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Leitura e Desleitura na obra de Lygia Bojunga

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Tatiana Coelho Palhano

LEITURA E DESLEITURA

NA OBRA DE LYGIA BOJUNGA

FORTALEZA- CEARÁ

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Tatiana Coelho Palhano

LEITURA E DESLEITURA

NA OBRA DE LYGIA BOJUNGA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Ceará, como exigência parcial para obtenção do título de mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Odalice de Castro Silva

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“Lecturis salutem”

Ficha Catalográfica elaborada por

Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593 tregina@ufc.br

Biblioteca de Ciências Humanas – UFC

P188l Palhano, Tatiana Coelho.

Leitura e desleitura na obra de Lygia Bojunga / por Tatiana Coelho Palhano. – 2009.

140 f. : il. ; 31 cm.

Cópia de computador (printout(s)).

Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, Fortaleza(CE), 01/06/2009.

Orientação: Profª. Drª. Odalice de Castro Silva. Inclui bibliografia.

1-NUNES,LYGIA BOJUNGA,1932- – CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO.2- NUNES,LYGIA BOJUNGA,1932- – LIVROS E LEITURA.3-INFLUÊNCIA(LITERÁRIA,ARTÍSTICA,ETC.).

I- Silva, Odalice de Castro, orientador. II- Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós- Graduação em Letras.III- Título.

CDD(22ª ed.) 808.899282

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TATIANA COELHO PALHANO

LEITURA E DESLEITURA NA OBRA DE LYGIA BOJUNGA

Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará.

Fortaleza, ______de ____________de _______.

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________ Profa. Orientadora Dra. Odalice de Castro Silva

Universidade Federal do Ceará - UFC

____________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria César Pompeu

Universidade Federal do Ceará - UFC

____________________________________________ Profa. Dra. Maria Valdênia da Silva

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LIVRO: a troca

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida.

Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado.

E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.

De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.

Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.

Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.

Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava.

Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.

Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra –

em algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.

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AGRADECIMENTOS

A Deus

pela saúde e disposição para o trabalho;

Aos meus pais, Eliezita e José,

pelo apoio;

À amiga Liduína

pelo incentivo nas horas difíceis;

À Professora Odalice

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SINOPSE

O presente trabalho propõe-se a conhecer a leitora que há por trás da escritora Lygia Bojunga Nunes. Observando-a não apenas como emissora de um texto, mas como destinatária deste; revelando, assim, como se dá sua relação, enquanto leitora, com a obra literária.

Essa pesquisa divide-se em três capítulos, sendo que no primeiro procuramos relacionar a escritora ao contexto social, histórico e político do qual emergiu, bem como as condições nas quais desenvolveu sua obra, em meados da década de 1970 até o presente momento.

Já no segundo capítulo, analisamos, à luz das influências da tradição literária, suas impressões sobre obras, autores, personagens; e o efeito que determinadas leituras lhe provocaram.

Para o último capítulo, reservamos o estudo dos recursos que Lygia Bojunga utiliza dentro do sistema linguístico para dar valor estético à sua criação, enfocando uma subjetividade rica e expressiva; revelando, assim, o já inconfundível estilo Lygia Bojunga de escrever.

Para o desenvolvimento deste trabalho, buscamos fundamentação teórica em autores, como: Nicolau Sevcenko (2001), Gilberto de Mello Kujawski (1991), Harold Bloom (1995), Pierre Bourdieu (1996), Dominique Maingueneau (2001) e Roland Barthes (1986). Esse embasamento teórico foi desenvolvido dentro de uma metodologia de base histórica, formal e comparatista. Logo, a justificação das proposições presentes nessa pesquisa dá-se por intermédio de exemplos retirados de trechos da produção literária da escritora Lygia Bojunga Nunes, que totaliza o número de vinte e uma obras publicadas.

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ABSTRACT

The purpose of this work is to know the reader behind the writer Lygia Bojunga Nunes. Observing her not only as a sender of a text, but as its recipient; revealing, therefore, how she connects, as a reader, with the literary work.

This research is divided into three chapters. In the first chapter we try to connect the writer with the social, historical and political context where she had her origins, as well as the conditions which she developed her work in, from the early 1970s until the present moment. In the second chapter we analyze, in light of the influences of the literary tradition, her impressions of works, authors, characters; and the reaction that she had to certain readings.

In the last chapter we have the study of the resources which Lygia Bojunga makes use in the linguistic system to give her creation esthetic value, bringing a rich and expressive subjectivity out; revealing, therefore, the unmistakable Lygia Bojunga‘s way of writing.

To develop this work, we searched for theoretical basis in authors like: Nicolau Sevcenko (2001), Gilberto de Mello Kujawski (1991), Harold Bloom (1995), Pierre Bourdieu (1996), Dominique Maingueneau (2001) e Roland Barthes (1986). This theoretical basis was developed in a historical, formal and comparative based methodology. Therefore, the justification of the propositions in this research is given through examples

extracted from Lygia Bojunga Nunes‘ works, twenty-one published works altogether.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA... I AGRADECIMENTOS ...II SINOPSE ...III ABSTRACT ...IV SÍNTESIS ...V INTRODUÇÃO ...VI

1. O ESCRITOR E SEU CONTEXTO

1.1 A escritora em campo minado ...23

1.1.1 O escritor e seu espaço...33

2. LYGIA BOJUNGA E SUAS LEITURAS 2.1 A descoberta da leitura ...41

2.2 A biblioteca pessoal ...43

2.2.1. O fio que conduz à biblioteca ...50

2.3 A força dos antigos ...54

2.3.1 Vestígios de leitura ...56

3. A ESCRITA BOJUNGUIANA: A DESLEITURA 3.1. A descoberta da escrita...75

3.2. O processo de criação: ―eu podia tudo‖...79

3.3. Os intertextos... 83

3.4. O estilo Lygia Bojunga de escrever ...88

3.5. Representações do real...99

3.6 A fortuna crítica ...109

3.6.1 Dos vinte 1: Lygia Bojunga por ela mesma ...112

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 116

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5.2 Os prêmios ...121

5.3 Publicações em outros idiomas ...124

5.4 Estudos sobre Lygia Bojunga e sua obra...127

5.4.1 Dissertações de mestrado ...127

5.4.2 Teses de doutorado ...130

5.4.3 Livros publicados sobre Lygia Bojunga ...131

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6.1. Corpus ...132

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INTRODUÇÃO

O século XX foi um período marcado por grandes guerras e intenso desenvolvimento científico-tecnológico; paradoxalmente, a esse intenso estado de mudanças, constatou-se uma crise de consciência generalizada, ocasionada pelas feridas sociais expostas por duas guerras.

O progresso científico-tecnológico revelara, portanto, um nítido atraso social. Movidos pela insatisfação social, os escritores tomaram para si a função de agentes da consciência e do discurso desalienador. Uma vez assumida essa posição crítica, os intelectuais passaram a ser vistos como verdadeiras ameaças à manutenção do sistema em vigor. E no Brasil, da década de 1970, não foi diferente. Em plena vigência do regime militar, inúmeros intelectuais ousaram discordar da ideologia dominante e ficaram sob a constante ameaça de terem suas obras censuradas pelos órgãos fiscalizadores da ditadura.

O primeiro capítulo deste trabalho busca relacionar a escritora Lygia Bojunga Nunes a esse contexto social, histórico e político; expondo, da forma mais clara possível, as condições nas quais se deram o início e o processo de afirmação de sua obra. Trata-se de explorarmos todo esse contexto de tensão que a escritora encontrou quando decidiu, em 1972, publicar Os colegas, seu primeiro livro; entrando, definitivamente, para o campo literário.

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Já no segundo, buscaremos conhecer a leitora Lygia Bojunga e de que modo se deu a formação de sua biblioteca pessoal. Abordaremos temas, como: leitura, influência, tradição e cânone; analisaremos suas impressões sobre obras, autores, personagens, e as reações que determinadas leituras lhe causaram. Daí, buscarmos nos teóricos da Recepção, como: Hans Robert Jauss (1979) e Wolfgang Iser (1979), as informações necessárias para descobrir como se dá a relação da escritora, enquanto leitora, com a obra literária.

No último capítulo, nos propomos a responder os seguintes questionamentos: De que forma surge um novo estilo, uma nova linguagem, uma nova escritura? Que recursos linquísticos e discursivos a escritora utiliza em sua produção literária de forma que esta adquira o jeito todo peculiar e marcante do seu estilo? Nesse sentido, trataremos de temas, como: estilo, escritura e linguagem, onde os teóricos Harold Bloom (1991) e Roland Barthes (1986) nos darão o suporte necessário. Para o desenvolvimento deste trabalho, seguiremos uma metodologia de base histórica, já que consideramos imprescindível a inserção da escritora no seu contexto; formal, por trabalharmos com critérios como: estilo, composição e escritura; e comparatista, uma vez que promoveremos uma desleitura da obra bojunguiana, tendo em vista determinados escritores e obras que a precederam e que foram relevantes em seu processo de formação como escritora.

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1. O ESCRITOR E SEU CONTEXTO

―Tal é, pois, a verdadeira e pura literatura:

um Eterno que dá a entender que é apenas um momento de História, um momento histórico que, pelos aspectos ocultos que revela,

remete de súbito ao homem eterno‖

(SARTRE, 1993, p. 28).

Se pudéssemos numa palavra resumir nossa percepção da sociedade dos tempos modernos, nenhuma palavra a expressaria tão adequadamente, quanto: velocidade.

Não é à toa que a expressão ―correria do dia a dia‖ tornou-se um jargão mais que usual. Também, não é ou não foi arbitrário o uso da imagem de uma montanha-russa pelo historiador Nicolau Sevcenko, em A corrida para o século XXI (2001), para representar as experiências mais marcantes vividas pela sociedade ocidental dos tempos modernos, entendida na complexa trajetória do século XX.

A imagem de uma montanha-russa encarnaria, portanto, a velocidade com a qual as mudanças ocorrem, bem como, sua intensidade. Outro fator que não pode ser deixado de lado é a reação causada nas pessoas que partilham dessa experiência. A velocidade das mudanças está expressa nessa afirmação de Nicolau Sevcenko:

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potenciais reconfiguram completamente o universo de possibilidades e expectativas, tornando-se cada vez mais imprevisível, irresistível e incompreensível (SEVCENKO, 2001, p. 16-17).

É nesse universo do imprevisível e do incompreensível, que Nicolau Sevcenko ressalta a importância da crítica contra o que ele chama de ―Síndrome do Loop‖, ou seja, os efeitos tecnológicos tendem a submeter o homem a uma anuência passiva, cega e irrefletida.

Anuência, tal qual expressa num conto, intitulado ―Apólogo

brasileiro sem véu de alegoria‖, por Antônio Alcântara Machado (1901- 1935), no qual se narra o episódio inusitado de um trem que parte da cidade de Maguari rumo a Belém, e no decorrer da viagem, ocorre uma rebelião, motivada pela falta de luz nos vagões; ironicamente, o líder da rebelião é um cego. A primeira reação do leitor, diante do procedimento do cego, é de estranheza. E somos levados à inevitável pergunta: Por que um cego iria queixar-se do fato de não haver luz? Nesse conto, o caráter alegórico, diferentemente do que preconiza o título, propõe a discussão do grau de consciência social das pessoas; e, nesse sentido, leva o leitor à seguinte reflexão: o homem submetido a inúmeras e intensas transformações técnico-científicas tornou-se tão passivo diante dessas ocorrências, que na ausência das mesmas, ele permanece com a mesma postura de passividade. Esse compasso acelerado do desenvolvimento acabou criando uma ditadura, a ditadura do apelo visual. De acordo com Nicolau Sevcenko:

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que exibem, pelo modo e pelo tom com que falam, pelo seu jeito de se comportar (SEVCENKO, 2001, p.64).

Portanto, a visão será o sentido responsável por orientar e interpretar essa rapidez de fluxos e sinais. Essa supervalorização da visão será acentuada e intensificada pela difusão das técnicas publicitárias.

Sobre essa hipertrofia da visão, vale lembrar o documentário

―Janela da alma‖, do diretor Walter Carvalho (2002). Nele, o escritor português José Saramago (1922- ) fala justamente do processo de alienação, massificação e perda da individualidade, pelas quais o homem dos tempos modernos está passando.

O excesso de informações, imagens e sons produz nesse homem, de acordo com o documentário, a sensação de perda da sensibilidade e, consequentemente, da sua consciência pessoal.

Esse excesso pode ser visualizado também no romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago. Nele, o autor imagina uma onda de cegueira branca que se espalha por toda uma cidade. José Saramago, segundo Eduardo Calbucci, em Saramago: um roteiro para os romances (1999), cria uma onda de cegueira branca, sendo o branco, a condensação de todas as cores que formam o arco-íris, ou seja, o branco como concentração total da luz, criando o prenúncio de toda a parábola que o romance irá desenvolver.

Estes sinais permitem ao leitor perceber a metáfora dessa epidemia de cegueira, que é mostrar que, na realidade, nós estamos cegos. O excesso de imagens, cores, informações e sons, nos causa uma perda de foco e faz com que nos tornemos os cegos de Saramago:

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estranha cegueira branca aponta para a certeza de que as pessoas não

vivem na escuridão, mas sim num ―mar de leite‖; porque uma coisa é

não deixarem que você veja nada e outra é obrigarem que você olhe

tudo‖ (CALBUCCI, 1999, p. 89). A reflexão de Eduardo Calbucci dialoga com a expressão ―ditadura do apelo visual‖, utilizada por Nicolau Sevcenko. Uma ditadura que submete o homem a inúmeras perdas, como da sua individualidade e consciência pessoal; perdas impostas ao homem como preço a pagar pela modernidade.

Há, todavia, sutil diferença entre a visão e o olhar. Segundo Eduardo Calbucci, a diferença entre visão e olhar está no fato daquela ser dispersiva e desorientar o pensamento e esse ser seletivo, isto é, a visão capta todo o excesso de imagens a que o indivíduo está suscetível, já o olhar prende-se apenas ao que interessa.

Nicolau Sevcenko, ao relatar o caso dos artistas que deram início à Arte Moderna, irá ressaltar o domínio sutil da capacidade do olhar, ao citar Pablo Picasso (1881- 1973), o músico Erik Satie (1866- 1925), o poeta Apollinaire (1880- 1918) e o dramaturgo Alfred Jarry (1873- 1907). Esse grupo gostava de compartilhar as novidades do momento, como o cinema e os parques de diversões:

Diga-se de passagem que, em fins do século XIX, quando essas formas de entretenimento surgiram, eram destinadas especificamente às classes trabalhadoras, as pessoas mais abastadas as consideravam formas grosseiras, vulgares, coletivas e estúpidas de diversão, apropriadas apenas para crianças sem acesso à educação e para criaturas ignorantes em geral, sem condições de usufruir das belas-artes (SEVCENKO, 2001, p. 70).

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artistas poderiam encontrar de valoroso nos pastelões cinematográficos ou trenzinhos expressos?

De acordo com o historiador, ―o que encantava os artistas eram

truques de corte e montagens que o cinema permitia (...) e as

experiências extremas de deslocamento e aceleração‖ que um parque de diversões poderia oferecer (SEVCENKO, 2001, p.70).

Portanto, aquele grupo de artistas tinha uma visão além dos demais, um olhar apurado que o ajudou a levar essas experiências para suas obras de arte. Essas inovações tecnológicas integraram-se à vida desses artistas, marcando-os de forma indelével, pelo fato de suas obras tanto apreenderem quanto refletirem esses efeitos.

De acordo com imagens da memória do designer francês Raymond Loewy, nascido em 1893, e citadas por Nicolau Sevcenko:

Aos catorze anos, em Paris, onde nasci, eu já tinha visto o nascimento do telefone, do avião, do automóvel, das aplicações domésticas da eletricidade, do fonógrafo, do cinema, do rádio, dos elevadores, dos refrigerantes, do raio x, da radioatividade e, não menos importante, da anestesia (LOEWY. Apud SEVCENKO, 2001, p. 68).

Esse trecho das memórias de Loewy remete ao que Gilberto de Mello Kujawski, em A crise do século XX (1991), irá denominar ―choque

tecnológico‖, ocorrido pela irrupção quase que simultânea dessas

inovações e que foram colocadas ao alcance de um grande número de pessoas, inclusive do proletariado. Apesar do progresso científico e tecnológico pelo qual tem passado o homem moderno, Kujawski acredita que o século XX conheceu uma grande crise: ―A crise do século XX não é primariamente, crise dos fundamentos da ciência, ou da política, ou da economia, ou do que for, e sim crise dos fundamentos da

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O desenvolvimento científico-tecnológico estava em pleno progresso, mas a Primeira Grande Guerra acabou por expor à sociedade as feridas sociais que até então estavam encobertas pelo manto falacioso do ―progresso‖. E o orgulho pelo desenvolvimento

material foi substituído pela vergonha do atraso social, passando a sociedade a cobrar medidas mais enérgicas de assistência social.

É possível perceber que a crise da modernidade nasceu com o descrédito do progresso moral, uma vez que aquela trouxera à tona a situação de exploração e insatisfação pelas quais passavam inúmeros países, revelando, assim, uma tensão entre forças de interesses opostos.

Segundo Dominique Maingueneau, em O contexto da obra literária (2001), o responsável por dar representação a essas ―contradições do

mundo histórico real‖ será, justamente, o escritor através de sua obra. Este utiliza a Literatura como meio de fazer chegar à sociedade a consciência das disputas sociais e políticas que, historicamente, vêm sendo travadas. O escritor e sua obra assumem a difícil posição de porta-vozes de uma consciência crítica. Seria a ―consciência infeliz‖, expressão usada por Jean-Paul Sartre, em Que é a Literatura? (1993), para definir o papel do escritor diante da sociedade, uma vez que ―o

escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima a assumi-la ou, então, a transformar-se. E de qualquer modo ela muda, perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo...‖ (SARTRE, 1993, p. 65). Trata-se, exatamente, da insatisfação da sociedade com o tão sonhado progresso que só mostrou-se efetivo em questões materiais, mas revelou-se atrasado e insatisfatório em termos sociais.

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mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a

degradação da maioria‖; e acrescenta: ―todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada

ao máximo de civilização‖ (CANDIDO, 1995, p. 170). Nesta afirmação, Antonio Candido reafirma a ideia de que o progresso científico-tecnológico não foi acompanhado pelo progresso moral da humanidade. Vale ressaltar que o conceito de modernidade definido por Gilberto de Mello Kujawski está estritamente ligado à noção de enriquecimento,

não no sentido econômico do termo, ―mas primária e essencialmente,

como enriquecimento vital; ou seja, está no leque de possibilidades que se abre ao homem moderno, fazendo com que este dependa de suas próprias decisões:

A modernidade – o enriquecimento – coloca em questão todo o repertório das crenças tradicionais, já não se oferecendo como instância segura para o pensamento, os sentimentos e a

conduta do homem‖. A pletora de possibilidades, de distintos modos de ser ao seu alcance, obriga-o a decidir por si que idéias, que sentimentos e ações deve adotar. O enriquecimento desperta em cada homem sua individualidade adormecida. Modernidade implica individualidade (KUJAWSKI, 1991, p. 20).

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Segundo Maria Helena Capelato, surgiram inúmeras críticas ao sistema liberal, visto como incapaz de solucionar os problemas sociais, por sua política parlamentar de cunho individualista:

Nesses últimos anos (Década de 30) manifestou-se na Europa, e em outras partes do mundo, uma crise do liberalismo. (...) Apesar de apresentar características próprias, o Estado Novo brasileiro teve inegável inspiração européia. Um traço comum foi a crítica à liberal democracia e a proposta de organização de um estado forte e autoritário encarregado de gerar as mudanças necessárias para promover o progresso dentro da ordem (CAPELATO. Apud FERREIRA, 2003, p. 109-110).

Vemo-nos mais uma vez às voltas com o termo progresso, porém, esse aparece aqui citado através de um novo conceito, não mais ligado a uma modernidade individualista, mas em busca de uma modernidade com preocupações sociais. Uma vez que a Primeira Guerra revelou que o progresso econômico camuflava um atraso moral; e a Revolução Russa ameaçou as estruturas do liberalismo econômico e forçou o mundo a olhar pelo bem estar social, caso o liberalismo não quisesse perder seu status quo.

Nesse clima, instaurou-se no Brasil dos anos de 1930, o Estado Novo que como afirma Capelato: ―... definiu-se pelo autoritarismo graças ao intenso controle político, social e cultural e pelo cerceamento das liberdades em muitos planos, houve repressão e violência extrema nos

atos de tortura‖ (CAPELATO. Apud FERREIRA, 2003, p.113).

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da história, eles frequentemente se atribuíram a função de agentes da consciência e do discurso‖ (VELOSO. Apud FERREIRA, 2003, p. 147). Daí a importância de relacionar o escritor ao contexto do qual emergiu, bem como as condições nas quais desenvolveu sua obra. Trata-se, pois, de atentarmos mais uma vez para o papel dos intelectuais em relação à sociedade, que seria o de gerar uma consciência crítico-reflexiva da realidade para os indivíduos. Ao tomar para si tal missão, os escritores não se restringem apenas ao âmbito estético da Literatura, mas expandem-se para o minado campo da Política. Levados pelas preocupações sociais, esses escritores encontrarão fortes obstáculos por parte das elites conservadoras e receosas de verem ameaçadas suas posições neste campo.

Esse cenário de repressão e violência mostra-nos o papel e atuação dos intelectuais, já que, como afirmara Antonio Candido, a

―Literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas‖. Antonio Candido nos fala de uma literatura sancionada e de uma

proscrita, ou seja, ―a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominantes‖

(CANDIDO, 1995, p. 175). Ou seja, o escritor–intelectual durante o Estado Novo foi chamado a fazer uma literatura sancionada, a qual deveria fazer irradiar a ideologia governista. A literatura proscrita coube àqueles que ousaram discordar do regime e, por isso, sofreram severa repressão.

No âmbito desta discussão, segundo Nadine Habert, em A década de 70:

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Seria considerado preso político qualquer pessoa que pusesse em risco ou ameaçasse a manutenção do regime militar. Daí, o fato de durante a vigência da ditadura no Brasil, terem ocorrido prisão e/ ou exílio de inúmeros intelectuais da época. Também a censura foi um dos meios utilizados para conter qualquer tentativa de romper com a ordem estabelecida.

Com o clima de ameaça instaurado pela ditadura militar, o campo intelectual e artístico brasileiro, que segundo Nadine Habert, contava

com ―compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque,

Geraldo Vandré; autores e diretores de teatro como José Celso e Augusto Boal; cineastas como Gláuber Rocha; professores e cientistas como Florestan Fernandes, entre outros‖ (HABERT, 1992, p. 30), ficou sob a mira da segurança nacional; ou seja, os intelectuais passaram a pisar em campo minado, ficando sob a constante ameaça de terem suas obras artísticas mutiladas total ou parcialmente pela censura.

Na Literatura, em particular no campo da poesia, grupos de poetas editavam seus próprios trabalhos em pequenas tiragens que eram vendidas de mão em mão devido ao conteúdo político que continham. Segundo Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, essa poética exprimia-se na lírica dita ―marginal, abertamente anárquica,

satírica, paródica, de cadências coloquiais, e só aparentemente,

antiliterárias‖ (BOSI, 2002, p. 487).

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também já haviam incorporado aos seus discursos poéticos o tom de protesto.

O cenário literário nacional que se configurava em meados da década de 1970, época em que Lygia Bojunga inicia sua carreira como escritora, exibe-nos uma gama de escritores que, em vista do repressivo controle cultural imposto pelo Estado, tentavam como podiam, publicar suas obras cujos temas políticos e sociais demonstravam engajamento e resistência à ditadura, como: Pega ele, silêncio (1968) e Zero (1979), de Ignácio de Loyola Brandão (1936- ). Este último romance ilustra traços significativos da prosa de ficção produzida durante o regime militar:

O homenzinho girava com fúria a manivela do magneto, fala, fala, fala, conta, comunista filhodaputa, conta dos aparelhos, me dá os endereços, e os endereços dos padres, aqueles padres de merda, bichas (...). Fale, conta merdinhadebosta, e eu, frgsthfhtrygrufjutih jur itid narerad mertrdstr frsgrtuiok jlo (BRANDÃO, 1979, p. 268).

O livro expõe de forma bastante clara o tratamento dado aos ditos

―subversivos‖, ao mesmo tempo em que aborda a repressão da

linguagem imposta pela censura. Essa obra foi apreendida, e só pôde ser publicada no Brasil em 1979. Data de 1976, a famosa obra de denúncia e protesto O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1941- ).

Outro autor, que também representa as contradições vividas nesse período da História brasileira, é Rubem Fonseca (1925- ). Em

1975, ele publica sua coletânea de contos ―Feliz Ano Novo‖, obra imediatamente censurada pelos órgãos de fiscalização do Estado por

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condições de vida em que estava mergulhada a maior parte do povo brasileiro.

A escrita feminina também se fez presente e atuante no cenário nacional: Clarice Lispector (1920- 1977), Nélida Piñón (1937- ), Ana Maria Machado (1942- ), Rachel de Queiroz (1910- 2003), Marina Colasanti (1937- ), Zélia Gattai (1916- 2008), entre outras, produziram em meio às conturbações inerentes ao período.

Portanto, nesse contexto de repressão política, silêncio forçado e censura, a ditadura impôs um clima pesado à população brasileira; denominados por muitos, como ―anos de chumbo‖, dada a força militar usada contra os que tentaram opor-se à vigência do regime. Nessas condições histórico-sociais deu-se o início e o processo de afirmação da obra da escritora Lygia Bojunga Nunes, que produzirá uma obra consciente da tensão vivida no período.

1.1 A escritora em campo minado

―Os generais não leem livros destinados às crianças‖

Lygia Bojunga

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O título deste subcapítulo A escritora em campo minado sugere a relação da escritora com o contexto histórico do qual emergiu, bem como as condições nas quais desenvolveu sua obra. Vale ressaltar, que essa noção de ―contexto‖, segundo Dominique Maingueneau, em O Contexto da obra literária (2001), não é somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas em primeiro lugar, o campo literário, que obedece a regras específicas (...). É nesse campo que se travam realmente as relações entre o escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade‖ (MAINGUENEAU, 2001, p. 27-30).

Já de acordo com Pierre Bourdieu, em As regras da Arte, no campo literário encontram-se traços característicos do funcionamento dos campos político e econômico, e de maneira mais geral, de todos os campos relações de força, capital, estratégias, interesses‖ (BOURDIEU, 1996, p.233).

Trata-se de uma abordagem muito mais ampla e eficaz, que tenta superar a tradicional oposição entre forma, presa a elementos internos; e contexto que remete a elementos externos à obra, ou melhor, entre defensores de formatos textuais consagrados e aqueles engajados por um discurso de denúncia e crítica. Pierre Bourdieu nos esclarece a noção dialética de campo:

O processo pelo qual as obras são levadas é produto da luta entre aqueles que, em razão da posição dominante (temporariamente) que ocupam no campo (em virtude de seu capital específico), tendem à conservação, ou seja, à defesa da rotina da rotinização, do banal e da banalização, em uma palavra, da ordem simbólica estabelecida, e aqueles que estão inclinados à ruptura herética, à critica das formas estabelecidas, à subversão dos modelos em vigor (BOURDIEU, 1996, p.234).

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consciência de si mesma, o escritor será visto como nocivo; uma vez que vive confrontando-se com os que estão na posição de dominantes, representados pela arte acomodada. O campo literário, portanto, existe pela tensão constante entre dois polos antagônicos: os que dominam o campo econômico e político, representados pela arte comportada; e os que se apresentam na categoria de autônomos, representantes da arte que discute seu tempo. A arte burguesa estaria voltada às sujeições do grande público e do mercado, já os adeptos da autonomia da arte não teriam seu interesse no lucro, mas sim no comprometimento com a sociedade e com a qualidade cultural do objeto artístico.

Segundo Pierre Bourdieu, o campo literário vive dessa tensão,

desse ―confronto ambivalente entre o mundo burguês e as

reivindicações daqueles que eram chamados os artistas e que viviam simbolicamente às margens da sociedade; uma vez que a mesma não os excluía nem incluía (BOURDIEU, 1996, p.33).

Portanto, o ―marginal‖ indica a posição que este ocupa no campo, através do modo como gere sua inserção nesse campo. Ele participa do campo, está inserido nele, mas torna problemática sua inserção, sua posição nele. Ele ocupa um lugar nesse campo, lugar conquistado por ele, pela força da sua marginalidade, não se trata de um lugar que lhe fora designado. Aí residem as ambíguas situações paratópicas do escritor.

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É dentro dessa noção de campo, discutida por Pierre Bourdieu e utilizada por Dominique Maingueneau que pretendemos inserir a escritora Lygia Bojunga, a fim de descobrirmos sua posição no campo literário brasileiro no século XX, para conhecermos as condições nas quais cresceu, tornou-se editora, e foi legitimada e reconhecida como escritora.

Nascida em 1932, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, aos oito anos de idade muda-se com a família para o Rio de Janeiro. Aos dezenove anos, descobre sua paixão pelo teatro, ao ser escolhida para encenar a peça inicial do Teatro Duse, criado por Paschoal Carlos Magno. Lygia Bojunga Nunes é contratada para compor a companhia profissional Os Artistas Unidos. Lá, entra em contato com divas do teatro brasileiro como: Fernanda Montenegro, Henriette Morineau e Laura Suarez. Sua experiência no teatro deu-lhe a oportunidade de viajar e conhecer várias cidades pelo interior do país, e de ver de perto a situação em que vivia o povo brasileiro. Aos vinte e um anos, por ocasião de seu casamento, abandona o teatro e passa a trabalhar para o rádio e a televisão. Vivendo sob o olhar implacável da censura, Lygia Bojunga dá início à sua produção literária em 1972.

O contexto brasileiro, durante a década de 1970, apresenta traços próprios: a economia brasileira, aparentemente, cresceu; daí a

expressão ―milagre‖ muito propagada pelo governo Médici. Mas, de acordo com Nadine Habert, em A década de 70, essa milagrosa expansão da economia brasileira fazia-se à custa do empobrecimento da população: ―Em pleno ―milagre econômico‖, 52,2% dos assalariados

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A repressão política também atingia o Congresso: ―desfigurado pelo bipartidarismo forçado, e pelas sucessivas cassações de parlamentares oposicionistas, tornou-se órgão meramente homologador das decisões do Executivo‖. A censura atingia os meios de comunicação: ―o combate à subversão passou a justificar a total liberdade de ação desta máquina repressiva, espalhando o terror sobre

a sociedade‖ (HABERT, 1992, p.26-27).

Portanto, aos que ousavam opor-se ao regime, aconteciam ameaças, prisões, torturas e até mortes. Muitos foram os intelectuais que buscaram o exílio voluntário em outros países. Aos que ficaram, restava a tentativa de burlar a censura:

No que diz respeito à produção cultural, várias foram as formas de resistência que autores críticos usaram para se contrapor à política e ideologia do regime e para fazer chegar ao público suas mensagens, driblando a tesoura e o camburão num jogo de gato-e-rato. Entrelinhas, duplos sentidos, trocadilhos, mensagens cifradas: para bom entendedor meia palavra tinha de bastar (HABERT, 1992, p. 38).

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instaurada no país. Sob esse ponto de vista, a escritora e sua obra ocupam no campo literário uma posição questionadora e de crítica da ordem estabelecida. Essa posição permanecerá inabalável e será sempre reforçada em suas publicações posteriores até os dias atuais. Em Os colegas (1998) 1, teríamos uma espécie de alegoria do contexto histórico, político e social da época, como também podemos lê-lo como uma metanarrativa que expõe a situação do escritor dentro do campo literário. Segundo o artigo publicado na revista da Universidade Federal de Goiás, por Larissa Cruvinel e intitulado ―A literatura infantil e

o romance de formação‖, as ―personagens isoladas e socialmente marginalizadas se unem para enfrentar as dificuldades de cada um e do meio (...). Os colegas estão unidos por sua situação de deslocados no

meio social‖ (CRUVINEL, 2003, p. 04). Tal qual é a posição paratópica do escritor e de todos aqueles que escapam às linhas conservadoras da ordem estabelecida, pois, tiram sua força de sua dita marginalidade.

A partir dessa obra, Lygia Bojunga fundamenta sua oposição aos dominantes, que naquela época, especificamente, compunha-se da união entre militares e a classe burguesa. É o que nos esclarece Nadine Harbert, em A década de 70:

Os militares, associados aos interesses da grande burguesia nacional e internacional, incentivados e respaldados pelo governo norte-americano, justificaram o golpe como ―defesa da

ordem e das instituições contra o perigo comunista (...). O golpe foi uma reação das classes dominantes ao crescimento dos movimentos sociais mesmo tendo estes, caráter predominantemente nacional-reformista (HABERT, 1992, p.08).

Assim, ao publicar Os colegas (1998), uma crítica ao regime em vigor e uma exaltação à vida às margens das fronteiras sociais, Lygia

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Bojunga legitima sua posição como artista no lado oposto aos dominantes.

Nesse mesmo ano, a escritora recebe o prêmio INL (Instituto Nacional do Livro) pela obra Os Colegas; no ano seguinte, a obra é contemplada com o Prêmio Jabuti; e, em 1974, entra para a lista de Honra - IBBY (International Board on Books for Young People).

Inicia-se a partir daí o reconhecimento nacional e internacional de Lygia Bojunga como escritora. Ao longo de sua carreira, serão mais de trinta prêmios. Em 1982, a escritora é laureada, com o Prêmio Hans Christian Andersen, pelo conjunto da obra. Nessa época, já se somavam a Os colegas: Angélica (2001a), A bolsa Amarela (2001b), Corda bamba (2001d) e O sofá estampado (1999).

Trata-se, pois, de um reconhecimento institucionalizado, já que provém de academias e críticos de arte. Mas, a legitimação de Lygia Bojunga não se deu apenas entre seus pares, deu-se sobretudo pelo reconhecimento do público, uma vez que suas obras já foram traduzidas para mais de dezenove idiomas. Sua consagração veio no ano de 2004 quando recebeu o maior prêmio internacional jamais instituído em prol da Literatura para crianças e jovens, criado pelo governo da Suécia, o Astrid Lindgren Memorial Award – ALMA2.

A motivação do júri para escolher Lygia Bojunga fundamenta-se em características presentes desde a publicação de sua primeira obra Os colegas: ―De uma forma profundamente original, ela mescla ludismo, beleza poética e humor irreal com crítica à sociedade, um amor à

liberdade e uma forte empatia pela criança vulnerável‖ 3

2Por ocasião deste prêmio, a escritora recebeu cinco milhões de coroas (aproximadamente, USD

675.000 ou 530.000 euros).

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A escritora, dessa forma, alcança tanto o reconhecimento interno, o que Pierre Bourdieu denominaria de O princípio de hierarquização interna‘, em As regras da Arte (1999), isto é, um grau de consagração específica, conhecido e reconhecido por seus pares, mas além do êxito interno, obteve também o êxito temporal, seria o Princípio de hierarquização externa medido por índices de sucesso comercial ou de notoriedade social, o que, segundo Pierre Bourdieu, seriam campos opostos e excludentes.

O sucesso temporal, transnacional, de Lygia Bojunga é exposto pelas inúmeras traduções de suas obras, algumas foram adaptadas para o teatro, como Fazendo Ana Paz (2002b), encenada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro; Corda bamba (2001d) encenada na Alemanha e Holanda e filmada pela TV sueca. Essa obra também foi integrada no Concurso Vestibular da UFAC (Universidade Federal do Acre, em 2006); e A casa da madrinha (2001c) representada na França. Questionada sobre a utilização de suas obras literárias em Concursos, Lygia Bojunga desabafa: ―Se minha escrita é objeto de

provas, aí eu não gosto: eu identifico provas com ansiedade e chateação (pra mim, dia de prova foi sempre dia-que-não-acabava-nunca) e eu fico aflita só de pensar que o meu texto pode estar acarretando pra ALGUÉM a ansiedade e a chateação que me faziam tão

infeliz no meu tempo de estudante‖ (BOJUNGA. Apud SANDRONI, 1987, p. 173).

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O livro tem me dado tanto desde que - aos 7 anos – Monteiro Lobato fez de mim uma leitora apaixonada! E, pela vida afora, em noite de insônia, em dia de dor, em hora de paz e prazer de viver, era só eu olhar pro lado e ... lá estava Ele. Mas, feito coisa que tanto companheirismo não bastava, o livro vai e resolve comparecer todo fim de mês para pagar minhas contas. É ou não é para eu me sentir devedora? Pra querer dar o troco? 4

E o troco foi dado. Com o dinheiro do Prêmio ALMA, a escritora criou a Fundação Cultural Casa Lygia Bojunga, destinada a desenvolver projetos ligados à leitura. E fundou também a Editora Casa Lygia Bojunga. A fundação não vive de doações nem de patrocínios, é fruto exclusivo do prêmio e dos lucros da editora.

Ao fundar uma editora, Lygia Bojunga passa a ocupar uma posição dominante no campo literário; o que, teoricamente, se contrapõe à sua posição como escritora, já que envolve interesses opostos. Uma vez que o campo editorial está voltado aos interesses do mercado, onde o êxito econômico é alcançado publicando-se obras feitas para o grande público, visando ao sucesso comercial. A escritora nos revela como tenta conciliar essas duas posições tão contraditórias:

A princípio tentei conciliar as tarefas de editora. Mas logo compreendi que, pra tocar pra frente o projeto da Casa, eu tinha que empurrar a escritora para segundo plano e fazer ela se contentar com as sobras do tempo e da dedicação consumidos pela editora (BOJUNGA, 2006c, p.253).

O depoimento acima, retirado de uma de suas cartas ao leitor, nos esclarece o quanto as posições que Lygia Bojunga passou a assumir no campo literário são contraditórias e excludentes.

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Podemos tomar como exemplo sua decisão de publicar todas as suas obras com o mesmo formato, utilizando o mesmo papel e o mesmo design gráfico. Ao abrir mão dos recursos visuais que atraem e chamam a atenção das crianças, a Lygia Bojunga-editora foi criticada por tomar uma atitude anticomercial. Nesse momento, a Lygia Bojunga-escritora defende-se, afirmando que essa decisão foi tomada pelo fato dela não saber, especificamente, a que público sua obra destina-se:

... poucas vezes eu sei se o que escrevo é mais pra criança, é mais pra adolescente, ou mais pra adulto. (...) em outras palavras: procurei dirigir aqueles dois livros5 para o chamado mundo infantil. Mas, a partir do meu terceiro livro, meu processo criativo foi se modificando e não tardou a se transformar de tal maneira, que nunca mais consegui distinguir na minha escrita

uma intenção genuína de ―querer alcançar‖ esse ou aquele

público, essa ou aquela faixa etária. (BOJUNGA, 2007, p.15).

Nessa afirmação, podemos percebê-la dividida entre as funções de editora e a de escritora. Mas, para a manutenção da qualidade literária de suas obras, seu lado escritora predomina na maioria de suas decisões. A prova está na crítica comum que se faz ouvir sobre sua editora, de que esta utilizaria critérios ‗na contramão‘, para produzir e distribuir seus livros.

Tomemos a expressão na contramão como anticomercial. Apesar de ser uma editora administrada por uma escritora, a Casa Lygia Bojunga firmou-se no mercado editorial e completou quatro anos em 2008.

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1.1.1 O escritor e seu espaço

As mudanças de posição dentro do campo literário definem a trajetória social do escritor, compreendida no valor social dos acontecimentos biográficos, como bem enumera Pierre Bourdieu: ―As

sanções positivas ou negativas, sucessos ou fracassos, encorajamentos

ou advertências, consagração ou exclusão‖, ou seja, a verdade objetiva da posição que o escritor ocupa (BOURDIEU, 1996, p.293).

Vale ressaltar, dentro da trajetória biográfica de Lygia Bojunga, a importância dos deslocamentos que a escritora realizou e ainda realiza, para sua afirmação como escritora e para composição dos cenários de suas obras.

Podemos constatar três importantes deslocamentos decisivos em sua vida, dentre outros igualmente significativos: o primeiro, foi o deslocamento feito com a família do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, a fim de fixar moradia. A residência num polo cultural como a cidade do Rio de Janeiro irá influenciar definitivamente a vida da menina Lygia, devido ao acesso fácil a inúmeros eventos culturais de que a cidade dispõe.

O segundo deslocamento também relevante tratou-se das viagens feitas pela escritora pelo interior do país, com o projeto As mambembadas, excursões que proporcionaram à escritora conhecer de perto as condições de vida do povo brasileiro.

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ausência da cultura pátria se fizeram sentir: Foi lá que eu compreendi por inteiro que o escritor é cidadão da sua língua; comecei então a alternar o meu tempo de Rio; mas não ouvir a minha língua foi ficando uma penalidade cada vez maior‖.6

O amor à língua é perceptível nos discursos e recursos linguísticos utilizados pela escritora em suas obras. A curta distância entre a linguagem oral e escrita promove uma qualidade estética singular às obras da escritora, determinando um estilo inconfundível.

Os espaços oriundos dos deslocamentos efetuados pela escritora vão servir de cenário para efetivamente todas as suas obras ficcionais. A cidade do Rio de Janeiro aparece em: Os colegas (1998), A casa da Madrinha (2001c), Corda Bamba (2001d), O sofá estampado (1999), Tchau (2006a), Nós três (2002a), Fazendo Ana Paz (2002b), Paisagem (2002c), Seis Vezes Lucas (1997), O abraço (2004), A cama (1999), Retratos de Carolina (2005b) e Aula de Inglês (2006b). Sua terra natal está em Fazendo Ana Paz (2002b); e Londres aparece, pela primeira vez em Retratos de Carolina (2005b), e logo em seguida, em Aula de Inglês (2006b). Somam-se a esses três espaços fundamentais, as inúmeras experiências de deslocamentos para recebimento de prêmios e honrarias, como a viagem a Estocolmo, Suécia, em 2004, em virtude do prêmio ALMA; ou em Oslo, na Noruega, onde a escritora encontrou a imagem que ilustraria a capa de sua obra Tchau (2006a):

Uma vez na terra de Munch, não escondi o interesse que eu sentia pelo pintor (...). Procurei A solitária.(...). Ali estava a imagem criada pela mão de um pintor, me revelando, em outra linguagem, o mesmo que a minha mão de escritora tinha procurado pintar nos meus contos (...). Fui invadida pela lembrança forte da Rebeca, da Mãe, da Escritora e do Barco (BOJUNGA, 2006a, p.11).

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―Eu percorro cada página no meu ritmo de leitora. Allegro. Andante.

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2. LYGIA BOJUNGA E SUAS LEITURAS

"Eu leitora, crio com minha imaginação todo o universo que vem cifrado nesses sinaizinhos chamados letras".

(BOJUNGA, 2001e, p.21)

Através da epígrafe acima, é possível perceber que Lygia Bojunga vê o papel do leitor, não como mero receptor da mensagem de um texto, mas como sujeito ativo e essencial na efetivação de uma obra literária.

Essa linha de pensamento que confere ao leitor um papel decisivo na fruição de uma obra literária está ligada aos teóricos da Estética da Recepção, que teve em Hans Robert Jauss, um de seus principais idealizadores.

Regina Zilberman, em Estética da Recepção e História da Literatura, conceitua: ―a estética da recepção apresenta-se como uma teoria em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura imutável, ele passa para o leitor, o ―terceiro estado‖, conforme Jauss o

designa, seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já que é condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social (ZILBERMAN, 1989, p. 10-11). Ou seja, essa mudança de foco não exclui a figura do autor, mas dá ao leitor o reconhecimento do seu papel dentro de uma abordagem literária.

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mais atuais, as funções estéticas: Poíesis, aisthesis e katharsis; partindo de uma abordagem diacrônica da História da Arte, Jauss revela a dura tarefa da hermenêutica literária:

Diferençar metodicamente os dois modos de recepção. Ou seja, de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos (JAUSS. Apud LIMA, 1979, p. 46).

De acordo com o exposto acima, podemos depreender que o efeito estaria dessa forma ligado à função poiesis, ou seja, à experiência

da atividade produtiva: ―Designamos por poiesis, compreendida no sentido aristotélico da faculdade poética, o prazer ante a obra que nós mesmos realizamos. A aisthesis e a katharsis estariam condicionadas, respectivamente, à atividade receptiva e comunicativa. A aisthesis

corresponderia, assim a ―recepção prazerosa do objeto estético‖ (Chlovski) ou ―uma contemplação desinteressada da plenitude do

objeto‖. Já a katharsis seria aquele ―prazer dos afetos, capaz de

conduzir o ouvinte ou expectador à transformação‖ (JAUSS. Apud LIMA, 1979, p. 79).

Para tanto, Jauss buscou na história do efeito", de George Gadamer (1961), os subsídios e pressupostos metodológicos necessários e fundamentais para a efetivação da sua teoria da recepção, conforme confessa: ―Meus ensaios de um novo método histórico da literatura e da arte, que partiram da primazia hermenêutica da recepção, foram antecipados pelo estruturalismo de Praga, que desenvolvera o formalismo russo (JAUSS. Apud LIMA, 1979, p. 48).

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diferentes momentos da História. Porém, será com seu colega, Wolfgang Iser, que a interação texto-leitor terá o máximo de evidência. Segundo Regina Zilberman, em Estética da Recepção e História da Literatura (1989), o leitor será convertido em peça essencial da obra. Descrevendo a obra literária como uma estrutura de comunicação que a partir de processos de transformação conduzirá o leitor a uma constituição de sentido, Wolfgang Iser, em ―A interação do texto com o leitor‖ (1979), discorrerá sobre o processo da leitura de um texto e seu efeito sobre o leitor. Essa relação dual, texto-leitor, será descrita como interação. Na tentativa de demonstrar como se constitui essa interação, Iser lançará mão do conceito de ―perspectivação da realidade‖, isto é, o leitor adquire, ainda que momentaneamente, a perspectiva das personagens e explora experiências desconhecidas.

Jauss propõe uma inversão metodológica na abordagem dos fatos artísticos: sugere que o foco deve recair sobre o leitor ou a recepção, e não exclusivamente sobre o autor e a produção. Seu conceito de leitor baseia-se em duas categorias: ―a de horizonte de expectativa, misto dos códigos vigentes e da soma de experiências sociais acumuladas; e a de emancipação, entendida como a finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade‖ (JAUSS. Apud LIMA, 1979, p.49).

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Lygia Bojunga, ao identificar-se como leitora e assumir sua função de criadora, revelar-se como co-autora do texto, efetivamente.

Sua epígrafe expõe que seus conceitos literários inserem-se sob os auspícios dos preceitos defendidos pelos teóricos da recepção. Vale observar que a Estética da Recepção tem como marco inaugural a Conferência proferida por Hans Robert Jauss na Universidade de Constança, na Alemanha, no ano de 1967; e Lygia Bojunga inicia sua produção literária no início da década de 1970. É provável, pois, que esse movimento tenha influenciado o modo de criação da escritora, já que a presença da interação com o leitor está tão marcadamente presente em sua obra. Essa posição de co-autor da obra põe o leitor diante de uma das três funções estéticas expostas por Jauss. A concretização de cada uma destas funções: poíesis, aisthesis e katharsis dependerá diretamente das reações do leitor.

Nas palavras de Regina Zilberman, em Estética da Recepção e História da Literatura:

O primeiro plano é o da poíesis e corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra (...). Atribuindo a ela (aisthesis) a finalidade de renovar a percepção, já que ―sempre foi uma das funções da arte descobrir novos modos de experiência na realidade mutável ou propor alternativas a ela (...). Katharsis

como a concretização de um processo de identificação que leva o espectador a assumir novas normas de comportamento social, numa retomada de ideias expostas anteriormente (ZILBERMAN, 1989, p.59-57).

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2.1 A descoberta da leitura

Conhecer o leitor que há em cada escritor seria, em linhas gerais, o objetivo de quem opta por investigar as bibliotecas pessoais. Para que tal abordagem seja possível faz-se necessário voltarmos nossa atenção ao conceito de influência, ou para os conflitos entre a leitura dos mestres e os jovens candidatos a escritores.

Segundo Sandra Nitrini, em Literatura Comparada, uma das acepções de Influência seria o resultado artístico autônomo de uma relação de contato (...), cujo resultado é uma modificação da forma mentis e da visão artística e ideológica do receptor‖ (NITRINI, 1997, p.127). Baseando-nos neste conceito, é que partiremos para averiguar que obras e que escritores foram relevantes no processo de formação de Lygia Bojunga como leitora. Assim, será possível, posteriormente, analisarmos a influência exercida por um desses autores ou obras, contribuindo, assim, para seu surgimento como escritora.

Portanto, tem-se a oportunidade de observar Lygia Bojunga, não como emissora de um texto, mas como destinatária deste; suas impressões sobre obras, autores, personagens; e o efeito que a leitura de um determinado texto é capaz de provocar. Pretende-se, pois, revelar como se dá a relação da escritora, enquanto leitora, com a obra literária.

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―Tirei o livro do armário, tirei a poeira do livro, tirei a coragem não sei de onde, e comecei a ler (BOJUNGA, 2001e, p.12). Era Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Obra que, segundo a própria leitora, fez acordar a sua imaginação e tornou-se o seu primeiro grande caso de amor. O primeiro, de um total de seis. A importância dessa obra na formação leitora de Lygia Bojunga é de caráter indiscutível. Seu efeito fora devastador, pois a lançara ao mundo da imaginação, mundo ainda não experimentado por ela, enquanto leitora de gibis: ―Esse livro sacudiu a minha imaginação. E ela tinha acordado. Agora... ela queria imaginar (BOJUNGA, 2001e, p.13).

Monteiro Lobato, segundo Lygia Bojunga, em Livro: um encontro (2001e), se tornara leitura obrigatória durante toda a sua infância, e sua identificação com a personagem Emília fora imediata:

... e aquela gente toda do sítio do Pica-pau Amarelo começou a virar a minha gente. Muito especialmente uma boneca de pano chamada Emília, que fazia e dizia tudo que vinha na cabeça dela. A Emília me deslumbrava! nossa, como é que ela teve coragem

de dizer isso? ah, eu vou fazer isso também! (BOJUNGA, 2001e, p.13).

A menina Lygia Bojunga habitou, por boa parte de sua infância, o lúdico mundo lobatiano. A utilização do pronome possessivo minha, na citação acima, deixa claro esse sentimento de posse; Lygia pertencia àquele mundo encantado.

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Clássico da Literatura Infantil Brasileira, Monteiro Lobato lançou sementes inovadoras, quando, em 1921, publicou A menina do Narizinho Arrebitado. De acordo com Laura Sandroni, em De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas (1987), o autor irá estilhaçar as linhas que defendiam uma missão pedagógica para a Literatura Infantil.

Segundo Regina Zilberman, em A Literatura Infantil na Escola (2003), Lobato recusa a posição passiva da criança, fazendo com que esta adquira uma consciência crítica.

Ricardo Piglia, em O último leitor, ratifica esse discurso: A literatura faz isso: dá ao leitor um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica‖ (PIGLIA, 2006, p.25). Eis, portanto, a nossa certeza de que o mundo fictício não é construído apenas por quem o escreve, mas, primordialmente, por quem o lê.

2.2 A biblioteca pessoal

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A leitura, portanto, dos clássicos literários não implica, necessariamente, em influência dos autores antigos sobre o jovem leitor. Tratar-se-ia apenas de uma vitalização das tradições. Como assegura Sandra Nitrini, explicando as diferenças entre tradição e influência:

―Mallarmé e Rimbaud foram um alimento essencial para o jovem André Breton. Mas se um romance recente nos lembra Homero, estamos às voltas com um conjunto comum de premissas e tradições culturais, mais do que um tête à tête de uma influência‖ (NITRINI, 1997, p.138).

Conclui-se da citação acima que o leitor não é influenciado por tudo que lê; e dentro das inúmeras obras que compõem sua biblioteca pessoal, apenas algumas, efetivamente, exercerão e modificarão a sua forma mentis.

A leitora Lygia Bojunga, após a experiência com as obras lobatianas, e estando sua imaginação acordada, definitivamente, passou a preencher sua biblioteca pessoal com seguidas leituras: Eu não parei mais de ler. Gostava. Não gostava. Gostava mais. Gostava menos. Namorava um livro daqui. Flertava com outro de lá‖ (BOJUNGA, 2001e, p.14). A leitora relata, nesta citação, seu grau de envolvimento com as obras lidas; estabelecendo uma espécie de escala crescente de acordo com o seu grau de identificação com a obra. Para isso, utiliza termos, como: ―flertar‖, ―namorar‖, ―casar‖ e, o nível mais intenso de envolvimento com um autor e/ou obra, seria ter um caso de amor. Seu primeiro caso de amor, já nos foi revelado: trata-se da obra Reinações de Narizinho (1921), de Monteiro Lobato (1842-1948).

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obras citadas uma de Dostoiévski, em especial, causou um efeito arrebatador na leitora, ou melhor, não foi a obra em si, mas uma personagem por quem a leitora se apaixonou. Temos na experiência de Lygia Bojunga, um exemplo vivo do que tanto defendiam os teóricos da Estética da Recepção: Crime e Castigo. Esse livro foi para mim o exemplo perfeito do quanto nós, leitores, podemos nos envolver emocionalmente com um personagem literário‖ (BOJUNGA, 2001e, p.15).

Quando Harold Bloom, em Como e por que ler, afirma que ler bem é um dos grandes prazeres da solidão (BLOOM, 2001, p.15), tem-se a vaga impressão de que a solidão tem-seria a causa que levaria um dado leitor a procurar a leitura. Lygia nos relata uma experiência inversa dessa visão, ou seja, a leitura como motivo para buscar a solidão:

E pela primeira vez, em dez anos de leitora, eu tive a noção (ainda meio vaga) da inquietação que pega a gente quando se está assim em estado de amor por um livro: aquela coisa aflita de estar sempre procurando um jeito de ficar sozinha com ele, só a gente e o livro (BOJUNGA, 2001e, p.15).

A leitora Lygia Bojunga nos demonstra as múltiplas possibilidades de relação do leitor com aquilo que o escritor produz. O leitor pode, portanto, interagir emocionalmente com uma personagem, ou mesmo com a obra completa de um determinado escritor.

Edgar Allan Poe e sua coletânea de contos serão o terceiro caso de amor de Lygia Bojunga: Eu respirava o Poe me angustiando; me engasgando até‖ (BOJUNGA, 2001e, p.16). A leitora sente-se atraída por toda aquela atmosfera ―fantasticamente opressiva‖, elaborada pelo escritor.

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não foram preenchidas apenas por obras de autores masculinos; a escrita feminina fez-se presente com Clarice Lispector (1920-1977), Cecília Meireles (1901-1964), Jane Austen (1775-1817) e Katherine Mansfield (1888-1923), escritoras que contavam com a admiração, encantamento e até mesmo com certa afinidade da jovem Lygia Bojunga. A leitura desses clássicos foi refinando o gosto de Lygia pela leitura e tornando a leitora cada vez mais exigente. À medida que ia conhecendo mais as obras, a leitora Lygia Bojunga foi se dando conta do seu papel dentro daquele espaço literário:

E foi pensando nisso, me conscientizando disso, que eu dei pra reclamar um pouco de gente que escreve livro: Tá, tudo bem, você escreveu um bocado de texto, mas...e as entrelinhas? E as pausas? Os espaços em branco? As ambiguidades? Sou eu que fico enchendo aquilo tudo, não é? Eu: leitora. (BOJUNGA, 2001e, p. 21).

Lygia Bojunga questiona, nesta citação, a ausência dos vazios do texto. Pois são estes que possibilitam a participação do leitor na realização da obra. Sobre esses vazios, Wolfgang Iser, no texto ―A interação do texto com o leitor‖, explica que são eles que jogam o leitor dentro dos acontecimentos e o provocam a tomar como pensado o que não for dito. E ressalta:

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Esses espaços em branco aos quais Lygia Bojunga se refere, indicam os segmentos do texto a serem interligados, preenchidos, a fim de serem projetados como imagens construídas pelo leitor.

Portanto, pode-se inferir que quanto maior o número de espaços vazios, maior será a participação do leitor na projeção desses espaços. Daí, o fato de a leitora questionar e reclamar a presença deles. Ela deseja ter uma maior e mais efetiva participação na realização da obra. Podemos tomar uma obra sem espaços vazios como um monólogo onde só o autor fala, cabendo ao leitor a função de apenas ouvir, numa postura de completa passividade.

Jean-Paul Sartre, em Que é a Literatura?, chama esses ―espaços

brancos‖ de silêncios: ―aquilo que o autor não diz‖ (SARTRE, 1993, p. 38). Seria o inexprimível, o que não é dado pelo autor e que só se realiza na presença do leitor.

Consciente de seu papel como leitora, Lygia Bojunga chega a

ironizar os excessos de ―não-ditos‖ que cobram uma subjetividade

excessiva do leitor: ―Olha, francamente, eu acho que você tá abusando da gente: agora é tanta entrelinha pra encher nos livros que você

escreve, que não tem mais imaginação que dê conta‖ (BOJUNGA, 2001e, p.21).

Nesta citação, a leitora Lygia Bojunga afirma, de forma bem humorada, que a vivacidade da interpretação e a subjetividade leitora respondem, na mesma proporção, aos estímulos provocados pela

quantidade de espaços vazios propostos pelo autor; e arremata: ―Eu sou

leitora, logo, eu participo intimamente desse jogo maravilhoso que é o

livro; eu sou leitora, logo, eu crio‖ (BOJUNGA, 2001e, p.22).

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de amor, uma vez que o seu quarto caso nunca fora revelado, por tratar--se, segundo a própria leitora, de um caso vergonhoso em sua vida. Nas referências que fez a este escritor e obra anônimos, revelou que este produzia suas obras dentro de um formato padrão, utilizando sempre os mesmos ingredientes tão apreciados pelo gosto popular. E, assim, feito receita de bolo, Lygia o descreve:

A tal receita não tinha mesmo nada de original: um tanto de romantismo (era o ingrediente básico), um tanto de violência, outro de erotismo (mas parece que ele tinha dificuldade de encontrar esse ingrediente na forma pura e então acabava sempre usando um quebra-galho, um tal de pornô), e aí ele salpicava suspense, misturava de um jeito lá meio dele; e servia sem nem dar tempo de ir ao forno. (BOJUNGA, 2001e, p.18).

A leitora nos mostra, na descrição acima, quais os ingredientes que entram na composição de um best seller; e assim, de receita em receita, ela fora lendo todas as obras publicadas pelo famoso autor.

Mas, retornemos a Cartas a um Poeta, de Rilke, que despertou em

Lygia Bojunga a vontade de escrever e lhe revelou que o ―escritor é aquilo que ele escreve‖, ou seja, para se conhecer bem um escritor, não

se deve buscá-lo em biografias, mas sim nas obras que produziu: ―Pra mim, Cartas a um Poeta era o Rilke, e o Rilke era Cartas a um poeta

(BOJUNGA, 2001e, p. 22). Essa sensação que a leitora Lygia Bojunga afirma ter quando lê a obra de determinado escritor, revela-lhe e a nós, a impressão de ter sido criada junto com ele, pelo simples fato de passar a conhecê-lo intimamente.

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