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OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

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OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

OS TEMAS D’OS MAIAS

• Os principais temas d’Os Maias associam-se à ideologia e às preocupações nucleares do Realismo e do Naturalismo, que são as principais referências artís- ticas do romance.

a) O amor é um dos temas centrais d’Os Maias. Trata-se da força motriz que desencadeia e faz avançar a intriga principal — a relação sentimental entre Carlos e Maria Eduarda —, mas também do ingrediente que precipita as personagens para um desfecho desditoso, infeliz: o fim de um amor verda- deiro e de um projeto de vida a dois, mas também a morte de Afonso.

A ligação amorosa entre as duas personagens centrais termina quando se descobre que são irmão e irmã e, portanto, que vivem em situação de incesto (outro tema da obra), ainda que involuntário e inconsciente. Carlos sobrevive, profundamente desiludido, à frustração sentimental. De alguma maneira, a possibilidade de realização pessoal no amor e de uma existência feliz naufraga com a separação dos dois irmãos.

b) Tema profundamente realista, o adultério assume, assim, uma expressivi- dade considerável neste romance. A infidelidade amorosa está presente em linhas narrativas secundárias do romance, condicionando a vida de certas personagens. N’Os Maias estuda-se literariamente este fenómeno social, revelando como ele se associa à futilidade e à esterilidade do modo de vida e da mentalidade das classes burguesa e aristocrática bem como à educa- ção que os seus membros receberam.

Em primeiro lugar, é o amor o responsável pelos sobressaltos da vida de Pedro da Maia: a saída, em rutura, do lar paterno, a paixão inflamada por Maria Monforte e o seu suicídio. Aqui emerge outro tópico relevante da nar- rativa: o adultério, que é praticado por figuras femininas como a condessa de Gouvarinho, Raquel Cohen e, como vimos, Maria Monforte.

c) A educação é outro tema da obra. Desde logo porque condiciona o trajeto de vida de várias personagens do romance, como Carlos, Pedro da Maia e Euse- biozinho, mas também, pela análise que o processo narrativo se encarrega de fazer, Maria Monforte e Dâmaso, entre outras. Ao longo da narrativa, equa- ciona-se o problema de apurar qual o melhor modelo a seguir para educar um jovem português do século XIX. (A educação era um tópico de reflexão dos pensadores da Geração de 70, que acreditavam que ela podia ser a pedra filosofal que resgataria o povo português do seu atraso e da sua decadência.) Dois modelos de educação são colocados em confronto: o modelo tradicio- nal português, orientado pelos valores da fé católica, baseado no estudo teórico e livresco e na aprendizagem do latim; e o modelo britânico, apolo- gista do exercício físico, do contacto com a natureza, de uma formação moral sólida e humanista e do estudo das línguas vivas.

O modelo de educação português produz indivíduos de carácter fraco, de condição débil e sem uma orientação prática para a vida; exemplos disso são Pedro da Maia e Eusebiozinho. Carlos é educado segundo o modelo britânico mas falha na vida, ainda que não por causa deste tipo de educa- ção: são as circunstâncias da sua existência e os condicionalismos do Portugal em que vive que o tornarão um «vencido da vida». (Desta forma, o diletantismo — de Carlos, de Ega e da classe dirigente — acaba por constituir outra questão relevante da obra.)

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d) Do que foi dito se depreende que a decadência é outro tema d’Os Maias (para alguns estudiosos da obra, o tema é a própria ideia de Portugal no contexto do século XIX). Isto porque o romance procede a uma análise dos aspetos e das causas da decadência nacional.

A análise social empreendida identifica o problema em vários domínios da sociedade, como a degradação dos costumes e da moral (por exemplo, a falta de carácter dos portugueses), a incompetência e a indiferença da classe dirigente (com políticos como Gouvarinho, banqueiros como Cohen), a falta de civismo da sociedade burguesa (recorde-se o episódio das corridas de cavalos), o provincianismo, a futilidade, a falta de cultura (lembre-se o Sarau no Teatro da Trindade), etc.

A decadência é política, social, económica, cultural e moral. E as personagens do romance traduzem a descrença numa regeneração da pátria e das menta- lidades, facto que é ilustrado na conversa galhofeira do jantar no Hotel Central.

e) Outro tema d’Os Maias, que se associa ao da decadência, é a família, tópico que será analisado na secção «O título e o subtítulo» desta sistematização.

Leia-se esta mesma secção para compreender de que forma o próprio Romantismo, enquanto mentalidade dominante, é tematizado nesta obra (cf. também Reis, 2000: 40-42).

f) Por outro lado, a própria literatura e as ideias artísticas realistas/naturalistas (mas também as românticas) constituem questões temáticas que são abor- dadas por personagens do romance e problematizadas por Eça de Queirós na composição d’Os Maias, pela forma como mostra a falência do Roman- tismo (sobretudo na personagem de Alencar) ou como questiona a ideologia do Naturalismo (demonstrando que a hereditariedade e a educação não são fatores que garantam a realização pessoal, o carácter forte e a prosperidade de um indivíduo).

• Podemos incluir neste elenco outros temas (ou subtemas) da obra, que ocupa- rão uma posição secundária ou subordinada em relação aos temas principais:

o progresso, o jornalismo, o donjuanismo ou o tédio.

A REPRESENTAÇÃO DE ESPAÇOS SOCIAIS E A CRÍTICA DE COSTUMES

• A ação d’Os Maias decorre, em grande parte, em vários lugares de Lisboa e dos seus arredores, como em Sintra; no entanto, na infância e na juventude de Carlos da Maia, o leitor vai encontrar a personagem e o seu avô na quinta de família de Santa Olávia e em Coimbra.

• Esses lugares, que constituem o espaço físico do enredo do romance, são olha- dos de outra forma quando criam ambientes povoados com personagens da narrativa — várias delas personagens-tipo — e proporcionam momentos de caracterização de grupos sociais, de figuras individuais e, sobretudo, de crítica de costumes. A estes cenários que convidam à análise de comportamentos e de personagens dá-se o nome de espaço social.

Lisboa é o grande palco onde se desenrola o enredo d’Os Maias porque é na capital portuguesa que se movimenta a sociedade nacional, que é estudada e criticada no romance. É nos episódios que têm lugar em vários espaços lisboe- tas e dos arredores da cidade que assistimos ao vícios e à decadência da socie- dade burguesa da segunda metade do século XIX. Subtilmente, estabelecem-se contrastes entre Lisboa e outras capitais europeias — sobretudo Paris e Londres

— para melhor dar a conhecer os vícios cívicos e civilizacionais do nosso país.

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George Leonard Lewis, Palácio da Pena (1883).

• Entre vários espaços da capital onde a ação do romance se desenrola, destaca-se o Ramalhete, a casa dos Maias em Lisboa, que alberga a família ao longo de várias gerações e que, por isso, assiste aos seus reveses e aos momen- tos trágicos. É ela que corresponde à noção de lar da família na capital. Por outro lado, a quinta de Santa Olávia, propriedade dos Maias no Douro, repre- senta as origens rurais da família, o que lhe confere uma ligação ao campo, à natureza e ao que há de mais genuinamente português e não foi corrompido pela cidade. Funciona também como um santuário onde Carlos cresce e o avô Afonso se refugia.

• Já a Toca, vivenda dos Olivais com um nome simbólico e que serve de ninho ao amor de Carlos e Maria Eduarda, é um lugar afastado e resguardado do epicen- tro da vida social de Lisboa e, até certa altura, dos rumores e da maledicência.

Por fim, a Vila Balzac é a casa que acolhe os amores de Ega e de Raquel Cohen. Ambas as casas estão marcadas pelo signo dos sentimentos impuros:

a primeira, porque está associada ao adultério, e a segunda, ao incesto.

• Por seu lado, Coimbra, onde Carlos estuda, é a cidade que forma a futura classe dirigente do reino. Aí chegam as ideias filosóficas e científicas de filósofos e cientistas da Europa, como Hegel, Proudhon, Comte, Darwin, etc. Mas, na vida boémia estudantil coimbrã, encontramos já o embrião da vida diletante e estéril que minará personagens centrais do romance como Carlos da Maia e Ega.

• Já Sintra é a vila pitoresca aonde Carlos se desloca, no Capítulo VIII, na esperança de encontrar Maria Eduarda. Pela sua beleza natural e pela proximidade de Lisboa, este local afigura-se como um cenário que con- vida, com algum recato, aos amores… tanto aos puros como aos impuros.

• No Hotel Central, onde jantam Carlos, Ega e outras personagens da narrativa (Capítulo VI), o leitor assiste a uma discussão literária (que encena a polémica entre o Ultrarromantismo e o Realismo/Naturalismo) e às reflexões tro- cistas sobre a situação política e económica de Portugal. Nesta confraternização entre personagens com formação e com relevo na vida nacional (Cohen é um banqueiro e um homem influente; Alencar, o tipo do poeta ultrarromântico), não só observamos a indife- rença e a insensibilidade perante a decadên- cia do País como a incapacidade de alguns membros da elite lisboeta se comportarem com civismo e dignidade.

• No episódio das corridas de cavalos (capítulo X), que decorre no hipódromo, é denunciado o culto da aparência da sociedade burguesa e a sua aspiração de se mostrar requintada e cos- mopolita, imitando a realidade das corridas

inglesas. No entanto, o evento revela-se monótono e entediante, e os comporta- mentos, artificiais. Mais ainda, o ambiente apenas anima quando o provincia- nismo lusitano vem à superfície numa cena de discussão e pugilato que põe a nu a genuína falta de civismo do português.

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• No jantar em casa dos condes de Gouvarinho (Capítulo XII), é a classe dirigente da nação — representada pelo conde de Gouvarinho, político proeminente, e por Sousa Neto, alto funcionário da Instrução Pública — que revela a sua falta de cultura bem como a mediocridade das suas ideias e das propostas que tem para o País. Tal facto é notório quando estas personagens abordam tópicos relacionados com a educação (das mulheres), a filosofia e a literatura.

• Por outro lado, os vícios do jornalismo e a aspiração da burguesia são tratados nos episódios que decorrem nas redações dos jornais A Corneta do Diabo e A Tarde (Capítulo XV).

• No sarau artístico no Teatro da Trindade (Capítulo XVI) critica-se a futilidade da sociedade burguesa. A cultura das classes privilegiadas é pobre e falta-lhes o gosto e a sensibilidade pela arte mais exigente.

OS ESPAÇOS E O SEU VALOR SIMBÓLICO E EMOTIVO 1. O jardim do Ramalhete

• Antes de Afonso e Carlos decidirem habitar o Ramalhete, este espaço «possuía apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abando- nado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua de mármore ([…] Vénus Citereia) enegre- cendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres.» (Capítulo I).

• Depois de avô e neto se terem instalado neste espaço, o jardim é descrito da seguinte forma: «tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como amigos tristes e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de par- que, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século… e desde que a água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica esfiado gota a gota na bacia de mármore.» (Capítulo I).

• Finalmente, quando Ega e Carlos visitam o Ramalhete, dez anos depois, depa- ram com este cenário: «Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, que já ninguém ama: uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo;

e mais lento corria o prantozinho da cascata, esfiado saudosamente gota a gota, na bacia de mármore.» (Capítulo XVIII).

• Dado que Maria Monforte surge aos olhos de Pedro como uma deusa, é possí- vel associá-la à estátua de Vénus Citereia na sua primeira fase. É como se a presença desta figura feminina fosse sugerida obscuramente no quintal do Ramalhete, simbolizando a possibilidade de uma nova tragédia.

• Com a vinda de Afonso e de Carlos para Lisboa, a estátua renova-se, passando a simbolizar uma nova deusa que surge em Lisboa: Maria Eduarda. De notar, no entanto, que, apesar da nota de alegria proporcionada pela referência ao renasci- mento da estátua e à «cascatazinha deliciosa», a verdade é que o ambiente de melancolia se mantém parcialmente, sendo sugerido pela comparação do cipreste e do cedro a dois «amigos tristes» e pela alusão ao «pranto de náiade doméstica».

É possível, pois, considerar que se aponta desta forma para a presença de um destino funesto, cuja ameaça, mesmo em momentos felizes, parece estar latente.

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• Quando pratica o incesto, Carlos começa a sentir alterações na forma como via o corpo de Maria Eduarda: fora aquele corpo dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazona bárbara, com todas as suas belezas copiosas do animal de prazer.» (Capítulo XVII). Esta imagem pode ser associada à que a estátua tem no momento em que Carlos regressa ao casarão após o seu abandono: «uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus Citereia» (Capítulo XVIII).

2. O interior do Ramalhete no epílogo

• No epílogo (isto é, no Capítulo XVIII), Carlos e Ega visitam o Rama- lhete, espaço a propósito do qual o primeiro afirma: «— É curioso!

Só vivi dois anos nesta casa e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!» O seu amigo refere que tal se fica ao dever ao facto de ter sido naquele espaço que Carlos viveu «aquilo que dá sabor e relevo à vida — a paixão.» Com efeito, o protagonista tem uma intensa relação emotiva com este espaço não só pelo facto de ele estar associado à vivência do seu amor com Maria Eduarda, mas também pelas recordações que lhe proporciona do seu avô, Afonso da Maia.

• Nesta medida, a redução do Ramalhete à condição de um depósito de recorda- ções do passado torna-se muito pungente, sendo possível interpretar a destrui- ção que neste espaço se operou como um símbolo da efemeridade da vida: «De repente, deu com o pé numa caixa de chapéu sem tampa, atulhada de coisas velhas — um véu, luvas desirmanadas, uma meia de seda, fitas, flores artifi- ciais. Eram objetos de Maria, achados nalgum canto da Toca, para ali atirados no momento de esvaziar a casa! E, coisa lamentável, entre estes restos dela, misturados como na promiscuidade de um lixo, aparecia uma chinela de veludo bordada a matiz, uma velha chinela de Afonso da Maia!» (Capítulo XVIII).

• A morte é também simbolicamente representada neste passo pelos panos brancos que cobrem os móveis do escritório de Afonso da Maia — e que são designados como «sudários brancos» (Capítulo XVIII).

3. A Toca

• O nome «Toca» aponta para um espaço de proteção, imune às perturbações do exterior. O próprio Carlos sugere que se lhe ponha «Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!» (Capítulo XIII). Com efeito, os elementos perturbadores da relação (o artigo difamatório da Corneta do Diabo e o encontro de Guimarães com Maria Eduarda e subsequentes revelações) pro- vêm de Lisboa ou decorrem após Maria Eduarda regressar à Rua de S. Francisco.

No entanto, podemos ainda considerar que esta designação pode referir-se sim- bolicamente uma relação de carácter animalesco, porque incestuosa.

• O facto de Carlos introduzir «a chave devagar e com inútil cautela na fechadura daquela morada», o que «foi […] um prazer» (Capítulo XIII), pode ser entendido como um símbolo da relação sexual entre os dois amantes.

• Quanto ao quarto de Maria Eduarda, está carregado de símbolos que se assu- mem como presságios do desfecho trágico desta relação amorosa. Em primeiro lugar, temos a referência ao facto de a alcova se assemelhar ao «interior de um tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho» (Capítulo XIII).

Vénus Citereia (Bertel Thorvaldsen, Vénus com uma maçã, 1813-1816).

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Tal como este lugar sagrado, também a relação de Carlos e de Maria Eduarda acabará por perder a sua dimensão sublime e converter-se, após a descoberta do seu grau de parentesco, numa ligação meramente sensual. O carácter ilícito deste amor (não pela sua dimensão adúltera, mas pelo facto de os amantes serem irmãos) é sugerido pela referência aos «amores de Marte e de Vénus»

(Capítulo XIII), bem como a Lucrécia Bórgia — figura histórica conhecida pela luxúria e pelas relações incestuosas. A alusão a Romeu funciona também como um indício de uma relação amorosa que culminará de forma trágica. Final- mente, também a referência a S. João Batista aponta para a denúncia de uma relação considerada, na época, incestuosa (dado que Herodes casara com a sua cunhada — grau de parentesco equivalente, nesta fase, ao de irmã — e deseja a enteada, Salomé). Os indícios de catástrofe são também reiterados pelo olhar agoirento de uma coruja embalsamada. Finalmente, a insistência nas cores amarela e dourada pode ser entendida como uma referência à vitalidade e ao carácter ardente do seu amor, mas também à perversão que marca esta relação amorosa, dado que a cor amarela pode também ter esta conotação negativa.

• Na Toca, é posto em destaque um armário «“divino” do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio» e que «tinha uma majestade arquitetural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada um em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas, envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar:

depois, na cornija, erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices, cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e far- tura, dois faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos, tocavam, num desafio bucólico, a frauta de quatro tubos.» (Capítulo XIII).

É possível considerar os dois faunos como Carlos e Maria Eduarda, na medida em que os amantes, tal como as figuras míticas, se entregam exclusivamente à sensualidade, indiferentes a valores fundamentais representados pelas restan- tes figuras: o heroísmo, a religião e o trabalho.

• De notar que no epílogo, quando Carlos regressa ao Ramalhete, verifica que houvera «um desastre na cornija, nos dois faunos que entre troféus agrícolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucólica…» (Capítulo XVIII).

• Finalmente, destaca-se ainda, como «génio tutelar» (Capítulo XIII) da Toca,

«um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo um universo — e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como peles mor- tas de um feto.» (Capítulo XIII). Esta figura de contornos grotescos pode ser considerada como um símbolo da dimensão monstruosa do próprio incesto que será cometido naquele local.

4. Os espaços de Lisboa percorridos no passeio final de Carlos e Ega

• Carlos e Ega começam por percorrer o Loreto, espaço em que a estátua de Camões representa simbolicamente a época áurea dos Descobrimentos, que contrasta com a estagnação, inércia e decadência que marcam a sociedade do século XIX (daí a caracterização da estátua de Camões como «triste»).

• A decadência da sociedade está associada à degenerescência da própria população portuguesa, que é descrita como «feiéssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada» (Capítulo XVIII).

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• De seguida, os dois amigos chegam à Avenida da Liberdade, espaço que repre- senta simbolicamente um Portugal pretensamente moderno e cosmopolita.

• No entanto, podemos verificar que as tentativas de modernização do espaço urbano se resumem a uma zona muito limitada, terminando de forma abrupta no fim da Avenida, não passando, portanto, de um «curto rompante de luxo barato» (Capítulo XVIII).

• Neste espaço se confirma também a degenerescência dos portugueses — neste caso, especificamente, através da descrição da juventude. Com efeito, esta «mocidade pálida» (Capítulo XVIII) — cuja falta de vitalidade é, provavel- mente, uma consequência da educação tradicional portuguesa — limita-se a passear pela Avenida da Liberdade sem propósito aparente. Assim — ao con- trário da geração de Carlos e de Ega —, nem sequer tem qualquer ideia de transformação do país, tendo apenas o objetivo de ostentar um luxo artificial com o qual não se sente confortável. O absurdo desta situação é agravado pelas botas que estes jovens calçam: na sua ânsia de parecerem muito civilizados, os portugueses copiaram o modelo do estrangeiro, mas levaram-no ao excesso, acabando por cair no ridículo. De acordo com Ega, este é o processo seguido por toda a sociedade portuguesa da época que, no seu provincianismo, julga que este é o caminho para a modernização.

• Finalmente, Carlos aponta para os «velhos outeiros da Graça e da Penha», que representam simbolicamente a hipótese de orientação para aquilo que é genui- namente português. No entanto, como Ega refere, esta solução também não é satisfatória, uma vez que implicaria o regresso ao um passado decrépito, asso- ciado ao domínio do clero e da nobreza.

A DESCRIÇÃO DO REAL E O PAPEL DAS SENSAÇÕES

• Eça de Queirós revela-se exímio a compor descrições, tanto de espaços sociais urbanos como de cenários campestres. No romance Os Maias, o narrador des- creve a realidade social do seu tempo em vários lugares de Lisboa e arredores:

a casa dos Gouvarinho, o Hotel Central, o teatro da Trindade, o hipódromo, etc.

Por outro lado, demora-se também na caracterização de ambientes naturais, como Sintra ou a Quinta de Santa Olávia.

João Christino, Lisboa, Avenida da Liberdade (litografia publicada na Mala da Europa, n.o 488, 1905).

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• As descrições de lugares, personagens e comportamentos concretizam-se em anotações que resultam sobretudo de observações do narrador. Tal significa que o registo descritivo assenta em perceções visuais desses elementos;

ou seja, nesta obra de ficção, simula-se que o narrador caracteriza os espaços e as figuras que, pretensamente, estaria a observar.

• Encontramos um exemplo de descrição pautada pela perceção visual no seguinte passo do sarau da Trindade: «De ambos os lados se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde dominavam os chapéus de senhoras picados por manchas claras de plumas ou flores.»

• Esta caracterização dos espaços, em que domina a técnica da verosimilhança, procura representar os lugares «como eles são». Ela serve os princípios artísti- cos e os objetivos do Realismo, pois, ao representar o mundo social, analisa-o também socialmente.

• Outra técnica descritiva importante usada por Eça é a técnica impressionista.

Como sucede na pintura do Impressionismo, neste tipo de descrição de lugares, figuras e elementos dá-se maior relevo à luz e às manchas de cor de um conjunto (uma paisagem, um pôr do Sol) do que à forma exata ou aos contor- nos desses elementos. Veja-se como a cor e os reflexos de luz sobressaem na representação da multidão e de outros elementos no episódio das corridas de cavalos.

• Há, no entanto, momentos d’Os Maias em que as descrições se destacam por referências ou sugestões a sensações olfativas, auditivas e táteis. As sensa- ções olfativas estão frequentemente associadas a cenários naturais e decorrem das fragrâncias exaladas pela vegetação: «as chaminés […] ornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; era ainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo» (Capítulo I).

• Relativamente a perceções sensoriais auditivas e táteis, também elas podem ser sugeridas na caracterização de cenários campestres, como os de Sintra (Capítulo VII). Encontramos exemplos de tais caracterizações quando Carlos e Cruges estão a chegar a Sintra: «envolvia-os pouco a pouco a lenta e embala- dora sussurração das ramagens e o difuso e vago murmúrio das águas corren- tes» (auditivo); e «o ar subtil e aveludado» (tátil). Desta forma se dá conta de como o cenário envolvia plenamente e fascinava as duas personagens.

• Em algumas descrições irrompe a sinestesia, ou seja, expressões em que se cruzam ou se fundem diferentes perceções sensoriais: «transparentes novos dum escarlate estridente» (visual e sonoro); «luz macia» (visual e tátil).

REPRESENTAÇÕES DO SENTIMENTO E DA PAIXÃO 1. Diversificação da intriga amorosa

• N’Os Maias, a diversificação da intriga amorosa é conseguida através da refe- rência a diferentes tipos de relação — entre os quais se destacam as ligações Pedro da Maia/Maria Monforte, Ega/Raquel Cohen e Carlos da Maia/Maria Eduarda.

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Pedro da Maia/Maria Monforte

Pedro, personagem marcadamente naturalista, é vítima da hereditariedade, da educação e do meio em que viveu. Com efeito, além de ser «pequenino e ner- voso» (Capítulo I) como a sua mãe, acaba por se tornar um ser apático, passivo e nervoso, em consequência da educação tradicional portuguesa.

• A paixão obsessiva que nutre pela mãe — e que o leva a roçar a loucura aquando da sua morte — acaba, na idade adulta, por ser transferida para Maria Monforte, figura feminina bela, fútil, caprichosa e manipuladora.

• Influenciado pelo Romantismo, Pedro revolta-se contra o pai, que não aprova o casamento com a filha de um antigo traficante de escravos, e casa com Maria.

• No entanto, a leviandade de Maria Monforte leva-a a fugir com Tancredo.

• A fragilidade psicológica de Pedro torna-o incapaz de sobreviver à fuga da mulher, suicidando-se.

Ega/Raquel Cohen

• A paixão da vida de Ega acaba por ser o romance adúltero com Raquel Cohen, mulher do banqueiro Cohen.

• O carácter ilícito desta relação, bem como o facto de os amantes se encontra- rem na Vila Balzac, espaço cuja decoração — em tons de vermelho e tendo como ponto fulcral o leito — é propícia à sensualidade, mostra que, tal como sucedera com Pedro e Maria Monforte, também a paixão entre Ega e Raquel Cohen é influenciada pelos ideais do amor romântico.

• Esta relação termina no momento em que Cohen, descobrindo o adultério, expulsa Ega. No entanto, este episódio — que poderia ter contornos trágicos

— acaba por ser investido de um tom grotesco, uma vez que, porque tudo sucedeu num baile de máscaras, Cohen se encontrava vestido de beduíno e Ega, de Mefistófeles. Além disso, Raquel é espancada pelo marido, mas acaba por se reconciliar com ele.

• Deste modo, o único elemento sublime que acaba por restar desta relação amorosa são as recordações de Ega, que este evoca junto de Carlos e Craft, mas cujo dramatismo é, mais uma vez, diluído pelo facto de aquele se encon- trar profundamente ébrio.

Carlos/Maria Eduarda

• Após uma relação fugaz com a condessa de Gouvarinho — que nutre por ele uma intensa paixão não correspondida —, Carlos acaba por encontrar o grande amor da sua vida em Maria Eduarda.

• Todas as relações anteriormente referidas (Pedro/Maria Monforte, Ega/Raquel Cohen e Carlos/condessa de Gouvarinho) contribuem para exaltar o carácter sublime desta última relação amorosa.

• Com efeito, no amor de Carlos e de Maria Eduarda, não temos uma relação marcada pela manipulação (como sucedera com Pedro e Maria Monforte) nem pela superficialidade (como acontecia nos casos de Ega e Raquel Cohen e de Carlos e da condessa de Gouvarinho). A paixão entre os protagonistas decorre de uma sintonia de personalidades — já que ambos são inteligentes, cultos e requintados — que os eleva acima da sociedade mesquinha em que vivem e lhes permite superarem todas as contrariedades — até que um destino impie- doso se abate definitivamente sobre eles.

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• Não deixa de ser curioso o facto de Carlos, aquando da descoberta do seu grau de parentesco com Maria Eduarda, considerar que tanto ele como a sua amada eram seres profundamente racionais que conseguiriam facilmente sufocar os seus sentimentos agora que sabiam ser irmãos. O desdém que mostra pela mentalidade romântica rapidamente se desfaz no momento em que se revela incapaz de contar a verdade a Maria Eduarda, acabando por ceder à tentação e cometendo incesto voluntariamente.

• Assim, podemos verificar que também a relação amorosa entre Carlos e Maria Eduarda é influenciada pelos ideais do amor romântico — de forma mais dra- mática no momento do incesto, mas também pelo facto de ambos enfrentarem as convenções sociais e decidirem ficar juntos (num primeiro momento, numa suposta relação de adultério, num segundo momento, numa relação de aman- tes, que se torna mais controversa pelo passado de Maria Eduarda).

• De facto, esta realidade é magistralmente sintetizada na fala de Ega, aquando da sua última visita ao Ramalhete: «Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…» (Capítulo XVIII).

2. A intriga trágica

Peripécia/

Anagnórise

Revelação da relação de parentesco entre Carlos e Maria Eduarda feita por Guimarães a Ega; revelação desta relação de parentesco feita por Ega a Vilaça, por este a Carlos e por Carlos a Afonso.

Hybris /Clímax Carlos é incapaz de resistir à paixão que sente por Maria Eduarda e comete incesto voluntariamente.

Catástrofe Afonso morre e Carlos e Maria Eduarda separam-se para sempre.

CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS DOS PROTAGONISTAS

• Na Poética, Aristóteles afirma que as personagens da tragédia deveriam ter uma condição elevada.

• É isto, de facto, o que sucede n’Os Maias: Afonso da Maia, Carlos da Maia e Maria Eduarda são personagens de condição superior não apenas pelo seu estatuto de fidalgos, mas também (e sobretudo) pela nobreza do seu carácter.

Ainda que nenhuma destas figuras seja perfeita, a verdade é que todas têm traços heroicos.

Afonso da Maia

• Apesar de ter alguns traços de diletantismo (que o levarão a esquecer facil- mente a dura luta travada pelos seus companheiros liberais em Portugal enquanto vivia uma vida luxuosa em Inglaterra e a limitar-se a aconselhar Carlos e os amigos a fazerem algo para mudar Portugal, ao invés de agir), Afonso da Maia é uma personagem admirável.

• Com efeito, apesar de os princípios morais o terem levado a desaprovar o casa- mento de Pedro, quando este regressa, humilhado, após a partida de Maria Monforte, o seu amor paternal leva-o a reconciliar-se com o filho e a apoiá-lo, ao invés de o recriminar.

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• Além disso, a sua enorme força interior é demonstrada pela capacidade de sobreviver à morte do filho e de se dedicar com entusiasmo à educação do neto.

• Finalmente, é uma personagem profundamente digna, que não se deixa sedu- zir pelo luxo que Carlos tanto aprecia, vivendo de forma simples e austera.

À virtude da sobriedade acresce o facto de ser inteligente, culto e caridoso — tanto com as pessoas, como com os animais.

Carlos da Maia

• Apesar do carácter diletante, que prejudica os seus estudos universitários e, após o regresso a Lisboa, o impede de concretizar os seus projetos no campo da Medicina, Carlos é também uma personagem na qual ressaltam caracterís- ticas positivas.

• Com efeito, ao longo da intriga, destaca-se pela sua inteligência, cultura e sen- tido de humor, assumindo uma atitude crítica e irónica em relação à sociedade portuguesa.

Maria Eduarda

• Apesar de as circunstâncias da vida a terem forçado a viver com Mac Gren sem se casar e, posteriormente, a tornar-se amante de Castro Gomes, Maria Eduarda nunca perde a sua dignidade.

• À semelhança de Carlos e de Afonso da Maia, é inteligente e culta. Além disso, herda de Afonso da Maia a capacidade de se compadecer dos mais fracos.

Como é apanágio da tragédia, a nobreza de todas estas personagens torna mais pungente a catástrofe que se abate sobre elas.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA 1. Os Maias enquanto romance

• A obra Os Maias deve ser classificada literariamente como um romance; isto porque, segundo as regras deste género literário, se trata de uma narrativa longa (mais extensa do que o conto e a novela) em que existe mais do que uma linha de ação — embora, por regra, domine uma principal — e um número considerável de personagens. Por esse motivo, multiplicam-se os espaços em que o enredo se desenvolve e a organização temporal torna-se mais complexa.

• A relação amorosa entre Carlos e Maria Eduarda constitui a ação principal d’Os Maias: esta linha narrativa funciona como motor do romance, e é a vida e o destino destas personagens centrais que dinamizam o texto. Por outro lado, encontramos uma linha de ação secundária: o casamento de Pedro da Maia e Maria Monforte.

• Numa narrativa extensa, de enredo complexo, é natural que o número de per- sonagens que sobe à cena se multiplique. Além das figuras centrais, Carlos e Maria Eduarda, que são complexas (modeladas), encontramos n’Os Maias personagens que participam na ação central (Afonso da Maia, Ega, Castro Gomes), mas também outras entidades de importância. Assim, personagens-tipo ou caricaturas, como Palma Cavalão, Sousa Neto, o Neves, estão sobretudo ao serviço da crítica social porque neles se estudam vícios e tiques sociais.

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• Essa crónica de costumes que anima Os Maias decorre sobretudo em vários lugares de Lisboa e dos seus arredores. Assim, a multiplicidade de espaços físicos lisboetas — como o Hotel Central, o hipódromo, o teatro da Trindade

— constrói uma série de palcos onde podemos analisar os comportamentos de grupos e figuras típicas da sociedade burguesa oitocentista: espaço social.

• Por seu lado, a organização temporal da narrativa é também complexa neste romance. A narrativa inicia-se em 1875, quando Carlos da Maia se prepara para vir viver para Lisboa; mas logo assistimos a uma retrospetiva (analepse) que leva o leitor a conhecer a vida do avô e do pai do protagonista. Por outro lado, o romance encerra com um epílogo que tem lugar dez anos após o desfe- cho da intriga principal.

2. O título e o subtítulo

• O título do romance, Os Maias, é uma referência direta à família fidalga, oriunda do Norte do País, que ocupa uma posição central na narrativa. De facto, se Carlos da Maia é a personagem nuclear da ação principal, a vida do seu pai e do seu avô assumem relevância no romance. Aliás, o enredo d’Os Maias remonta a algumas décadas anteriores ao nascimento do protagonista. A perti- nência do título manifesta-se também no facto de os acontecimentos da intriga principal, a relação incestuosa de Carlos e Maria Eduarda, serem uma conse- quência dos infortúnios e dos desencontros dos membros da família Maia.

• Nesse sentido, a obra enquadra-se na classificação de «romance de família», porque faz desfilar nos dois capítulos iniciais, de forma resumida, a vida de quatro gerações de Maias, representando os diferentes períodos do século XIX

português. Numa fugaz presença na narrativa, Caetano da Maia, adepto do Absolutismo, manterá uma relação tensa (por questões ideológicas) com o seu filho, Afonso, que defende as ideias do Liberalismo. Já Pedro da Maia, filho de Afonso, representa a segunda geração liberal e a mentalidade romântica.

Por fim, Carlos da Maia aparece como um contemporâneo da Regeneração (1851-1906).

• Assim, através das personagens desta família, equacionam-se questões da época: a decadência, o progresso material, o rotativismo político, etc. Assim, até certo ponto, a família Maia representa metonimicamente Portugal e a decadên- cia da nação ao longo do século XIX.

• Se o título aponta para a história de uma família, o subtítulo — Episódios da vida romântica — abre o leque de possibilidades da narrativa para a tornar um estudo da sociedade portuguesa (sobretudo) da segunda metade do século XIX. Nessa medida, este subtítulo aponta para a crónica de costumes, que atravessa o romance e se desenvolve a par da intriga principal. Nesse estudo da socie- dade portuguesa analisam-se os comportamentos, os hábitos, as práticas de um povo, a fim de denunciar e criticar os seus vícios, incongruências e falhas.

• Uma finalidade maior d’Os Maias, enquanto estudo social, é tentar compreen- der as «causas da decadência» do povo português no século XIX. Aliás, Eça de Queirós planeara escrever um conjunto de doze novelas de cariz realista/natu- ralista, que receberia o título de Cenas da vida portuguesa ou Crónicas da vida sentimental, mas o projeto não foi concluído. Esta obra multifacetada comporia um painel de retratos do Portugal de então e versaria temas como o alcoolismo, o adultério, o jogo, o sacerdócio, etc.

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João Abel Manta, As personagens de Eça (meados do século XX).

• Quanto ao método seguido na análise social, Eça concebe uma série de episódios em que as características dos portugueses se manifestam. Nestes episódios, desmascaram-se traços da identidade coletiva portuguesa, como o parasitismo, o oportunismo, a inércia, a falta de cultura e outros vícios que, pelo menos em parte, explicam a situação do Portugal da Regeneração.

• O subtítulo do romance sugere que no Portugal do fim do século XIX pulsa ainda uma «vida romântica»; Ega decifra o sentido da expressão: «— E que somos nós? […] Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão…». Românticos são Ega, Carlos e os restantes membros da sociedade burguesa aqui retratada, porque as personagens do romance, se, por um lado, extravasam paixão, emoção e espontaneidade (os amores, legítimos ou adúlteros, as amizades e as inimizades virulentas, a maledicência, a desorganização e a desordem), por outro, revelam-se parcas em seriedade, organização, equilíbrio, trabalho, disciplina e empenho (razão).

Ou seja, faltam as qualidades necessárias para colocar o País na rota do desen- volvimento, do civismo e da justiça social.

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• O Portugal de Carlos é romântico porque herdou as ideias, os valores e as cren- ças da segunda geração liberal e romântica e neles se fossilizou. Tipicamente romântica é também a mentalidade pautada pelo tédio, pela ociosidade e pelo diletantismo, que minam a existência das personagens desta obra.

• Decorrente desta ideia está a segunda explicação para a mentalidade romântica do fim de século. A sociedade romântica é a sociedade liberal, dominada pela burguesia e pelos seus valores: materialismo, mercantilismo, elitismo, (pseudo-) requinte, o luxo, a monarquia. São estes valores decadentes, liberais, burgueses

— românticos! — que ainda conduzem a sociedade portuguesa e o grupo diri- gente, condenando o País ao atraso e à pobreza (material e de espírito).

3. Linguagem e estilo

• Em termos de registos de linguagem, a prosa de Eça de Queirós revela-se admiravelmente versátil e maleável. Por um lado, no melhor registo literário e elevado, atinge rasgos de grande beleza com a construção frásica elegante e cuidada, as imagens plásticas sugestivas e o léxico erudito. Por outro lado, sobretudo na reprodução das falas das personagens, recorre-se aos registos familiar e corrente e, ocasionalmente, ao calão para reproduzir com naturali- dade e humor os tiques de linguagem oral do português do fim de século.

• Ainda no que diz respeito à «reprodução do discurso no discurso», o discurso direto dos diálogos e o discurso indireto livre (técnica em que a voz de uma personagem e do narrador se sobrepõem) revelam-se estratégias ao gosto da literatura realista na medida em que se colocam as personagens em interação, de forma a exporem-se através do que dizem e a denunciarem o seu carácter, incongruências e vícios, num processo de caracterização indireta em que a personagem mostra o que é pelo que afirma e pela forma como afirma: Dâmaso é boçal; Cohen, inculto; Ega, pedante; Palma «Cavalão», hipócrita, etc.

• Por outro lado, os recursos expressivos conferem originalidade e riqueza à prosa queirosiana. A ironia é um recurso expressivo cultivado por Eça, tanto porque serve a crítica social como porque se trata de uma figura de estilo que confere leveza, encanto e humor à narrativa. Este recurso expressivo revela-se adequado para denunciar as contradições, as incongruências e as falhas das personagens e dos comportamentos sociais.

• A hipálage é outro recurso expressivo que se associa à prosa romanesca de Eça, tendo em conta a elegância e a expressividade com que o romancista a usou. A hipálage, recorde-se, consiste em associar uma palavra (normal- mente um epíteto) não ao termo a que estaria naturalmente ligado mas a um vocábulo vizinho: «Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo» (era Ega quem estava pensativo, não o seu olhar).

• A comparação e a metáfora são recursos expressivos de capital importância na caracterização de certas personagens e da vida lisboeta. Em tom irónico ou trocista, na boca de algumas personagens a comparação e a metáfora são formas de caracterização insultuosa: por exemplo, «a besta do Cohen».

Facilmente a ironia se associa à metáfora na caracterização de alguém, neste caso, o conde de Gouvarinho, acerca de quem Ega diz: «— Tem todas as con- dições para ser ministro: tem voz sonora, leu Maurício Block, está encalacrado, e é um asno!…».

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• Noutros casos, a comparação, a metáfora e as imagens tomam parte nas des- crições artísticas de paisagens: «Iam ambos caminhando por uma das alame- das laterais, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem.» Ou então, traduzem, de forma admirável, os estados de alma humana, como no caso da metáfora: «os bigodes esvoaçando ao vendaval das paixões». Para caracterizar o vazio existencial de Pedro da Maia, diz-se que, para ele, «dias [são] taciturnos, longos como desertos».

• No seu período de maturidade literária, Eça de Queirós trabalhou o adjetivo e o advérbio de forma artística e disciplinada, de modo a obter uma expressivi- dade admirável. O adjetivo pode ser usado, em Eça, de forma surpreendente, associando-se a elementos a que não se ligava semanticamente: «sorriso mole»,

«chiar lento das rodas». Nesses casos, projeta na frase a subjetividade e o juízo do enunciador (narrador ou personagem). Os casos de adjetivação dupla revestem-se de particular significado, sobretudo quando os adjetivos contrastam entre si, associando o concreto e o abstrato, o físico e o psicológico, etc.: «maciço e silencioso palácio», «uns sons de piano, dolente e vago». Alguns dos exem- plos revelam que o adjetivo pode estar ao serviço da crítica.

• Igual função pode ser desempenhada pelo advérbio, sobretudo quando tem uma presença inesperada e surpreendente na frase: «remexia desoladamente o seu café». Aí o advérbio corresponde, como o adjetivo, a um comentário ou a uma constatação do enunciador; noutras situações, desencadeia um efeito humorístico. Significativos são os casos em que o advérbio contrasta com o significado do verbo, como em «Dâmaso sorria também lividamente».

• O verbo é outra classe de palavras trabalhada criativamente, produzindo em vários passos combinações sugestivas e plenas de significado: «mordia um sor- riso», «vamo-nos gouvarinhar», «Ega trovejou», etc. Por outro lado, tanto o pre- térito imperfeito do indicativo, que alude a ações repetidas, como o gerúndio conferem dinamismo às descrições. As formas verbais do imperfeito e gerúndio funcionam também normalmente como modos de dar conta do valor aspetual habitual ou durativo da ação: «o tédio lento ia pesando outra vez.»

• Ainda no domínio do vocabulário, o texto d’Os Maias surge polvilhado de estrangeirismos, que são criteriosamente usados. Assim, tanto o «anglicismo»

( vocábulo de origem inglesa) como o «galicismo» ou «francesismo» traduzem frequentemente a pretensão das personagens em exibir um requinte, uma modernidade e um cosmopolitismo, que, contudo, acabam por ser artificiais.

Vemos aqui o jogo das aparências em que a sociedade burguesa tanto se com- praz. Por exemplo, no episódio das corridas de cavalos, o vocabulário deste espetáculo tão pouco nacional é requisitado à língua inglesa: «jockey», «sports- man», «handicap» ou «dead-beat». Não raro, o estrangeirismo é usado de forma irónica, como o famoso «chique», de Dâmaso, que denuncia a sua sub- missão pacóvia ao francesismo, o qual também marca presença no romance para aludir a questões de moda e sociedade.

• Por último, o diminutivo pode assumir vários significados: se em alguns casos se trata de uma expressão de afeto («Carlinhos», «o latinzinho»), mais interes- sante é a sua utilização irónica para depreciar ou ridicularizar alguém: «Dama- sozinho, flor, fique avisado de que, de ora em diante, cada vez que me suceder uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela […].» O diminutivo encarrega-se de participar na atitude trocista do narrador e de algumas perso- nagens na crítica de comportamentos e de costumes.

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