuitive knowledge. The Portuguese essayist presents the distinction between pure lyric poetry and intellectual lyric poetry. The first corresponds to an expression of the unmotivated or predicted state of mind. The second corresponds to the conscious and voluntary search for an ideal of preconceived beauty. The art of pure lyric poetry is an unconscious expression of momentary aesthetic emotion and reveals the person’s inner and vital es- sence, which predates cultural conventions.

KEYWORDS

intuition, inspiration, expression, poetry, aesthetic emotion

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INTRODUÇÃO: OPOSIÇÃO OU CONCILIAÇÃO ENTRE POESIA E FILOSOFIA, EMOÇÃO E RAZÃO?

Com este breve estudo pretendemos compreender o sentido da reflexão estética de João Gaspar Simões (1903-1987), fundador da revista Tríptico (1924-1925) com Branquinho da Fonseca e Vitorino Nemésio, em que colaboraram autores como Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, José Régio, Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, e fundador da revista Presença (1927-1940) que, dirigida por si e pelos companheiros fundadores da Tríptico a que mais tarde se juntaria Adolfo Casais Monteiro, desenvolveria um espírito de au- tonomia ideológica e pluralidade cultural que ia desde a arte, com Diogo de Macedo, José Régio e Casais Monteiro, à filosofia, com José Marinho, Eudoro de Sousa e Delfim Santos, desde o cinema, com Manuel de Oliveira e Casais Monteiro, à música, com Fernando Lopes Graça. Esta revista, definida como Folha de arte e crítica, oferece uma vasta síntese literária que resulta das colaborações de autores oriundos do simbolismo coimbrão, do saudosismo portuense e do paulismo e futurismo lisboetas, com destaque para os nomes de António Nobre, António Patrício, Fernando Pessoa, João de Deus, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Botto, Camilo Pessanha, Carlos Queirós, Fernando Namora, Irene Lisboa, Jorge de Sena, Miguel Torga ou Raul Leal.

No prefácio da obra O Mistério da Poesia, o ensaísta João Gaspar Simões afirma que o objetivo da sua obra é apresentar a génese ou o motivo da criação poética (Simões, 1931: VII-VIII). Como mote da sua pesquisa faz uma citação do Cardeal Newman que apresenta a distinção entre as ideias vivas e o puro raciocínio (Simões, 1931: X), remeten- do-nos para o clássico diferendo de Platão entre a arte inspirada e religiosa dos poetas e o labor racional e científico dos filósofos (Platão, 1987: 475). Diferendo também invocado na Presença por Adolfo Casais Monteiro que estabelece a contraposição entre a racionalidade, associada à filosofia, e a irracionalidade associada à criação artística (Monteiro, 1940: 112).

Mas como ilustra o texto fundador da ontologia Ocidental, O Poema de Parménides, a poesia surge inicialmente relacionada ao Sagrado, como resultado de uma inspiração que funda toda a sabedoria e conhecimento do homem, desde o teogónico e cosmogónico, no encantamento mágico do vidente, ao teológico, na celebração religiosa do profeta, e ao histórico e científico no labor racional do sábio. Esta unidade do conhecimento na figura do poeta-profeta-sábio da tradição helénica é reclamada pelo filósofo no comum reconhecimento de que a poesia tem o poder de transformação da alma.

Mas se no Fedro a poesia ainda é descrita como um dom divino que excede qualquer saber na formação do homem (Platão, 2009: 59), no Górgias e na República, Platão des- valoriza a verdade da mimésis poética, concebendo-a como ilusório processo irracional de imitação das aparências que obscurece a razão e perverte a hierarquia das potências da alma, impedindo a libertação das emoções e o acesso à verdade (Platão, 1987: 451-477).

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No entanto, reconhecendo que a própria inteligibilidade dos textos platónicos se dá na dialética racional com recurso ao mito poético, Aristóteles recupera a noção de mi- mésis, já não como cópia ou reprodução do real natural, mas como apresentação do processo vivo e criativo (physis). A poesia é tematizada como arte ou techné que tem por objetivo a produção de uma obra distinta de quem a produz e, por isso, com um estatu- to ontológico inferior ao da práxis, cuja atividade é imanente ao sujeito, e ao da theoria, concebida como contemplação pura (Aristóteles, 1998: 13-16).

Mas por outro lado, Aristóteles considera que na mimésis criadora, a poesia passa a ser considerada como o ato humano por excelência que transcende a subjetividade e, por isso, passa a ser mais filosófica e universal do que a História (Aristóteles, 1990: 115- 116). Pela narrativa o poeta tem a capacidade de viver e fazer viver o narrado, residindo aí a sua capacidade catártica que ao induzir o terror e a piedade purifica as paixões pela libertação dos impulsos e proporciona uma terapia dos conflitos psíquicos (Aristóteles, 1990: 121-122).

Será com Plotino que a poiésis ascende a um estatuto ontológico superior, constituin- do-se como idêntica à pura interioridade da teoria (Plotino, 1985: 242-244) e será com Dante que assume verdadeira dignidade teológica e filosófica, constituindo-se como inspiração divina do Amor. Nesta linha, autores contemporâneos como Heidegger, Paul Ricoeur, Karl Rahner e José Enes apresentam o discurso analógico e metafórico da poe- sia como a linguagem que pertence ao plano trans-conceptual e transpredicativo da experiência humana e, por isso, a mais adequada para nomear o Sagrado e para dizer o Mistério do Ser que se revela e oculta na prévia experiência da verdade atemática ou antepredicativa (Enes,1990:130).

Importa pois perguntar: em que termos concebe João Gaspar Simões a génese do pensar poético? No sentido de oposição entre racionalidade lógico-analítica e emoção vital intuitiva, como em Henri Bremond pela noção de poesia pura ou em Miguel de Unamuno pela noção de vitalismo (Unamuno,1945, p. 69), ou no sentido conciliador de racionalidade poética ou de lirismo metafísico, como em Leonardo Coimbra (Coimbra, 2009: 291) e em certos críticos de Gaspar Simões como o racionalista António Sérgio que defende a inter-relação entre atividade intelectual e sentimento? Podemos falar de uma poesia filosófica, como em Domingos Tarrozo (Tarrozo, 1883), ou de uma ra- zão poética como em G. Chiavacci (Chiavacci, 1947) e em Manuel Ferreira Patrício (Patrício, 1991: 220)?

O CARÁTER MISTÉRICO DA POESIA

No capítulo «O Mistério da Poesia» podemos encontrar as primeiras respostas de João Gaspar Simões para esta questão, quando procura explicar em que sentido se supõe que a poesia se realiza e se recebe misteriosamente. Recusando a perspetiva de que a razão se

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basta a si mesma porque compreende tudo (Simões, 1931:4), o autor cita Paul Valéry para se referir aos limites da razão e ao fundo essencialmente misterioso da realidade que tudo antecede e se manifesta na poesia lírica: «O essencial é inacessível à vontade, domina a razão, sobrepõe-se-lhe, antecede-a. Sem um fundo essencial não intelectual nada seríamos mesmo» (Simões, 1931:5-6).

Nesta resposta identificamos uma clara distinção entre as tendências vitais e instin- tivas, por um lado, e a racionalidade intelectual por outro, associando-se ao primeiro nível o fundo estrutural poético ou lírico do homem (Simões, 1931:6). Parece, pois, privilegiar o sentimento na origem do ato poético com aproximação deste à experiência mística. Mas poderemos nós conceber um interesse vital puro sem razão ou irredutível a esta, como também propõe Adolfo Casais Monteiro quando apresenta a essência da arte como irracionalidade acessível pela intuição, por contraposição com a racionalidade fi- losófica que se detém apenas na inteligibilidade da aparência ou da casca dessa realidade essencial não inteligível?

A esta pergunta não podemos deixar de convocar para o diálogo António Braz Teixeira que, na linha do lirismo metafísico de Leonardo Coimbra, recusa a ideia de sensação pura e de razão pura e afirma que a razão não se garante a si mesma como órgão de conhecimento, mas pressupõe um ato prévio de crença na relação com o irracional de si mesma por excesso em suas formas de sensação, intuição, imaginação, sentimento, memória, crença e mistério (Teixeira, 2009: 86). Em distinção, por um lado, com o ra- cionalismo positivista e, por outro lado, com o intuicionismo de Bergson, que defendia a capacidade de um conhecimento adequado e perfeito da própria essência de Deus, desenvolve-se uma via intermédia de conciliação entre o pensar e o sentir, assente na correlação entre a apreensão intuitiva e a compreensão racional, pela ascensão ao discur- so analógico e simbólico.

Ora parece ser a esta conclusão que chega João Gaspar Simões quando defende a necessidade de se criar um lirismo crítico que faça a unidade entre a força misteriosa fe- cundante e a reflexão sobre a origem e desenvolvimento dessa força vital, na procura de superação da dicotomia entre a adesão cega à atitude poética e a recusa acrítica da poesia por ser considerada de pura irracionalidade (Simões, 1931:8). Não basta dizer que a poesia é um mistério, mas é preciso compreender o porquê da sua existência e, nesse sentido, o autor descreve o itinerário da leitura do poema como a ascensão dialética de uma inicial tranquilidade racional, na convicção de uma compreensão do sentido lógico do pensamento inscrito nas suas orações sintaticamente perfeitas, para uma inquietante infelicidade racional pela falta de clareza e nitidez e pela ausência de um pensamento coerente e perfeito, exigindo a elevação da região familiar da realidade das ideias claras e distintas do mundo objetivo para a existência mais íntima da subjetividade pessoal no mundo irreal dos sonhos e do mistério: «Volto a ser eu, embora muito longe da feli- cidade quotidiana da minha razão. Experimento uma felicidade diferente: a felicidade

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dos sonhos, dos desmaios, dos grandes e fugazes momentos em que não analiso, não raciocino, não exijo lógica» (Simões, 1931:10).

A NECESSIDADE DE UMA RAZÃO POÉTICA PARA SE ACEDER AO ESTADO INOCENTE DA ALMA E À DIMENSÃO ESPIRITUAL

DA REALIDADE

Esta felicidade diferente que só a poesia é capaz de proporcionar não é dada pela luz meridiana da razão diurna, mas sim pela luz crepuscular e auroral da razão noturna.

Não deixa de ser uma experiência de valor gnosiológico e de encontro de sentido, mas a realidade que nos é dada conhecer não é a que se mostra de forma lógica e analítica, é a que se mostra de forma analógica e metafórica. Neste âmbito, Jesué Pinharanda Gomes, na mesma linha de Teixeira de Pascoaes e de Álvaro Ribeiro, associa ao primeiro plano a reflexão filosófica, que mediante a conceptualização e os juízos se constitui como a arte de conhecer a verdade, e associa ao segundo plano a poesia, que mediante a conceção simbólica e metafórica das proto-palavras se constitui como a arte de conhecer o belo e de criar o verosímil (Gomes, 2003: 255).

Teixeira de Pascoaes afirma esta diferença de conhecimentos, considerando que a fi- losofia é escrava do rigor judicativo, da necessidade demonstrativa e da análise lógica, ao passo que a poesia é uma «ciência liberta» que apenas tem de obedecer ao pulsar vital da intuição (Pascoaes, 1993, 93). Mas Álvaro Ribeiro, sem anular a diferença entre o discurso poético e o discurso filosófico, defende a convergência sapiencial e existencial destes dois discursos, partilhando a perspetiva criacionista de que a filoso- fia não só se pode exprimir em discurso poético como este é o meio necessário para falar da realidade espiritual e amorosa de Deus que se imanentiza e se revela na uni- dade plural humana de corpo, ânima, espírito, imaginação, sentimento e razão, não se reduzindo nem à vida instintiva ou biológica nem à vida intelectiva e judicativa (Ribeiro, 1957: 251).

Esta necessidade da poesia para que se possa conhecer o plano espiritual da realida- de que constitui a verdadeira essência do homem está presente na filosofia poética de Leonardo Coimbra e na poesia filosófica de Teixeira de Pascoaes, como está presente no lirismo crítico de João Gaspar Simões ao reconhecer que a leitura do poema revela a im- potência da inteligência racional para apreender o sentido íntimo do que é lido, exigindo uma outra inteligência de ordem sentimental que constitua a experiência vital de uma simpatia cósmica. Este arrebatamento proporcionado pela linguagem poética permite acedermos a uma região rara da nossa personalidade em que nos sentimos fecundos e originais em felicidade total pela compreensão da vida que anteriormente nos era vedada.

O autor considera que nessa experiência poética, que não resulta de análise, de indução, de dedução ou de abstração, nos sentimos instintivamente como pura força da natureza

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e cada realidade aparece-nos numa forma que anteriormente era invisível: «A certeza científica, o conhecimento racional, afiguram-se nos frágeis, aparentes. Alguma coi- sa de inacessível há na vida que essas formas de conhecimento não nos transmitem.

Experimentamos uma espécie de virgindade, de inocência» (Simões, 1931:12). Na sua reflexão sobre a atividade artística João Gaspar Simões fala da noção de ingenuidade es- tética, no sentido de virgindade espiritual ou estado edénico. Assim, afirma que o artista é ingénuo na medida em que age sem premeditação e sem preconceito na escuta natural da sua voz interior e na exclusiva submissão ao sentimento. Neste sentido, cita a obra Le Rire de Henry Bergson para reforçar a sua tese de que o artista é aquele que consegue libertar-se da vida convencional do quotidiano com desprendimento natural na procura dessa individualidade ainda não corrupta em estado de pureza ou inocência, que não é apenas técnica, mas também moral (Simões, 1929: 32-33).

O filósofo francês defende que para se aceder ao estado íntimo e pessoal da alma, no que tem de individualidade e originalmente vivido, é necessário um afastamento da lin- guagem que fixa os sentimentos de forma impessoal. E adverte que não se trata do des- prendimento ou desinteresse que resulta do labor deliberado da reflexão filosófica, mas sim do desprendimento natural e inato na estrutura da consciência, o qual se manifesta através de uma maneira virginal de ver, ouvir e pensar (Bergson, 1991:100). Ignorando o sentido da futura noção hermenêutica de Gadamer acerca da inevitabilidade dos pre- conceitos legítimos inerentes à nossa condição cultural, o filósofo francês defende a necessidade da libertação dos preconceitos sociais que se interpõem entre o sentimento da alma pura e a realidade das coisas, cabendo à arte esse papel de visar a individualida- de do estado pessoal da alma: «Assim, seja pintura, escultura, poesia ou música, a arte não tem outro objetivo senão afastar os símbolos praticamente úteis, as generalidades convencional e socialmente aceites, por fim tudo o que nos marca a realidade, para nos pôr frente a frente com a própria realidade» (Bergson, 1991:101).

Também Vergílio Ferreira, nesta linha, apresenta a necessidade da arte, por con- traposição com a filosofia e a ciência, para que seja possível a experiência do Ser no seu Excesso (Ferreira, 2013:92), que não se restringe à sua manifestação fenoménica, passível de objetivação, medição e quantificação, mas que contém algo de espiritual e indeterminado que é transcendente ao domínio físico e material do mundo aparente.

O caráter mistérico da arte poética deve-se ao facto de ter a capacidade de presentifi- car na imanência do sujeito, através de um sentimento de desconcertante liberdade, o inesgotável e transcendente mistério da própria realidade (Ferreira, 2013:102), que Leonardo Coimbra também carateriza de Excesso, por considerar que é presença do Amor e manifestação da Vida infinita de Deus (Coimbra, 2012: 69).

É nesta capacidade de inato desinteresse em receber as coisas na sua pureza original que reside a sinceridade do artista, no esforço por afastar o véu que existe entre o ho- mem e a sua própria consciência, entre a alma e a verdadeira realidade. Não é possível

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um afastamento total e um acesso absoluto à individualidade e pura originalidade dos seres, mas em relação ao senso comum, o véu do artista e do poeta é mais leve e quase transparente (Bergson, 1991: 98). Mas João Gaspar Simões considera que no caso do artista a sinceridade é um mistério, porque só o é na ignorância de o ser, ou seja, situa-se no plano do inconsciente porque não se procura nem se descobre por um simples ato de vontade, mas impõe-se e insinua-se (Simões, 1930 a: 2).

A ARTE DA POESIA LÍRICA COMO EXPRESSÃO DA INSPIRAÇÃO DA EMOÇÃO ESTÉTICA QUE SE DÁ DE FORMA IMPREVISTA

E MOMENTÂNEA

João Gaspar Simões recebe de Goethe a ideia da poesia lírica como poesia da cir- cunstância enquanto indefinível anímico no sentido de momentâneo e imprevisto, por contraposição com o premeditado, preconcebido e preexistente da poesia lírica do in- definível intelectual de Mallarmé, para quem o poema era uma realização premeditada de formas verbais que sugeriam o estado indefinível da inteligência (Simões, 1931:

36). A primeira poesia corresponde a uma expressão do estado de alma ou momento cósmico que nos possui, que não motivámos, não quisemos nem previmos, enquanto a segunda corresponde a uma expressão de um estado intelectual ou circunstância cerebral prevista e motivada:

No circunstancial emocional o poema revela sensações e emoções, cuja correspondência se obtinha pela forma mais simples e espontânea. No circunstancial intelectual, essa cor- respondência obtém-se pelo emprego de palavras — hieróglifos, chama-lhes Mallarmé

— susceptíveis de precipitar silêncios, vazios, «o não dito», tudo o que está na inteligência e não são ideias nem sensações nem representações, mas o seu movimento indefinível.

(Simões, 1931: 36)

Assim, define a noção de circunstância de Goethe como «instante inacessível na sua realidade interior» (Simões,1931:25) para dizer que o poema desponta no aquém da conceção quando se libertam na alma do poeta, pelo acaso da sua circunstância incon- cebível, as forças instintivas da sua personalidade. Nesse momento de revelação incons- ciente daquilo que de mais íntimo existe na sua alma, o poeta está entregue a forças cósmicas e, embora a sua arte possa ser valorizada de forma acidental de acordo com conceitos filosóficos e enquadramentos culturais, a verdadeira admiração está diante dessa força vital ou essência íntima indefinível que é nova e única (Simões, 1931: 28).

O ensaísta usa o termo «comoção estética» para caraterizar este instante de inspiração que tem raiz num estremecimento existencial e que só é transmissível ou comunicável nas obras dos homens que são artistas, isto é, que são capazes de transmitir de forma

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sincera aquilo que há neles de essencialmente vivo (Simões, 1931: 29). Esta associação entre o essencial indefinível e a realidade vital oculta, que se revela no discurso poético da linguagem do paradoxo e do excesso e que se oculta no discurso lógico-racional da linguagem abstrata da conceptualização, domina o pensamento hermenêutico-fe- nomenológico contemporâneo de autores como Heidegger, Merleau-Ponty (Ferreira, 1978: 11; 2012: 54), Michel Henry e Vergílio Ferreira, para quem o sagrado e a arte pertencem à invisibilidade da realidade interior e afetiva da vida e não à visibilidade da realidade exterior do mundo (Ferreira, 2012: 57).

De modo distinto da forma lógica que se preocupa com a universalidade das rela- ções, a arte é uma forma intuitiva de conhecimento que pertence à própria indivi- dualidade do artista. Tem como objetivo exprimir a emoção estética, que significa a recriação do mundo a partir da própria individualidade, constituindo-se como uma transposição da vida, isto é, das sensações, emoções e inteligência que o artista tem dela (Guimarães, 2002: 15-16). Por distinção com a poesia simbolista de Mallarmé, que Gaspar Simões associa à metafísica alemã de Hegel, a terminologia crítica usada pelo ensaísta português recorre a categorias da filosofia existencial e fenomenológica posterior para situar a génese da poesia nesse momento prévio e instantâneo da ex- periência atemática e antepredicativa do mistério do Ser em que «reside a verdadeira essência da Vida» (Simões, 1931: 37).

Para esta filosofia da vida, o sagrado não se opõe diante de nós como um objeto visível do mundo, mas manifesta-se como essência fenomenal, como imanência invisível ou afetividade, a qual não pode ser dita pelo pensamento científico que procura a obje- tividade das coisas, mas pode de ser dita na emoção e expressa na arte, permanecendo oculta na sua própria revelação, porque não há conceitos ou representações intelectuais que a possam definir e circunscrever (Henry, 2003: 552). Da mesma maneira, também a realidade mais essencial do homem que pertence a esse plano misterioso e divino da realidade não se desvela na representação categorial da inteligência, mas sim nessa expe- riência primordial vital que se dá no plano da afetividade e que, como defende Vergílio Ferreira, tem na arte o meio mais adequado para a exprimir: «A relação do homem com a Vida é primordialmente uma relação afetiva, e a arte é a realização ou presentificação no objeto artístico dessa afectividade» (Ferreira, 2011: 205).

Numa certa influência do freudismo e por distinção com o Modernismo, a poesia da Presença parece dar mais importância à inspiração da emoção poética naquele que escreve do que à expressão dessa emoção na alteridade da obra ou do texto. A inspira- ção, enquanto estado emotivo de íntima e misteriosa iluminação, leva a que o artista apreenda o seu objeto de forma imprecisa, mas plena. Dada de forma gratuita, esta intuição estética precede a criação, mas é um momento exultante que tem continui- dade nesse trabalho em que pelos recursos se procura consciencializar essa originária intuição ainda brumosa. Assim, em rigor, a inspiração já encerra uma vontade de

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